O Tio João Gil: Edição para o ELTeC Crónica d'Aldeia Lobo, Francisco Barros (? - ?) Criação do HTML original Madalena Rato Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 125845 COST Action "Distant Reading for European Literary History" (CA16204) Zenodo.org ELTeC ELTeC release 1.1.0 ELTeC-por ELTeC-por release 2.0.0 Francisco Barros Lobo O Tio João Gil: Chronica d'Aldeia Francisco Barros Lobo O Tio João Gil: Chronica d'Aldeia Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso Lisboa 1906

português de Portugal Converted by checkUp script for new release Adicionado à coleção ELTeC

O Tio

João Gil

CHRONICA D'ALDEIA

POR

BARROS LOBO (Francisco)

LISBOA

LIVRARIA EDITORA

VIUVA TAVARES CARDOSO

5, Largo de Camões, 6

1906

I

Coisas da fortuna

Não sei por que artes, como nem como não, tanto a tia Ricardina Mendes teceu, tanto fez, tanto batalhou, que, em summa, conseguiu desvirar o marido, -- obteve que elle lhe satisfizesse o particular gostinho de pôr o filho mais novo a estudos para padre.

O tio Anselmo Gil, a principio, dava por paus e por pedras quando a mulher lhe falava em similhante coisa; ia ás do cabo.

Era o bom e o bonito ouvil-o! A sua voz corria toda a gamma de tons A sua argumentação era preciosa.

-- E's maluca, mulher, diabo! -- berrava elle -- Deixa-me, n'o me tentes... Ora mas o que se t'a ti havia de metter em cabeça!... Que raio de mania, que scisma a tua!... N'o quero, já te disse. E n'o quero e n'o posso, 'stá 'cabado, acabou se. -- Ora, ora, ora... ponham lá o João a padre!... Parece-lhes... Ponham lá o João a padre!... Com mil raios! e o Manuel?... Tens, p'ra lhe deixar, tanto como havia de sêr mister gastar c'o João?... Vá, responde; tens?... -- Safa, qu' é forte mania a tua!! -- E atão padre!... logo padre!... Olha que grande vida!... Foi tempo, minha rica amiga; foi chão que deu vinha; hoje ser-se padre... eu sei lá!... -- Mas acabou-se, 'stá 'cabado, nem padre, nem coisissima nenhuma; n'o posso, nem quero, acabou-se.

E, sempre, que não podia e que não queria, que não queria e que não podia, -- e que 'stava acabado.

Era com o que elle lhe dava.

Mas afinal venceu a tia Ricardina. Aquillo, salvo seja, não era mulher, era um caustico. Tinha-lhe dado para ali; não pensava, não sonhava n'outra coisa: occasião que se lhe ageitasse, lá estava ella logo a advogar a sua idéa. A sua suprema ventura consistia em ouvir o seu João cantar missa: depois, em ouvindo o seu João cantar missa, podia vir a morte e leval-a, que ella já pouco se lhe dava do mundo.

Foi, pois, o moço para a Guarda, para o seminário diocesano. O irmão andava no amanho das terras do casal; a mãe trabalhava que nem uma moira no governo da sua casa; o pae, como sempre, lá ia indo com Deus tambem na faina da lavoura, topando a tudo.

Que bem se sabe como é laboriosa e complicada a vida do aldeão agricultor. Serviço não falta. Ora de carro, ora d'arado, aqui fiscalisando, além trabucando -- porque lá diz o adagio que quem não trabuca não manduca, e que ninguém caça do coração como o dono furão -- nunca essa entidade social pára, nunca cessa de labutar.

Passado o primeiro anno voltou o estudante á terra, a ferias, e então houve no lar domestico mais alegrias que se do céo chovesse azeite. A sobrepeliz e a batina ficavam-lhe a matar: quando aos domingos, elle ia todo paramentado com as roupas escolasticas da profissão ajudar á missa, a mãe enlevava-se a phantasiar na creança o futuro prior da freguezia. Acontecia lhe errar mais Padre-Nossos!... deixar tantos em meio!... passar tanta vez á Ave-Maria ou á Salvè-Rainha!...

Loucuras de mãe, a adoravel, a sublime doida da creação!

Tornou o joven ordinando para a cidade, a qual segundo o velho rifão é feia, fria e farta, e outra vez voltou a férias.

Estava um tamanhão: tinha medrado um palmo e tanto. A mãe já lhe perguntava se elle ia entendendo da missa, se começava a entrar com ella; o pae revia-se n'elle com grande vaidade, e perguntava-lhe em meia confidencia se o sr. padre David, que vinha a ser áquelle tempo o prior da freguezia, era com effeito homem de tanto saber como se cuidava; o irmão tinha lhe um boccadinho de inveja: natural e perdoavel inveja, que nada depõe contra o rapaz.

Ao terceiro anno estava João um homem feito; o pae descobriu então que elle não tinha grande pinta para padre, que olhava de mais para as cachópas ; a mãe estranhou-lhe não trazer elle ainda corôa aberta; o irmão ufanava-se de o acompanhar, e ouvia-lhe assombrado as suas confidencias lamentosas ácerca do futuro a que os pães queriam votal-o.

Afinal o rapaz estava desgostoso da carreira a que o destinavam.

-- E' que tu -- redarguia elle ao irmão -- não sabes o que é ser padre, renunciar á vida, ser um morto vivo!

Manuel, dizendo o ponto da verdade, não comprehendia bem o alcance d'estas palavras. Parecia-lhe excellente o estado ecclesiastico: não via por onde elle desmerecesse. No emtanto calava-se. Soava-lhe na voz do irmão um tom de tristeza, que sem elle saber como, nem pelo quê, lhe impunha respeitoso silencio: tirava-lhe toda a vontade d'argumentar.

No anno immediato nada occorreu que valha a pena referir-se. Tudo como d'antes. No outro, no seguinte, é que rebentou a bomba: o rapaz não queria ser padre nem por mais uma: não sentia vocação nenhuma, absolutamente nenhuma, para tal modo de vida: preferia andar á rabiça do arado, a cavar terra, a roçar matto, que ser clerigo. Não estava pelas contas da mãe: não queria tomar ordens, amortalhar-se em vida. Nem á mão de Deus Padre!

As consequencias d'este desmando á vontade paterna deram que falar. O tio Anselmo era muito bom homem, sim, não ha duvida, mas tambem muito sério, nada para graças pezadas; e quando ouviu o filho dizer-lhe abertamente que se não sentia com disposições nenhumas para sentar praça nos exercitos da milicia do Senhor, agarrou de uma soga e foi-lhe ao pello. Poz-lhe a mão e a boa vontade!

-- Ah! n'o queres ser padre?!... -- exclamava elle.

E zás! zás! bate que bate.

-- N'o queres ser padre, grande maroto?!...

E traz! traz! mais e mais correada, em termos que João houve de ser sangrado.

A tia Ricardina chorava lagrimas de sangue por causa da rebellião do filho, e das furias do marido. Vêr cahidos por terra, derrocados, os castellos seus ideaes, com effeito, era muito: mas vêr prostrado o filho, o seu João, ella que tanto o estremecia, que tanto o idolatrava... Seja pelo divino amor de Deus! Mãe, e basta.

-- N'o são modos de bater! -- dizia ella para o marido debulhada em lagrimas -- N'o são modos de bater... Foi uma brutalidade.

O tio Anselmo afinava com tal censura.

-- Isso!... -- bramia elle -- Isso, mulher! é o que deve de ser! Pois atão qual é o sê geito?! Queixa-te, vá: agora queixa-se de mim: pois atão!?...

E logo em impetos apaixonados assacava-lhe todas as responsabilidades do occorrido.

-- Mas foste tu que me metteste n'estes travalhos! P'r'amor de ti é que tudo isto foi! Tens alma de dizer que não?... Anda, responde!... E's capaz de dizer que não?... Ah, senhores, a minha paciencia!...

Estas scenas passavam.se no sanctuario conjugal, discretamente.

Respondiam-lhe ais e suspiros. A pobre mãe asphyxiava de dôr. Então o tio Anselmo abrandava, voltava ás boas.

No fim de tudo elle era amicissimo da mulher e do filho. Já lhe pezava o que tinha feito: dava aos diabos a sua cegueira. Não queria lagrimas.

-- Vá lá, vá lá, n'o chores -- dizia elle então em termos conciliadores para a mulher. -- Deixa, qu'as ventosas hão-de obrar. Umas correadas n'o quebram osso, n'o matam ninguem. Mais valentes tozas levei eu, e a tranca eram ellas, de mê padrasto, que Deus pordôe á su'alma, e eu inda aqui 'stou.

E era facto. O padrasto tinha-lhe dado pancada de crear bicho. O desalmado, por umas cascas de alho, muitas vezes sob pretextos fabulosos, punha-lhe uma tranca aos lombos. Estava-o sempre a zurzir.

-- Vá, vá, n'o chores -- insistia o tio Anselmo conciliador. -- N'o chores, que te n'o quero vÊr chorar! Deixa... Ora tu verás qu' as ventosas foram um grande remedio!

E, coitado! elle tinha fé na sóva. Perdoava-se mesmo o excesso commettido, por lhe parecer que haviam de ser salutares os effeitos d'ella!

Mas não. Aqui se enganou o nosso homem; o castigo não operou o milagre que elle esperava. João não mudava de parecer: ia a mãe por um lado, iam as pessoas amigas por outro, iam parentes, iam adherentes, instavam-n'o a que tomasse ordens, que não desgostasse o pae, que não desse gostos aos inimigos, e a resposta era sempre a mesma, positiva, terminante:

-- Nunca! Nunca!

Em vista d'isto, d'esta resistencia, mudou o tio Anselmo de tactica.

-- Ora vamos lá a vêr! -- disse elle um dia para os seus botões -- Vamos a experimentar...

E pensado e resolvido; poz o filho a ferrador; foi-o levar ao mestre ferrador.

A apresentação foi extraordinaria.

-- Faç'-o trabalhar, mestre Domingos! Nada de contemplações. Elle n'o é nenhum fidalgo, bem sabe. E se lhe faltar 'o respeito..., se se lhe fizer fino..., atice-lhe! Vae por minha conta. Ha de por ahi ter um arroxo, um látego, uma tranca..., atice-lhe! feio e forte. Tem carta branca... E se, vamos, que é uma comp'ração, vossemecê n'o estiver para ter esse incommodo, atão fale commigo, que eu lhe cá venho dar uma demão.

O rapaz ouviu humildemente este discurso, e ficou-se resignado a atarracar cravos e a soffrer as basofiadas do mestre Domingos, que era sujeito que tinha orgulho do seu saber e do seu officio.

A' bocca cheia declarava elle que ainda estava por nascer quem lhe levasse a barra. Dando-lhe credito, para ajustar uns canellos ás unhas de um boi, e ageitar uma ferradura aos cascos de um solipede, não havia outro: ou se tratasse da cura de uma loba, ou de um aguamento, pedia messas; e além d'isso... tinha-se por um capador distincto!

João ouvia-lhe com infinita paciencia todas as gabarolas, e trabalhava.

Entretanto ia o tio Anselmo fazendo seus entes de razão quanto á influencia e poderio das circumstancias.

O rapaz não dava mostras de arrependimento, de querer virar de rumo: a observação d'este facto obrigava o pobre pae a parafusar na sua vida.

Coitado de quem é pae!

-- Nada! -- pensava elle agora. -- O martello é uma brincadeira, estou vendo, e p'ra vergonhaça... temos falado! O rapaz tem arnezes -- Uma enxada!... Um alvião!... N'o ha com'é uma enxada ou um alvião p'r'amansar.

Feito este raciocinio tirou o tio Anselmo o filho á tutella do mestre Domingos, passou lhe ás mãos uma enxada de dez arrateis, e pol-o a cavar.

Mas, é bom saber-se, a razão principal d'este acto, a que mais contribuiu para que o tio Anselmo assim retirasse ás carreiras o filho do officio de ferrador, foi outra, que não a que elle dizia. Elle no fim de contas era pae: debaixo d'aquelle peito cabelludo, requeimado das ardencias dos sóes, pulsava um coração amantissimo. O caso era que a estupida arrieirada déra em alcunhar-lhe o filho de «senhor abbade», coisa com que elle se ria, e de que fingia gostar, mas Deus sabe com que alma!

Porque é desenganar; ninguem gosta que lhe offendam os seus. A phrase voz de sangue não é puramente rhetorica. A's vezes riem-se-nos os olhos, e o coração chora.

E estava n'este caso o tio Anselmo. O seu contentamento, a sua ostentosa satisfação, eram um esforçado artificio, por elle adoptado para não perder prestigio perante o filho, nem respeito perante o mundo. Lá por dentro chorava. Se lhe adivinhassem as amarguras que lhe iam n'alma, peor seria.

-- Uma enxada!... Uma enxada!... Cavar! -- dizia elle pois em publico, de sorte a fazer crer que o seu unico intento era castigar o filho.-- N'o ha p'r'amansar o burro do corpo como é uma boa enxada. O martello é uma brincadeira. Nada!

E para a mulher, ás escondidas, dizia:

-- Deix'-o tu começar a fazer callos nas mãos, a cançar-se, e verás s'elle quer ou n'o quer ser padre. Verás!...

Porque nem para outra coisa o tio Anselmo machinava. Agora, era elle até a pessoa mais empenhada em que João tomasse ordens. Os ditinhos, as assuadas, os commentarios que elle ouvia, e os que lhe referiam, e ainda os que adivinhava, estimulavam-no profundamente. Ao passo que a tia Ricardina desanimava, e toda se consumia, por saber que estavam batendo palmas de contentes, vangloriados, muitos invejosos que não puderam levar á paciencia que ella e o seu homem, pelo facto de terem quatro geiras de terra, se permittissem educar um filho, o tio Anselmo redobrava de actividade, enchia-se de energia, protestava triumphar.

Não tardou, porém, que todas as esperanças do nosso homem tivessem um desmentido formal. Contra toda a sua espectativa, João moldava-se ao rude serviço dos campos, perseverava. Passaram-se dias, semanas, mezes, e nem signal de affrouxamento elle deu: pelo contrario.

Via-se que não fora irreflectida a sua resolução: ventos, chuvas, ardores caniculares em campo descoberto, madrugadas, serões, trabalhos pezados de toda a casta, tudo elle supportava heroicamente, sem fraquejar.

E' que, não ha duvida, quando algum proposito nosso é firme, filho da reflexão, pensado, meditado, não ha nada que no-lo abale: quanto maiores contrariedades o ameaçam, mais elle se robustece.

João tinha-se consultado: faltava-lhe abnegação para o sacerdocio: o seu coração era muito humano para se desprender das coisas terrenas; se fizesse os votos ecclesiasticos havia de ser um grande desgraçado.

Tornou-se então o tio Anselmo para a mulher mesmo que ella antes tinha sido para si, para o fazer annuir aos seus desejos. Era de noite, de dia, a toda a hora, constantemente: não deixava de lastimar-se e de a affligir, accusando a de culpada dos tristes desgostos por que estava passando, e da perda inutil de uns seiscentos mil réis, pouco menos, de contado.

Fazia dó ouvir o pobre do homem. Andava succumbido, apaixonadissimo.

-- Tu!... foste tu que m'arranjaste este bico d'obra. S'eu te n'o desse ouvidos!... s'eu p'ra ahi deixasse andar o rapaz, escusava agora muito bem que se rissem de mim. Mas querias um filho padre!... Morrias, se n'o tinhas um filho padre!... ahi 'stá!-- Ai, a minha vida, a minha vida, a minha desgraça!... Parece que algum peccado tinha eu a pagar!

A tia Ricardina não tinha voz que respondesse. De certo modo, e até certo ponto, estas lamentações, estes queixumes do marido, eram a traducção falada dos seus pensamentos, a expressão da sua alma. Tambem ella se carpia, tambem ella se accusava: as suas noites eram um interminavel martyrio; levava-as a chorar. Muitas vezes clareou a manhã sem ella ainda ter posto olho.

Comtudo, não era menos dolorosa a cruz de João. A este o trabalho não lhe custava. Emfim, a sua sorte era aquella: tinha de ser, resignava-se. Mas torturava-o, arrazava-o o ver-se instrumento fatal de tantas amarguras. E torturavam-n'o sobretudo os chascos, os escarneos da ralé vilã. Havia quem tivesse a estupenda coragem de ensinar as pobres creancinhas a sairem-lhe ao encontro, pelos caminhos, e de barrete sobraçado e mãos postas, pedirem-lhe a benção, tratando-o de sr. abbade!!

Quem perdia a cabeça com estas e que taes infamias era Manuel. Algumas vezes parou elle desorientado, tremulo de colera, deante da canalha desenfreada. Custavam-lhe os olhos da cara os insultos ao irmão. Chegava a chorar de raiva. Mas e a mãe?... Se a mãe, que elle tanto amava, lhe estava sempre a pedir pela sua bôa sorte, por tudo! que fosse prudente!?...

Era a voz da mãe que lhe segurava o braço, que elle era valente e bravo. Queria poupar á triste maior somma de desgostos.

Entretanto a paciencia tem limites. Ha horas aziagas. Podia muito bem n'um dado momento armar-se um conflicto de sérias consequencias. E tudo o fazia prevêr!

Felizmente que soube d'esta desordem o sr. padre David, o parocho da aldeia, e que elle accudiu presuroso a pôr-lhe cobro.

As provocações continuavam, repetiam-se a miudo.

II

O sr. Padre David

Era este um homem ainda bastante novo, mas, sem embargo, muito considerado, muito venerado por todos quantos o conheciam.

Devia ter, então, mais pouco, menos pouco, os seus quarenta e cinco annos de edade, e nove, nem tanto, de profissão ecclesiastica. Por ahi uns oito e pico. Todavia, quem o visse, fazia-o mais velho: dava-lhe lá para cincoenta e tal, perto de sessenta. Porque elle estava muito avelhantado: raros cabellos pretos se lhe viam na cabeça: eram quasi todos brancos, brancos de neve. E tudo isto pelo quê? Como se operara este phenomeno?

Dil-o a sua biographia, que é simples e triste.

Formou-se em medicina, e veiu casar ali á obscura aldeia que parocheava agora. Era filho d'uma familia pobre d'um logar vizinho. Foi, durante perto de vinte mezes, um homem feliz, felicissimo: vivia na terra como se póde viver no céo; nada o affligia, nada lhe faltava: a mulher adorava-o, e elle adorava-a a ella. Um dia, porém, entrou-lhe a morte de surpreza no lar, e arrebatou-lhe a doce companheira da sua vida. Então a dor allucinou-o, quiz morrer tambem: para si já o mundo não tinha encantos, nem a liberdade seducções que lhe falassem ao coração. Tudo era ermo, frio, atrévado; nem luz, nem calor penetravam no abysmo da sua soledade. Adoeceu, esteve á beira do tumulo. D'ahi a ser cadaver pouco ia. Mas em summa, não estavam ainda contados os seus dias; lentamente, gradualmente, começou de melhorar: ao mesmo tempo ia-lhe despontando n'alma a resignação. O espirito da fé velava por elle. Emfim, recobrou forças, e então ordenou-se padre, revestiu se para sempre da lutuosa vestidura sacerdotal.

Renunciando, porém, o estado civil, de nenhum modo engeitou o novo ecclesiastico todas as faculdades propriamente seculares: se o chamavam como medico, elle ia prestar os seus serviços como medico. Só com uma differença: não reclamava paga; não guardava vintem da clinica. Repartia pela pobreza tudo quanto os seus clientes abastados muito bem lhe queriam dar.

As maiores canceiras do sr. padre David eram os pobres, e as flores que elle por sua mão ia plantando á volta da sepultura da mulher. Nas horas livres do dia, a sua estancia era ali, no cemiterio: lá rezava as suas orações diurnas, e descançava de todas as fadigas: via medrar os cedros, via florir os goivos, via abotoar as rozeiras, e ás vezes, conta-se, viam-n'o a elle ajoelhar sobre a terra, e ouviam-n'o dizer baixinho, debruçado á campa:

-- Ouves-me, Izabel?... sou padre. Tu eras o meu unico amor na terra: morreste tu, e eu morri tambem para o mundo. Tornaremos a vêr-nos lá no ceu. Eu fio em Deus que nos havemos de tornar a vêr no ceu!

Não sei: affirmava-se isto; aureolava-o um prestigio superior.

Pois este homem, este justo, que outra coisa não era o sr. padre David, sabendo da montaria que faziam ao filho da tia Ricardina, e dos perigos que d'aqui pendiam, immediatamente começou uma campanha decidida em favor da victima: pegou do seu pausinho, uma especie de bordão de peregrino com o qual elle se ajudava por cabeços e veredas nas digressões que fazia aos casaes, a prestar os soccorros da Egreja e os da medicina, e sahiu em romaria votiva. Foi logo.

Ia a coisa de fio a pavio. Chegava a um soalheiro: espreitava, escutava: vinham de lá, da assembléa, umas gargalhadas e vozes suspeitas como a cara das congressistas. Em que falavam? De que riam tanto? Desconfiava... Havia de ser a proposito do filho da tia Ricardina.

Approximava-se sua reverendissima. Usava uma linguagem familiar a todos, para que todos o entendessem. Não queria que ninguem ficasse deslumbrado com a selecção das palavras, e não visse as idéas. Até na egreja, nos seus sermões, assim fazia. Nada tinha de artificial: todo elle era lizura. A menos que não estivesse tratando com pessoa instruida, o seu vocabulario era pobre, a sua phrase singelissima.

-- Ora vivam lá!... -- cumprimentava elle.

Respondiam-lhe com muitas mesuras as pessoas saudadas:

-- Deus venha em sua companhia, meu senhor. Viva!

-- Venha com Deus, sr. padre David.

-- Muito boas tardes, sr. prior.

-- Salve-o Deus, senhor.

Ninguem lhe chamava doutor, que elle não gostava. Foi tempo!

Aqui, feitos os cumprimentos, tornava sua reverendissima a tomar a palavra.

-- Então de que se fala, de que se trata, que vocês tanto riem?

Começavam as respostas vez á vez. Entrava em scena com sua voz apiedada, e bem composto gesto, a mais manhosa das creaturas presentes.

-- De qu' ha-de ser, mê senhor?... Dos nossos peccados, que são muntos. Estavamos falando da desgracia da tia Ricardina do Gil. Já viu uma coisa assim, mê senhôr? Tanto dinheiro gasto, tanto... Elle sempr' o démo as arma!... Ora vá vossinhuria vendo como o cachopo le deu pontapé! Elle uma pessôa!...

O sr. padre David ouvia. Falava outra creatura.

-- Mas que doidice tamem, meu senhôr! A tia Ricardina sempre l'avia de dar p'ra bôa!... querer um filho padre!... querer sêr mais qu'ás mais!... Não, que Deus castiga sem pau nem pedra.

Bedelhava outra.

- Aquillo!... aquillo!... Quem havia de a aturar, s'apanhasse o João prior!... Estou vendo! E atão elle, que tem pinta. Bonda olhar-lhe p'ra figura. Havia de ser um padre!... Sume-te, diabo!

E assim por deante. O mau era uma lingua começar: todas mettiam a sua colherada.

Então, escutados os discursos, sobrevinha a replica.

-- Pois está bom, está bom! -- começava o sr. padre David. -- Têem a lingua desembaraçada, têem, sim, senhoras! Ora Deus vos dê juizo, que bem o precisaes vós, mulheres. Então parece-vos que a tia Ricardina peccou em desejar que o filho se fizesse homem?... Quereis-lhe mal por isso?... Estaes vangloriadas da sua infelicidade?... Com effeito! Pois eu vos digo e juro, que vós é que peccaes de morte gastando o tempo n'essas murmurações!

E partindo d'aqui, d'este exordio, ahi se punha sua reverendissima a prégar um grande sermão. Primeiro falava em geral; depois individualmente. Como elle lhes sabia dos pôdres; como, mais ou menos, todas tinham suas culpas em cartorio, era um tal açoitar!... Mas sempre por bonitas maneiras. Sabia dizer as coisas por modo que os castigados ainda lhe ficavam em agradecimento.

D'ali se dirigia o sr. padre David a outro logar. Se alguma sujeita se lhe saía com ápartes, com jogralidades velhacas, armava-se de severidade e corrigia essas demazias: porque, dizia elle: «Não ha remedio. Doze proporcionada ao mal.»

Applicada a reprehensão, passava o bom do homem a restituir a todos a confiança amiga que lhe tinham. A's vezes terminava a palestra contando a sua historieta. Ordinariamente dava uns cigarros, umas pitadas. Emfim, retirava-se deixando todos contentes a darem lhe mil razões pela sua doutrina de paz e amor.

Que o povo é assim a modo que uma creança caprichosa, malcreada, cheia de exquisitices, mas afinal meiga. Quem a souber tratar, consegue d'ella, a bem, tudo quanto quer. Tudo!

-- Agora vou prégar a outra freguezia -- dizia entre si o sr. padre David. -- Quem se obriga a amar, obriga-se a padecer.

E lá se ia elle no seu meritorio proposito, salta aqui, atalha além, brioso como um militar, decidido como um evangelista.

Faz bem, não contes a quem, era a sua divisa.

Em termos que não tardou que findassem as murmurações, que se dissipassem os ameaços, que havia, d'um conflicto grave. O respeito, sob as formas consideração e medo, impunha-se. Não, que o sr. padre David curava das almas e dos corpos! E isto era muito sério. Havia umas maleitas, uma queda, um desastre, qualquer doença?... Venha o sr. padre David!... Havia extrema penuria n'um lar, uma rixa entre vizinhos, uma desavença conjugal?... A casa do sr. padre David! Era preciso um conselho, um empenho para um negocio, uma recommendação qualquer?... Sr. padre David te valha!

O sr. padre David era o homem para todas as afflicções, a providencia, o anjo tutellar da freguezia: todo o mundo lhe sabia a porta, e todo o mundo lhe batia a ella com plena confiança: que só se de todo em todo elle não podesse servir quem o procurava, é que o não servia. Aquillo era um passaculpas, um bom serás, um mãos-rotas como poucos se topam: não tinha nada de seu: não sabia recusar nada. Era d'uma bondade sem limites.

Mas ainda havia outra razão para o sr. padre David ser querido. O pobre a tudo olha. Não fazia gastar dinheiro em boticas: o receituario que mandava aviar, geralmente ia em seu nome, constituia divida sua. Por via de regra adoptava os simplices, e com elles fazia ou ensinava a fazer os remedios. Todos os annos na estação propria colhia quantas hervas de uso medicinal acaso lhe podiam vir a ser precisas. O sulphato de quinino, o alcool camphorado, a linhaça, a mostarda, o adhezivo, e algumas mais poucas drogas e preparados de vulgar applicação, nunca se lhe acabavam em casa. Tinha sempre fornecimento: dava a quem pedia.

Ora, já se vê. deante d'um tal potentado tudo cedia, tudo cedeu. Logo as coisas mudaram de figura: em breves audiencias as murmurações, os achincalhamentos, acabaram. A familia Gil não mais teve que sentir por parte da vizinhança. O proprio tio Anselmo, apesar de todas as suas paixões, deixou-se de affligir a mulher, deitou o coração ao largo. Taes e tantas coisas o sr. padre David lhe disse, que o homem principiou a espairecer, a conformar-se com a fortuna.

Findaram, pois, as troças ao filho mais novo da tia Ricardina, e até começou a haver por elle certas deferencias, porque o sr. padre David naturalmente se lhe affeiçoou, lhe creou amisade. Não era raro vel-o acompanhando o rapaz, falando com elle muito á mão. Apreciava sua reverendissima sobremaneira os seus sentimentos, a sua intelligencia. Levava horas inteiras a ouvil-o discorrer.

Entretanto, por maior precaução, quiz o bom do padre assegurar de modo efficaz os resultados da sua obra. Metteu hombros á empreza.

Casualmente se lhe azou o ensejo.

Foi n'uma tarde de festa, precisamente quando sua reverendissima andava mais acceso na cathequese do seu povo. A egreja estava coalhada de fieis, e o sr. padre David tinha que prégar o panegyrico do santo em honra do qual os seus freguezes guardavam o dia. Pois lançou mão da opportunidade: discursou largamente sobre o peccado da murmuração, apresentando idéas de grande effeito. Depois abicou assumpto de maior folego.

-- Isto -- dizia elle para os seus botões -- é preciso. Estes estupidos são como os mosquitos: o cheiro do enxofre mata-os, derrota-os.

Desatou a fallar sobre as bellezas do ceu, e os horrores do inferno.

D'ali a nada era o grito das almas na egreja: o santo, aquelle glorioso santo em honra do qual a sua voz estava vibrando, tinha conquistado o ceu á custa de virtudes: só o veriam na bemaventurança aquelles que lhe seguissem o exemplo; os outros, os impenitentes, esperava-os o inferno: e esse inferno, tal como elle o havia pintado, era de metter medo aos mais valentes.

-- Sim, o inferno -- concluiu elle. -- Espera-vos o inferno com todos os seus horrores se não praticardes o sublime preceito em que se resume toda a religião, todo o dever, o bem; amar Deus sobre todas as coisas, e o proximo como a nós mesmo; não murmurar, ouvi bem; não exultar com as desventuras alheias, não rir dos que choram, não escarnecer dos que padecem, não fugir dos que pedem: dar, ter caridade, ter compaixão dos infelizes, respeitar e bem-querer a todos.

Ora produziu optimos resultados este sermão!

III

Noticias historicas

Havia na aldeia uma fabrica de saragoças pertencente a varios individuos da localidade e dos arredores, e por esta circumstancia typicamente denominada Engenho da Sociedade.

Ao redor de Gouveia, dentro e fóra do concelho, á margem dos ribeiros que correm ali, derivados da famosa serra da Estrella, ha muitos d'estes estabelecimentos mechanicos, cujo motor é a agua. Ha os em toda a parte, e em toda a parte, por lá, elles são mais ou menos o ganha-pão, a vinha do povo. Logar povoado onde corre uma levada boa, capaz de pôr em movimento uma d'aquellas enormes rodas hydraulicas de que todos são providos, raro é o que não tem, pelo menos, um d'esses estabelecimentos.

Gouveia é um grande centro industrial com larga irradiação. Na villa, que occupa uma vasta área de terreno, e contém numerosos habitantes, quasi que se podem contar estes por operarios, e as casas por officinas. Para onde quer que se voltem os olhos, para a direita, para a esquerda, para cima, para baixo, em todos os sentidos, não se vêem senão fabricas, teares, pizões, ramolas, prensas, thesouras e tintes. A eterna, a unica preoccupação de toda aquella laboriosa gente, incluindo as mulheres e as creanças, são as lãs. Ninguem pensa n'outra coisa; ninguem se occupa d'outro modo de vida. O constante, o maior desejo de cada individuo «é botar a sua maranha». N'aquillo se criam, n'aquillo nascem, e n'aquillo morrem. Da agricultura ha pouquissimo quem cuide a valer, apesar de serem feracissimos os campos, e excellente a promessa de lucros a quem os amanhe bem.

Mas vem de longe, não é moderno, este estado de coisas: data de tempos remotos. Quem sabe?... Talvez dos dias do pae Noé. Talvez: porque foi Noema, sexta neta de Adão por seu filho Caim, quem, como se sabe, inventou o lanificio; foi Titéa, mulher de Noé, a Vesta dos antigos, quem, depois do diluvio, ensinou as mulheres a fiar e tecer; e Gouveia, está averiguado, é uma das mais antigas povoações portuguezas: quando Nosso Senhor Jesus Christo veiu ao mundo, já ella era velhota.

Pois, voltando ao fio da historia, o Engenho da Sociedade estava então em imminente risco de fechar as suas portas. Tinha-se declarado uma espantosa crise industrial; não se vendia nem um covado de fazenda portugueza. A impertinente concorrencia dos estrangeiros ao nosso mercado déra grande rebate em todo o paiz, e esse rebate fôra fatalmente repercutir-se ao vivo ali, aonde a rotina faz lei.

As saragoças, unico producto industrial d'aquelles sitios, estavam pela hora da morte, desacreditadissimas; ninguem lhes pegava. Durante um bello periodo de prosperidade local, creou-se uma chusma de fabricantes que deram mais de prompto com o negocio em pantana. Os abusos praticados por essa legião de especuladores foram de tal ordem que produziram estranho fracasso. Todos queriam ganhar mundos e fundos; poucos olhavam a credito: fazia vento, molhavam-se as velas.

Era um pasmar ver o afan e a imprevidencia que reinavam!

Hoje ainda, e já lá vae decorrido um bom par de annos, fala-se muito a miudo de certos episodios comicos dados n'esse tempo feliz, de saudosa memoria. Houve muito quem dando ao sarilho nas ramolas, para fazer chegar os pannos «á marca», fosse malhar com o costado em fragas distantes. A fazenda, de tão esticada que ella era, rasgava a meio, despedaçava-se; e a que resistia a estes tratos' e ia aos mercados, depois da molhadura minguava palmo e meio por metro. Em termos que quem comprava uma roupa inteira achava-se com umas calças... e uns restos para fundilhos!

Ora esta desordem, hoje restabelecida, tinha de dar brado, e deu-o, e monumental. Tudo tem seus limites; o povo é ignorante, mas não é parvo. Parvo é quem o quer fazer. Estavam-n'o a explorar, e ainda por cima a escarnecel-o! O escandalo era espantoso, inaudito; aquelles que lhe vendiam o fato, iam-n'o comprar para si aos estrangeiros, que, em conclusão, estavam oíferecendo pannos de bellissimo acabamento, e optima la, por preços muito inferiores aos dos da ruim e mal encarados que a industria nacional offerecia.

Por conseguinte caiu por terra a industria das saragoças. Covilhã, Arrentella, e outros centros fabris que tinham sahido da rotina, e achavam-se de algum modo habilitados a affrontar a concorrencia que lhe estavam fazendo, luctavam com difficuldades graves; Gouveia, que tinha retrogradado, luctava com ellas maiores. Os clamores da miseria começavam a estrugir nos ares; as tantas mil familias que viviam das lãs, viam-se a braços com a fome; os proprietarios das fabricas, os grandes industriaes, uns esperançados em melhores dias, reduziam a um quinto o seu pessoal, palliavam; outros, desorientados, atemorisados, fechavam; e os salarios para os escolhidos da fortuna desciam, a uma taxa impossivel.

Era medonha a crise.

Em consequencia de tudo isto foram chamados a capitulo os accionistas do Engenho da Sociedade.

-- Fechamos, ou o que fazemos? -- era o problema.

-- Fechemos! -- opinavam uns. -- Fechemos! E' um disparate ter a fabrica aberta. Não ha trabalho; não merece a pena fazer sacrificios, estar em cuidados. Fechemos.

-- Mas as machinas paradas estragam-se! -- objectavam outros criteriosamente.

-- E alguma freguezia que temos muda, perde-se! -- accrescentavam outros.

-- Mas então que fazer? Como resolver a questão?

Este é que era o buzilis; se fechavam o estabelecimento, lá ficavam as machinas a ser comidas da ferrugem, e lá se ia a freguezia; se continuavam a fazer lãs por conta própria, perdiam um dinheirão.

E assim voltavam sempre ao ponto de partida: nem atavam, nem desatavam: achavam-se n'um tremendo circulo vicioso. A solução do problema que a fatalidade lhes impunha, cada vez se embrulhava mais; uns diziam, outros contradiziam: alvitres bons, capazes, nem um se offerecia. Tudo eram choradeiras e questiunculas.

Nem todos, porém, concordavam em que era insanavel a ruina da industria das saragoças. Contra a opinião geral estava em flagrantissima discordancia uma porção de individuos, ao numero dos quaes pertencia um ali achado na sua qualidade de accionista do Engenho, e que, emfim, cançou-se de ouvir falar e falou tambem por sua vez.

Era o tal um homem popularissimo, de nenhuns estudos, mas de reconhecido talento. Ali na aldeia, d'onde elle era, e bem assim no concelho, como em todo o districto, e ainda por longes terras, consideravam n'o, respeitavam-n'o.

-- Isto n'o tem geito nenhum, meus senhores -- disse elle. -- Estamos aqui ha mais de tres horas a patinhar no mesmo terreno. Estamos como as bestas das noras, p'ra traz e p'ra diante, pr'a traz e p'ra diante, e sempre no mesmo sitio! Já me vão alembrando os deputados nas cambras; munta conversa, e nada d'obras. Ora, por amor de Deus! vamos a despachar; vamos a tomar uma resolução. Querem-me ouvir?...

-- Fale!... Fale o sr. Zé Joaquim! -- conclamaram trinta vozes em perfeito unisono.

Todos o queriam ouvir; confiavam muito n'elle, anciavam saber a sua opinião. Elle, até agora, tinha escutado.

Zé Joaquim não se fez rogar muito. Assim que se restabeleceu o silencio, começou a falar.

-- Tenho estado p'r'aqui a ouvir... Todos dizem que a industria das saragoças está morta; todos estão desanimados. Pois eu cá digo que ella n'o está tal morta! E não, e não, e não! -- aporfiou elle desenganadamente.

Esta vehemencia do orador na affirmativa das suas convicções, fez brilhar relampagos de alegria nos olhos dos ouvintes mais descrentes.

Não ha ninguem que não goste de que o contradigam a sério sobre apprehensões tristes. Sente-se um allivio salutar quando nos denegam razão ácerca de quaesquer infelicidades que presumimos que nos vão acontecer. A phantasia tem artes para illudir a consciencia.

-- A industria das saragoças n'o póde morrer sem nós o querermos, senhores! -- continuou Zé Joaquim -- Dizer-se que os estrangeiros a mataram, é uma falsidade: quem a arruinou fomos nós, e nós é que lhe podemos tornar a dar força. Nós, que não mais ninguem!

-- Se o remedio estivesse na nossa mão! -- disse do lado um dos ouvintes.

-- Pois 'stá, 'stá -- retrucou lhe convicto o fogoso orador. -- O remédio 'stá na nossa mão, meus senhores -- repetiu elle, dirigindo-se a todos. -- O remedio temol-o nós; é n'o desanimarmos; é n'o deixarmos pôr pé em ramo verde a esses diabos que s'arvoram em fabricantes e que vão ao mercado com meia amostra, feita por esmola, desacreditar os nossos pannos e arrastar-lhes o preço: é obrar fazenda boa. Os estrangeiros vieram aproveitar-se do nosso descredito, e estão-nos fazendo mal, mas n'o nol-o podem continuar a fazer, n'o podem competir comnosco, se nós o quizermos, se nós nos pozermos álerta. E se não vejam: elles têem lá lãs alguma coisa mais baratas? Nós temos cá a alfandega a contrabalançar os preços. As fazendas d'elles são mais bonitas? Em compensação as nossas são mais duradoiras, sendo boas. Todo o mundo o sabe; n'o ha nada p'ra bater, como é um boccado de boa saragoça. Os pobres olham á dura, e não á lindeza.

Esta asserção teve os seus commentarios, findos os quaes o orador recomeçou.

-- Emfim, meus senhores!... nós temos mil vantagens sobre os estrangeiros n'este negocio de que tratamos: lá fora os salarios são altos; aqui um homem ganha doze vintens por dia: lá fóra os engenhos são movidos á força de vapor, que se n'o faz sem munto dinheiro, sem munto carvão; aqui, louvado seja o Senhor, os engenhos trabalham todos á força d'agua, de graça!

-- Mas sendo assim -- observou ironicamente um dos socios da fabrica -- sendo assim, como é que elles, os estrangeiros, vendem mais barato que nós?!...

Esta objecção teve muitos applausos. Já todos começavam a descrer da experteza de Zé Joaquim: viam-n'o enterrar-se, apresentar argumentos contrarios ás suas presumidas idéas. Elle, porém, não se confundiu: ao passo que a assembléa lhe dava um voto de censura, ria-se elle lá por dentro, exultava.

-- Pois ahi!... ahi é que eu quero chegar!... -- bradou elle triumphantemente-- E' ahi mesmo que eu quero chegar. Ainda bem!

Calou-se tudo. Este enthusiasmo do orador emmudeceu a assembléa.

-- Sabem pelo que é? Querem que eu lh'o diga? -- perguntou elle -- E' porque teem machinas incomparavelmente mais perfeitas e mais productoras do que nós! E' porque emquanto uma cardadeira, ou uma fiadeira nossa, produz o trabalho, e mau, de vinte operarios, suppomos, as d'elles produzem o trabalho, e perfeito, de sessenta ou oitenta operarios! E' por isto que elles vendem, ganhando, melhor e mais barato.

Ninguem teve animo, que replicasse: a resposta era á lettra, e era incombativel. Houve applausos ao orador, que se deu pressa em aproveitar esta aragem de sorte.

-- E agora -- tornou elle -- querem que eu seja franco? Querem a minha opinião?... Ahi vae ella: Proponho que a direcção do Engenho estude as conveniencias de se fazer immediata acquisição de machinas perfeitas, que produzam mais e melhor trabalho do que as que temos, que de mais a mais estão gastas; nem garantem lucro, nem perfeição; trabalham pouco e mal.

Este alvitre foi proposto no meio d'um berreiro d'ensurdecer. Todos protestavam. Não queriam comprometter mais capital. A industria estava morta, diziam.

Entretanto Zé Joaquim não se deu por vencido: insistiu sempre na sua proposta; berrou tambem, gritou.

Uns bons pulmões valem muitas vezes um grande orador.

-- Não importa! -- bradava elle. -- Não importa comprometter mais algum capital. Havemos de o desforrar, e cêdo. Aproveitemo-nos, antes que outros se aproveitem! Temos ahi algumas machinas que já n'o valem um pataco: substituam-se, comprem-se outras, chamemos freguezia. Habilitemo-nos antes que alguem se habilite. A nossa fiadeira está estragada; o fio que ella dá é todo encaroçado, desigual, impossivel: ninguem aproveita os serviços d'ella, senão quando de todo em todo n'o pode deixar de ser. Outra! Venha outra, e venham uma ou duas lustradeiras, uma cardadeira, dois ou três pizões de ferro... o que fôr preciso! Quanto necessitamos?... dez contos? quinze, vinte contos?... Abra-se subscrição, escreva-se p'r'a Belgica, peçam-se as machinas p'ra lá!

E como de facto; escreveu-se para a Belgica encommendando as machinas. Afinal o homem lá venceu a batalha: os seus consocios renderam-se á razão da logica.

Perto de quatro mezes depois estavam essas machinas na aldeia, e d'ahi a dias chegava um tal sr. Garrik, representante e enviado da casa que fazia o fornecimento, e que vinha, segundo fôra condição de compra, dirigir e velar a montagem d'ellas.

IV

Meia anedocta

O sr. Garrik apparecia pela primeira vez em Portugal. Nem mesmo a Hespanha ainda tinha ido. Havia cerca de um anno estivera para vir ali ao pé, a pouco mais d'uma legua de distancia, a Gouveia, a fim de regular certos negopcios da casa de que era empregado, mas, afinal, a casa teve de o occupar em uma outra commissão de serviço mais importante, e nomeou-lhe substituto. Agora enviava-o principalmente porque pensava em alargar as suas operações commerciaes n'este recanto da peninsula, e depositava absoluta confiança n'elle, na sua intelligencia, na sua actividade, no seu comprovado cavalheirismo.

Veiu, pois, o sr. Garrik, mas ás cegas. Não percebia nem patavina de portuguez. O que ainda lhe valia um pouco, era um pequeno diccionario que elle trazia debaixo do braço, e ao qual estava sempre a recorrer. Uma volta, duas, abria esse livro, que podia muito bem ser tomado por um breviario, e fazel-o passar a si por padre, graças ao seu typo, á queda dos cabellos da cabeça, e á roupa do seu uzo, preta e gravemente cortada, tal como convem a um honesto ecclesiastico.

Emfim, chegou á aldeia e foi accommodar-se na estalagem que lá havia, mercê do costume em que muitos almocreves estavam de jornadear pela estrada velha, e ali pernoitarem alguns.

Explicou-se por signaes e vozes. Falava uma trapalhada de linguas ao mesmo tempo, e exhibia largos gestos mimicos para se fazer comprehender da hospedeira, mulher assás tacanha, que o ouvia e o observava embasbacada, com muita vontade de se rir. Não o entendia; deixou-o falar: por fim lá se dignou fazer-lhe uma pergunta.

-- Vomecê dorme cá?

O belga, depois de matutar um boccado, a ver se adivinhava o que a dona da casa lhe tinha dito, respondeu confessando a sua insufficiencia. Abanou a cabeça negativamente, e fez uns gestos complementares com os olhos e as mãos.

-- Ah! n'o m'intende?!... Prégunto-lhe se vomecê cá dorme?...

O homem tornou a picundar. De vez em quando fitava os olhos na patroa, que era creatura muito tentadora do peccado, e que sabendo que o era, por isso, como para se proteger, chamou a si um rapagão, filhito, que andava por ali brincando em fralda de camiza, muito sujinho, e que foi agarrar-se-lhe ás saias, a olhar desconfiado para o estrangeiro.

O almocreve que tinha trazido aquella celebridade á terra, foi de grande valimento n'este apuro. Vinha de arreçoar o macho, chegando-se a receber ordens e a fazer jus á ceia.

-- Este mussiu -- explicou elle dando-se ares -- é a modo q'um senhor que vem cá á terra n'o sei p'ra quê; parece que p'ra vender mánicas. N'o é isso? -- perguntou elle ao belga. -- O musssiu n'o vem cá á terra p'ra vender mánicas?

Esta ultima palavra já era familiar aos ouvidos do sr. Garrik. Se ella era bem, se mal pronunciada, não o sabia elle; mas, em summa, entendia-a, sabia-lhe a correspondente em francez.

N'estes termos, ainda que sem boa consciencia do que dizia, respondeu o homem que sim á pergunta do almocreve.

Entretanto, a grande idea do belga era fazer perceber que vinha ali expressamente para montar as machinas que deviam ter chegado á fabrica; e tanto elle fez n'este sentido, tanto disse, que, emfim, á custa de momices, e da leitura, feita pelo almocreve, do sobrescripto d'uma carta credencial que elle trazia para o nosso conhecido Zé Joaquim, conseguiu o sujeito o que queria. A estalajadeira veiu ao conhecimento dos factos.

-- Ah! -- exclamou ella com viva satisfação da descoberta. -- Vomecê é qu'é o senhor que vem armar as manicas 'ó ingenho?!... Agóra, agóra!... Pois diga-m 'isso. Agóra, agóra!...

O sr. Garrik reconheceu que tinha sido percebido, e começou de dar parabens á fortuna, muito contente. A hospedeira riu-se das alegrias d'elle, e ficou entendendo, sobretudo, que tinha ali uma mina, e uma fabrica de gargalhadas.

Não podia ouvir nem encarar na creatura a sério!

Feito este reconhecimento subiu a mulhersinha a preparar quarto e ceia ao seu hospede. Este, seguido do arrieiro, subiu tambem o balcão, e lá em cima, no patamar, sentou-se a gozar a paizagem, e as impressões covas dos costumes da terra. Ria que nem um perdido ouvindo uma visinha a chamar ao poleiro as suas gallinhas: imitava-a com grande gaudio do almocreve.

-- Pi!... pi!... pi!... pi!... C'est bon, c'est bon, vá! -- bradava elle. -- Pi!... pi!... pi!... pi!... Ah! ah! ah! ah!

Achava graça ao modo portuguez.

D'ahi a boa meia hora veiu a estalajadeira chamal-o. O almocreve, por sua conta e risco, mandara abreviar a ceia por ordem do patrão,

Foram. Esperava-os n'uma saleta de paredes interiores simplesmenta tabicadas, e telha vã, um pratalhaz de bacalhau cozido com as competentes batatas e cebollas á volta, vinho, pão, azeitonas e queijo. O almocreve, depois das devidas continencias, tomou logar ao fundo da meza, e poz-se a comer. Era cada tracalhaz de rasgar a guella! O belga cheirou o peixe, e ficou satisfeito só com o cheiro. Não quiz.

- Não tem mais nada?... Não ha senão isto?... -- perguntou elle de diversas maneiras á patrôa em legitimo francez.

-- Intende o? -- perguntou a hospedeira ao almocreve. -- Sabe o que elle quer dizer na sua?

O almocreve, para se não interromper no grave trabalho da mastigação, respondeu negativamente por um monosy labo.

-- Pois eu!... -- murmurou ella encolhendo os hombros.

Tambem não entendia.

O belga calou-se, e começou a olhar para tudo minuciosamente. Examinou as paredes, depois o tecto, depois o mobiliario, e ficou-se a meditar.

-- Aonde eu vim cair! -- dizia elle lá comsigo. -- Estou arranjadinho! ninguem me entende!... Isto é que é uma desgraça!

Mas tinha uma esperança: o representante da fabrica devia saber francez.

-- Oh, sem duvida! -- exclamava elle.

Nem pela idéa lhe passava que não. Por outra: não queria crêr em tal.

Deitou-se. Estava fatigadissimo. Ainda bem não eram passados dez minutos, estava a estalajadeira a bater-lhe á porta.

- Apague a luz, tiosinho! Olhe n'o deite fogo á casa!...

O sr. Garrik, amuado, zangado, e já certo de que pretender informar-se do que a hospedeira lhe dizia era tempo perdido, assoprou de rebemdita á candeia, e voltou-se para o outro lado.

-- Isso!... isso!... -- disse a estalajadeira quando viu extinguir-se a luz. -- Tenho muito mêdo do fogo! Credo! S. Braz!...

Pela manhã cêdo ergueu-se o sr. Garrik, e foi-se em cata do seu homem, de Zé Joaquim.

Não estava: devia vir lá por tarde, disseram-lhe. Tinha sahido na vespera com destino a Celorico. No engenho responderam-lhe o mesmo.

Mas que ralações, que difficuldades para se fazer comprehender das pessoas a quem se dirigia!

Em consequencia de taes informações voltou o nosso homem para a estalagem, e pediu o almoço. Apontava para a bocca, e depois para a barriga. Era claro; tinha fome, queria comer.

-- Ah! quer almoçar? tem fome?... -- disse a estalajadeira.

O sr. Garrik fez-lhe um gesto, convidando-o a esperar, e abriu o diccionario.

-- Oui: almozar!... fóma! -- confirmou elle depois da consulta ao diccionario.

-- Fó... me-- ensinou a hospedeira.

-- C'est çà: fóma.

-- Fó-m... e... me... Fóme... - corrigiu pedagogicamente a mulher.

Em seguida retirou-se á cosinha, e d'ahi a pedaço foi chamar o hospede.

Estava servido o almoço: bacalhau cozido com batatas e cebôla, vinho, queijo e pão, mas o pão, d'esta vez, do de centeio.

O belga fez grande espanto. Outra vez bacalhau! Bacalhau tambem ao almoço!...

-- Que é?... n'o gosta?...

-- Nó, nó, nó gosta...

-- Então que quer vomecê?... carne?... Mas só se lhe der prezunto, que d'outra n'o n'a tenho cá: o carneiro acabou-se. Inda s'o mê homem n'o estivesse doente, que podesse maçar hoje uma badana qu'ahi temos...

Respondeu-lhe o belga com uma careta de metter medo. Que diacho lhe estava ella a dizer?!...

-- Olhe lá, e sarda, quer?... Quer cavalla?

O sr. Garrik fez-lhe signal de que não percebia, e a mulher foi lesta buscar a tal sarda, ou cavalla, que fazia repugnancia de tão amarellida que estava.

-- E d'isto, gosta?

Imaginem, se podem, a desillusão, o desespero do homem n'esta conjunctura! Ergueu-se agitadissimo. Parecia uma féra; deitava lume pelos olhos.

A hospedeira retirou-se á boa paz. Viu-o fazer taes trejeitos, que lhe tomou medo.

-- Mas aonde eu vim cair!... Aonde eu vim cair, santo Deus!... -- brandava o sr. Garrik em altas vozes.

Meia hora depois afoitou-se a mulhersinha a vir espreitar o seu hospede, e apanhou o comendo queijo abrutadamente, sem pão.

Entrou... Ella, afinal, tinha seu dó do homem.

Dirigiu-lhe a palavra nos termos mais adocicados que poude, e com certo ar de lastima.

-- Atão vomecê come sem pão!?... N'o gosta?... Uma coisa assim!... Já viram?.. Nem lhe serve o bacalhau, nem a sarda, nem o prezunto, nem o pão... Ai, os mês travalhos!... Está um bom biqueiro, o sr. francez!...

O sr. Garrik deixava a fallar, e ia rabusnando a meia voz. Dizia mal á sua sorte. Condemnado a almoçar queijo! Pôrem-lhe pão negro, avinagrado!

De repente voltou-se para a mulher, e fez-lhe signal de que lhe desejava explicar alguma cousa. Abriu o diccionario e apontou-lhe uma palavra. A hospedeira declarou-lhe sem mais demora que não sabia lêr.

Tambem ella já se dispensava de falar: expressava-se mimicamente.

Então teve o sr. Garrik nova idéa: convidou a mulher a acompanhal-o á janella, e apontando-lhe lá para longe, para um ponto vago, e começando a esfarellar pão na rua, rompeu n'estas vozes:

-- Poule!... poulel... Pi!... pi!... pi!... Poule! poule! Comment s'appele?...

O pobre do homem, entende se, falava lhe em gallinhas. Queria que ella lhe servisse gallinha. Tudo isto eram reminiscencias da scena que na vespera presenceára.

-- Eu morra, se eu o intendo!.. -- dizia a hospedeira.

O belga insistia:

-- Pi!... pi!... pil... pi!... Poule! poule! Comment s'appele?

Mas tudo em vão: a mulher não atinava que o belga lhe estava falando em gallinhas. Tinha mais vontade de se rir, que de coisa nenhuma. Ultimamente, como os manejos do sr. Garrik lhe fizessem enormes cócegas, retirou-se com toda a prudencia da boa educação.

-- Or'a os mês travalhos! -- foi ella dizer para o marido, que estava de cama com umas quartans. -- Fala uma lingua mais damnada, o démo do francez, que n'o sou capaz de o entender. Olha... põe-se-me assim: «Pi!., pi!., pi!., pi!.. Pule! pule!..» E falla-m'em pellar, pellar, e n'o sei que mais... «Pelle! pelle!..» diz elle. Já viste?.. Puz-lhe bacalhau, troceu-lh'o nariz. Já hontem foi o mesmo passo. Préguntei-lhe se queria prezunto com ovos... moita, carrasco! fez-lhe caretas. Préguntei-lhe se queria sarda, e até lh'a mostrei.. . ai, o demo do homem!.. que trombas qu'elle lhe fez!.. Parece-te?... Pão, nem lhe mexeu. Isso é que talvez elle n'o goste: puz-lhe do de centeio, que n'o tenho cá d'outro. Queijo... isso, sim! come-o que nem um damnado: é cada naco!... Faz idéa: comeu já um queijo de mais de tres arrateis!

N'este ponto foi a hospedeira chamada em altos berros pelo belga. O homem gritava que nem um possesso, como se lhe houvesse apparecido a fortuna ali.

Era o caso que tinha bispado umas gallinhas na rua, e fora e caçara uma. Vinha radiante, com ella agarrada pelas azas.

A hospedeira accudiu ás carreiras a saber o que havia, e parou espantada em frente do sr. Garrik. N'um instante caiu em si, entendeu-o. A recente scena do esfarellamento do pão, e d'aquelle pi-pi que ella não comprehendeu, estava explicada, sabida. O homem queria gailinha.

Foi, pois, e matou-lhe uma gallinha. Cozinhada ella, o sr. Garrick devorou-a.

-- O preço faz tudo! -- disse lá para comsigo a hospedeira.

E já ella contava com grandes lucros d'este hospede!... Enganou-se, porém; pela tarde regressou á aldeia Zé Joaquim, e foi lh'o tirar. Levou-o bizarramente para sua casa, onde o entendiam como Deus era servido, mas o tratavam á maravilha.

Zé Joaquim nao sabia nada de francez: em compensação era muito intelligente; fazia-se entender do sr. Garrik, e entendia o tambem a elle. O diccionario prestava um servição a ambos. Além d'isto elles tinham um interprete. Era o sr. Padre David, que, se não sabia muito, sabia o bastante para lhes adoçar a situação, para os ajudar nas suas relações.

V

Scenas da vida

D'ahi a dois dias estava o belga todo entregue á montagem das machinas que deviam fazer do obscuro Engenho da Sociedade um dos principaes estabelecimentos do seu genero entre os do paiz.

Era domingo: as portas da fabrica estavam abertas: João entrou.

Ia muita gente, levada da curiosidade, ver as «manicas» e o «sr. francez». O belga era na terra uma especie de animal raro, digno de vêr-se.

A dona da estalagem dissera d'elle o bastante para o tornar celebre. João foi na corrente.

Passavam-se ahi scenas curiosissimas, indescriptiveis. Por grande infelicidade, Zé Joaquim tivera que ausentar-se da aldeia n'aquelle dia, por causa de negocios urgentes da administração da sua casa, e o sr. padre David estava de véla á cabeceira d'um enfermo, cujo estado, por grave, reclamava os seus duplos cuidados de medico e de sacerdote.

O sr. Garrik suava a bagadas para se fazer comprehenderdos operarios que o ajudavam na sua tarefa. Primeiro que o entendessem, eram trabalhos: se pedia uma chave de parafusos pequena, um torno de mão, uma lima, um esquadro, qualquer peça de ferramenta, qualquer objecto, traziam-lhe tudo quanto lhes accudia á idéa, menos o que elle desejava que lhe servissem.

Dava vontade de rir ouvil-o carpir-se! Cançava-se a chamar-lhes estupidos, bestiagas (gros bête).

Quando João entrou, pedia o sr. Garrik um pouco d'azeite n'um caco, para bezuntar não sei que molas, e destemperal as ao fogo, porque ellas tinham força seperior á conveniente para bem funccionarem; e nada de novo! Abria o diccionario, apontava a palavra portugueza que não sabia pronunciar, ou que pronunciava tão mal que ninguem a entendia, e era equivalente ao vocabulo francez, e ainda a mesma coisa. Aquelles desgraçados não sabiam ler! Corria a roda, apresentava o livro a um por um, e todos viam, e todos encolhiam os hombros. Não sabiam lêr!

Isto parecerá inverosimil, e devia-o ser, por honra nossa; mas, infelismente, é verdadeiro Ha trinta annos havia na Beira povoações importantes, onde, se muito, existiam duas pessoas que sabiam ler; o padre e o sachristão. E pouco se tem progredido!

Em vista d'isto, o sr. Garrik perdia a cabeça, dizia coisas do arco da velha. Ao pé de si, em consulta, estava um bando de homens, cada qual com sua coisa na mão, sem atinarem o que elle queria. Caras mais assarapantadas, nem pintando-as!

Naturalmente, muito naturalmente até, João Gil perguntou o que havia.

-- Que é ?...

-- Huile!... huile!... c'est ce que je desire! mon Diéu! - bradou n'um repente desesperado o belga respondendo assim ao acaso á pergunta do rapaz.

-- Azeite! azeite! Diz que quer azeite. Pede azeite -- disse João para aquelles pobres diabos, que já iam estando fartos do belga até ás orelhas.

Descrentes, mas por experiencia, foram os operarios por uma almotelia de azeite, e trouxeram-a.

O sr. Garrik não tinha dado pela intervenção de João. Quando viu a almotelia rompeu em áléluias.

-- Sucia de bestas! até que emfim!... -- bradava elle -- Até que emfim, entenderam me, os alarves!...

Depois ia a pedir um caco, uma tijella qualquer pedaço de barro aonde deitasse o azeite, e teve como que um deslumbramento. Fugiu-lhe a fala.

Atraz de si, um tanto acanhado, mas falando correntemente o francez, estava João Gil a offerecer-se-lhe para lhe servir de interprete.

O sr. Garrik julgou-se victima de um desvario dos sentidos. Não queria crer que lhe estivessem falando em francez: olhava para o rapaz, para o seu arranjo de trabalhador, para as suas mãos callejadas, e suppunha-se sonhando. Mas depois..., ah, senhores!... que alegrias, que delirio, que loucura festival!... Ter quem o entendesse!... ter um interprete!... ter com quem communicar!... Que grande, que inextimavel felicidade!

Foi direito ao rapaz levantou-o ao collo, abraçou-o, ia-o beijando! Por pouco o não beijou.

Aquelles latagões presentes estavam embasbacados, a observar a scena.

-- O João a falar francez?! Mas então elle para se ser padre estudava-se francez?... -- pensavam elles.

Distrahiu-os o sr. Garrik das suas preoccupações mentaes com um berro, uma especie de voz militar d'attenção, em seguida á qual falou com João Gil, e esperou que elle falasse da sua parte á turba ignara que o ajudava.

-- Diz o sr. Garrik que agora fala commigo para eu explicar o que elle quer, e que é a mim que vossemecês devem dizer o que lhe querem a elle.

Isto disse o rapaz simplesmente; mas o que o sr. Garrik lhe disse em muito bom francez, foi:

-- Por favor! Diga a estes alarves que o senhor quer ter a bondade de me servir de interprete, e que eu os intimo a cumprirem as suas ordens sem pestanejar. Assim mesmo! São umas bestas que me têem feito de fel e vinagre.

João foi delicadissimo, como se vê. O belga, quando elle acabou de dar o recado, tornou-o a abraçar, e olhou para os trabalhadores como quem diz:

-- Nós cá sômos gente. Vós sois umas bestas, não sois homens!

Depois voltou ao seu trabalho. De quando em quando papagueava com João, tratando-o como a amigo velho, e ia-se informando com muito interesse da historia da sua vida.

Era pae, e muito bom homem: ahi está. Pequenos pormenores lhe prendiam seriamente a attenção. Queria saber tudo: o seu interprete inspirava-lhe profunda sympathia.

N'um d'estes cavacos appareceram, entre muitos outros, trez espectadores distinctos; o tio Anselmo Gil, a tia Ricardina, e Manuel Gil.

Tendo corrido que João estava falando francez com o «sr. francez», accudiu meio mundo á fabrica a ouvil-o. A familia d'elle logo se lá apresentou.

O gargallo no ar, muito maravilhados, muito commovidos, todos três em pé sobre um caixote, a espreitarem por cima da cabeça dos curiosos que já lá estavam adiante, a tia Ricardina, o homem d'ella, e o Manoel, formavam um grupo encantador, originalissimo.

-- Fala como um damnado! -- dizia o tio Anselmo para quem o queria ouvir. -- Eia! Eia!...

E acotovellava a mulher, e lacrimejava.

-- Bem vejo, bem oiço -- dizia-lhe com a voz tambem muito tremula de commocão a tia Ricardina.

-- E a attenção que o sr. francez lhe dá!... -- observava ella toda enthusiasmada.

-- Aquillo é qu'é um démo a dar á lingua!... Olha!... olha!... E' como quem 'stá a rezar Padre Nossos. Vae vendo! Vê lá se o intendes!

-- E a attenção!... a attenção que o sr. francez lhe dá! Como elles s'intendem!...

E quantas lagrimas no meio de tudo isto!... quanta alegria !...

Assim, naturalmente, o povo, olhando com certa veneração e curiosidade para o grupo, fez com que o sr. Garrick tambem reparasse n'elle, e o contemplasse, mas não animado de sentimentos iguaes; com ares petulantes. Aprumou-se, cruzou os braços sobre o peito, e escancarou a bocca a arremedar os personagens que se offereciam em espectaculo e aquelles que os estavam admirando.

-- E' a minha familia. E' meu pae, minha mãe e meu irmão -- disse-lhe João.

Ouvindo isto o sr. Gaarik desfez-se em satisfações ao rapaz, e para as dar mais cabaes, mais completas, correu para o tio Anselmo a abraçal-o, e permittiu-se tambem abraçar a sua companheira.

-- E' meu filho, senhor francez -- dizia-lhe a tia Ricardina a chorar.

-- E' nosso filho, senhor -- dizia-lhe o tio Anselmo de chapéu na mão, com muita reverencia.

-- Diga-lhes!... diga-lhes!... -- reclamou o sr. Garrik de João -- diga-lhes que eu sou muito seu amigo... e d'elles tambem.

O rapaz poz a cousa em portuguez: o sr. Garrik abraçou-o, como a testemunhar o que dizia.

Feita a reparação, e trocados uns cumprimentos muito amaveis, recomeçou o trabalho,

O sr Garrik era homem muito activo, muito trabalhador. Não podia estar ocioso, sobretudo tendo que fazer de obrigação.

VI

O quinhão dos pobres

A' noite contou João em casa como tinha entabolado relações com o sr. Garrik, e disse que elle lhe havia pedido que o continuasse a ajudar, a servir-lhe de interprete, promettendo pagar-lhe, e bem, os seus serviços.

O que era verdade. O sr. Garrik tinha pedido ao rapaz com toda a instancia que lhe valesse, que o não desamparasse. Andava ali vendido, morto de tédio e de aborrecimento, sem ter com quem communicar, sem ter quem respondesse ás suas vozes. O mesmo sr. padre David, sendo aliás inquestionavelmente um homem muito illustrado, muito bonboso, quasi que lhe não podia accudir, soccorrel-o n'esta sua deploravel situação. Em primeiro logar, elle mesmo o confessava, estava bastante esquecido da lingua franceza, e por esta circumstancia entendia-o com certo custo e limitava-se a responder-lhe que sim e que não ao que elle lhe dizia. Não conversava, não palestrava. Em segundo logar, devido ás suas occupações, era um acaso o sr. Garrik apanhal-o ao pé de si. Elle não tinha tempo de que dispor.

João, pelo contrario, comprehendia e falava o francez desembaraçadamente. A's vezes, é certo, lhe faltavam palavras para exprimir de prompto e com melhor propriedade as idéas; mas exactamente como nós fazemos em analogas situações, mesmo falando a lingua patria, elle sabia vencer essas difficuldades por meio de rodeios. A recencia dos seus estudos e a sua disponibilidade, davam-lhe enormes valores sobre o sr. padre David.

Em summa, o sr. Garrik queria um interprete permanente, uma pessoa com quem conversasse, um homem com o qual podesse contar a toda a hora; e João estava nos casos. Portanto expoz-lhe os seus desejos, e incumbiu-o de elle pela sua parte os transmittir ao pae, dando-lhe muito delicadamente a saber que remuneraria condignamente o seu valioso auxilio.

Feita a communicação, o tio Anselmo e a mulher responderam logo voz unanime que sim, que consentiam que João se pozesse ás ordens do sr. Garrik. A promessa do dinheiro nem elles a consideraram. Nem sequer a ouviram!... Enlouqueceu-os, fel-os andar lá pelas altas regiões dos sonhos indefiniveis de gôso, de ventura, esta maior prova que acabavam de ter do merecimenlo do filho. Louvado Deus, elles tinham com que passar, melhor ou peior: dinheiro dariam elles mas era para verem fazer ao filho esta bonita figura que elle estava fazendo, e que os enchia de orgulho. O importante era João ser honrado pela amisade do «sr. francez», como elles diziam candidamente do sr. Garrik. Isso é que era!

E então foi um delirio; a tia Ricardina já lhe não importava que o filho encodeasse nos azeites da fabrica a sua roupa domingueira, a das festas, a dos tempos escolares, e que tantos cuidados lhe merecia, porque era de casimira.

-- Filho!... João!... ouves?... Has de levar a roupa nova... a roupinha nova, ouviste?...

-- E a gravata!... E a gravata tamem, João. N'o t'esqueça a gravata!... -- recommendava-lhe o pae, o tio Anselmo, com todo o empenho.

E Manuel, o irmão:

-- Olha, João..., se queres leva o mê chapéo novo. Leva!... -- instava elle.

Vêem?... Um delirio! A tia Ricardina queria que o rapaz levasse a roupa nova para apparecer bem trajado ao sr. francez: o tio Anselmo levantava a prohibição, que por castigo tinha intimado ao filho, do uso da gravata. Queria que elle a pozesse, que se não esquecesse de a pôr, para ir mais decente. Manuel offerecia-lhe o que tinha de melhor, o seu chapéo ainda não estrelado; uma prima, já casada e mãe de filhos, punha á sua disposição o rico lenço de seda que tinha levado á egreja no dia das suas nupcias, para elle o deitar ao pescoço; outra, ainda creança, offerecia-se para lhe levar o almoço e o jantar á fabrica, que ainda distanciava um estirão bem bom da aldeia... E assim por diante.

Todos queriam tributar homenagens ao rapaz; todos se affiguravam ver-lhe na fronte uma aureola de predestinação para grandes coisas, para coisas glorificadoras: todos, os da familia e os estranhos, lhe rendiam culto. Chegou até a acontecer ir o mestre Domingos, entre muitas outras vizitas, deitar-lhe aos pés um discurso de parabens em que falou mal da sua arte. Ora já é!...

João recebia commovido estas lisongeiras manifestações, e perdia-se entre phantasiosos devaneios, nos quaes o coração tomava a melhor parte. Porque elle amava.

Sim; não é mysterio isto. Elle amava: por diante dos olhos andava-lhe esvoaçando uma visão de mulher: nas auras d'estas suas glorias como que vinha envolvido o cicio d'um beijo, o calor d'um juramento, a vibração d'uma promessa. Devaneava, sonhava; tomava-o uma febre intensa, devoradora, que o extenuava de fadiga.

O resultado de tudo isto foi elle deitar-se, e querer dormir, socegar, mas tudo em vão. Ia alto, alto, n'um arroubamento cégo, doido, por essas regiões do ideal fóra!

Sem embargo, á hora matutina em que se vae para o trabalho, João ergueu-se, e partiu para a fabrica.

Quem o seguisse tel-o-ia visto parar a meio caminho, e ahi volver os olhos para traz, e fixal-os n'uma casa distante, na vidraça onde d'ahi a pouco o sol descendo os outeiros circumvisinhos, projectou os seus primeiros sorrisos.

Era lá, no quarto illuminado por essa janella, agóra phantasticamente colorida pelos raios solares, o ninho da sua amada. Era lá que o seu coração voava.

Quando se voltou para seguir o seu itinerario, viu com espanto seu o sr. Garrik sentado lá em baixo na coroa de um rochedo, a gosar o nascer do sol. Apressou-se na marcha. Comprimentou-o.

-- Tão cêdo!... Ergueu-se tão cedo,sr. Garrik?...

-- E' o que vê, meu amigo. Estou n'este costume -- respondeu-lhe o sr. Garrik. -- Sobretudo n'estes dias de verão, gosto de me erguer a horas de ver nascêr o sol.

-- E gosta também d'estas paizagens?

-- Muitissimo. São encantadoras. Este ceu de Portugal, esta abundância d'agua, este accidentado do terreno, tudo isto é formosissimo. A minha pena é não saber eu portuguez. Mas o senhor, emquanto eu por aqui estiver, soccorre-me, não é assim? Seu pae não o impede d'isso, não é assim?

A resposta contentou-o sobremaneira.

Não havia impedimentos á satisfação do seu desejo. D'ali em diante João estaria sempre comsigo até elle o querer, emquanto o precisasse por interprete.

O sr. Garrik congratulou-se com João por este acontecimento, e regalou-se de desentaramellar a lingua durante uma boa hora. Depois começaram o seu trabalho, e ás nove fizeram tréguas para almoçar.

Nem o sr. Garrik, nem Zé Joaquim, consentiram que João fosse almoçar a casa. Queriam-n'o ali para estarem mais á vontade, para poderem communicar sem difficuldades um com o outro.

Em face de tão apertadas sollicitaçoes, João ficou e comeu.

A mesa estava posta debaixo da ramada d'um castanheiro, ao pé da levada que fazia funccionar a roda motora da fabrica.

Era um sitio poetico, encantador. Gosava-se ali uma fresca magnifica: a briza espalhava no ar um perfume delicioso, roubado ás acacias, aos alecrineiros, a uma infinidade de arvores e plantas em plena florescencia então: as avesitas pairavam á volta dos seus ninhos trinando melodias divinas: e além d'isto havia o murmuroso glu-glu das aguas, e a musica subtil d'uma enormidade de insectos alados, e o ramalhar brando do arvoredo vicejante...

Conversou-se muito e comeu-se mais. Havia bom appetite, optima mesa, e excellentes apperitivos. O almoço era ajantarado, farto como um banquete.

A meio da refeição chegou o sr. padre David, que vinha tambem para ouvir o filho da tia Ricardina, e que ficou encantado com a loquella d'elle.

Não lhe sabia da prenda, o amavel ecclesiastico.

Presumia que o rapaz soubesse tanto quanto se ensina nas aulas; pouco mais de nada. Ficou assombrado, maravilhado, ouvindo-o falar.

-- Hein?... então que tal? ... -- disse-lhe em aparte o seu amigo Zé Joaquim, que estava notando a surpreza de sua reverendissima -- Que lhe parece?...

A resposta foi breve, mas eloquente:

-- Admiravel, Zé Joaquim!

Findo o almoço continuou o trabalho, e agora sem embaraços; o sr. Garrik dirigia, João mandava. Ia tudo ás mil maravilhas.

Aquellas enormes difficuldades com que o sr. Garrik na vespera, de manhã, luctára, para se fazer comprehender dos miseros que o ajudavam, já não existiam. Fosse o que fosse que elle pedisse ou ordenasse, tudo era promptamente comprehendido e feito. Já nem o sr. Garrik se zangava, nem os pobres operarios tinham hesitações. João tinha feito a felicidade de todos.

Quinze dias depois estavam as machinas montadas, a funccionar com toda a regularidade. O sr. Garrik já ali não tinha que fazer; a sua missão estava cumprida. Chamou João; queria pagar-lhe. Muito de propósito fez isto diante de sr. padre David, e de Zé Joaquim.

-- Aqui tem -- disse-lhe elle. -- E' a gratificação que eu lhe dou, por conta da casa que sirvo, pelos bons serviços que o senhor me tem prestado; oito libras. Não é preciso recibo. A casa confia em mim.

E deu-lhe oito libras em bello oiro.

João todo tremia quando pegou em tão avultada quantia. Nem com metade elle contava!

-- E aqui tem mais duas-- continuou o sr. Garrik

-- que eu com muito gosto lhe offereço do meu bolso, e com as quaes comprará uma lembrança para si.

E deu lhe mais duas libras em meias.

O rapaz estendeu a mão a recebel-as como se a estendesse para lh'a cortarem. Estava tão tremulo, tão confundido, que parecia idiota.

Assim que poude retirar-se, deu João ás canellas que nem um doido. Ia dar aquelle dinheiro á mãe. Não podia parar de contente. Mas o melhor é que o sr. padre David, que o deixára escapulir-se sem se aperceber d'isso, corria atraz d'elle como outro doido, a gritar-lhe o nome, a chamal-o.

-- O' João?... O' João?... -- bradava sua reverendissima.

João parou.

-- Espera ahi, homem, não fujas!...

-- Que é, sr. padre David?...

-- Homem -- disse-lhe o sr. padre David aproximando-se-lhe de chapéo na mão, humilde -- já que tiveste tanta fortuna... dá-me alguma coisa para os meus pobresinhos!...

João estendeu-lhe a mão.

- Tire, sr. padre David -- disse-lhe elle francamente, apresentando-lhe o dinheiro.

O sr. padre David fitou os olhos nas meias libras, e esteve tentado a tirar-lhe uma. Teve umas taes tentações!... Mas pareceu-lhe que meia libra era muito.

-- Não, não... -- disse elle naturalmente falando comsigo. -- Meia libra é muito. Não...

-- Tire!... Tire a meia libra, sr. padre David! -- instou João com toda a sinceridade.

O bom do padre olhou-lhe para a cara, meditou um pouco, e tirou-lhe a meia libra, mas com os olhos marejados de lagrimas.

-- Vá lá! Vá lá!... acceito... Ha por ahi tanta pobreza, João! E a ti não te faz falta nenhuma este dinheiro, n'o é assim?... Quando Deus dá muito, é bom repartir... Obrigado, João... Deus t'o pague em augmentos e felicidades -- disse-lhe elle abraçando-o. -- Obrigado... Vae... Vae dar esse dinheiro a teu pae...

João recomeçou a carreira que levava, e o sr. padre David foi d'ali deitando contas á sua vida até que chegou a uma taverna e lhe fizeram troco do dinheiro.

-- Toma la -- dizia elle a um parochiano miseravel. -- Pede a Deus Nosso Senhor que multiplique os bens e a fortuna de quem me deu este dinheiro que eu te dou.

E ao ouvido declarava com certo mysterio o nome do individuo.

-- Foi o filho da tia Ricardina, o João. Mas não digas nada!

Chegava a outra porta e fazia o mesmo; passava a outra, e a mesma coisa.

-- Foi o João, o filho da tia Ricardina, que me deu esse dinheiro que te eu dou. Pede a Deus que lhe dê saude e fortuna.

Emfim, quando chegou ao presbyterio não levava real; mas em compensação estava contente. Tinha feito bem: eis o caso.

VII

Sombras

João appareceu ao pé da mãe todo banhado em suor, offegante.

Não cabia na pelle de contente.

-- Dez librinhas!... Dez librinhas aqui! -- dizia elle todo inchado de contentamento, a bater na algibeira do collete.

A tia Ricardina assustou-se, tão fóra de si o viu.

-- Jesus! -- murmurou ella -- Ensandeceria elle?...

-- Vê-as?... Ouve-as?... -- dizia o rapaz ora mostrando as moedas, ora fazendo-as tinir entre as mãos fechadas em concha.

-- Santo Deus! -- exclamou a tia Ricardina recuando a vista do dinheiro.

Teria o filho roubado?... Cederia a alguma tentação?... deshonraria o nome sem mancha da familia?...

Todos estes pensamentos lhe cruzaram pelo espirito, rapidos e sinistros como a sinistra luz dos relampagos.

Não sabia a bôa da creatura d'onde poderia ter vindo aquella somma ao rapaz; e o que então lhe passou pela idêa, custa a imaginar-se.

Viu o filho perseguido da justiça, apupado da multidão, prezo, condemnado, e arrastado pelas lamas dos caminhos o nome do seu homem, o seu coração de mãe.

Mas isto não foi tudo.

A imaginação é fertil em creações pavorosas.

O peor, o que fez vergarem-se-lhe as pernas, perder a vista, subir ás faces todo o sangue que lhe pulsava nas veias, foi a circumstancia da subita entrada do homem, do tio Anselmo, que se apresentou no encalço de João, esbaforido, perturbadissimo, tanto ou mais que o proprio filho.

Isto, sim, ia-a fulminando. As vizões que teve foram medonhas, horrendas, infernaes: affigurou-se-lhe que o marido vinha fremente de colera vingar a sua honra ultrajada.

Durou pouco, porém, este pezadello: se tanto, dois segundos.

Em dois segundos cria a imaginação coisas que se não descrevem em duas horas.

A alegria do tio Anselmo e do filho repelliam inexoravelmente a idea d'um acto criminoso.

-- Achou o dinheiro! -- pensou a tia Ricardina secundariamente -- Achou-o, n'o ha que ver. E quem seria o desgraçadinho que o perdeu?!

E lamentava então a desgraça de quem o teria perdido.

-- Quem seria o desgraçado que o perdeu?... -- murmurou ella machinalmente.

-- Que o perdeu?!... -- exclamaram a um tempo o tio Anselmo e o filho, trocando ambos entre si um olhar assarapantado.

Ambos elles desconfiaram que não tinham ouvido bem.

-- Sim, que o perdeu... pois?... -- insistiu a tia Ricardina amiserada, quasi irritada por vêr o marido e o filho contentes em circumstancia tão lamentavel, como era a que se lhe representava no espirito.

O tio Anselmo e João adivinharam o equivoco que se dava.

-- Ninguem o perdeu, mulher.

-- Deu-m'o o sr. Garrik, minha mãe.

A tia Ricardina queria acreditar, mas não podia. O seu olhar inquiridor, accusando manifesta duviva, voava inquieto da physionomia do filho para a physionomia do marido.

-- Sim, mulher, sim -- insistiu o primeiro -- Foi o sr. francez que lh'o deu. Então que cuidavas tu?

-- Pois que pensava minha mãe?

-- Deu-lh'as elle?! -- murmurou ella cheia de incredulidade -- Isso não pôde ser!... Dez libras?!... Pôde lá sêr!?

-- Deu! -- asseverava o tio Anselmo.

-- E tanto que ellas aqui estão -- dizia o rapaz.

-- Nada! -- retrucou ella redondamente.

Acabava de ter um rebate de idéa.

- O pobre do homem enganou-se -- disse.

João e o pae, refutaram.

-- Não enganou, não, senhora -- porfiou o primeiro.

-- N'o enganou tal, Ricardina -- confirnnou o segundo -- Pois um homem d'aquelles engana-se lá?!... Aquillo é um malho: conhece melhor o dinheiro do que nós os feijões. Olh' o outro!...

A tia Ricardina ia-se azedando. Tantas insistencias, a seu ver de todo o ponto inadmissiveis, estavam-lhe torturando a paciencia.

-- E vós a dares-lhe! que se não enganou!... Enganou-se, que vo-lo digo eu!

-- Não enganou tal.

-- E tu a teimares!

-- E vocês a porfiarem?... que se no enganou!... Pois atão assim se dão dez libras,... essa garfada de hervas?!... Bôa! Só estando o homem varrido do seu juizo. Dez libras n'o são barro.

-- Mas tu...

-- Mas minha mãe...

-- No ateimeis... N'o ateimes tu tamem, Anselmo. -- insistiu a tia Ricardina -- O pobre do homem enganou-se. Como n'o conhece o nosso dinheiro... que 'stá cá ha poucos dias... ahi tendes! -- commentou ella.

E não havia despersuadil-a d'esta sua opinião; de que o sr. Garrik se havia enganado, de que não soubera o que dera.

-- Váe, filho -- dizia ella para João -- Corre lá depressa, que o santo homem enganou-se; cuidou que te dava uma bagatella. A gente deve sêr honrada. E' um caso de consciencia... Vae, filho, vae levar o dinheiro ó homem.

Custava-lhe a crêr que se dessem dez libras por tão pouco trabalho, como em seu entender fôra o de João. Não era possivel capacital-a de que o sr. Garrik fôra conscientemente generoso.

-- Isso era bom! -- commentava ella, agora dirigindo-se particularmente ao marido, que a escutava muito attento, quasi vergado ao peso do seu raciocinio.

João mostrava se descoraçoado.

-- Isso era bom! -- commentava ella -- A ganharem-se assim dez livras... estou vendo! Era preciso que os francezes por lá semeassem o dinheiro como nós por cá semeamos o cebolo. Estou vendo!

O tio Anselmo principiava a deixar-se convencer. A sua grande alegria tinha-se dissipado. Agora tambem elle já duvidava de que o sr. Garrik tivesse sido conscientemente generoso. O seu modo e as suas palavras bem o revelavam.

-- A mim, quem me disse que elle lhe tinha dado dez livras, foi a Maria Trigueira. Agora, sim... eu lá me custou a acreditar, porque emfim... valha a verdade... dez livras... n'o as ganha um cavador todo o anno a cavar!

Este arrazoado ia incommodando por de mais o rapaz, que, emfim, sahiu do seu silencio.

-- O' senhores!... -- exclamou elle -- Deu-me até o dinheiro diante do sr. padre David e do sr. Zé Joaquim!. .

-- Isso n'o tira, nem põe -- retorquiu sentenciosamente a tia Ricardina.

-- Está claro: isso n'o tira nem põe -- condisse o tio Anselmo -- Enganou-se, coitado -- opinou elle formalmente.

-- Ora esta, esta!... -- exclamava cada vez mais descoroçoado João -- Pois acaso o homem é algum asno, n'o sabe o que faz?...

-- Pois n'o sabe, não, filho-- disse a tia Ricardina candidamente -- Acredita, que não: n'o soube o que fez.

E logo, voltando-se para o marido, accrescentou com adoravel candura:

-- Está aqui ha quinze dias... n'o conhece a moeda... n'o sabe o que ella vale... Está bem de vêr que se enganou.

Este discorrer da tia Ricardina mais exasperou João.

-- Mas as libras... -- replicou elle arrebatadamente. -- E elle deu-me o dinheiro em libras, note-se bem! As libras não são moeda portugueza: são moeda ingleza e australianna... Como é então que elle se equivocou, que não soube o que me deu?...

Tal argumentação fez calafrios ao tio Anselmo. Com mil bombas! sessenta annos levava elle feitos, e nunca tal ouvira. Pensou e cuidou sempre, como ainda agora acreditava, que ellas eram moeda nacional. Que heresia acabava de vomitar o filho? Que significava aquelle seu espantoso argumento?!

Certo; havia obra! havia embrulhada! O rapaz estava mettendo os pés pelas mãos.

-- Aqui ha obra! -- dizia elle lá para os seus botões -- Aqui ha embrulhada!

Opprimiu-o uma duvida horrivel. O coração fez-se-lhe como a noite.

Até ali, emfim, tudo se tinha passado menos mal: agora, porem...

-- O rapaz quer me engranzar! -- ia elle murmurando comsigo. -- Tão certo como haver batatas!

E olhou por baixo para elle, e depois para a mulher.

N'este seu olhar fugidio diziam-se coisas dolorosas, que a tia Ricardina não percebeu, porque o não notou. Ella mal tinha tempo para ver se convertia o filho á sua fé.

João, entretanto, barafustava para convencer a mãe do seu erro. Mas debalde.

-- Pois sim, filho; será assim -- dizia-lhe ella á boa mente -- Podes ter razão; comtudo...

-- E'... é bom apurar -- rematou com ponderado modo o tio Anselmo -- Eu só quero o que é meu.

-- Sim, que o q' é chorado, n'o luz, filho -- apoiou a tia Ricardina -- Olha! queres tu?... vamos a casa do sr. padre David. Se elle disser que sim...

-- Prompto! prompto! E'p'ra já -- disse do melhor grado João.

-- E' verdade, é verdade -- approvou o tio Anselmo vizivelmente satisfeito do alvitre da sua excellente companheira -- Vamos ó sr. padre David.

E sahiram os três em direitura ao presbyterio.

VIII

Luz

Da casa do tio Anselmo Gil á do sr. padre David, era um boccadito, pouco; e tão pouco, que de uma para a outra via-se menos mal. Podiam-se até distinguir no interior d'ellas as pessoas e as coisas. O caso era haver boa vista.

Ora para o tio Anselmo lá ir dar tinha dois caminhos á sua escolha: um bastante curto, e outro soffrivelmente longo. O primeiro era atravessar a ribeira defronte da sua porta, e seguir pela canáda que vinha desemboccar ali. A ribeira quasi que não levava agua. A pouca que lá podia correr n'este tempo, estava cortada para as regas dos milharaes e dos batataes. Nem havia o perigo de se molharem os pés! O segundo era tornear á direita pela estrada carreteira, passar a ponte, e ir de volta, pelo meio do povo fora em direcção ao adro, onde se erguia o presbyterio; uma simples mas elegante vivenda, com o seu balcão alpendrado, as suas janellas guarnecidas de vasos de flores, uma grande varanda corrida, tudo da alvura da neve.

O tio Anselmo, sob não sei que pretexto, optou pelo segundo caminho.

Queria experimentar o filho: queria-lhe dar tempo a elle reconsiderar, e, confessar implicita ou explicitamente o delicto de que o julgava reu. Envergonha-se, receava-se de lhe perguntar ás claras se elle por fraqueza havia cedido a alguma tentação, commettido algum erro. Os questionarios da mulher tinham-lhe feito suggerir idéas tão vagas quanto atrozes.

Elle nem sabia o que havia de pensar; sentia-se mal. O caso do filho dizer que as libras não eram moeda portugueza, estava-o a torturar. Imaginou, e disse comsigo o tio Anselmo, que João lhe tinha querido lançar poeira nos olhos. Até áquella idade ainda elle não ouvira similhante coisa. Parecia-lhe que havia aqui, n'este negocio, caveira de burro. Era preciso apertar o fio da obra. Ia trabalhando n'este sentido, discretamente, sagazmente.

-- Quando o sr. Garrik te pagou, estava só o sr. padre David?

-- E o sr. Ze Joaquim, tambem -- respondeu João.

-- Bom -- pensou o tio Anselmo -- Até aqui são favas contadas: n'o ha contradiccão.

João tinha dito já que recebera o dinheiro diante do sr. padre David e de Zé Joaquim.

-- Mais ninguem? -- tornou o tio Anselmo.

-- Mais ninguem: só eu e elles.

E tique, tique, tique... sempre andando.

-- Atão... quando se vae embora o sr. Garrik?... Sempre vae amanhã?...

-- Sim, senhor, vae, Foi isso pelo menos o que elle combinou commigo. Devemos abalar de madrugada. D'aqui seguimos para Gouveia, de lá vamos a Moimenta, depois a Rio Torto, etc. Da Covilhã volto eu para casa, e elle parte sósinho para Hespanha, e de lá para a Belgica. Tem que lá estar no fim do'mez que vem, impreterivelmente.

E tique, tique, tique... andando sempre.

-- Visto isso... talvez que elle... c'o a idéa de tu o acompanhares... ou por engano!... te desse as dez libras.

-- Não, senhor. Disse-me muito claramente: aqui tem estas oito libras, que eu lhe dou por conta da casa, pelos serviços que o sr. me tem prestado; e aqui tem duas, que eu lhe dou, para que compre uma lembrança para si.

-- Disse elle que pelos serviços que lhe tinhas prestado?

-- Sim, senhor, disse.

E tique, tique, tique... andando sempre. E a casa do sr, padre David já perto!

O tio Anselmo começava a repellir indignado as suspeitas que o tinham atturdido. As respostas de João eram tão firmes, tão rapidas, tão conformes á essencia das perguntas, e aos seus depoimentos anteriores, que o homem ja se chamava doido, vizionario.

-- Se o rapaz estivesse compromettido -- cogitava elle -- escorregava, denunciava-se. De mais a mais já estamos tão perto da verdade!...

E com effeito, assim devia pensar-se.

Houve, porém, um momento terrivel para o tio Anselmo. Foi ali já nas proximidades do adro. Pareceu-lhe que João tinha afrouxado o passo.

-- Vá!... que demo!... Vamos a andar. Parece que vamos aqui a morrer!... -- disse elle

João e a tia Ricardina desembaraçaram-se.

Tique, tique, tique... quasi correndo.

Em tres minutos acharam-se ao pé da porta do presbyterio. João, com grande surpreza do pae, subiu a dois e dois os degraus da escada, brincando, e bateu ao ferrolho.

Veiu abrir o sr. padre David.

-- Oh! oh!... Então que os traz por cá?... pae, mãe e filho!?...

-- E' verdade, sr. padre David -- respondeu o tio Anselmo sorrindo muito forçadamante -- Só falta o Manuel p'ra vir toda a familia!

O sr. padre David notou este sorriso desconsolado do homem, uma certa confusão na sua voz e uns modos bastante enygmaticos da tia Ricardina, e interrogou-se:

-- Virão pedir-me contas da meia libra que tirei ao filho?!...

Teve medo. Mas a placidez de João não lhe deixou admittir este pensamento. O rapaz estava satisfeito, perfeitamente á vontade. Similhante hypothese não se casava com a serenidade d'elle.

-- A minha Ricardina, qu'ell'aqui 'stá -- continuou o tio Anselmo -- a mais eu, deitámos cá p'r amor de saber... sim... com'o sr. padre David lá 'stava, p'los modos... e viu... n'o fosse o sr. francez enganar-se!... que diz que deu dez livras ó João. Nós, emfim... semos pobres, mas ...

-- Dez, não, -- obtemperou o sr. padre David; -- nove e meia só.

O tio Anselmo sentiu-se encommodado. Havia uma differença de meia libra. Como?

-- Perdão! -- replicou o filho da tia Ricardina -- Nove e meia tenho eu, mas...

-- Mas meia libra -- atalhou o sr. padre David, tirando a palavra ao rapaz -- deu-a elle p'ra ser distribuida p'los pobres. Portanto... Não foi João?

-- Era o que ia a dizer -- respondeu o appellado -- E tanto que até já a dei ao sr. padre David.

-- E eu já a distribui, que é mais alguma coisa -- disse o sr. padre David. -- Ha por ahi tanta miseria, tanta!...

-- Com effeito?!... -- exclamou maravilhada a tia Ricardina. -- Pois elle deu meia libra p'r'os pobres?... Inda m'o n'o tinhas dito, João!...

-- Deu, sim, senhora. E' que m'esqueceu.

-- Ai, que santo homem! que santo homem!... Deus Nosso Senhor lhe dê em paga tanta fortuna, tanta, que mais n'o possa ser!

-- Mas... ó sr. padre David! -- advertiu o tio Anselmo; -- elle n'o s'enganaria? N'o cuidaria que dava menos dinheiro ó rapaz?... Ou pagaria-lhe já tudo?... Sim, como elle p'los modos tem de o acompanhar...

O tio Anselmo ainda estava duvidando.

-- Não enganou, não, Anselmo. Soube muito bem o que fez: pagou-lhe o trabalho que elle tem tido.

-- Tem a certeza?...

-- A certeza, ora essa! A certeza. Não se enganou: eu vi, ouvi. Foi diante de mim. E se querem que lhes diga a verdade, elle pagou-lhe bem, pagou-lhe mesmo generosamente, mas não fez coisa que não devesse fazer. O João foi a providencia d'elle.

O tio Anselmo e a mulher sentiram-me medrar palmo e meio com esta explicação. Não cabiam em si de contentes.

-- Ah! isso foi a providencia d'elle, foi-- respondeu bastante envaidecida a tia Ricardina -- Eu cá n'o intendo nada, mas..., vá qu'intendo! O pobre do homem aqui... sem saber falar... Calcula-se, coitado!

-- Pois bonda que o sr. padre David diz que elle lhe deu nove libras e meia! -- murmurou arrastadamente o tio Anselmo -- Qu'a mim -- sobreveio elle com ponderado tom -- disseram-me que foram dez.

-- Pois sim; mas meia foi para os pobres.

-- Ai, o santo homem, o santo homem!...

-- E' um bello homem; isso é elle! -- disse fazendo coro com a mulher o tio Anselmo. -- P'r'assim pagar... p'r'assim fazer uma esmola!...

-- E agora estão satisfeitos?... -- perguntou João á sua parte muito satisteito.

Esta pergunta do rapaz como que desempertou a memoria do seu progenitor.

Havia um boccado que elle, sem deixar de falar, sem deixar de ouvir, apenas ás vezes parecendo distrahido, estava na mais furiosa lucta comsigo mesmo por se lhe ter varrido da idea qual a pergunta, e por signal que muito interessante, que tinha tido em mente fazer ao sr. padre David.

-- Ah! é verdade; ó sr. prior!... -- exclamou elle de subito.

Era a tal pergunta, que emfim lhe occorrera.

-- Elle as livras... n'o é dinheiro portuguez? -- perguntou elle com ar finorio.

-- Infelizmente, não, Anselmo.

-- Essa é bôa! Então...

-- E' moeda da poderosa Inglaterra.

-- Ora toma! -- exclamou muito a seu prazer vencido o tio Anselmo -- Elle sempr' a gente... Bem diz o dictado, que quanto mais vivemos mais aprendemos. Eu, c'o esta idade que tenho, n'o sabia isso.

João explicou a sua reverendissima o motivo da pergunta.

-- E' que meu pae teimava que o sr. Garrik se tinha enganado porque não conhecia o nosso dinheiro. Cuidava que as libras são moeda nacional.

-- Não, Anselmo -- tornou o sr. padre David.

-- Bonda! -- exclamou dando-se por convencido o pae de João

-- Cursam em toda a parte, mas são estrangeiras.

O bom do homem não sabia que mais admirar; se a sciencia do filho, se a sua ignorancia. Mas ia pela sciencia do filho. Disse-o n'um breve piscar d'olhos á mulher.

-- Bonda! -- repetia elle -- Aprender até morrer!

-- Ora então muito bem. Agora vamos a contas. Nove libras para meu pae; meia para o sr. padre David.

E com grande surpreza de todos, entregou o rapaz ao pae nobre libras, e meia libra ao sr. padre David.

-- Sim, senhor, pertence-lhe -- dizia elle para sua reverendissima, que mostrava repugnancia em querer apoderar-se da moeda -- O sr. Garrik disse que para os pobres era uma libra, e não meia, como vossa senhoria entendeu. Portanto... entrego-lhe o que lhe pertence. A consciencia...

-- Ah! sim, a consciencia... -- exclamou o sr. padre David abraçando commovidissimo João -- Bom rapaz! Excellente alma!... Obrigado!

Esta scena impressionou vivamente a tia Ricardina, e fez com que o tio Anselmo, que era homem forte, por vezes passasse o canhão da jaqueta pelos olhos.

Sensibilisara-se. Estimava qua o filho fosse assim homem honrado. A Deus o que é de Deus, a Cesar o que é de Cesar. Ainda bem que Deus o levára ao presbyterio. João, é certo, podia ter ficado com a meia libra, mas...

-- Foi bom, foi bom...

-- O que não é nosso, não luz. O alheio chora por seu dono.

E rua fóra lá iam elles fazendo elogios ao filho, a contarem maravilhas do sr. padre David, e a pedirem a Deus que desse bastantes fortunas ao sr. francez.

-- Um homem que dá uma libra p'ra esmolas!...

-- Um santo! Um santo, Anselmo. Aquelle já está vestidinho e calçado no ceu.

IX

Em familia

Fôra tão gelado o inverno, quanto abrazador estava sendo o verão. D'um calor assim aturado e excessivo, não havia memoria. Louvado Deus, que de cima, da serra, vinha agua á farta para accudir ás novidades. O sol queimava. Ali por volta das sete horas da manhã começava a fazer uma calmaria de matar. Até ás cinco horas e meia, seis da tarde, era de morrer: andar na rua era não ter nenhum amor á vida. As proprias aves não se affoitavam a sahir dos seus esconderijos.

Resolveu por conseguinte o sr. Garrik abalar da aldeia ás cinco horas da manhã, mais cedo, que não mais tarde, para chegar pela fresca a Rio Torto, primeira estação do seu itinerario.

Duas légoas andadas por cavalgaduras boas n'um chouto regular, deitam-se muito bem em hora e meia, nem tanto.

Ouvido como parte interessada sobre este assumpto, João Gil approvou o horario proposto, e tratou de se aprestar para a viagem.

Um mez, a mez e mez e meio, lhe disse o sr. Garrik, era o tempo para que elle se devia prover de roupa branca, contando, entretanto, com paragens aqui e além, para a ter sempre em ordem. Quanto ao mais, lhe disse ainda o sr. Garrik, nada seria preciso. Se houvesse mister de dinheiro, a sua bolsa estava ao seu dispor.

Em summa, João ia ganhar meia libra por dia, não falando em despesas de transportes, e comes e bebes, o que tudo correria por conta do sr. Garrik.

A tia Ricardina ia emparvecendo quando de tal soube. O tio Anselmo, á sua parte, dizia e affirmava que o sr. francez era tudo quanto elle tinha visto de mais fidalgo e generoso. Mesmo apesar do que tinha ouvido ao sr. padre David, não se fartava de gabar o belga.

Entretanto entrouxava a tia Ricardina á pressa a roupa que o filho tinha de melhor, e condicionavalh'a n'um vistoso sacco de bello damasco, que fôra feito não para estes usos profanos.

Era a saccola em que João quando fosse padre, e o chamassem a festas, devia levar os seus habitos talares, toda a sua bagagem ecclesiastica, desde o cabeção até á meia preta.

Que em tudo cuidara com boa antecedencia a desvelada mãe. Ella era como que já via o seu João ordenado! Aquella bolsa tinha-a feito com umas economiasitas arranjadas pela venda de uns tantos alqueires de milho levados ao mercado sem o marido saber. Queria um dia fazer a surpreza de a apresentar ao filho. Quando o seu sonho se desfez, escondeu-a no mais fundo da arca, não lhe fosse o homem á mão. Agora... que havia de elle dizer?...

Não havia duvida. Foi arejada a bolsa. Arejada, e arrociada de algumas lagrimas.

Sim, porque afinal aquelle sacco era uma provocação de fundas saudades; e tão fundas, tão sentidas, que a tia Ricardina caiu em as revellar ao filho.

-- Ai, filho, filho!... -- disse ella.-- Se eu inda te visse c'o esta bolsa atraz de ti!... padre!...

-- Não póde ser, minha mãe. Não me chamou Deus p'ra esse caminho. Não posso ser padre.

-- Porque, filho?...

João hesitou em responder. A tia Ricardina fitou n'elle os olhos lacrimosos, e disse-lhe apenas:

-- Fazes-me tanto dó!...

E desatou a chorar, a bom chorar, mas suavemente, abraçando o filho, apertando-o muito a si, ao coração.

Outra pessoa talvez não penetrasse o alcance d'esta dolorida phrase; João, porém, adivinhou-o. Evidentemente a mãe falava-lhe do seu futuro, tão ameaçado de trabalhos, tão de vida de galés.

-- Olhe, minha mãe, todos os modos de vida são bons, quando são honestos -- disse-lhe elle, pois, e com boa convicção. -- Trabalharei. O que Deus quizer!

-- Pois sim, filho; pois sim -- condisse a tia Ricardina cobrando animo. -- O que Deus Nosso Senhor quizer! Tu, co'a sabedoria que tens, bem te podes governar limpinho. N'o é assim? O que Deus quizer!

E mais não disse sobre o assumpto. Passou a dar conta ao filho do que lhe tinha mettido na bolsa.

Esse entre-acto esteve curiosissimo. Nem eu sei se mesmo aquelles grandes infelizes que nunca conheceram mãe, não gostariam de o presencear! Tanto era o enlevo, tanta a dulcissima expressão carinhosa dos gestos e das palavras da tia Ricardina!

-- Toma cuidado, filho, não se te estrague por lá a bolsa, que é muito boa, nem se te desencaminhe! N'o a percas d'olho, que era um prejuizo dos nossos peccados. Eu, se fosse a ti, nem queria que ninguem m'a levasse; punha-a adiante de mim, presa ó albardão.

-- Pois eu farei isso, descance.

-- Levas cá muita roupa! Queres vêr?

-- N'o é preciso, minha mãe.

-- Toma sentido. Levas oito camisas, fóra a do corpo, e quatro d'ellas mesmo novinhas no trinque, e de rico linho, mais fino que bretanha. Cinco pares de ceroulas tambem muito finas. Tres d'ellas, por signal, são de teu irmão. Mas n'o tem duvida: fazem-se-lhe outras. O qu'eu n'o quero é que tu tenhas por lá faltas. Doze pares de carpins; o casaco preto novo, e mais umas calças de cazimira p'r'o que dér e vier: e dez lenços, não contando com dois que te hei de pôr logo á cabeceira da cama, um p'r'o pescoço, e outro d'assoar.

João louvou e agradeceu os cuidados da mãe. O tio Anselmo, já presente a esta parte da conversa, teve emulação das attenções da mulher para com o filho.

-- E mais nada? N'o falta mais nada? -- perguntou elle fingindo-se descontente.

-- Pois que mais, homem?

-- N'o é preciso mais nada -- disse João.

-- Pois é tal! -- contraveiu o tio Anselmo. -- O diabo sabe muito porque é velho. Falta ainda o melhor!

A tia Ricardina e o filho olharam-se com olhos interrogadores.

-- Não me parece que falte nada -- diziam elles no seu mudo gesto.

-- Falta o mais essencial; é o que falta -- tornou o tio Anselmo. -- E' isto, é dinheiro! -- disse elle puxando do bolso umas moedas. -- Vocês... é a tal coisa!... n'o veem senão o que teem adiante do nariz!

A tia Ricardina gostou sinceramente d'este rasgo do seu homem.

-- Ora ahi vae uma libra! -- exclamou o tio Anselmo entregando uma libra em oiro ao rapaz. -- Eu bem sei qu'é muito, mas... vá lá, leva-a sempre! Quem vae p'r'o mar, apparelha-se em terra. N'o te será precisa, mas... fazes figura.

-- Atão dá-lh'a em prata, homem -- aconselhou a tia Ricardina. -- Faz outra vista.

-- Nada, nada! -- retorquiu o tio Anselmo. -- Leva-a assim, que é p'ra ver se lhe n'o bole: agora... p'ra mandar tocar um cego... emfim... aqui vão duas coroas que nem dois dobrões.

E deu as taes duas corôas ao rapaz.

-- A livra é uma reserva,-- continuou o tio Anselmo -- Se fôr preciso, desmanchal-a. Ella n'o é para outra coisa. Se não, se poder escapar... melhor! A gente nunca deve fazer má figura; mas podendo-se metter nas encolhas... No poupar é que vae o ganho!

-- Está visto -- applaudio a tia Ricardina.

E, moralisando, contou varias e veridicas historias do seu conhecimento e noticia, até que o marido declarou encerrada a sessão.

-- Vá!... Acabou-se por hoje a conversa. Vamos á deita, que são horas, e temos que nos erguer cedo.

Dada esta voz, tratou cada um de se recolher ao seu quarto. Deitaram-se.

Mas, a dizer a verdade, ninguém tinha somno. O proprio tio Anselmo, que á volta das nove horas era raro não estar a toscanejar, d'esta vez não lograva adormecer. Por mais que elle fizesse, a espertina não lhe passava. Voltava-se para um lado, voltava-se para o outro, e nada! sem resultado!

Alta noite noite, seriam por ahi duas horas, armou cavaco com a mulher.

-- Dormes?... -- perguntou-lhe elle muito baixinho, para não a acordar, se porventura ella estivesse dormindo.

-- Não sou capaz! -- respondeu-lhe promptamente a tia Ricardina.

-- Estás como eu: nem a pau!

-- Isto que horas serão?

-- Devem ser duas, ou mais.

-- Já?!

-- Elle sim.

-- Então passei eu pelo somno!

-- Talvez. N'o ouviste o nosso gallo?...

-- Não.

-- Pois é que passaste pelo somno. O nosso gallo cantou ha mais de hora e meia.

-- Talvez elle errasse...

-- N'o errou, não. Cantou já também o da tia Marcella, que é um malho. A' volta da uma hora está de goelas abertas.

-- E a burra do tio Bernardino?...

-- Ha bom tempo que ella orneou!...

-- Pois é isso, é: passei pelo somno sem o sentir. Mas porque é que tu n'o dormes?... que tens?...

-- Puz-me a pensar no rapaz!

-- Em qual rapaz?...

-- No nosso João, coitado.

-- Ah! a que respeito?

-- A respeito de tudo. Em elle voltando, qu'hei de eu fazer d'elle?... Faz'-se-me vergonha pol-o agora a cavar, vês tu!?...

-- Tambem eu já pensei n'isso, e até já o apalpei: mas... n'o sei que te diga, homem!... Deus me perdoe, se pecco. Padre n'o quer elle ser. Lembra-me s'elle terá por ahi a sua conversada, algum compromisso.

-- Ora adeus, adeus!... Isso sabia-se.

-- Eu sei cá! N'o me quer esquecer qu'elle disse-me que n'o póde ser padre. Quem sabe lá o que haverá, Anselmo!?...

-- E porque o n'o apertaste?...

-- Isso n'o são coisas que se façam á carreira. Eu o sondarei...

-- E olha lá... Que é n'o qu'eu tenho estado a malucar... N'o quererá elle ser boticario?...

A tia Ricardina esbogalhou os olhos. Este alvitre fel-a exultar.

-- Afinal, -- continuou o tio Anselmo -- n'o sei se te diga que n'estes tempos inda vale mais ser boticario, do que ser padre. Um boticario, com meia pipa d'agua, e meia canastra de hervas, faz um dinheirão. S'elle s'inclinasse p'r'ahi!...

-- Prégunta-se-lhe! Prégunta-se-lhe! -- disse transportada a tia Ricardina. -- Pois n'o s'ha-d'inclinar?... Alminhas bemdictas!...

-- Pergunta-lhe tu isso lá á tua maneira, sem lhe dizer que eu vou feito no negocio.

-- Fica a meu cargo, deixa estar.

-- A vida é boa. E' melhor que a de padre, que t'o digo eu. Se quizer casar, casa; ninguem lhe pega; se n'o quizer... a seu gosto! Um boticario n'o tem colleira, salvo seja.

-- Oh! isso era uma bella coisa!... Boticario!

-- Com' assim... que ha-d'a gente fazer?... Gastámos tanto dinheiro, e elle é tão esperto, o demonio, qu'emfim... va lá mais algum! Já agora...

-- Pois isso é que é, homem. O mesmo digo eu cá commigo. N'o quer ser padre, n'o quer, acabou-se: mas andar á enxada... demais a mais depois que se tem passado...

-- Sabes tu?... -- interrompeu o tio Anselmo. -- Tive agora outra idéa. N'o digas nada ó rapaz. Quem lh'o ha-de dizer, hei-de ser eu. Deix'-o voltar, e falaremos. Tu faz'-te de novas. Depois la lhe dirás em particular o qu'entenderes. Percebes?...

-- Pois sim, sim...

-- E' o melhor. Dorme. Vê agora se dormes, que eu vou fazer o mesmo, porque n'o tarda o dia, e logo n'o sentimos o corpo. Temos tempo de conversar n'isso.

E dito e feito: poz-se o tio Anselmo a coca do somno. Deu meia volta e fechou os olhos.

A tia Ricardina fez o mesmo, sendo aliás menos bem succedida. Agora é que ella nem a bem nem a mal conseguia adormecer. A sua phantasia caprichava em lhe apresentar aos olhos da alma quadros de tanta bellesa, que seria impossível desprender-lhe a attenção de tamanho enlevo. Assim, despontou o dia, e ella vellava ainda.

X

Lagrimas

Levantava-se o sr. padre David habitualmente muito cêdo. Era um dos primeiros madrugadores da terra. Fosse no accezo do verão, fosse no pino do inverno, ao começar do raiar da aurora punha-se a pé.

-- Não posso! -- dizia elle aos que lhe estranhavam estas madrugadas por todo o tempo. -- Não posso parar na cama em presentindo o dia. Se alguma vez isso acontecer, digam logo que eu estou muito doente. E' porque as forças de todo em todo me abandonaram.

E de facto. Por coisa nenhuma o sr. padre David alterava este seu regimen de vida. Mesmo que elle por qualquer circumstancia se deitasse muito tarde, ou velasse as noites em cruel insomnia, á sua hora costumada, variando, consoante a estação do anno, entre as quatro e as cinco horas, chovesse ou coriscasse, erguia-se, lavava-se, enfarpellava-se e sahia de casa.

Mas não por simples medida hygienica procedia assim o bom do parocho. Podia pensar-se isto. Havia de o suppôr quem lhe ouvisse encarecer os beneficios resultantes d'esta em verdade salutarissima regra. Não senhores! A' razão de alcance material andava ligada uma outra de ordem moral. Sua reverendissima sabia muito bem que dizer missa a tardas horas, era o mesmo que não querer ter assistentes a ella.

N'uma povoação rural todos têem seus affazeres, suas obrigações, seus trabalhos. Antes do sol nado todos têem que apresentar-se nos serviços proprios ou de conta alheia. O uso faz lei.

Além d'isto havia ainda mais um caso a influir. O sr. padre David tinha a devoção do toque de Trindades. Quem tangia no sino parochial aquellas tres badaladas consagradas á celebração do sacro mysterio da divindade trina e una, era elle, sempre elle, e por signal que sempre a hora certa.

Dava-se até por esta circumstancia um curioso facto. Aquella voz do bronze era uma especie de toque geral de alvorada. Os mais dos habitantes da aldeia deixavam-se dormir a somno solto fiados na regularidade do seu providencial despertador. Ao resoar da primeira badalada, acordavam e diziam:

-- Lá está o sr. padre David! São horas...

E tratavam de se pôr álerta.

Quando vibrava a segunda, já todos estavam a endereçar ao céo a sua primeira oração do dia:

-- Louvada e adorada seja n'esta hora e por todo o sempre a Santissima Trindade!

A' terceira saltavam fóra da cama.

Isto era certo, sabido. Vestiam-se.

Entretanto ajoelhava o sr. padre David na capella-mór da egreja e orava. Matinas e laudes, orações estas que a rubrica do missal manda rezar antes da missa, já as elle tinha resado de vespera. Graves doutores theologos o consideram admissivel, e muitissimos ecclesiasticos o praticam. O que elle fazia alli, esperando a chegada dos fieis, era pedir ao Senhor que abrisse os thesouros da sua infinita misericordia e propiciasse ao seu povo dias felizes. Depois, quando bem lhe pareciam horas, recolhia-se á sachristia, paramentava-se e ia para o altar, d'onde nunca se retirou sem ter offerecido a Deus o chamado fructo especialissimo da missa por aquella pela qual elle vestira o seu eterno luto.

Não quer isto dizer, porém, que o sr. padre David fizesse todos os dias rigorosamente a mesma coisa: isto é; que se levantasse e fosse logo tocar a Trindades, e acto continuo se recolhesse á egreja e de lá não sahisse sem ter primeiro celebrado missa. De maneira nenhuma! Tudo n'esta vida tem suas excepções, mesmo a despeito da nossa melhor vontade.

O sr. padre David estava como qualquer outro mortal sujeito a umas tantas exigências sociaes, e estava, sobretudo, escravisado a umas tantas obrigações humanitarias. Como homem, e como medico, tinha deveres inadiaveis a cumprir. O que elle diligenciava era dar satisfação d'estes, sem prejuizo dos do saserdocio.

Assim, pois, aconteceu que elle na madrugada em que o sr. Garrik e João se deviam ausentar, levantou-se, preparou-se, foi tocar ás Trindades e dirigiu-se a casa do seu amigo Zé Joaquim, que era o ponto d'onde aquelles dois haviam de partir ao seu destino.

Seriam então quatro horas: o dia principiava d'aclarar; o céo estava limpo de nuvens; as avesitas começavam a mexer-se e a pipilar no meio das moitas; para os lados do oriente via-se uma vermelhidão sanguinea, signal certo de que o sol creador viria em breve espargir pela terra ondas de alegria.

O sr. padre David, caminhando sempre, ia fazendo reparo em todas estas coisas, e naturalmente meditando na grandeza do Senhor, na sua nunca assas louvada omniscencia e omnipotencia. Ao passo que os olhos do seu rosto iam baixos á terra, os olhos da sua alma iam altos até ás alturas da Gloria.

Emfim, chegou onde se dirigia.

Devia estar por pouco a partida do sr. Garrik e de João. Estava-se já tratando de apparelhar as bestas, que elles haviam de montar. Cuidavam d'isso, no coberto do pateo da casa, dois creados do hospedeiro do belga, os quaes se deram pressa em cumprimentar o seu pastor.

-- Seja bem vindo, sr. prior!

-- Deus lhe dê muito bons dias, meu senhor!

-- Bons dias, rapazes!... Bons dias!... A' vontade. Ponde os barretes. Então vós é que ides com os nossos homens?

-- Saiba vossa senhoria que sim, sr. padre David. Semos nós que vamos c'o sr. francez e mais c'o João Gil.

-- E elles?... inda n'o appareceram?

-- O sr. francez inda não. Cuido que inda n'o se alevantou -- disse um dos servos.

-- Já, já -- certificou o outro. -- Já o eu vi á janella do quarto. Agora deve elle estar conversando co' João, qu'entrou ha boccado. O nosso amo, esse foi o primeiro a erguer-se.

-- Pois vou vêl-os -- disse o sr. padre David retirando-se n'esse intuito.

Mas ainda elle não tinha dado meia duzia de passos, parou de repente e começou como que a reparar se alguem o espionava.

Dirieis, observando isto, que o sr. padre David não ia ali com boas intenções. Havia o que quer que fosse de suspeito, de mysterioso, no seu modo e maneiras de explorar o terreno. Depois, se o visseis continuar a andar em bicos de pés, um pouco curvado para a frente, e sempre vigilante, não o surprehendessem n'aquella estranha empreza em que elle estava mettido, fosse ella qual fosse, concluirieis que o homem, tão bom, tão exemplar, tinha sido accommettido de alguma tentação criminosa, roubo ou homicidio, e ia pratical-o.

Não era para menos o caso. Aquelles medos com que elle pisava o palhiço estendido no caminho. aquella sua cuidadosa vigilancia tudo evidentemente com receio de ser visto ou presentido, levantavam suspeitas malignas. E todavia enganaveis-vos redondamente! O que tinha feito com que o sr. padre David parasse, e sondasse o campo, e tornasse a avançar com tantas precauções, era ter-lhe chegado aos ouvidos o echo de uma jura de amor pronunciada n'um tom murmuroso pela voz de João Gil. Nada mais, nada menos.

-- Olá! olá! -- disse para os seus botões o sr. padre David. -- Temos namorico! Quem será a moça?...

Isso é que elle queria saber. Por isso é que elle foi avançando com tantas precauções. E por outros motivos ainda, que não só este! Para si era quasi ponto de fé que a requestada, a mulher a quem João dizia amar, era Amalia, a filha de Zé Joaquim. O que elle mais pretendia averiguar, era em que altura iam já aquelles amores, se havia reciprocidade de affecto, se, emfim, a coisa era séria.

Quanto á primeira parte da sua empreitada, essa logo elle a venceu. O rapaz teve a indiscripção de nomear o nome da sua namorada.

-- Se alguma vez te disserem que eu dirigi palavra d'amôr a outra, que não sejas tu, Amalia, -- exclamou elle n'um accesso de enthusiasmo, -- mentem-te! O meu coraçãu é teu, só teu! Pertence-te, como o escravo pertence ao seu senhor.

-- Bravo! -- exclamou lá no seu intimo o sr. padre David.

-- Juras-me tu, pela memoria de tua mãe, que tambem me has de amar sempre? -- tornou o rapaz.

-- Juro! -- disse com firmesa a rapariga -- Juro pela memoria de minha mãe, que te hei de amar emquanto me tu amares.

-- E então, hein? -- murmurou o sr. padre David -- N'o está também o demonico da moça apaixonada?!

-- Olha que foi por amor de ti que eu me não fiz padre! -- tornou João -- Foi por amor de ti que eu tantas lagrimas fiz derramar a minha mãe, e tantas lagrimas bebi no silencio das noites. Lembra-te d'isto, que nunca deixarás de me ter amor: e lembra-te mais que eu te jurei já que se a morte te levasse, então faria como o nosso santo prior fez; que tomaria de boa mente a mortalha ecclesiastica.

N'este ponto não se riu o sr. padre David. A invocação de João trouxe-lhe lá do intimo da alma lagrimas aos olhos. E nem podia deixar de ser! E nem essas lagrimas podiam offender o Senhor dos mundos pela fraqueza do seu ministro! A condição humana é fragil: demais d'isso, as lagrimas de saudade são offerta de Deus para balsamo dos desventudos.

O sr. padre David, a despeito da sua muita resignação christã, dos seus sorrisos, da sua fé, era um desventurado, acreditae.

Não cicatrizam facilmente os lanhos da desventura céga em coração de homem. Pode passar a dôr violenta do primeiro momento; pode, mesmo, disfarçar-se o cevo pungir de todos os infortunios: mas o que nunca acontecerá, o que nunca vereis, é que o roer das saudades venha a terminar. Isso é que não! Pelo contrario: a saudade refina pelo roçagar das azas do tempo. Esse sentimento indefinivel, mysto de goso e dores, recrudesce, não se extingue.

XI

O juramento

Quando o sr. padre David recobrou a consciencia do motivo que o retivera ali, alapardado como espião, já os dois namorados tinham posto remate á sua entrevista amorosa. Já tinham desapparecido. Nem João já estava no pateo, nem Amalia á janella.

Averiguado isto, e afinal contrariado por não ter ouvido as despedidas d'aquelles dissimulados amantes, foi o sr. padre David dar os bons dias ao seu amigo belga.

Entre um e outro tinha-se empenhado certa intimidade. Por ultimo já os dois conversavam bastante, entendendo-se menos mal. A curto trecho, muito naturalmente, o sr. padre David começou a perder o medo, a desembaraçar-se, a falar melhor ou peor o francez, e, em summa, a tomar muita estima pelo sr. Garrik, que tambem á sua parte se sentia captivado pelo sacerdote.

Tivera grande influencia n'este atamento de relações o filho da tia Ricardina. O rapaz não secançava de elogiar ao seu prior as qualidades do belga, e de contar a este maravilhas do sr. padre David.

Em conclusão, o sr. Garrik era um perfeito cavalheiro, e o sr. padre David um exemplarissimo homem. Não podiam os dois deixar de se estimar um ao outro.

Saudou o sr. Garrik com palavras festivas a chegada do nosso prior, e entabolou-se conversa.

No acto d'uma despedida affectuosa, ha sempre muito que se dizer. Puras banalidades tomam então um caracter importante. O antegosto da saudade accende n'alma uma nova luz, ao refulgir da qual insignificantes verbos adquirem eloquencia estranha.

João não falava. Tinha-se retirado para um canto, para a penumbra da sala, d'onde elle estava vendo, talvez, com os olhos do coração, o retrato da sua amada.

Chamaram-n'o.

-- Vem cá dizer tambem alguma coisa, rapaz! -- bradou-lhe Zé Joaquim. -- A modo qu'estás a querer dormir! Vaes-te ferrar aos cantos, como os velhos!... Que diabo é isso?...

-- Que tens tu, João? -- perguntou o sr. padre David. -- Estás de mal co'a gente?...

-- Estou macambuzio -- respondeu o rapaz aproximando-se, a disfarçar em sorrisos a contrariedade do chamamento.

-- Ora, ora, ora... macambuzio!... um rapaz!... não se envergonha de dizer isto! -- replicou Zé Joaquim com a sua costumada e franca jovialidade. -- Macambuzio, porquê?...

-- Dormiria mal -- disse com astucia o sr. padre David.

-- Pois não dormi bem, não.

N'este momento abriu-se uma das portas da sala, e entrou a filha do dono da casa.

Era uma rapariga forte, bonita, typo de provinciana beirã, rosada e elegante, e mais nova anno e meio que João.

O sr. padre David agradeceu-lhe o cumprimento que ella lhe fez, perguntando-lhe com malicia se tambem tinha dormido mal.

A rapariga sorriu-se; João córou.

-- Ora essa!... Então porque é que eu havia de dormir mal, sr. padre David?...

E com soffrivel dissimulação, mas já não tão senhora de si como antes, porque espalhando olhos vira João muito perturbado sob a vista do sr. padre David, tornou:

-- Quem foi que dormiu mal?... Foi vossa senhoria?...

-- Foi aqui o João -- respondeu de galhofa o pae de Amalia, mas sem ter percebido nada do que se estava alludindo.

-- Pensei que fosse o sr. padre David! -- replicou a moça. -- E atão que tem que elle dormisse mal?...

Este desembaraço da rapariga, supremo esforço da sua grande coragem, e porventura uma trica para sondar a situação, deu com as espertezas do sr. padre David em terra.

Está claro que podia ser uma imprudencia de mau resultado continuar a esgrimir epigrammas. Era melhor, mais prudente, tergiversar.

Foi o que sua reverendissima fez com uma habilidade estrategica digna de todo o elogio, e tanto que os proprios namorados logo se recuperaram do sobresalto em que estiveram, e até creram que mal cuidaram imaginando-se surprehendidos na sua intimidade affectiva.

Passou o sr. padre David a falar de coisas diversas.

Não tardou, em vista d'isto, que Amalia e João começassem a olhar-se ás furtadellas com uma ternura altamente significativa, a corresponderem-se assim n'esta mysteriosa linguagem.

Entretanto chegava-se a hora da partida do rapaz e do sr. Garrik. Zé Joaquim participava que tudo estava em ordem para a marcha, e lembrava a conveniencia de elles a não retardarem.

-- Pois partamos -- disse o sr. Garrik.

-- Vamos -- condisse João.

E desceram todos ao pateo.

Estavam ahi, já apparelhadas, promptas, as cavalgaduras que os deviam transportar, tendo cada uma seu ramo de carvalho ao pescoço, por causa do mosquedo. Tinham-n'as pelo freio dois creados.

-- E a tua bolsa? -- perguntou Zé Joaquim a João.

-- Estava á espera que ahi m'a trouxessem. Minha mãe e meu pae ficaram de vir. Mas é o mesmo. Recebo-a á porta de casa.

-- Olha!... Ahi vem tua mãe com ella! -- exclamou o sr. padre David.

E de facto. Vinham n'este comenos apontando ao portão do quinchoso a tia Ricardina com a bolsa sobraçada, e mais atraz, a par e passo, o tio Anselmo e o seu filho mais velho.

Vistos os preparativos de partida, estugaram os tres o passo e apresentaram-se logo.

-- Já?! -- exclamou a tia Ricardina. -- E nós a cuidarmos que sempre se demorassem mais!... Ora, ora...

-- Tenham todos muito bons dias! -- disseram descobrindo-se o tio Anselmo e o filho.

-- Adeus, Anselmo... Olá, Manuel... Bons dias, amigos -- responderam a barulho os saudados.

-- Nós n'o podiamos deixar de comparecer, p'ra dizermos adeus ao sr. francez -- explicou o tio Anselmo.

-- Está visto -- disse a tia Ricardina, que ao tempo estava cumprimentando Amalia. -- N'o haviamos de vir dizer-lhe adeus?... Ora essa!

O sr. padre David transmittiu estas palavras ao sr. Garrik, e o sr. Garrik respondeu a tamanha fineza abraçando os dois conjuges.

-- Faça vossa senhoria de conta que o nosso João é sê filho, e dirija-o, por favor, sim? - recommendavam elles ao homem.

-- Não tem duvida, descancem -- respondeu o sr. Garrik pela bocca do sr. padre David.

-- Descançae, descançae, que nem o João é nenhum parvo, que n'o saiba o que lhe convem, nem vae mal acompanhado -- afíirmou Zé Joaquim. -- Filho meu fôra elle, qu'eu até pagava a este homem p'ra m'o levar. Vae aprender, vae fazer figura...

-- E' muito novo! -- disse a meia voz o tio Anselmo ao ouvido de Zé Joaquim.

-- Ora 'stá calado, 'stá calado, homem! Com ser elle muito novo, tomáras tu saber o qu'elle sabe, e mais eu, e tanto tino como elle!

O tio Anselmo não soube que responder. Esta depreciação dos seus valores, atabafou-o. Elle, se se falasse d'outrem, respingaria. E' de presumir que então o dito lhe molestasse os brios. Mas assim... tratando-se do seu filho -- ó segredos do coração paterno! -- como se tratava do filho, o elogio a este lisonjeou-o mais, muito mais, que se fosse feito á sua propria pessoa. Incomparavelmente!

Era vel-o! Que alegria nos olhos!... que alegria no gesto!.. que alegria na alma apesar da sua affectada mágoa!...

Reparae bem. Se algum dia virdes borbulhar lagrimas em olhos de homem cuja importancia pessoal houver sido n'esse mesmo momento amesquinhada em relação á d'um filho, reparae bem, que essas lagrimas não são de dor, mas de jubilo.

Tem d'estas excentricidades o orgulho humano. Nada mais mysterioso do que o nosso sêr.

Succedeu, pois, que o tio Anselmo ficou como que chumbado ao chão, no logar em que estava, quando Zé Joaquim lhe replicou, e este foi contente de si aggregar-se ao grupo formado pelos srs. Garrick e padre David, tia Ricardina e Amalia. João conversava com Manuel em sitio mais afastado.

Ahi, n'esse adjunto, era a tia Ricardina que falava.

-- São muito bom rapazes, muito bom rapazes -- dizia ella dos filhos, á puridade. -- Eu só tenho que dar louvores a Nosso Senhor!... Se n'o fosse o meu João n'o querer ser padre... eu era a mulher mais feliz que a roza do sol cobre!

-- Cá 'stá outra!... -- bradou Zé Joaquim quando ainda vinha chegando. -- Esta, então, inda anda lá co' o demo d'aquella mania na cabeça!... queria o filho padre!... Ora Deus te dê juizo, mulher. Deix'o rapaz!... Fez elle muito bem. Eu fazia o mesmo.

-- Isso diz vossemecê, mas se fosse comsigo...

-- Olhe, tia Ricardina-- interrompeu o sr. padre David -- crê em Deus?...

A tia Ricardina fez um gesto de agastamento.

-- Credo! santo nome de Jesus!... Pois antão n'o hei de crer, sr. padre David?...

-- N'esse caso... não péque. Deus é que dispõe de tudo e de todos. O seu filho não se fez padre, porque Deus o não quiz.

-- Pois tamem digo, tamem digo... -- concordou a tia Ricardina -- Deus não me quiz dar esse gostinho. Agora... eu e o meu homem temos cá uma outra idéa... Se Deus for servido...

-- Lá estás tu já a dar co'a lingua nos dentes, mulher! -- sobreveu o tio Anselmo com ar de maior censura -- E' forte coisa, que te n'o cabe nada no bucho!... Safa!...

E rematou dizendo á roda, para compor o ramilhete:

-- Com'assim, hemos de vêr se o rapaz delibera procurar a sua vida sem ter de andar p'ra'hi feito burro de carga. Pois n'o é isto justo?...

-- Fazes bem, fazes -- apoiou Zé Joaquim. -- N'o faltará em que s'elle empregue. Atira co'elle lá p'ró Porto, ou p'ra Lisboa, que elle lá esgravatará e arranjará modo de vida decente. Aqui, meu amigo, tanto monta um homem saber muito, como n'o saber nada. Lá o caso é outro: quem tem habilidade n'o morre de fome, sem ter de andar todo um dia feiro negro de roça. Se quizeres pedem-se umas cartas, e o rapaz vae por ahi fora á cata de fortuna. Queres? Diz que queres, e deixa o negocio por minha conta.

-- N'o desagradeço, sr. Zé Joaquim. Veremos -- respondeu o tio Anselmo. -- Primeiro quero eu cá estudar o caso. Bem vê que... sim... estas cousas... querem-se consultadas.

-- Pois consulta lá, e dá-me a resposta. Decide-te. A teres de o impontar, que é o que deves de fazer, quanto antes melhor -- concluiu Zé Joaquim. -- Da-lhe um rumo que preste.

Ora mal diria elle que, entretanto assim falava, estava flagellando o coração da filha!

Pois estava. O sr. padre David é que não perdia nem uma das muitas manifestações d'aquella dilacerante agonia que a torturava. Os seus olhos liam n'aquelle rosto como em livro aberto. Ali retratava-se ao vivo o sentir da sua alma. Ella amava o rapaz, e amava-o com paixão. Ouvir dizer ao pae que elle devia ir procurar lá por longe a fortuna que na aldeia não podia esperar, era cravar-lhe no coração garras de aço, rasgar-lh'o brutalmente fibra a fibra.

D'este spasmo acordou-a misericordiosamente o sr. padre David.

-- Louca! porque te affliges? -- disse-lhe elle muito baixinho. -- Tem fé, espera. O homem põe e Deus dispõe.

E tornando a reunir-se ao grupo d'onde para dizer isto á rapariga se destacara e do qual já faziam parte Manuel e João, roçou-se por este e passou-lhe ás mãos com ar de mysterio um papelito que tirou da batina.

-- Lerás lá adiante -- disse-lhe elle a meia voz.

João recebeu a mysteriosa encommenda, e guardou-a sorrelfamente.

Depois começaram as despedidas, e logo após ouviu-se o estrepito dos cavallos caminhando porta fora.

-- Adeus! Boa viagem -- murmuraram todos os que ficavam.

-- Adeus!... -- responderam os que partiam.

E nos olhos d'uns e d'outros, á luz crepuscular do dia, scintillava o brilho de lagrimas.

XII

Alvoradas do amor

Querem saber uma opinião individual, talvez errada, mas convicta, a respeito d'amores?

O discurso não é estranho ao fio da chronica.

O comecilho das historias d'uns amores castos, sinceros, intimos, bem intimos, é a coisa mais simples, mais natural e mais uniforme d'este mundo. Principia porque um dia, quando o sol primaveral da vida desenvolve os seus primeiros calores, se sente a necessidade d'amar.

Porque, hão-de convir n'isto; o amor é uma necessidade da alma. O amor é o laço da união espiritual da familia humana. Sem amor o mundo seria um cahos iliuminado: a desordem seria eterna, a vida impossivel.

Ha a necessidade d'amar.

Depois, surdindo a necessidade d'amar, a imaginação ala-se com solicito empenho em cata d'uma entidade amavel, á qual, descoberta ella, o coração todo se dá.

E estas são as nupcias ideaes.

A partir de então a vida é um delirio feliz: ouve-se o ideal, fala-se com elle, sonha-se com elle, dão-se-lhe beijos, prodigalisam-se-lhe e acceitam-se-lhe mil caricias, vive-se com elle e n'elle, adora-se, idolatra-se.

Mais tarde o ente privilegiado das permicias da donzella ou do moço, toma vulto, corpo, fórma, movimento: incarna-se, materialisa-se. E é isto uma sabia determinação providencial: atraz do puro sentimento do amor, occulta-se o instincto da procreação. Um bello dia a metamorphose opera-se.

Succede então uma confusão inexplicavel: sobem rubores ás faces, dão-se deslumbramentos nos olhos, a voz tem estremecimentos, o espirito alvoroça-se.

A surpreza produz tudo isto, e até uns certos retrahimentos, como de quem se envergonha d'alguma coisa.

E' a memoria do sonho que desperta!

Mas o certo é que o affecto existe, lá está radicado, bem radicado já, e toma de momento para momento maiores proporções. O fogo latente rompe em labaredas vulcanicas. A crysalida tornase borboleta, e voa e revoa inquieta, sem descanço, doida, em derredor da luz que a fascina. O amor acrysola-se, redobra de intensidade, abraza, e será tanto mais profundo quanto maiores obstaculos encontre. Ha-de o querer sopear o orgulho, despertado por quaesquer motivos; hão-de pretender desvanecel-o as adversidades, revoltas sob quaesquer pretextos; e tudo será inutil. Tudo inutil! Augmentará sempre na proporção das contrariedades: arrastará aos ultimos escalões da vida, mas não esfriará nunca, nunca, a despeito ainda das maiores calamidades.

Ora se esta não é a historia de todos os amores castos, é pelo menos a dos da filha de Zé Joaquim. Amalia começou por amar uma visão, e acabou por amar um ser real, o filho da tia Ricardina.

João era moço, era bello, era meigo, era, emfim, cheio de nobres qualidades, tal como aquelle por quem ella suspirava. Portanto viu-o e amou-o.

Sim! Viu o e amou o. O dizer é gasto, mas é eloquente, e indispensavel á expressão intelligente da coisa. Viu-o e amou-o, porque com effeito vê-se e ama-se logo, quando as alvoradas do coração têem antes illuminado o objecto. Aquelle era em toda a evidencia o noivo da sua alma. Fascinava-a a limpidez do seu olhar terno, o metal da sua voz, a cultura do seu espirito, a nobreza do seu porte, e mil outros pequenos nadas que prefazem a somma d'esse sentimento conhecido pelo vocabulo amor, breve enfiadura de lettras em que se crystallisa o sentimento que a tantos principes, a tantos senhores altivos, a tanta gente soberba tem feito morder o pó!

E João?...

Força é dizel-o. João andou algum tempo cego, e tão cego, que nem reparava que os olhos da rapariga se baixavam ao cruzar dos seus. E' que, seja dito em honra da verdade, nem o rapaz ainda tinha attentado n'ella bem de perto, nem ainda se lhe havia ateado no espirito a chamma do amor.

Para uns estas alvoradas são mais tardias que para outros. Além d'isso, João tinha mil distracções, e vontade de ser padre. De alguma sorte as phantasias da mãe o haviam seduzido. A esse tempo ainda elle não comprehendia a tristeza da vida do sacerdocio. Invejava a roupeta, tinha desejos de vêr-se a um altar e contemplar o povo ajoelhado á sua palavra. Se cuidava nas glorias da pregação, na figura que faria de sobrepeliz e estola a falar d'um pulpito, enlouquecia.

Creancices! Devaneios da infancia! Então não se sabe o que se quer.

Aconteceu, porém, encarar um dia rosto a rosto com a rapariga, e ficar como embevecido na contemplação das suas graças. Viu-a corar, e sentiu alvoroço intimo ainda não experimentado. Falou-lhe e ficou encantadissimo.

Nunca mais desde então o filho da tia Ricardina foi senhor de si.

-- Ordena-te! -- supplicava-lhe a mãe.

-- Casa! -- ordenava-lhe o coração.

E d'aqui, d'esta opposição de conselhos, provinham á sua alma attribulacões inauditas. Havia noites e noites em que elle não pregava olho. Ribombavam os trovões, falavam os seus mestres, cantavam no seminario os conegos, trinavam as aves, era profundo o silencio, e elle ouvia sempre a voz d'Amalia, sempre e só a d'ella: olhava para os livros, olhava para o ceu, olhava para a terra, não olhava para ninguem, e via sempre o retrato d'Amalia.

Gravara se-lhe na memoria o retrato da rapariga com tal fundura de traço, tanta nitidez de linhas e tanta verdade de colorido, que por mais que elle fizesse seria trabalho baldado querel-o apagar ou não o reconhecer. Não podia, assim como não podia deixar de estar sempre ouvindo a sua voz maviosa, fresca, vibratil como a de crystaes. Tinha allucinações auriculares.

-- E hei de ser padre! ... E hei de querer morrer para o mundo!... E hei de ser eternamente infeliz!... E hei de viver condemnado por minha culpa a um martyrio sem tregoas!... Oh, não! nunca! -- bradava elle no intimo da sua consciencia. -- Nunca!

Mas lá estava o dever a martellar idéas oppostas.

-- Serás padre, sim: serás padre. E' tua mãe que o quer. Foste tu que o quizeste, acceitando o sacrificio dos seus pobres haveres. Serás padre!

Terrivel, medonha lucta esta!

Entretanto, sabe-se, o coração não transige. Doenças serias do coração, e d'estas, só o pó da campa as póde curar. O rapaz peitou-se para resistir a todas as forcas humanas. Decidiu renunciar á vida clerical. Sondou se, consultou se, reconheceu-se incapaz de ser padre. O resto sabe-se.

E' de notar, porém, que a esse tempo ainda João não tinha trocado com Amalia nem uma unica palavra d'amor. Nem uma só! Se muito, quando vinha a férias, procurava poder-lhe dar o Deus-te-salve. Mais nada. Acovardava-se de lhe falar. Algumas vezes ia n'este proposito rentar-lhe á porta, mas se acertava de a ver, fugia. la-a então contemplar lá de longe, de qualquer cabeço distante, d'onde ninguem o podesse observar.

Não obstante sabia que Amalia o amava. Adivinhou-o; certificou-se d'isso pela maneira como ella o tratava e lhe correspondia sempre.

Sobre isto é até impertinente insistir. Todos sabem quão expressivos são olhares de gente moça.

Agora o curioso, é que pensando João que os castigos do pae e a attitude geral dos vizinhos lhe haviam de trazer desprezo, trouxeram-lhe ainda maior affecto.

No meio de todas as suas desventuras, havia este precioso amparo da misericordia divina a ter mão n'elle. Ao menos tinha entre os estranhos uma alma sinceramente devotada; Amalia. Ainda elle não tinha chegado ao banco do ferrador, e já lá estavam na janella da casa d'ella, abertos em sorrisos de clemencia, os olhos da rapariga.

-- Tem fé. Eu amo-te. Soffre com resignação -- diziam-lhe aquelles olhos.

E elle soffria, e tinha fé, e acreditava no amor d'aquella mulher.

Grande recompensa, esta, em verdade, para a sua alma; ter quem o amasse!

Depois, quando foi posto a cavar, a mesma coisa. Ia João para o trabalho, via aquelles olhos, quaes luzeiros do céo, dando aos cardos e arestas do seu Calvario um tom de alfombra florida: voltava, e lá os tinha vigilantes, sorridentes, á espera dos seus.

Até que, emfim, a sorte consentiu que os pobres namorados um dia falassem.

-- Amo te!

-- Amo-te!

-- E eis tudo. Só mais um abraço, e... é certo, um beijo quente como o fogo, e um abraço tão puxado, tão d'alma e coração, que se diria que aquelles loucos se queriam ali fundir.

XIII

A confirmação

Tudo vae do começar. Uma fraqueza leva a outra fraqueza, um crime a outro crime. Mas se ha pundonor, se ha brios, se ha inteireza moral, o delinquente de hoje é o mais honesto homem de amanhã.

Assim foi que o beijo e o abraço de João e Amalia não teve maiores consequencias. Fizeram aquillo em delirio: estreitaram-se e uniram os labios sem consciencia do acto. Era uma força estranha que os animava. Depois cahiram em si e sentiram referver-lhes nas faces o sangue afogueado pelo pejo. Separaram-se sem se quererem vêr. Estavam envergonhados um do outro.

Durou esta vergonha dois dias. A' noite João vinha com o sr. Garrik da fabrica para o seu quartel e Amalia andava-o a espreitar pelas frinchas das portas. Não apparecia na sala. Pela sua parte, o rapaz, diga-se a verdade, comprehendia o motivo da auzencia da sua amada, presentia-lhe os passos, sentia-lhe o hálito, e estimava este retrahimento. Tambem não sabia com que cara lhe havia de falar; temia denunciar-se. Preferia que ella se lhe mostrasse, como realmente se lhe mostrava, quando elle sahia e já lá ia longe, assomando á janella. Isso sim. A vergonha está na muita luz. João, vendo apenas o vulto da rapariga, não corava, não se perturbava. Ouvia bater o coração, mas não sentia latejar as fontes, nem empanar-se-lhe a vista, nem perder-se-lhe o ouvido, como quando estava em casa d'ella e se lhe affigurava que a ia vêr surgir.

Um acaso, ethnicamente falando, compôz a situação.

Isto assim não ia bem.

Notou uma tarde o sr. Garrik que lhe tinham esquecido em casa certos desenhos, sem os quaes lhe seria impossivel determinar a montagem da machina de que se estava occupando. Pediu a João que lhe mandasse lá um homem á carreira por elles. Deu todas as indicações precisas para prevenir equivocos.

João chamou um dos serviçaes mais intelligentes e fez-lhe a incumbencia, transmittindo com o recado todas as explicações recebidas.

-- E' um papel grande -- dizia-lhe elle -- todo cheio de lettras de conta, rodas desenhadas, e escripto a tinta preta e vermelha. Está dentro de um catalogo, uma especie de livro pequeno, sobre a mesa do quarto do sr. Garrik.

-- Ora tu, tu, homem!... -- exclamou Zé Joaquim ouvindo isto. -- Este diabo sabe lá o que são catalogos nem o que deixam de ser!?... Tu n'o vês que cara apalermada elle tem?... Vae tu, tem paciencia: faz'esse sacrificio. Chega lá tu.

-- Mas... e o sr. Garrik ha de ficar só?

O que elle devia antes dizer, era:

-- Mas... a Amalia está lá em casa?...

Porque a verdade é que este era o motivo da objecção. Demais sabia elle que o moço havia de suar para dar conta do recado! Quanto a ficar o sr. Garrik só, isso era o menos.

-- N'o tem duvida -- replicou Zé Joaquim. -- N'o fica só, que fico eu cá. Vae, tem paciencia. A' volta, se quizeres, vem a cavallo. Vem. N'o quero que venhas a pé. Diz' lá que digo eu que te apparelhem a mula. Chegas mais depressa, e vou eu logo a cavallo para riba. Tenho de ir adiante de vós.

Em vista d'isto João resignou-se, e foi ao povo. Caminho fora ia falando á sua coragem. Ora dava parabens á fortuna por lhe haver deparado esta occasião de tornar a ver Amalia bem de perto, ora se chamava infeliz. A's vezes o animo desfallecia-lhe.

Chegou emfim ao seu destino. Não havia reme dio senão andar. Entrou o pateo da casa, espalhou olhos por todas as janellas, então desertas, subiu pé-ante-pé o balcão, e lá em cima no patamar tomou folego e bateu á porta. Immediatamente voltou a cara.

-- Devo estar muito vermelho! -- dizia elle limpando as camarinhas de suor que lhe borbulhavam da testa.

-- Quem é?-- perguntaram de dentro.

-- Sou eu -- disse João todo perturbado.

A voz de quem perguntava era a de Amalia. Percebeu-se distinctamente. A de João, porém, é que só os anjos a reconheceriam.

-- Alguma vizita! -- murmurou lá comsigo a rapaciga. -- Quem será?!

Entretanto dava um arranjo aos cabellos, batia a saia, toda matizada de flocos de cotão da meada que estava dobando, e compunha o lenço no pescoço.

-- E logo n'o'star cá nem meu pae, nem minha avó, nem ninguém!... Só a rapariga!... -- murmurou ella. -- Valha-me Deus, valha!...

Porque, é de saber, para Amalia era ponto de fé que tinha á porta alguma vizita do pae. Vizinhos do mesmo povo não batem ás portas. Pelo menos nas aldeias da beira assim é: chama-se por um nome da familia da casa, e vae-se entrando por ali dentro até se topar com alma viva. Depois dão-se os bons dias, ou as boas tardes, e diz-se o que se quer.

João havia batido por excesso de cortezia. Bem que os seus conhecimentos escolasticos lhe trouxessem o desengano da má educação d'esta costumeira provinciana, conformava-se elle com o uso e fazia pelo ordinario o mesmo que os outros homens; entrava sem cerimonia fosse onde fosse.

Esperou. Como a rapariga tardasse, a sua imaginação engendrou logo um capitulo romanesco. Devia de ser porque Amalia estivesse cobrando alentos para lhe apparecer. Então, mais forte que ella, foi entrando.

-- Sou eu, Amalia; sou eu... Cá vou indo... -- disse elle andando sempre.

Amalia estremeceu toda quando de improviso elle se lhe deparou no cotovello de um corredor.

Ainda o não tinha reconhecido.

-- Credo!... que medo que tu me fizeste!...

-- Então não me ouviste chamar?

-- Não te ouvi os passos, nem sabia que eras tu! Nem mesmo sei o que foi que me accudiu á idéa quando te vi!

-- Pensaste que eram ladrões?...

-- E olha... que n'o sei se te diga que sim.

-- Pois enganaste-te; sou eu. Vim cá porque teu pae me mandou cá buscar uns papeis ao quarto do sr. Garrik.

-- E quem é que está á porta, viste?

-- N'o é ninguém. Quem bateu fui eu. Agora como tu n'o apparecias... entrei. Estás de mal commigo?

-- Não, porquê?

-- Nunca mais tornaste a ir á sala em eu lá estando!...

-- E n'o me tens visto?

-- Tenho.

-- Então... já poderias ter adivinhado que n'o 'stou de mal comiigo. Nem ha razão.

-- Tambem é verdade. Mas diz' lá agora a serio, serio: Amas-me?...

Amalia recuou um passo, encostou-se ao batente de uma porta, e baixou os olhos, murmurando ao de leve que sim.

-- Muito, muito?...

Disse-lhe a rapariga que sim, muito acanhada, muito vermelha.

E logo tirando se d'aquella attitude humilde, reagindo contra a commoção que a tinha prostrado, continuou:

-- Nem me devias perguntar isso! Pois tu não o vês? n'o sabes que sim?...

-- E olha lá; se teu pae não quizer que tu olhes para mim?... Que farás tu?...

-- Mas é que eu sei que meu pae é muito teu amigo; faz-te muitos elogios cá em casa. Meu pae n'o diz que não... se souber. Nem minha avó! A essa até tu deves muitos favores. Uma vez, vinha teu pae passando, e tinha-te posto a ferrador, e ella chamou-o e esteve-lhe dizendo que fazia mal em assim te castigar; que tu estavas muito no teu direito de n'o querer ser padre; que era uma tolice seres padre.

Estas e outras revelações de igual theor foram ouvidas com grande contentamento do rapaz, cuja demora no seu colloquio amoroso correra por conta da pobre mula. A misera, por aquelles caminhos além, até ao engenho, viu o diabo na pessoa de João! Poucas pilotas taes como esta ella tinha apanhado!

Reatadas assim as relações, continuou o namoro sem novidade. D'elle ninguem suspeitava. João e Amalia eram bastante espertos, bastante dissimulados, para não dar nas vistas. Diante de gente conversavam com a proverbial lhaneza de vizinhos d'aldeia. Se trocavam algum gesto, era muito á subcapa. A sós, é que o caso mudava de figura; então, mas sempre com todas as cautellas, não os surprehendessem, declaravam-se abertamente.

Ha, porém, uma lei fatal decretada lá nas alturas com respeito aos segredos dos homens. Mais cedo, ou mais tarde, tudo se sabe. Umas vezes é o diabo que descobre; outras é a Providencia que revela.

D'esta vez foi a Providencia. Quiz a Providencia que o sr. padre David tivesse conhecimento d'aquelles amores primeiro que ninguem. Elle melhor do que outra qualquer pessoa poderia patrocinar a causa em todas as instancias: elle melhor que ninguem poderia aplanar difficuldades. A sua voz persuasiva, a sua auctoridade paternal, a sua tactica, o seu bom coração, eram penhor da excellencia do patrono em negocio de tamanha importancia.

Afigurou-se pelo menos a sua reverendissima que a Providencia o tinha chamado a confidente d'aquelles amores, e foi n'esta persuazão que elle tomou á sua conta o encargo de negociar o enlace matrimonial dos namorados.

-- Porque não? -- monologava elle. -- Amam-se, são dignos um do outro... hão de cazar! Hei de tratar d'isso. Não vejo obstaculos que possam empecilhar o casamento.

E porque esta era a sua convicção, foi que elle disse á rapariga, quando o pae d'ella dava de conselho ao tio Anselmo que mandasse o filho para uma cidade, Lisboa ou Porto, que não se affligisse, que tivesse fé, que esperasse, porque o homem põe e Deus dispõe: e foi pelo mesmo motivo ainda que elle accrescentou meia duzia de palavras, a lapis, no bilhete que entregou a João, á despedida, e que rezava assim:

«Deus só quer o que é justo. Não te offenda, pois, eu reintegrar-te da meia libra que hontem á noite me déste para os pobres. Sei que foi de purissima generosidade a tua offerta, mas sei tambem que o Senhor aprecia e reconhece tanto as boas intenções como as boas obras, e que essa meia libra te poderá fazer arranjo a ti. Restituo-t'a para que a appliques ás tuas particulares necessidades. Ahi vae n'um papelinho. A outra restituir-t'a-ha Deus, confio eu, em augmentos e fortunas. Pedir-lhe-ha isso em suas humildes orações o teu amigo padre David.

P. S. Porta-te bem por lá, que eu irei por cá tratando de conseguir a realisação do sonho teu e da Amalia. Padre David.»

Este crescente era o escripto a lapis. Por esta circumstancia, bem como pela do contexto do post scriptum João corou, mias alegrou-se infinitamente. Mal acabou de ler, poz-se agitando o lenço, sem grande reserva dos moços da companhia, para o sitio d'onde Amalia, ás escondidas e em lagrimas, lhe acenava com o seu.

XIV

Um passo feliz

Um bello dia, á noitinha, tirou-se o sr. padre David dos seus cuidados, e deu comsigo em casa de Zé Joaquim.

Muita alegria, muitas festas, muitos cumprimentos! Era sempre assim. Em sua reverendissima apparecendo em qualquer parte, cabana de pobre ou vivenda de lavrador, ahi não sabiam o que haviam de fazer para o estimarem. Amalia, o pae d'ella, e a avó, acolheram-n'o com a mais invejavel cordealidade. Elle nem sabia como agradecer tantas provas de consideração.

-- Então diga lá, diga lá que ventoso trouxeram!? -- exclamou Zé Joaquim! -- Ha hoje collecta?

Collecta era o termo pelo qual os proprietarios designavam a esmola que de ora em quando o sr. padre David ia pedir-lhes para os necessitados. Quando bem lhe era preciso, sahia elle ao seu peditorio. Mas ainda então o recebiam com igual agrado. Todos davam de boamente o seu subsidio para actos de beneficencia.

-- Não -disse o sr. padre David. -- Hoje não.

-- Ora ainda bem! -- bradou de mangação Ze Joaquim. -- Nesse caso... vá lá uma pitada!

Sua reverendissima tomou a pitada, e fungou-a sem arte nem graça; por comprazer. Não gastava tabaco: trazia-o sempre, mas só para offerecer a uns e a outros, sobretudo ás velhas atreitas áquelle vicio, e que portal signal eram das mais manhosas e mais más linguas da terra. Quando elle tinha que lhes bater com uma das mãos, com a outra davaIhes a pitada, que era a mais formidavel maneira de as açaimar.

-- Hoje não ha collecta -- tornou o sr. padre David. -- Hoje ha noticias do João. Escreveu.

Amalia quasi que ia deitando ao meio da casa uma jarra que tinha nas mãos, carregada de flores, das quaes distrahidamente estava cuidando, e que foram a terra. Alvoroçou-se toda!

-- Vê lá, filha!... Vê lá o que fazes! ... -- disse-lhe a avó. -- Ias partindo a jarra. Estás sempre a brincar, sempre a mecher!...

-- Ora nunca mais se perdesse -- desculpou o pae. -- Deixe lá brincar a rapariga, minha mãe!

-- Pois sim, mas...

-- Prompto, prompto! -- disse a rapariga pousando a floreira e sentando-se: -- Já se não parte.

Entretanto tirava o sr. padre David do bolso da batina a carta de João e punha-se a lel-a.

-- Diz elle: «O sr. Garrik incumbe-me de lhe mandar um abraço e de lhe pedir para em nome d'elle dar outro ao sr. José Joaquim, e vizitas a todos os da sua casa. E' raro o dia em que elle me não fala, com muito reconhecimento e saudade, do tempo que ahi passou, e das pessoas que lá o obsequiaram. Já me tem dito que, se possuísse uma fortuna, iria acabar ahi, no remanso da nossa aldeia, os dias que lhe restam de vida. E' muito bom homem; tem-me tratado como a filho. Ante-hontem escreveu para a Belgica, á senhora d'elle, e mostrou-me a carta. Era toda cheia de expressões affectuosas e muito lisonjeiras para todos nós. Entre outras coisas amaveis, dizia lá que eu eraa sua Providencia por esteslogares, onde, sem embargo da pouca illustração dos homens, floresce a mais excelsa bondade de coração. A proposito falava de vossa reverendissima com uma galanteria adoravel: chamava-lhe o redemptor da nossa aldeia. E vá que dizia a verdade!

-- Mas que bem que o demonio do rapaz escreve, hein? Já vocês viram?! -- exclamou a avó de Amalia muito arrebatadamente, aproveitando o silencio do voltar da folha da carta.

-- Estou reparando -- disse conforme nos applausos Zé Joaquim -- Que tal está elle!...

Amalia nem tugiu nem mugiu, como se costuma dizer. Alegrou-se, enterneceu-se...

O sr. padre David continuou:

-- «De saúde não ha nada a dizer. Temos passado optimamente, tanto eu como o sr. Garrik. De trato também não. Em Rio Torto fomos recebidos principescamente. Demorámos lá tres dias. Em Moimenta, onde descemos a direito, estivemos só um. O proprietario de uma das fabricas com quem o sr. Garrik tinha a tratar, achava-se ausente, parece que em Evora, onde foi, segundo o costume, comprar lãs e negociar os seus productos. Outro declarou que nada queria. D'ali fomos a Gouvêa, e lá demorámos seis dias. Corremos as fabricas todas, e algum negocio se fez. Recebeu-se uma encommenda de machinas no valor de quinze contos de réis, mais coisa menos coisa. De lá partimos directamente para aqui, Castanheira de Pera, de onde lhe escrevo, porque alguém nos affirmou que se estava cá montando, e como de facto, apesar de todas as miserias do mercado, se está montando, uma nova e importante fabrica. E nao perdemos o nosso tempo. Eu, principalmente. Como o fornecimento das machinas que hão de guarnecer a nova fabrica está já contratado, e este negocio de alguma sorte se deve a mim, porque eu é que fui o investigador da edificação do engenho, e o promotor da vinda cá do sr. Garrik, este disse-me que contasse eu com uma gratificação especial por tal venda. Por ahi uns cem mil réis, penso eu.

-- Toma! Toma!... -- exclamaram a um tempo Zé Joaquim e a mãe -- Cem mil réis... O pae d'elle já sabe isso?...

-- Inda não. Andam para o campo todos, pae, mãe e filho -- respondeu o sr. padre David.

-- Vão ficar doidos! -- augurou a velhota.

-- E têem razão -- disse Zé Joaquim. -- E' a honra e o proveito, n'o é qualquer coisa!

-- Inda diz mais?... perguntou a avó de Amalia.

-- Diz -- respondeu o sr. padre David: -- mas está a acabar.

E recomeçou sua reverendissima a leitura.

-- «Conto estar ahi, de volta, lá para meados ou fins do mez que vem. Antes não. Irei então dar-lhe um abraço a valer, e beijar-lhe as mãos pela sua promessa do bilhete.

-- Que promessa é?... -- atalhou indiscretamente a mãe de Zé Joaquim.

O sr. Padre David viu-se compromettido. Era a promessa do bilhete, e da nota a lapis.

-- Já lhe digo -- respondeu elle.

E voltou á carta.

-- «Por agora limito-me a protestar-lhe o meu reconhecimento, e a enviar-lhe um feixe de bem vivas saudades, que terá a bondade de repartir, tomando muitas para si, por minha mãe, meu pae, meu irmão, o sr. José Joaquim, a mãe d'elle e Amalia.»

Seguia-se a assignatura, respeitosamente feita ao fundo da lauda.

-- Vá lá, vá, rapariga, que também apanhaste! -- disse Zé Joaquim galhofeiramente. -- Atão, hein?!...

E desatou a rir.

Tinha-lhe dado Deus este genio! Não era homem para meditações.

A rapariga córou até á raiz dos cabellos. Por pouco não excommungou a evidentemente accintosa indiscrição do sr. padre David, que deu ao nome d'ella um tom distincto. Mas não pensem que se calou, que suffocou. N'estas situações apertadas é que se via se ella era ou não esperta, bem affoita. Retrucou logo.

-- Ora vossa senhoria, que está senipre a mangar c'uma pessoa!... Isso n'o'stá lá!

-- Juro-t'o filha; juro-t'o! -- affirmou o sr. padre David. -- Está cá com todas as lettras.

Isto, esta polemica entre sua reverendissima e a rapariga «está, não está», deu azo a dizeres e gracejos que asseguraram á rapariga que seu pae lhe não embaraçaria o casamento com João.

Foi por conseguinte boa em todo o sentido a franqueza do sr. padre David, para o qual, bem que o consentimento de Zé Joaquim ao matrimonio da filha fosse muito provavel, era caso ainda incerto. Assim ficou o homem convicto do exito do negocio, e lisonjeado do seu expediente.

Com maior affoiteza, pois, tratou sua reverendissima do segundo motivo da sua visita. Atou-o á pergunta da avó de Amalia a respeito da promessa de que falava a carta.

-- Pois eu -- disse elle -- prometti ao João, que é no que elle me fala, arranjar-lhe mais favoravel modo de vida do que o que não levava aqui ha dias atraz; o de cavador.

-- Aquillo é lá homem p'r'a enxada!... -- bradou Zé Joaquim declarando-se a favor da idéa do sr. padre David. -- Aquillo é homem p'ra outras occupações. Eu, no caso do pae... com mil diabos!... fazia o doutor! Tem cabeça p'ra doutor, o rapaz, que o digo eu!

-- Pois sim, mas... o pae não póde, coitado -- respondeu o sr. padre David.

-- Co'um boccado de sacrificio...

-- N'o póde, n'o póde, coitado -- acudiu a mãe de Zé Joaquim -- Ahl s'elle podesse!... Mas que tem elle? Seja por amor de Deus! tem tudo empenhado.

-- Nem falar n'isso! O tio Anselmo tem, além do João, o Manuel -- advertiu o sr. padre David.

-- Pois ahi! -- apoiou a velhinha -- N'o ha de estar a gastar só co' João o que tem e o que não tem.

-- A minha lembrança é outra, Zé Joaquim -- continuou o sr. padre David -- Lembrou-me a mim empregar-se o rapaz na fabrica.

-- Isso o mesmo era que andar a cavar, ou peor ainda! -- atalhou Zé Joaquim -- N'o tinha futuro nenhum. Aldemenos, andando co' a enxada, cuida do que seu é, e sempre grangeará pão com certa independência. No engenho...

-- Mas eu não falo em elle ir para o engenho como operario -- atalhou sua reverendissima -- De certo, que mais lhe vale então ser lavrador, que tozador, ou cardador, ou coisa assim.

-- Pois?... -- perguntou Zé Joaquim.

-- Falo em elle ser tomado para lá como feitor, como encarregado da escripta, ou coisa assim, pouco mais ou menos. Emfim, como homem que tem prestimo para administrar um estabelecimento.

-- Bem alembrado! -- exclamou sinceramente Zé Joaquim -- Bem alembrado, sim senhor! Lavre lá o sr. prior dois tentos!... E' bem alembrado. Ha-de se arranjar isso. Comprometto-me eu!

-- Mas está ou não está o rapaz á altura de estar ali, ver o que se faz, vigiar, cuidar da administração da casa, Zé Joaquim?...

-- Já disse: é bem alembrado. Demais a mais no engenho precisa-se de um homem em quem se confie, e elle está nos casos. Falta-lhe pratica d'aquelles negocios?... Elle a tomará; bonda-lhe ser esperto como é. Em meia duzia de semanas põe-se ao corrente de tudo. Fica decidido. Eu mesmo no estou p'r'andar sempre p'r'ali a correr. Nós temos lá um homem que n'o faz coisa com coisa. E' muito fiel, mas é tambem muito curto d'intelligencia. Nem sabe escrever!... E' o João Fiadeiro. Se for preciso fazer uma conta, ou passar um recibo, tenho eu que lá ir, ou tem elle que occupar qualquer outro operario. Portanto está decidido. Está mesmo a calhar. Quem mette hombros ao negocio, sou eu. No dia vinte reune a assembléa. Lá irei e falarei no rapaz. Ninguém me rebate. Elle, está claro, n'o póde já entrar a ganhar grande ordenado, mas póde entrar a ganhar soffrivelmenie... Apertei -- -- rematou Zé Joaquim estendendo as mãos ao sr. padre David.

-- Bem, bem, obrigado -- disse o sr. padre David estreitando a mão do seu amigo -- Obrigado, meu caro Zé Joaquim.

XV

Uma consulta

Entre outras boas qualidades, qual d'ellas a mais apreciavel, possuia Zé Joaquim duas que muito o engrandeciam no conceito publico; era honradissimo, e era serviçal como poucos homens. Escravo dos seus deveres, e amigo de obsequiar, até ali. Mais não. Coisa que elle promettesse, era uma escriptura. Todo o mundo o sabia!

Dada esta circumstancia, retirou-se o sr. padre David para sua casa, muito contente pelo passo que acabava de dar. Podia considerar-se negocio assente a collocação do filho da tia Ricardina no Engenho da Sociedade. Tinha bom patrono a causa.

Não obstante ajustou-se guardar o mais rigoroso segredo sobre o caso, não fosse apparecer, pelo diabo, algum outro concorrente ao logar.

Ha exemplos de excellente aproveitamento. Bem que a influencia do padrinho garantisse de certo modo a eleição de João, podia vir de lá um ou outro apaniguado, filho, irmão, parente ou adherente de algum dos socios da fabrica, e haver contenda.

A alma do negocio é o segredo. Posta de improviso em assembléa a candidatura do rapaz para feitor, administrador, gerente ou fiscal do estabelecimento, era muito provavel a victoria. Talvez ninguem desapprovasse a idéa. Mas annuncial-a, dar-lhe notoriedade prévia, era, se não expor essa victoria a tombo de dado, pelo menos crear-lhe difficuldades.

Isto o dizia por muito formaes palavras o bem avisado e previdente pae de Amalia.

Calou-se, portanto, o sr. padre David com o negocio. Respondeu a João que tinha lido aos principaes interessados a sua carta, e que todos elles tinham ficado contentissimos com as noticias que n'ella dava. Que a respeito do promettido abraço, lá ficava á espera d'elle, e em deligencias de bem o merecer.

Mais nada. João achou pouco. Esperava que elle lhe falasse de Amalia. Porque lhe não falaria elle de Amalia?...

Machinava o rapaz n'isto, e machinava a mãe d'elle ao mesmo tempo nas conveniencias de ser consultado o sr. padre David, sobre o plano do seu homem acerca do futuro do filho. Porque afinal os dias iam passando. D'ali a pouco estaria João em casa. Era preciso ir dispondo as coisas em termos a poupal-o á vida agricola. Elle viria e diria talvez que sim, que queria ser boticario. Mas decidir isto sem ser ouvida alguma pessoa competente!... Tornar a concitar invejas!... Recair em novas tentações sem ouvir um conselheiro, alguem!

Decididamente a tia Ricardina não tinha vontade de cahir ao de leve d'esta vez, como cahira da primeira. Servira-lhe de lição a infelicidade soffrida. D'alguma coisa serve a experiencia. Resolveu, pois, communicar ao marido as suas idéas. Justificou-as rasoavelmente.

-- Olha, Anselmo; sempre é bom a gente pedir conselho. O sr. padre David é muito competente. Vamos falar com elle, e elle nos dirá o que havemos de fazer. Aldemenos tem isso uma vantagem; s'errarmos, ninguém dirá qu'erramos só p'la nossa cabeça. Ninguem dirá que somos doidos. E, emfim... s'o João fizer das suas... temos quem nos desculpe. Que dizes?...

Approvou o tio Anselmo. Não contrariou taes dizeres. A' mais apropriada hora d'esse mesmo dia em que a mulher assim lhe falou, foi ella com o marido a casa do sr. padre David.

-- Então que ha de novo?... que os trouxe por cá? -- perguntou sua reverendissima.

-- Os nossos peccados, senhor, que são muitos! -- respondeu a tia Ricardina.

-- E' verdade, sr. padre David -- condisse o tio Anselmo -- Os nossos peccados.

-- Vamos então lá a saber que peccados são esses. Accusem-se.

-- Diz' tu lá, Ricardina.

-- Anda lá tu, homem. Pois tu n'o tens bocca, que fales?... Isto sempr'é um acanhado, meu senhor!...

O tio Anselmo começou a anediar o pello á copa do chapeu e a pôr para ali a explicação da vizita.

-- Isto, snr. padre David, é certo; quem tem filhos, tem cadilhos. Ha de um home ir do sê serviço mais morto que vivo, e atirar comsigo p'ra riba d'uma enxerga, p'ra dormir, e afinal n'o poder pregar olho em toda a santa noite. Inda bem não, lá se pranta elle a malucar, a malucar..., e prompto! Mórmente s'uma pessoa cuida em fazer dos filhos alguma coisa.

-- Pobre de quem os tem, snr. padre David! -- exclamou a tia Ricardina.

-- Ora nós,-- continuou o tio Anselmo -- eu e mais aqui a minha mulher, 'stemos n'estes casos. Apesar mesmo do João nos ter dado o grande desgosto que deu, ainda cuidamos em lhe abrir alguma carreira que n'o seja a de mourejar nos campos. Chegou até a influir-nos o dizer vossa senhoria que elle era esperto com'um coral, e que pena se fazia n'o termos nós posses para o puxar. Além de qu'isso tambem o nós reconhecemos. A gente, com ser uma pobre bruta, bem viu a figura qu'elle fez ó pé do sr. francez. Mas atão?... Gato escaldado d'agua fria tem medo, tem-se por dizer. N'o nos astrevemos a resolver nada sem ouvir vossa senhoria. Quem se livrou d'uma, n'o tem grande vontade de se metter n'outra.

-- Vês ahi! -- condisse a tia Ricardina. -- Queremos que o snr. padre David nos faça a esmola de nos aconselhar.

-- Sim, que se tal,... mais um sacrificio sempre se fará!- advirtiu o tio Anselmo.

-- Pois muito bem, muito bem -- disse o snr. padre David. -- E que carreira desejam que elle siga? Já pensaram?...

-- E' idéa do meu homem, essa, snr. prior -- respondeu a tia Ricardina.

-- E' minha, e n'o é ella d'agora -- explicou o tio Anselmo. -- Foi de sempre! P'la minha vontade o rapaz ia logo estudar p'ra boticario, que não p'ra padre.

-- Não é nenhuma tolice, não! -- corcordou o sr. padre David -- Se vocemecês têem em mira livrar o rapaz de maiores trabalhos, fazendo-o boticario bem o põem ao abrigo d'elles. Esse modo de vida é com effeito muito suave.

-- E rendoso! Não, sr. padre David? -- interrogou a tia Ricardina.

Fazia-lhe a ella sua impressão ver que o sr padre David falava sem grande enthusiasmo.

O tio Anselmo respondeu á pergunta antes que sua reverendissima a tivesse ouvido formular.

-- Ora n'isso nem se falla! Com uma canastra d'hervas, e meia dorna d'auga, faz um boticaraio uma somma callada!

-- Não junta casa -- objectou o sr. padre David -- Quando muito, um boticario ganha o preciso para se sustentar com decencia. Para guardar, para pôr ao canto da arca, isso não ganha.

A tia Ricardina olhou desanimada para o seu homem.

-Vês?...

Como quem diz: Nem tudo é o que parece. O rapaz pela vida de boticario não faz nada.

-- Mas alde menos ganha o preciso para se tratar com decencia e de corpo direito! -- replicou o tio Anselmo com a auctoridade do sr. padre David -- E vá lá, que n'o é isso nenhuma peste. Tomára eu!...

Aqui interveiu o sr. padre David.

-- Diz bem. Tomára muita gente viver com o trabalho e a decencia de qualquer boticario. O que, porem, me parece é que João é mais ambicioso. Já o consultaram?...

-- Inda não, meu senhor.

-- Nós cá é que falámos n'isto, porque, dizendo o ponto da verdade, está-nos a custar, depois do que tem havido, deixar o rapaz co'a enxada nas mãos, como tem andado. Porque, emfim, um homem n'alguma coisa s'ha-de empregar, sr. padre David. Vossa senhoria bem o entende. Ora o João volta ahi, n'o tarda; nós n'o temos posses para o trazer de mãos nos bolços. Que mesmo nem isso é vida! Mas atão que arrumo lhe havemos de dar?... Batucámos nós n'isto

-- Comprehendo, comprehendo...

-- Alembrou-me fazel-o boticario. Já era um arrumo. Emfim, era o caso, parece-me a mim, que p'ra boticario pouco lhe faltaria estudar. Agora p'ra outra coisa...

-- N'o podemos, sr. padre David -- rematou a tia Ricardina.

-- Eis ahi está. N'o podemos. Vossa senhoria bem sabe que o que a gente tem de seu, e nada, nada é. Temos munto boa vontade, sim. Mas de que vale?...

-- E' assim., é, Vossemecês não podem, coitados.

-- Ai, se nós podessemos!...

-- Isso era outro caso, se podessemos. Mas nem falar n'isso é bom. N'o podemos. S'aldemenos elle se resolvesse, e... vá, com S. Pedro! quizesse continuar p'ra padre!?...

-- A'gora! -- disse a tia Ricardina. -- Tira-lhe d'ahi o sentido, homem O rapaz quer-se casar, n'o quer ser padre. Sobre isso temos conversado.

-- Ah! elle quer-se casar!? Diz que se quer casar, elle? -- interrogou cheio de interesse o sr. padre David.

As palavras da tia Ricardina fizeram-lhe pensar que já não era só do seu dominio e conhecimento o namoro de João com Amalia.

-- Não m'o disse, mas sei o eu - respondeu a tia Ricardina.

-- E quem é a namorada, quem é? -- Tornou o sr. padre David.

-- Isso, agora, é lá co'elle, meu senhor. Nem m'o elle disse, nem a mim me consta. O que elle me disse foi que n'o podia ser padre. Mas isto d'uma tal maneira que, Deus me perdôe se pecco!... até cuido que elle terá já o seu compromisso.

-- Não lh'o perguntou?

-- Não, meu senhor. Formo tenção de lh'o perguntar agora em elle vindo. Isto passou-se quando elle estava p'r'abalar com o sr. francez.

-- Pois talvez assim seja, sim.

-- Mas se tem compromisso, n'o é cá na terra. Será na Guarda, alembra-me -- observou a tia Ricardina. -- Será rapariga que elle por lá conheceu.

-- Quem sabe! -- exclamou o sr. padre David mostrando duvidas em perfilhar esta affirmativa.

-- Oh! Se fosse cá na terra, já era falado isso.

-- Talvez.

-- Tão certo!...

-- Pois n'o sei,n'o sei quefaça -- disse o tio Anselmo que pensava mais na sorte futura do filho, do que attendia ao que se estava falando -- O ponto da verdade é que eu, em vista do que o sr. padre David me diz, n'o sei o qu'hei de fazer do rapaz.

-- Ora essa! Não se deve regular só pelo que eu lhe digo. Por outra: Eu não lhe digo que não faça do seu João um boticário. De maneira nenhuma! O que lhe digo é que é muito limitado, muito fraco, o futuro d'um boticario: e que penso que o seu filho preferirá tomar outra carreira de vida, embora mais trabalhosa, mais remuneradora, de mais vastos horisontes do que não é essa. O seu genio, a sua actividade, hão de talvez fazel-o decidir-se por outro emprego. No emtanto, interrogue o, escute-o. Bem póde ser que eu me engane, e que elle queira ser boticario. Se sim, pelo menos ganhará para viver com decencia sem grande trabalho; se não, elle dirá o que quer, para o que lhe propende. E então não o contrarie! Não o contrariem! -- recommendou sua reverendissima. -- Deixem-o á vontade seguir o seu destino, que elle é bastante intelligente, bastante esperto, para ver o que lhe convem.

-- E' esse o conselho de vossa senhoria? -- perguntou o tio Anselmo.

-- E' o meu conselho -- respondeu o sr. padre David.

-- Pois bem. Assim se fará. Veremos o que elle responde.

-- A mim palpita-me que elle quer ser boticario. Até apostava! -- exclamou a tia Ricardina.

-- Porquê? -- perguntou o tio Anselmo.

-- Porque n'o tem mais por onde escolher. Pela enxada é que elle não se decide. E, senão, quem viver o verá! -- rematou a tia Ricardina.

XVI

Desillusões

Não era menos convicta a duvida apresentada pelo sr. padre David ácerca das disposições do animo de João, relativamente a rumos de vida. Dizendo sua reverendissima que lhe parecia que elle era homem para se decidir por outra profissão, embora essa fosse mais trabalhosa, mais lucrativa tambem, mais promettedora de recompensas do que a de boticario, não dizia coisa que não sentisse.

Com effeito o rapaz era um boccado ambicioso. Além d'isso tinha um genio muito activo, umas tendencias muito pronunciadas para emprezas de grande folego, A's vezes, palestrando com o sr. padre David, fazia revelações extraordinarias. Amava as lettras. As lettras deviam-lhe grandissima affeição. Entretanto o seu ideal era a independencia, a abundancia de meios; e estes beneficios, em terras portuguezas, só os fruem aquelles que se dão a occupações puramente mechanicas, ou puramente industriaes.

Estava pois bem claro que difficilmente acceitaria João o sacrificio dos pães a favor de seu futuro. Talvez que elle até, attento o seu modo de pensar, ainda mesmo que os esforços do sr. padre David e Zé Joaquim para o empregarem se frustrassem, antepozesse a enxada á espatula. Ha, pelo menos, razões bastante sérias para crêr que sim. Elle não se desdourava da vida agricola, e essa é incomparavelmente mais promettedora de larguezas do que a vida pharmaceutica. Homens que têem alma para o trabalho, não se prendem com os sorrisos da ociosidade engravatada. Depois, atraz de tempos, tempos vêem. Até de misero jornaleiro se póde chegar a farto lavrador. Os exemplos abundam. O caso é haver boa vontade, intelligencia, e um migalho de sorte.

Eram, porem, muito contrarias a estas as idéas da tia Ricardina e as do seu homem, e pelo conseguinte muito firme a crença d'ambos em que nenhuma razão de ser tinham as duvidas com que o sr. padre David lhes respondera.

-- Pois o rapaz, coitado, quer lá continuar a cavar?! -- commentariava em casa a mãe d'elle. -- Pois n'o foste! N'essa n'o me fio eu.

-- Isso sim!? Nem eu!

-- Além de que a vida de boticario... deixa lá falar o sr. padre David!... é boa vida. N'o será das que dão p'ra juntar grande casa, mas... acabou-se! dá p'ra se viver bem sem quebrar a espinha.

-- Pois isso é que é, homem. Basta isso. Sendo o nosso João boticario, é um fidalgo.

-- Tem senhoria! -- observou o tio Anselmo.

-- A senhoria é o menos -- contraveiu a tia Ricardina. -- Senhoria sem comedoria, é gato que n'o mia. O que has de dizer, é que elle tem pão p'ra emquanto fôr vivo.

-- Tal e qual. Mas uma coisa com a outra é ouro sobre azul. Isso é o que eu venho a dizer na minha.

-- Ah, pois não! Está claro; é dos livros.

-- Depois... quem sabe lá!? -- exclamou com grande accento de palavra o tio Anselmo. -- Um boticario não é nenhum borra-botas. Sabendo elle viver, sabendo se governar..., n'o sei! n'o sei!

-- Deixa, qu'elle não é nenhum parvo.

-- N'o é, não.

-- Sabe levar a auga 'o sê moinho. E' muito amigo de fazer vontades. E bem haja elle! Que quem muito s'abaixa, a fralda se lhe vê, tem-se por dizer: mas emfim... tudo nos sês termos! Tudo por conta e medida! -- disse sentenciosamente a tia Ricardina.

O tio Anselmo concordou, e n'este ameno e pintoresco discorrer se foi remoendo o assumpto, e passando o tempo, até que emfim João regressou a casa, os paes communicaram-lhe a firme tenção que tinham formado de o redimirem de vergonhas e oppressões, e com soberano espanto o viram torcer o nariz á sua generosa offerta.

Tal não esperavam! Embaçou-os este desengano.

Os olhos d'elles encontraram-se immediatamente em rapida entrevista, e disseram com lucidissima expressão:

-- Aqui ha mysterio!

Jural-o iam! Não lhes podia entrar em cabeça que houvesse quem, sem mais nem menos, renunciasse uma profissão decente, e quasi de nenhum trabalho, para optar por um rude mister.

-- Mas atão porque é que tu n'o queres ser boticario, filho? -- perguntou a tia Ricardina logo que lhe passou o maior pasmo da surpresa.

-- Sim, elle por alguma coisa ha de ser -- affirmou o tio Anselmo. -- A menos que tu n'o tenhas alguma idéa, algum projecto em que faças finca pé... Porque realmente! todos nós temos os nossos desejos de subir, de governar a nossa vida com certa aquella.

-- Inda se nós tivessemos meios p'ra te trazermos por ahi, com'o outro que diz, á redea solta, sem nenhuma pensão, de corpinho bem feito!... -- advertiu a tia Ricardina -- vá! o que Deus quizesse! Mas nós n'o podemos, filho. Tu bem sabes, bem o vês. Oxalá! oxalá pudessemos!

-- N'o podemos, nem isso é vida -- observou o tio Anselmo. -- Que vem cá a ser agora andar um homem a quebrar esquinas?!... Isso é lá vida!?...

-- Pois não, não -- condisse a tia Ricardina. -- N'o podemos, nem isso é vida, dizes bem.

E voltando-se ao filho, proseguiu:

-- Assim como também n'o é vida para ti, João, co'a sabedoria que tens, andares a cavar. Nós bem comprehendemos as coisas. Por isso é que nós te queriamos dar outra occupação.

-- Claro -- concordou o tio Anselmo. -- Por isso é que nós 'stamos de boamente promptos a fazer o sacrificio de te mandar aprender a boticario. E' p'ra que tu por ahi te n'o andes a perder, p'ra que venhas a ser alguem. Já que Deus te favoreceu com intelligencia, e sabes o que sabes... adiante! seja! faremos das fraquezas forças.

-- Eu bem sei!... Eu bem sei que é muito para agradecer a boa vontade que todos teem de se sacrificarem por mim -- disse emfim João. -- E agradeço-a, hei de agradecel-a sempre. Mas o que tambem é certo, é que eu reconheço em minha consciencia que não devo acceitar o sacrificio.

-- Porque? -- perguntaram a um tempo o tio Anselmo e a mulher. -- Porque, homem?

-- Sobretudo por duas razões. A primeira é que eu não tenho feitio nenhum para boticario. Esse modo de vida é preso, cheio de impertinencias, nada independente. Um boticario é um escravo que não se póde ausentar de sua casa, que tem d'aturar mil massadas, e que está na dependencia do medico, do barbeiro..., de todo o mundo!

-- Ora adeus, adeus! -- remoqueou o tio Anselmo

-- Quanto á vida ser presa, e cheia de impertinencias, emfim, só direi que n'o ha nenhuma que n'o tenha seus berbicachos. Mas é limpa, é decente! Agora quanto ao boticario estar na dependencia do medico e de todo o mundo, nego. Em o boticario se dando bem c'o medico, está nas suas sete quintas; e em alguem precisando de um remedio, nem que n'o possa ver o boticario deixa de lh'o ir comprar. Homem! todos têem amor á vida!

-- Admitto que assim seja -- replicou João. -- Até certo ponto é como meu pae diz. O peor, porém, é que a prisão, as impertinencias, e a pouca ou muita dependencia da vida do boticario, não têem convidativa compensação. Os interesses não animam.

-- Isso dize-lo tu, meu parvo! -- exclamou o tio Anselmo com radiosa cara. -- Olha que n'uma botica até bicos de pregos velhos se vendem a peso de oiro!

João achou graça a esta força de expressão. O pae continuou:

-- Uma canastra d'hervas, e meia dorna d'agua rendem mais a um boticario do que duzentos alqueires de semeadura a um lavrador!! Digo-t'o eu, meu asno!

Tornou-se João a rir de tanto enthusiasmo.

-- Ah, tu ris-te? Bem se vê que n'o pescas nada do negocio! Entra p'ra elle, e verás. De resto, pensa só em ti. Cá nós, eu e mais a tua mãe, sempre hemos de poder ir ganhando p'ra uma codea de pão. Em tendo uma codea, 'stamos remediados.

-- E o Manuel? -- perguntou João especulativamente.

Queria só saber até onde chegava tanta dedicação, tanta abnegação.

Manuel havia entrado havia pouco, e ouvia em recolhido silencio esta conferencia.

Respondeu a tia Ricardina com olhos marejados de lagrimas e commovida voz, antes que Manuel falasse.

-- O nosso Manuel é muito teu amigo. O coração, que elle te podesse dar!...

O tio Anselmo conturbou-se tambem.

-- Isso... o Manuel... deves-lhe tanto ou mais qu'a nós? O qu'elle quer é o tê bem. Elle que t'o diga. Tu é que... andas na lua!

João lançou o braço ao pescoço do irmão, que se sentia tão confundido, tanto, e ao mesmo tempo tão contente, que não sabia que dissesse, e murmurou:

-- Olha que nunca duvidei da tua generosidade, fica sabendo!...

E abracou-o.

Depois, para não dar immediatamente uma resposta desagradavel, prometteu consultar-se sobre a proposta que lhe faziam.

Era para ganhar tempo, para dispôr os animos em termos de não haver grande abalo. Porque a sua tenção estava formada: não seria boticario. As razões que o dominavam estão sabidas.

Entretanto, nem a mãe, nem o pae, nem o irmão, deixavam de o aconselhar a decidir-se favoravelmente aos desejos que elles lhe manifestavam.

Durou esta sitaução dois dias. Ao cabo d'elles o rapaz declarou com muita suavidade de maneiras e palavras que não sentia inclinação nenhuma para boticario.

-- Não discuto se a vida é boa, se má; se rendosa ou não rendosa -- disse elle em remate do seu discurso. -- Digo que não sinto disposições nenhumas para a professar.

-- Mas então que vae ser de ti, filho?

-- Sim, em que te vaes tu occupar? -- perguntou-lhe tambem ralado o pae.

-- Veremos. O que Deus quizer. Póde muito bem ser que um dia se me depare qualquer emprego, qualquer collocação que me namore. Até lá trabalharei como trabalhava antes de apparecer o sr. Garrik. Estarei por aqui.

A tia Ricardina, ouvindo isto, este «Aqui», sentiu renascer uma sua antiga suspeita. Occorreu-lhe que o filho estava captivo de laços d'amor, e por isso não queria sair da aldeia.

Esta lembrança electrisou-a.

-- Nada! -- disse ella em tom pondoroso -- Aqui ha caveira de burro.

O tio Anselmo interrogou a mulher com os olhos. A resposta d'ella não se fez demorar. Deu-a dirigindo-se ao filho.

-- Tu tens por ahi o teu namorico, João. Tão certo!...

João sorriu-se irresistivelmente.

-- Ora essa!... Porque diz minha mãe isso?

-- Porque o que tu n'o queres é sair da terra.

O rapaz ficou atarantado com a convicta affirmativa da mãe. Não respondeu. Não atinou com a resposta.

-- Vês?!-- exclamou a tia Ricardina voltando-se para o marido -- Olha lá se elle responde?!

-- E' que eu, falando a verdade, não sei o que hei de responder -- disse João.

-- Pois n'o sabes, não -- replicou-lhe a mãe. -- E é por isso,... é porque tu andas por ahi embeiçado, que n'o queres ser boticario.

-- Talvez -- murmurou o tio Anselmo -- O demo o jure. N'o sei.

-- E' mais que certo!... -- affirmou a tia Ricardina.

E dirigindo-se de novo ao filho, continuou:

-- Pois sempre te quero dizer qu'és um doido, se tal acontece. Tens muita pressa de te casar? N'o tenhas pressa, que nunca é tarde para dar esse passo. Tens medo qu'ella te fuja? Deixa-a fugir, que de certeza n'o é fortuna que se te escapa. O que faltam são mulheres!... Estás novo.

-- E é uma pena casar p'ra ahi com qualquer rapariga -- observou o tio Anselmo -- E' uma pena, quando elle póde vir a fazer um bom casamento, se se fizer homem. Que vem cá a ser umas creanças casarem-se, tolherem o sê futuro?!... Ora adeus, adeus!

-- Mas estão me falando em casamento como se isso fosse coisa certa! -- exclamou João que naturalmente ia recuperando forças. -- Não é. Não quero ser boticario porque não gosto nada d'essa vida, nem lhe vejo garantias de prosperidades. Renuncio-a, porque tenho não sei que presentimento de que alguma outra mais lucrativa se me offerecerá mais cedo ou mais tarde.

-- Mas tens alguma promessa, alguma idéa? -- perguntou a tia Ricardina.

-- Nenhuma.

-- E olha lá! -- interrompeu o tio Anselmo -- o sr. padre David n'o te disse nada: Elle n'o te contou que nós o fomos consultar?

-- Contou. Disse-me que resolvesse eu conforme a minha consciencia me dictasse.

-- Mas n'o te disse que era boa nem que era má a vida de boticario?

-- Disse-me só isto que eu acabo de dizer.

-- E tu disseste-lhe o que resolvias?

-- Disse, sim, senhor.

-- E que disse elle?

-- Calou-se.

-- Bem -- disse o tio Anselmo pondo remate á sessão. -- Vós lá o entendeis. Com'assim... vamos á deita! Farás o que te parecer de melhor. Se um, dia te vires munto esmagado de trabalhos, de mim, nem de tua mãe, nem de teu irmão, é que te n'o poderás queixar. Fizemos o qu'estava ao nosso alcance.

XVII

Amarguras

Bem que o serão tivesse sido demasiadamente longo, e o tio Anselmo e a mulher estivessem no vezo de se deitarem e adormecerem logo, d'esta vez nem por isso lhes aconteceu assim. Benzeram-se, como bons catholicos que eram, rezaram cada um as suas costumadas orações, assopraram á candeia e puzeram-se em conferencia secreta.

-- Que te parece a teima do rapaz? -- perguntou manifestando espanto na voz o tio Anselmo.

-- E' o que eu te digo, homem! Aquillo tem por ahi o seu namorico, e 'stá preso pelo beicinho.

-- Mas nunca se constar nada!... -- exclamou o tio Anselmo. -- Ser isso uma especie de segredo d'abelha!... Custa a crer, palavra. Ou nós 'stamos munto enganados, ou o rapaz é um espertalhão, e por ahi tem algum derriço que lhe pode custar uma carga de pau, que fica aleijado.

-- Mau agoiro vá p'lo diabo! -- exclamou a tia Ricardina. -- Credo!... Santo nome de Jesus!...

-- Olha lá? -- disse o tio Anselmo abaixando o registo da voz. -- Elle, despoisque veiu, já foi a casa do fidalgo?

A tia Ricardina, sem bem saber pelo quê, sentiu um frio d'arripiar pela medula dorsal acima.

-- N'o sei -- respondeu ella muito baixinho. -- Porque préguntas?

-- Estás certa de que elle tem andado sempre em caminho da casa do fidalgo?... de que uma volta, duas, vae lá pedir livros?... Pois alembra-me que o diabo do rapaz tenha dado d'olho á fidalguinha, á sr.ª D. Leonor, e que por ahi é que o gato vae ás filhozes.

-- Assustas-me homem. Pode lá ser?!

-- Tem-se visto muita coisa. Elle é novo, é esperto, e é homem. N'o é nenhum santo. Ella é mulher, e bonda: n'o tem o juizo todo. Tu bem sabes que a estopa arde c'o calor. Isto, as mulheres são umas cabeças d'avelã, umas doidivanas. E' p'ra onde lhes dá!

-- Ih, Jesus, Jesus! -- exclamava passada de susto a tia Ricadina.

-- E' preciso que tu faças falar o rapaz. Eu na'o quero ver morto. O fidalgo, se de tal sabe, manda-o matar. Um bello dia põem-lhe o sal na molleira. Aperta co'elle. Puxa-lhe pela lingua. Em ultimo caso imponta-se p'ra longe: ferra-se co'elle no Brazil. Vá p'ra lá ganhar fortuna, e depois pretenda fidalgas!

-- Nossa Senhora!... Nossa Senhora nos acuda!... Mas que maldita lembrança tu tiveste!...

-- Digo-te o que penso. Agora dorme, faz por dormir, que eu vou fazer o mesmo.

E calou-se, e a tia Ricardina calou se tambem. Voltaram-se cada um para seu lado.

Uma hora depois chamou ella pelo marido.

-- Dormes?

-- Que é?

Nem um nem outro podiam pregar olho.

-- Tomára já que fosse dial Estou em grelhas. Até tenho fevre. Se n'o fosse n'o sei p'lo quê, alevantava-me e ia chamar o João.

-- Mau! Deixa-te d'asneiras -- replicou o tio Anselmo. -- As coisas fazem-se com geito. N'o fervas em pouca auga. Dorme.

-- Hei de dormir bem, co'a nova que tu me déste!...

-- Tem paciencia. N'o é com os vizinhos que eu hei de ir desabafar. Tamem eu n'o posso dormir e aguento-me.

Tornaram-se a calar, roendo cada um as suas dores, as suas afflicções.

Cerca da meia noite tocou ao tio Anselmo a vez de chamar a mulher.

-- Atão tu n'o podes dormir?

-- Não! Estou a adoecer na cama.

-- Mas faz por te n'o mortificares, mulher!...

-- E tu porque n'o adormeces?... Porque n'o fazes também por n'o te mortificar?... -- retrucou-lhe ella.

Ficou sem resposta a pergunta. Houve um boccadito de silencio. Perturbou-o o tio Anselmo com as suas lamentações. Nao lhe cabia no fundo peito tão grande amargura.

-- Ora que nós, emquanto os nossos filhos foram pequenos, sempre! sempre vivemos tão bem, tão contentes, tão felizes, e agora que elles são homens, e que nós vamos p'ra velhos, que precisamos algum descanço, vivemos tão ralados, tão opprimidos de desgostos, de cuidados!... E' triste sorte a nossa Parece que alguem nos rogou praga ruim.

A tia Ricardina chorava. Déra-lhe para chorar, e assim se ia desopprimindo da sua mortificação. Porque, é certo, as lagrimas alliviam. Beati lugunt. Felizes os que podem chorar. Em lagrimas deli-se muita afflicção, muita dor. Deus nos dê lagrimas quando as infelicidades nos perseguem! Tivesse-as tambem o tio Anselmo!

Mas não. O tio Anselmo era d'estas creaturas que morrem assadas ao fogo dos sofTrimentos que as devoram, porque não teem uma lagrima para rebater as labaredas do seu martyrio.

Não chorou, não podia chorar. Carpia-se.

Felizmente a manhã ia-se aproximando. No verão ás quatro horas é dia.

Surgiu! Principiou de raiar a aurora, limpida, risonha, formosa.

Bastou isto. Immediatamente saltou a tia Ricardina ao chão, acabou de se vestir muito apressa, e foi por industria traquinar á porta do quarto de dormir dos filhos.

Manuel e João dormiam como bemaventurados. Sonhavam talvez nos seus amores, nas suas nupcias, nas suas felicidades por vir, desejadas, phantasiadas. Viam anjos tapetando-lhes de flores a esteira dos seus caminhos, estrellas no céu predizendo-lhes brilhante futuro, sorrisos na terra alegrando-lhes a vida. Talvez.

Sim ou não, porém, o certo é que despertaram ao ruido que a mãe ia fazendo, e ergueram-se.

Luzia a manhã. Não podia deixar de ser.

Entretanto preparava-se a tia Ricardina para o desempenho da missão que o homem lhe tinha incumbido. Compunha a physionomia, animava-se.

Convinha isto ao seu plano de inquirição. Queria sobretudo inspirar confiança ao rapaz.

D'ahi a pouco foram os filhos dar-lhe o bom dia. Primeiro foi Manuel; depois foi João.

Aproveitou logo o ensejo a tia Ricardina.

-- Ah! Ouve cá, ó João! -- disse ella, como se casualmente, e não de pensado, lhe lembrasse aquillo que tinha para dizer.

O rapaz já ia virando costas: voltou-se.

-- Minha mãe?

-- Tu és capaz de responder a uma pergunta que te vou fazer?

Na voz não se lhe notava a menor commocão. Era isto devido á sua grande força de vontade. Interiormente, porém, ella toda tremia, a pobre mulher.

-- Porque não!? -- disse o rapaz. -- Respondo, está claro. Ora essa!... que pergunta!...

-- Juras? -- perguntou ella sustentando ainda soffrivel desfarce.

-- Se juro?!... -- disse estranhado o rapaz da proposta da mãe. -- Jurar p'ra quê? Não sei p'ra quê. Demais, talvez me faça alguma pergunta a que eu não possa, a que eu não devo responder! Se não fôr...

-- Não, isso barro, que é caçoada!-- replicou a tia Ricardina. -- P'r'a mãe n'o ha segredos. Não os deve haver. Quero que m'o jures p'la tua boa sorte.

N'estas palavras é que já pouca dissimulação havia. Era tremida a voz, alterado o gesto.

João ficou sobremaneira intrigado. Mas a presença de espirito voltou lhe logo.

-- Pois bem. Tem razão. Não deve haver segredos para as mães. Eu não tenho nenhuns para si. Se o que me vae perguntar me diz respeito, eu juro pela minha boa sorte que respondo o que fôr verdade. Póde perguntar.

-- Olha cá bem para mim -- disse então a tia Ricardina entestando no filho uns olhos inquisitoriaes.

Fez-lhe o rapaz a vontade, olhou para ella de fito. Não sabendo pelo quê, o diabo tentava-o no meio d'esta solemnidade. Estava com seus cuidados, e ao mesmo tempo morto por se rir. Coisas do inimigo!

-- Olha que juraste! -- advertiu-lhe a tia Ricardina.

-- E torno a jurar, se é preciso -- volveu-lhe o rapaz.

-- Não.

E a queima roupa soltou a pergunta:

-- Tu namoras a filha do fidalgo, a sr.ª D. Leonor?

O rapaz desatou a rir como louco. Agora é que elle não podia ter mão em si.

-- Vá! N'o me faças ralar -- admoestou-lhe a mãe. -- Responde.

-- Ora essa!... ora essa!... -- esclamava João por entre espirros de riso. -- Quem é que se lembrou d'isso?... quem teve essa idéa?...

-- Houve alguem que m'o veiu affirmar -- disse a tia Ricardina pedindo no seu intimo a Deus que lhe perdoasse o peccado d'essa tremenda mentira, aproveitada como reforço ao vomitorio.

-- Será possivel?! -- exclamiou João indignado. -- Isso é uma torpissima mentira, uma infamia. Bastava que eu o dissesse, mas juro que o é. Juro por tudo!

-- Atão nunca lhe escreveste, nunca lhe deste d'olho?... Repara que tudo se vem a saber!?

O rapaz mais se zangava com taes instancias.

-- Nunca, repito. Nunca tive tão altas pretenções. Chega mesmo a parecer incrivel que haja quem tal se atreva a dizer. E' d'uma estupidez, ou d'uma maldade a toda a prova. E não sei mesmo se diga que tambem parece incrivel que haja quem dê credito a similhante invenção!

-- Basta, basta; não te exaltes, filho -- atalhou a tia Ricardina profundamente convencida de que eram sem nenhum fundamento as suspeitas do marido. -- N'o t'exaltes, que n'o vale a pena. Quem me veiu dizer isto n'o é pessoa tua inimiga, n'o foi por mal te querer. Enganou-se.

-- Enganou-se... mas repetido isso... eu sei lá o que ahi ia!... as troças, o que poderia haver!?...

-- Descança; descança, qu'o caso fica entre nós.

-- Mas que lembrança! Só p'lo diabo. A'pre!

-- E tu a ralares-te homem!... Atão mesmo que namorasses a fidalguinha, isso era alguma coisa do outro mundo?... E's porventura filho de algum carniceiro?

-- Mas sou um ninguem. Eu sei o que sou.

-- Um ninguem?! -- replicou a tia Ricardina seu tanto agastada. -- E's meu filhol Nem eu nem teu pae temos macula qae se nos atire á cara. E's um homem com'os outros, sem tirar nem pôr. Que tal está?!

João, para não levantar polemica, resolveu atalhar e pôr ponto á conversa.

-- Pois, sim, sim: é certo. Felizmente não temos nodoas na familia. Mas... não falemos mais no assumpto -- ia elle dizendo e afastando-se. -- A sr.ª D. Leonor não quer saber de mim para nada, nem eu pretendo d'ella coisa nenhuma. O resto... não valle discussão.

A tia Ricardina, quando elle já ia a perder-se-lhe de vista, chamou-o.

-- Anda cá, n'o fujas. Tenho ainda outra coisa a dizer-te.

O rapaz voltou pelo mesmo caminho, respeitosamente.

Agora era todo prazenteiro o ar da tia Ricardina. Não parecia a mesma.

-- Sério -- sério, -- disse ella sorrindo-se, provocando á confidencia -- tu n'o tens por ahi o teu namorico?... an?...

João encarou a mãe desconfiado. Repentinamente saltou-lhe aos olhos o trama que lhe fora armado. Mas não se zangou. Chegou a achar graça ao ardil. Riu-se, e rindo-se e dizendo que não tinha jurado responder a essa pergunta, foi-se retirando-se com o seu segredo.

XVIII

Entre amigos

Iam sendo horas de almoço, veiu de casa de Zé Joaquim á do tio Anselmo um criado dizendo que seu amo mandava chamar João.

Foi immediatamente lá o rapaz, mesmo porque succedendo ausentar-se da aldeia o pae de Amalia no proprio dia em que elle regressou, ainda lhe não tinha feito presentes os muito recommendados cumprimentos que o sr. Garrik lhe enviava.

Recebeu-o Zé Joaquim com a sua costumada e liza jovialidade.

Homem era este que nunca estava de mau humor. Nunca! Sempre alegre, sempre satisfeito! Tristezas não entravam comsigo. Déra-lhe Deus um genio invejavel. Só quando foi da morte da mulher é que elle demudou. Então, de amigo de se rir que era, tornou-se melancolico, pensativo. Coisa de um anno andou que parecia pasmado. E não tinha nada de finginda esta mudança. Realmente esse golpe chocou-o devéras. A pouco e pouco, porém, naturalmente, foi espairecendo, foi-se reanimando, recuperoa-se. Voltou ao seu antigo ser.

Obra da Providencia divina, que é infinita!

De resto, francamente, não havia motivos para que o amargurassem tristezas. Nenhuns. Gosava boa saude, vivia desafogado, e não receiava pelo futuro dos filhos. Os rapazes, que eram dois, já não lhe davam canceira. Arrumára-os, ganhavam bem, estavam em prospera situação. Tinham-se estabelecido no Porto. Commerciavam com fortuna. A rapariga, Amalia, como elle estava novo e tinha com que a dotar, e ella era uma rapariga sã, escorreita, mesmo muito boa e de muito tino, fiavase em que haveria rapaz digno que a pretendesse. E havia! D'esta feita se não póde dizer que muito se engana quem cuida. Lá estava João, o filho da tia Ricardina. Salvo se Zé Joaquim envolvia na palavra dignidade o bico do beneficio patrimonial!... Que se têem visto muito d'estas trapalhadas linguisticas!

Mas não nos enredemos com hypotheses. Tudo tem sua opportunidade. Retrogrademos. Zé Joaquim era um homem jovial, risonho.

Aqui é que nós iamos. Discursavamos sobre este ponto. Atando:

Pois é verdade! Tristezas não entravam com elle. Estava sempre bem disposto de animo, divertido, alegre. Recebeu o filho da tia Ricardina a rir. Atturdiu-o com perguntas.

-- Ora basta que sim, que o sr. Garrick me manda tantos cumprimentos!... E como te tratou elle a ti por lá!

-- O melhor possivel. Venho penhoradissimo... Nunca teve para mim um mau modo, uma palavra de enfado.

-- E a respeito de paga?

-- Foi generoso. Deu-me vinte libras e offereceu-me este relogio, que era o d'elle.

-- Bravo! relogio e corrente d'ouro!... Bravo! Agora é que tu fazes um figurão. Inda eu n'o tinha reparado!...

-- Eu não lh'o queria acceitar; mas elle... acceite! acceite!... Obrigou-me a acceital-o.

-- Sim, senhor! Pões-me á banda! Queres tu fazer uma troca? -- disse Zé Joaquim apresentando o seu velho relogio de prata.

-- Está dito -- respondeu João promptamente.

-- Mas espera lá, espera lá -- atalhou com pausada e grave maneira Zé Joaquim, impedindo que o rapaz soltasse o relogio da corrente - Primeiro vamos a saber quanto é que eu te hei de voltar.

-- Não me volta nada. Dá-me apenas o seu relogio, e eu dou-lhe o meu.

A esta resposta, Zé Joaquim sentiu-se mais que surpreso, espantado.

-- Como assim?! - exclamou elle. -- Ficas roubado, homem!

-- Não fico tal. O maior valor d'este relogio, para mim, é o estimativo. Representa a lembrança d'um amigo. Trocando-o pelo seu, lucro, porque fico possuindo n'um só objecto duas recordações. A menos d'isso não o trocava por coisa nenhuma.

Zé Joaquim percebeu muito bem o que o rapaz dizia, e acreditou por sinceras, que realmente o eram, as palavras d'elle, mas nem se gastou em agradecimentos, nem acceitou o negocio. Deu-lhe para se pôr de brincadeira, fingindo que o seu relogio era dez vezes melhor que o do rapaz, e mettendo-o ao bolso com cuidados e ares de quem guarda uma preciosidade inextimavel.

-- Que tal, hein?!... Então não me queria o rapaz embarrilar dando-me em troca d'um relogio que vale quanto peza um demonio que tem sarna nos ponteiros?!... Olha que te mnndo prenderi Que tal está!...

Riu-se João d'estas maneiras do seu amigo, e tornou a metter ao bolso o relogio, certo de que seria inutil teimar contra os melindres d'aquelle homem.

Houve mais uns dixotes, e tresvariou a conversa.

-- Mas, disseste-me tu que o sr. Garrick te deu vinte libras. Isso foi, de certo, pelos dias que o acompanhaste! E o resto?

-- Qual resto?

-- A gratificação que na tua carta dizias que elle te tinha promettido?

-- Ah! Devo recebel-a quando as machinas cá estiverem. Falou-me elle até tambem, em me mandar a mim os desenhos d'ellas, e ir eu montal-as.

-- E atreves te a il-as montar?

-- Talvez. Não me parece trabalho superior ás minhas forças. Em eu cá tendo os desenhos e as instrucções respectivas... o resto é facil.

Esta resposta, dada d'um modo firme, e sem immodesta affecção, deixou os olhos de Zé Joaquim pasmados na contemplação da cara do rapaz.

A gente, quando ouve umas tantas coisas, que veem confirmar a conta de superior em que se tem certa pessoa, fica assim como que pasmada, a encarar n'essa tal pessoa, a modo que a verificar-se na cara d'ella ha signaes extraordinarios, sêllo de privilegiatura!

-- Bem, bem -- disse Zé Joaquim, por dizer alguma cousa.

D'ahi a segundos chamou a filha, que n'aquelle instante ia passando, e disse-lhe que puzesse mais um talher na mesa, porque João almoçava lá com elle.

O rapaz quiz esquivar-se a acceitar este obsequio, que naturalmente o ia ter constrangido durante um boccado, mas não poude. Zé Joaquim não era homem para condescendencias d'esta natureza. O que elle dissesse, havia de se fazer.

-- Amalia! -- chamou elle outra vez -- manda alguém dizer á tia Ricardina que o João almoça e janta cá hoje commigo, porque preciso d'elle.

Immediatamente foi passado o recado. Bastava elle ser tanto ao gosto da rapariga.

-- Quero que tu me vás pôr em ordem as contas do Engenho -- explicou Zé Joaquim a João -- porque depois d'ámanhã ha assembleia geral, e preciso de as apresentar convenientemente. Eu n'o tenho lido tempo p'ra nada. Ou tu terás algum serviço determinado? terás que fazer?

-- Que fazer, sempre ha -- respondeu João -- mas serviço determinado não tenho nenhum.

-- Bom. Se tivesses, era o mesmo. Mandava eu um homem por ti, um moço.

Dito isto, ergueu-se Zé Joaquim, e fez andar João adiante de si para a saleta do jantar.

Sentaram-se vis-á-vis um do outro, comeram e conversaram familiarmente.

Eram sós á mesa. Amalia e a avó d'ella combinaram-se e pretextaram falta d'appetite para almoçarem depois em separado.

Não foi notada como desattenção aquella ausencia d'ellas. Está nos costumes da mulher provinciana não comer á mesa com hospedes, ainda mesmo que estes não sejam de nenhuma cerimonia. As mulheres fazem vida á parte.

Finda a refeição, dispoz Zé Joaquim que lhe mandassem a horas convenientes o jantar á fabrica, para si e para o filho da tia Ricardina, e sahiu com o rapaz.

Conversando e andando chegaram os dois amigos ao Engenho e dirigiram-se ao escriptorio.

O escriptorio era uma pequena sala estabelecida no segundo andar do edificio, com duas janellas voltadas para a ribeira, e uma outra sobre as hortas e campos do lado poente. Tinha uma secretaria, um cofre, algumas cadeiras, tudo isto muito cheio de pó, e á volta das paredes fortes prateleiras escoradas para arrumo da fazenda acabada que acaso ia ficando em deposito.

Zé Joaquim fez limpar e varrer com cadilhos aquelle cofre, secretária, cadeiras e mais objectos, e destinou o serviço a João.

Era preciso pôr em ordem especial todas as contas de receita e despeza, e depois, segundo os respectivos documentos, inscrever as verbas de umas e outras nos livros proprios.

Dados os principaes elementos e instrucções para a execução d'este trabalho, sahiu Zé Joaquim a titulo de affazeres urgentes. Tinha de ir a uma propriedade onde trazia obreiros, e de lá a outra por causa identica. Mas estaria de retorno ao meio dia em ponto, para jantar, porque difficilmente elle alterava os seus hábitos. Ao meio dia era a hora habitual do seu jantar.

Na sua ausencia, tanto que o viu na rua, João fechou a porta do escriptorio por dentro, e começou aos pulos, a fazer cabriolas, coisas espantosas.

Quem o observasse desprevenidamente, dil o-ia doido varrido. Aquelles saltos, aquellas gymnasticas que elle fazia, estavam pouco a caracter d'um homem de são juizo. Não eram actos proprios de quem tinha sido educado sob o grave pezo da sotaina, ao vozear do orgão do côro, e entre a fumarada incensaria dos thuribulos.

Quem, porém, soubesse que Amalia lhe tinha referido pelo miudo o que a seu respeito se havia passado entre o pae d'ella e o sr. padre David, comhenderia melhor a razão de taes expansões do que a heroicidade do disfarce do rapaz, dado o perfeito conhecimento da sua situação.

E, todavia, nada mais humanamente natural, nada mais vulgar, do que o sacrificio de tudo pela mulher amada. De tudo! João, dissimulando, não só protegia Amalia contra quaesquer recriminações do sr. padre David e do pae d'ella, que ambos lhe tinham imposto segredo acerca dos planos de beneficio a seu favor, como tambem se defendia a si proprio de presumidos perigos.

Ninguem o podia persuadir de que Zé Joaquim, sabidas as suas idéas, sem nenhuma reluctancia consentiria na realisacão d'ellas. Affirmava-lhe Amalia que não: dizia-lhe ella que tinha fé em que o pae lhes não contrariaria os seus desejos. Mas que importava?...

O coração é um crente facilimo. Deve-se desconfiar d'elle. Era conveniente ser reservado, esperar. A mesma supposta protecção do sr. padre David podia não dar os resultados appetecidos. Nem tudo é como parece.

Pelo menos eram d'este theor e parecer as opiniões de João. Animavam-no, é certo, as mais risonhas esperanças, mas soffreava-lhe o animo a mais reflectida previdencia.

XIX

Novos planos

Caso é agora para se tornar a dizer que as mães são umas loucas. Umas sublimes loucas!

Querem saber o que a tia Ricardina fez quando lhe foram participar que o filho estava almoçando, e jantaria tambem, com Zé Joaquim?... só por isto?...

Melhor seria talvez não o dizer. Por ahi se vae sahir algum ricaço, algum d'esses afortunados que não sabem quanto o pão custa a ganhar, quantas bagas de suor são precisas ao pobre lavrador para fazer germinar e fecundar um grão de semente, com alguma impiedosa gargalhada. Mas, emfim, já que se boliu no caso, lá vae. A tia Ricardina foi á salgadeira, cortou um grande naco de toucinho, pegou d'uma chouriça e de um boccado de unto velho, do de lei, cugulou uma tijella de feijões, e veiu com tudo aquillo na abbada e deu-o á mensageira.

-- Toma lá, mulher. Leva p'ra fazeres um caldo bem temperado para ti e p'r'o tê homem.

Vêem?... Só porque a mulhersinha lhe foi dizer que o seu João estava sentado á mesa com o sr. Zé Joaquim, deu-lhe um bello jantar para ella e para a familia!

E o que depois lá foi por casa?... O que ella fez, o que ella disse?! A sua alegria!?

Só vendo-se.

-- Aquell'asno! aquell'asno!... -- exclamava ella com grandes spasmos d'amor nos olhos aguados. -- Aquell'asno, que se tivesse juizo, nem pensava em se casar por ora!... Que anda p'r'ahi embeiçado por alguma delambida que n'o vale um calcanhar d'elle!... Aquell'asno, que por ahi vae dar alguma cabeçada!...

-- Quem sabe lá, mulher! Talvez nós nos enganemos, que elle n'o tenha derriço -- observou o tio Anselmo.

-- Oh! tem, tem. Tem derriço, tem - porfiou a tia Ricardina. -- Lê-se-lhe na cara. E' p'r'ahi algum demonio sem eira nem beira, alguma sonsinha, quando elle, s'esperasse, podia fazer um bello casamento. Até co' a Amalia, homem! -- bradou ella abaixando a voz e dando maior expressão ao gesto. -- Até co' a Amalia!

O tio Anselmo, automaticamente, espalhou olhos ao redor da casa.

-- Cala-t'ahi, mulher! -- exclamou elle com profunda solemnidade. -- Cala t'ahi, que te n'o vá o diabo ouvir!

Esta maneira e modo do tio Anselmo irritou bastante a mulher.

-- Olha lá, qu'era alguma coisa do outro mundo! -- disse ella despeitada -- Ora, ora..., é bonito! Tem-se visto coisas mais altas cairem mais baixo

-- Mas n'o falemos n'isso! -- replicou o tio Anselmo com severo gesto -- N'o falemos em asneiras, mulher. Ora esta! Que tem o tê filho?

-- E olha lá, que tem a Amalia? -- retrucou a tia Ricardina com famoso desplante.

-- Uma bagatella... os seus doze a quinze contos.

-- Ora ahi'stá... Quinze contos de réis. Tanta fortuna! Mais tem Deus p'r'a dar'o nosso João.

-- Mas inda l'o n'o deu.

-- N'o é tarde.

-- Pois sim, sim... -- resmungou o tio Anselmo -- Vae-lhe dando co'essas... Mette isso em cabeça ó rapaz... Arranja-lhe por ahi alguns travalhos, e 'ó despois chora na cama, qu'é cabo quente. E' o que deves fazer -- concluiu elle retirando-se.

Estes agoiros e dizeres incommodaram seriamente a tia Ricardina.

-- Ja viram uns taes espantos!? -- ficou ella a monologar. -- Or'o diabo n'o tem somno nem vontade de dormir! Já viram?... Como se fosse alguma coisa do outro mundo o João casar co'a rapariga.... Elle uma d'estas!... Vejam lá a deshonra! Ora não ha, não ha!... -- bradava ella deitando-se a trabalhar com desesperada actividade. -- N'o quero eu que haja!

E sempre falando, sempre discorrendo sobre o mesmo thema, ora mais zangada, ora mais paciente, lavou e arrumou a loiça, deitou a vianda aos porcos, varreu a cozinha, e foi sentar-se toda afadigada a tomar redes e a deitar remendos na saccaria em que haviam de vir do campo as colheitas de tulha.

Era um tal desembaraçar de serviço!...

Mas nem por isso lhe passava da idéa o problema do futuro do filho. Isso é que não!

O mesmo era que retalharem-lhe o coração, lembrar-se a pobre mãe que o rapaz havia de levar eterna vida de negro de roça, como se bem fora um ignorante igual aos da sua creação; e se pela mente lhe passava que d'este mau fadario d'elle era instrumento uma mulher, então se lhe revoltava a alma contra essa mysteriosa desconhecida, cujo nome ella em vão procurava adivinhar.

Havia tantas raparigas na terra!

Emfim, cerca das nove horas, acudiu o tio Anselmo a distrahil-a de tão penosa preocupação.

O homem pouco mais fazia do que pensar no filho. Vinha do campo expressamente para communicar á mulher uma idéa que de subito lhe tinha occorrido, e que a seu ver era muito boa para o rapaz se salvar da vida de escravo que o esperava, e até para juntar boa casa, se elle tivesse bastante tino e uma aragem de sorte.

-- Ora vamos lá a ver se tu approvas a idéa qu'eu tive!-- começou o tio Anselmo. -- Vamos a ver se d'esta feita nos entendemos. Lembrou-me a mim pôr-se uma loja 'o rapaz. Que dizes?

-- Uma loja!? De quê?

-- De tudo: arroz, bacalhau, azeite, vinho, assucre, chitas... De tudo! Uma loja como a da Chica da Ponte.

A tia Ricardina deixou cair a costura das mãos. Ficou encantada com o alvitre.

-- Ai, homem, -- que grande idéa que tu tiveste!

-- An?... parece-te?...

-- Elle sim, homem; elle sim. Com uma loja póde o João marear a vida bellamente. Isso é que elle acceita logo! Como te lembrou isso?...

-- Ora como havia de ser?... Lembrou-me! Estava cá a matutar na vida, e lembrou-me.

-- Mas que boa coisa!... Agora quem elle vae dar por paus e por pedras é a Chica.

-- Paciencia, minha amiga. Deixal-o dar. Cada qual puxa a braza á sua sardinha. Todos nós andamos ás nossas conveniencias.

-- Que o rapaz ha-de-lhe tirar munta freguezia! -- advertiu ponderosamente a tia Ricardina. -- O povo o que quer é modo, e elle tem munto bom modo.

-- Ora, eu já pensei em tudo -- disse o tio Anselmo. -- Nós vamo-nos metter n'uma alhada dos demonios. Quanto pensas que será preciso pôr p'r'ali, p'ra pôr uma loja como a da Chica?

-- Eu n'o sei; mas calculo. Por ahi... por ahi... os seus duzentos mil réis.

-- Arriba! arriba! E's parva. Duzentos mil réis nem se vêem. Põe lá quatrocentos, pelo pouco.

-- Quatrocentos mil réis?...

-- Sim; e pelo pouco. Ora adonde vamos nós buscar essa maquia?

-- Mas pr'a começo de vida...

-- Com menos n'o se faz nada, desengana-te -- atalhou o tio Anselmo -- Ou pôr uma loja como a da Chica, ou n'o pensar mais em tal. Coisa que dê nas vistas!... Coisa que attraia a freguezia!...

-- Pois n'o sei, n'o sei -- disse esmurecida a tia Ricardina.

-- Sei eu -- respondeu o tio Anselmo -- Temos credito e temos fiança. Hypothecamos uma das nossas fazendas e a casa. Agora... vamos a pensar n'isto. . . Valerá a pena??... O rapaz será homem que dê co'a futrica em terra?... Aqui é que bate o ponto. Ficas por elle?..

-- Eu sei lá, homem!... Eu sei lá, valha-te Nossa Senhora!...

-- Ah! Pois esse é que é o caso. Tamem eu n'o sei. Um barco d'aquelles custa munto a governar. Em uma pessoa se descuidando, lá se vae elle 'o fundo.

-- E' assim, é. Mas atão o João n'o será tão esperto aldemenos como a Chica?

-- N'o sei que te responda. Aqui n'o se trata d'esperteza, afinal; trata-se de saber, de feitio. A Chica, tão depressa mostra os dentes 'os freguezes, como lhe mostra o covado. E' mulher que se n'o deixa calotear nem por mais uma. Se vê que tal, empresta; se vê que o negocio é furado... passe por lá muito bem, viva! E aquelle que lhe ferrar cão, ha de saber com quem se metteu! E não só isto: também é preciso habilidade. N'o é so medir e pesar: é preciso saber medir e saber pesar. N'o vês tu como ella estica a chita?... como carrega co'a mão na balança, que uma pessoa nem dá pela historia?... como entorta a medida p'ra fingir a sobretedura?..

-- Ora, mas deixa lá, que em havendo quem lhe faça frente, quem pese bem e meça bem, já ella n'o pode fazer d'essas. O freguez vae adonde o servem com mais lizura.

-- N'o me dás novidade. Já pensei n'isso. E podese ganhar, e ganhar munto, sem fazer poucas vergonhas. O rapaz, pondo loja, tem por si esse partido contra a Chica. Ou ella mede e pesa direito, ou vê-se desamparada.

-- E mesmo assim, homem, Deus é p'ra todos.

-- Pois minha amiga, estuda a questão -- disse o tio Anselmo. -- Se vires que a gente se n'o vae enforcar, põe-se loja 'o rapaz. Prezo por cem, prezo por mil.

Dito isto foi-se o tio Anselmo á sua vida, e ficou a mulher a architectar coisas.

Agora era só em se pôr loja ao filho que ella pensava. Parecia-lhe o expediente magnifico; o que a aterrara eram as observações do marido.

Ao meio dia tornou a haver conferencia, e então se decidiu de commum accordo falar a João no plano, e ouvir a opinião d'elle, e estudar-lhe o animo.

Foi á noite que esse acontecimento se realisou. O tio Anselmo apresentou a idéa; a tia Ricardina oppoz-lhe os devidos reparos, já de manhã apreciados.

-- Dirás agora tu se te sentes com forças p'ra amparares a carga -- rematou precavidamente a tia Ricardina.

-- Sim, -- conveiu o tio Anselmo, -- tu é que has de saber se és ou n'o és homem para ter mão no barco.

-- Verdadeiramente, eu n'o sei -- respondeu João; -- mas parece-me que sim.

-- Vê lá? -- objectou lhe a mãe. -- Olha que nos vaes metter n'um grande perigo!

-- E' o prejuizo, e é o descredito -- esclareceu judiciosamente o tio Anselmo.

-- Pois bem -- sobreveiu João -- As coisas querem-se pensadas. Logo que eu acabe a escripturação no Engenho, voltaremos a falar no assumpto. Não me desagrada a proposta.

-- E quantos dias terás tu ainda tomados no Engenho, n'o sabes? -- perguntou a tia Ricardina.

-- Dois, se tanto. Dois ou tres dias.

-- Se o sr. Zé Joaquim te quizesse lá empregar!... -- volveu a pobre mãe -- Estava na mão d'elle. Era elle querer.

-- Mas p'ra que o ha de querer lá o sr. Zé Joaquim, não me dirás? -- perguntou com irrisão o tio Anselmo. -- Elle sabe porventura alguma coisa de lans, d'aquelles serviços?... Está claro que n'o sabe nada!

A tia Ricardina humildou-se.

-- Pois sim, homem; tens razão. Eu 'stou sempre a phantasiar coisas. E' o meu desejo de ver o rapaz bem arrumado. Está visto que elle n'o sabe nada de lans.

Aqui ia-se desmanchando João.

-- E que tem isso?... que eu não saiba nada de lans?... Uma fabrica d'aquellas não está a pedir um empregado que fiscalise, que tenha a responsabilidade do que se faz de portas a dentro, que cuide da escripturação, que n'o é ella tão pequena?...

A tia Ricardina, ainda que um pouco a medo, apoiou.

-- Dizes bem, filho. Assim tu tivesses fortuna, que boa loja era o sr. Zé Joaquim querer-te empregar lá. Eu no teu caso falava-lhe. N'o perdia nada. Porque lhe n'o fallas?. . Deita sempre o barro á parede!

O tio Anselmo deu um murro na arca em que estava sentado, e poz se precipitadamente a pé e retirou-se, dizendo por entre dentes;

-- Ha de sempre vir a tolice!

E voltando atraz, ao limiar da porta, accrescentou dirigindo-se ao filho:

-- Olha, rapaz; o mel n'o é pr'a bocca do asno! Cuida tu em ver se furas vida co'a nossa ajuda, que co'a dos outros n'o deves contar. Fortunas n'o são p'ra pobre!

E foi-se.

XX

A industria do bem

Gozava Zé Joaquim fama de ser muito hospitaleiro e franco, e por isso se lhe enchia a casa de gente sempre que na terra havia festa ou coisa parecida. Todo o mundo para alli encarreirava como para a sua propria casa. A' sahida, não se ouviam senão elogios. O tratamento era excellente, e o modo era encantador. Não havia mesquinhices nem enfados.

Naturalmente, por consequrncia, bateram á porta de Zé Joaquim no dia aprazado para a reunião dos accionistas do Engenho da Sociedade, todos aquelles senhores que vinham das suas terras tomar parte nos trabalhos da assembléa. Agora um, d'ahi a pouco outro, foramse-lhe juntando á mesa nada menos de nove. Vinham fugidos ao calor, alguns sem almoço, outros sequiosos. Pediam de comer e de beber.

Zé Joaquim estava já prevenido para este brodio. Com tempo déra ordens para que nada faltasse. Fazia gosto em propiciar a quem quer que fosse boa hospedagem. Não se via senão comida e vinho, tudo do bom e do melhor.

Quando os estomagos começavam a achar-se confortados, armou-se cavaco acerca da industria das saragoças, e abriu-se ensejo a Zé Joaquim para contar historias e anedoctas a respeito das difficuldades em que se vira o sr. Garrik na aldeia.

Foi um fartote de rir. O homem contava com infinita graça coisas que postas em papel seriam de provocar somno ao mais espertado leitor. Tinha arte para compor e dar relevo ás mais insignificantes ninharias, por forma a tornal-as factos de bom vulto. E o mais engraçado é que elle ria-se tambem como um perdido! Havia umas tantas coisas de que elle se não podia lembrar sem cegar de riso.

Veio então a pello, por intima analogia de circumstancias, render Zé Joaquim muitos elogios ao sr. padre David, e muitos mais ao filho da tia Ricardina, de quem elle disse que em sua consciencia entendia que devia dar-se-lhe uma gratificação, pequena que fosse.

Romperam immediatamente vozes applauditivas da assembléa, e decidiu-se por unanimidade que arbitrasse Zé Joaquim essa gratificação, e a desse e a lançasse na conta corrente da sociedade.

Zé Joaquim tenteou os animos dos consocios.

-- Mas vejam lá!... digam o que se lhe ha de dar. Quinze mil réis, será muito?...

Houve seus engulhos.

-- Sim, n'o é de mais -- affoitou-se um mais generoso a responder. -- Quinze mil réis. Toca a cada um de nós pouco mais de cinco tostões.

-- A conta redonda! A conta redondal Tres libras!-- emendou do lado o mais agarradiço e mais comilão dos presentes.

-- Sim, a conta redonda!-- conclamaram todos os circumstantes ainda não revelados. -- A conta redonda!

E n'isto, o proponente da emenda, e uns três camaradas mais, tornaram a pôr-se a comer como quem está em jejum.

Desforra dos cinco tostões para o interprete! Que cinco tostões é alguma coisa.

Zé Joaquim continuou a conversar, e em conversa disse á boa paz, que além dos negocios da fabrica tinha varios outros em que occupar-se, e então que por esta circumstancia se via obrigado a declinar a gerencia do Engenho, e a pedir aos seus consocios, que ali se achavam reunidos em maioria, que escolhessem d'entre elles um que desde logo o substituisse em tudo e por tudo.

-- Estou cancado d'andar todos os dias em caminho do Engenho, e de ter ralações e cuidados, e por isso peço-lhes que me nomeem substituto -- disse elle. -- Preciso descançar, olhar mais por outros negocios.

Os taes que estavam desforrando os cinco tostões deixaram cahir no prato o boccado que levavam á bocca.

Foi geral o espanto, sincero o sentimento de todos por este annuncio de Zé Joaquim. O Engenho estava desde a sua fundação a cargo d'elle, no tocante á parte administrativa, e muito e sempre a contento de todos. Agora, pol-o sob a tutela d'outro, era um caso seriissimo. Aggravava-o a circumstancia de todos os demais consocios viverem longe, n'outras terras.

Houve, pois, um borborinho de protestos, pedidos, e exclamações.

-- N'o pode ser! N'o pode ser! -- gritou um parceiro que se fez interprete dos sentimentos da assembléa. -- Nós n'o consentimos que o sr. Zé Joaquim deixe a administração do Engenho. O mesmo era que dar cabo d'elle. Quem é que ha de aqui vir ver o que se faz e o que é preciso?... fiscalisar, dirigir?... N'o pode ser! Protestamos! O sr. Zé Joaquim, mormente agora, depois das despezas que fizemos, ha de ser paciente e continuar a aturar!

Irromperam de todos os lados vozes d'approvação á fala do orador.

Era um palavrear de ensurdecer. Todos pensavam da mesma maneira, e se queriam fazer ouvir. Cá na rua, os que iam passando, paravam, suspeitando desordem lá dentro. Amalia, com o coração negro como a noite, como se costuma dizer, pedia a Deus que fosse servido que o pae não levasse a sua a melhor.

Ignorava a rapariga que tudo aquillo era trica por causa do emprego de João. Pensava ella que se o pae sahisse da administração da fabrica, o rapaz nunca para lá entraria, e portanto se lhe transtornavam os seus acariciados planos.

Não tardou, porém, que ella percebesse tudo. Zé Joaquim conseguiu dominar a desordem e fazer-se ouvir.

-- Emfim -- começou elle -- assim como eu não quero o prejuizo de ninguem, tambem ninguem deve querer o meu. E' de justiça. Eu ando a caminhar p'r'o Engenho, por devoção, vae em quinze annos. Raro é o dia que lá não tenho ido. Nunca pedi, nem peço, nem quero paga por estes serviços. O que eu quero, e só n'essas condições é que eu continuo a olhar pelo Engenho, é que me deixem lá pôr um homem em quem eu confie, e que na minha ausencia faça as minhas vezes. Assim, sim; de outro modo nada feito!

-- Mas n'o ha lá um homem?... -- observaram alguns -- Um homem de confiança?...

-- Ha lá um homem muito fiel, muito honrado, que nos tem prestado serviços, mas que n'o chega aonde eu desejo e é preciso. Tanto mais que se faz mister dar desenvolvimento á fabrica. E' o João Fiadeiro. N'o sabe ler nem escrever, nem quasi que tem tempo para coisa nenhuma. O que eu quero é um homem meu, por quem eu responda, em quem eu confie como em mim proprio, e que esteja ali a pé firme desde pela manhã até á noite p'ra o que fôr preciso: que lance a tempo e horas as contas aos livros, que receba dinheiro, que faça as ferias, que repare se as machinas andam estimadas, que veja o que os operarios fazem e n'o fazem, que zele, que traga tudo em ordem, que mereça o que ganhar.

-- E aonde está esse homem? -- perguntaram alguns accionistas. -- Aonde está um homem assim, de que se lance mão!?

-- Tenho eu um debaixo de vista -- respondeu gravemente Zé Joaquim -- E' o mesmo que tem estado a fazer por conta do meu bolso a escripturação que logo havemos de verificar e d'assignar, porque eu n'o tive tempo, nem já tenho paciencia, p'ra taes miudezas. E' um rapaz serio, honrado, por quem eu fico, e que nos ha de indemnisar bem dos cinco ou seis tostões que lhe daremos por dia.

Os mesmos sujeitos que tinham perguntado aonde estava o homem que reunisse todas as qualidades pretendidas por Zé Joaquim, e que eram amigos d'este e estavam combinados com elle para o ajudarem na sua empreza, que antes lhes fora annunciada em particular, votaram desempenadamente que se tomasse o alludido rapaz para a fabrica, na qualidade de feitor.

-- E' preciso, é preciso! -- disse um dos taes expeditamente -- Tome-se o rapaz.

-- E ha mais tempo nós deviamos ter deliberado tomar um empregado! -- advertiu outro dos apalavrados. -- E' indispensavel n'um estabelecimento d'aquelles quem tenha olhos para ver e mãos para trabalhar. Aquillo n'o é roupa de francezes. Por um lado se ganha, por outro se perde.

Uns cinco socios mais accudiram de chapa pela opinião d'estes, á qual a breve trecho se foram associando outros.

D'ahi a pouco votava a grande maioria que fosse approvada a proposta de Zé Joaquim sem restricções. Uns iam convencendo os outros, e todos convinham em que Zé Joaquim tinha razão. Tudo tem limites. Elle devia estar farto e cançado de cuidar mais na fazenda alheia do que na sua propria. Só dois é que se conservavam renitentes. Eram os taes que desforravam em dentadas ás vitualhas os cinco tostões da contribuição gratificatoria. Esses custava-lhes a dar o sim. Em face, porem, da attitude dos seus consocios, desemperram, annuiram, mas Deus sabe com que custo. Tanto que lhes passou a vontade de comer!

Resolvido isto, e bebida uma boa golada pelas prosperidades do Engenho, dirigiram se os accionistas processionalmente lá para examinarem as contas e assignal-as, e tratarem de assumptos referentes á amortisação da divida contrahida para a compra das machinas novas.

Ahi tudo correu optimamente. Houve ligeira discussão sem importancia sobre o modo de amortisar. Mais nada.

Cerca das quatro horas, depois de um lauto jantar offerecido no campo por Zé Joaquim áquelles seus amigos, começaram todos estes a debandar cada um para seu lado, alguns bastante quentes da orelha, e a fazerem seus zigues-zagues.

João participou d'esse jantar, e veio de lá muitissimo alegre, mesmo ebrio, mas não pelo que bebera. Que até elle era muito sóbrio! Foi porque emfim recebeu a noticia official de que estava empregado. Só por isso.

Se o visseis a correr por aquelle caminho para a aldeia!... Se visseis com que agilidade elle subiu o balcão da casa do sr. padre David, e com que atabalhoamento elle lhe caiu lá dentro!...

-- Então que é isso?... -- perguntou-lhe espantado sua reverendissima.

Nunca assim vira o demonio do rapaz! Chegou a pensar que elle vinha com effeito tocado do vinho.

-- E' pressa de lhe beijar as mãos, sr. padre David! E' alegria sem vinho -- respondeu o rapaz ajuntando ás obras as palavras.

O sr. padre David quiz furtar a mão áquella prova de respeitoso agradecimento que João lhe queria dar, mas não poude. Foi muito rapido o acto.

Isto enterneceu o bem intencionado padre. Elle era muito bom homem, uma santa pessoa! Abraçou o rapaz. Viu logo que elle não estava embriagado de vinho.

-- Estás então empregado, não é assim?...

-- Estou fôrro á vida de cavador, mercê da sua muita bondade, sr. padre David!...

-- Ora ainda bem, louvado Deus! Oxalá agora tu te portes sempre com brio e honra! Vae n'isso a tua maior felicidade, que é a bem-querença dos homens, o bem-estar da consciencia. Não te dou conselhos, que os não precisas. E's um homem, e tens talento e instrucção que baste para te saberes conduzir. Avizo-te apenas; é muito difficil subir, e é facilimo descer. Agarra-te bem ao bordão da dignidade, se quizeres fazer direitinho a tua viagem pela terra. Firma-te bem a elle!... E vae com Deus, vae lá alegrar a tua mãe agora. Temos muito tempo de conversar.

Acceitou João a dispensa que o sr. padre David benevolamente lhe concedeu, e retirou se renovando os protestos do seu eterno reconhecimento áquelle bom e sympathico homem.

De lá, de casa do sr. padre David, cortou João por uma quelha, no intento de ir passar por onde visse Amalia, e viu-a e fez-lhe signaes de que estava já empregado, e seguiu adiante.

O sr. padre David observou da janella este caso e ficou meditando n'elle.

Pouco depois estava a tia Ricardina toda azafamada a depennar um gallo para celebrar festivamente a fortuna do filho. Immolou o pobre animal com uma inconsciencia pasmosa!

E' assim a creatura humana: Deus acaba de nos fazer uma mercê, e logo nós estamos a fazer-lhe uma offensa!

XXI

A investidura de João

Horas depois de se ter decidido a causa de João, era publica e notoria entre os vizinhos da terra a noticia do emprego d'elle. O tio Anselmo, sua mulher principalmente e Manuel, aonde não iam mandavam com a nova. Dava-lhes a sua immensa alegria para isto, e para em toda a parte e a todo o instante dizerem e repetirem com uma convicção de justos, que o sr. padre David, e Zé Joaquim, a casa dos quaes antes de tudo e á carreira foram os pães do beneficiado dar mil agradecimentos, eram os mais dignos e melhores varões que a rosa do sol cobria.

Ora como isto se deu a um domingo, a tardas horas, e o pessoal da fabrica ainda não tinha conhecimento official do facto, nem toda a gente acreditou logo no pregão. Affirmarem e não affirmarem os pregoeiros que falavam verdade, e invocarem inclusivé em testemunho de seus protestos os consideradissimos nomes do sr. padre David e Zé Joaquim, vinha a ser o mesmo que nada.

Ficaram cá na terra muitos sectarios das doutrinas de S. Thomé, o santo apostolo companheiro do Divino Jesus. Esses é que nem a pau crêem sem verem!

Teve, porém, pequena duração a duvida. Na manhã seguinte, segunda feira, á volta das nove horas, appareceu Zé Joaquim no Engenho, acompanhado do sr. padre David e João, a confirmar solemnemente o boato da vespera. Os operarios todos, pequenos e grandes, homens e mulheres, foram chamados ao escriptorio, e ahi avisados pelo seu antigo administrador, em linguagem muito clara, de que a contar d'aquelle momento elle delegava toda a sua auctoridade, pouca e muita, no filho da tia Ricardina.

-- D'ora em diante, quem aqui manda, e a quem vocês hão de obedecer, é a elle -- disse Zé Joaquim apontando João. -- A elle é que vocês têem de se dirigir quando precisem algum abono, quando tenham alguma coisa de que se queixar, ou quando haja qualquer motivo. A mim não têem nada que me dizer. Mas olhem que o caso fia muito fino se eu sei que aqui ha alguma insubordinação; ouviram?... Com isso é que eu quero ter tudo. Elle sou eu, e eu é elle. Quem lh'a fizer a elle, faz-m'a mim, tenham-n'o entendido. E disse. Vão ás suas occupações. Fiquem cá os encarregados das officinas.

Retirou-se respeitosamente a meudagem operaria, e ficaram os encarregados das officinas a ouvir sermão especial.

-- Vocês já ouviram -- disse-lhes Zé Joaquim. -- Eu deixo de ser administrador do Engenho. Hei de por cá vir umas vezes por outras, mas não para tratar de negocios de expediente. Continuem a cuidar cada um dos seus deveres com seriedade, e dêem o exemplo aos mais pequenos, respeitando aqui o João. Não me façam zangar, que vae ahi tudo razo!... Elle é que determina os serviços, elle é que faz as férias, elle é que dirige. O que elle disser está muito bem dito. Quando elle tiver alguma duvida, advirtam-lhe vocês as cousas em termos habeis. Nada d'espirrar, que eu desespero-me! Elle é elle, e vocês são vocês. Cada qual no seu logar! Mesmo que se dê algum caso de força maior, não destemperem. Então falem commigo, que cá estou eu para ouvir e julgar. E não tenho mais nada a dizer-lhes. Podem-se retirar. Espero que se dêem muito bem com o seu feitor. Estimarei isso.

Os encarregados sairam de boa cara e satisfeitos. Tinha valido de muito a João o credito ganho nas suas relações com o sr. Garrik. Elles bem viam no fundo da sua consciencia que o rapaz lhes estava superior. Se os descontentava o verem-se, alguns homens já de cãs, governados por uma creança sahida d'um ninho igual ao que elles tiveram, diminuia-lhes o pezar a intima convicção de que elle os sobrelevava a todos juntos em saber.

A sabedoria, pouca ou muita, que tudo é relativo, é uma coisa a que o povo boçal tem grande consideração. Ora o filho da tia Ricardina era apontado como rapaz de sabedoria. Não queriam esquecer aquellas gentes que tinham ouvido o rapaz falar francez!... Não lhes passava desapercebido que o sr. padre David gostava muito de conversar com elle, e ambos conversavam em coisas que só elles entendiam!

Aqui é que o ponto batia.

Por tudo isto nem houve commentarios nem melindres com a entrada de João para feitor do Engenho. Todos acceitaram a nomeação d'elle como facto natural. Se alguma coisa diziam, era só com referencia á sorte que o tinha bafejado. Com respeito a mais nada. E nem havia motivo; João não fazia sombra a ninguem. Aquelle mesmo outro João, operario, por alcunha o Fiadeiro, que fazia as vezes de feitor da fabrica, nada perdeu com a admissão do rapaz; antes lucrou. Diminuiram-lhe consideravelmente o trabalho, sem a esse titulo lhe reduzirem o ordenado. A unica differença na sua situação, era elle ter que receber ordens e prestar obediencia ao filho da tia Ricardina, em vez de ser a Zé Joaquim, como antes. Só, exclusivamente.

Foi isto o que o pae d'Amalia decidiu, e ficou assente.

-- Percebes?... -- disse-lhe Zé Joaquim a elle com toda a bondade, porque era este um dos emprega dos da sua particular estima. -- Tu n'o perdes nada com a vinda do João. lucras; ficas muito alliviado, e ganhando o mesmo. A unica differença, é que agora quem te dá os dias santos, é elle por mim, n'o sou eu. De resto fazes o mesmo que fazias; estás e estarás como estavas. Ninguem bole comtigo. Ajuda o tu cá no que fôr do teu alcance, e deixa correr a vida.

A João, muito particularmente, só deante do sr. padre David, deu Zé Joaquim os melhores e mais amigos conselhos que a experiencia e a bondade ensinam.

-- Tu és um rapaz esperto, e cá muito das minhas graças; mas eu sou um velho, e posso por isso dar lições aos rapazes espertos -- disse Zé Joaquim a João. -- Portanto, toma os meus conselhos, homem. Tudo se faz á boa mente. Não queiras levar as coisas ao fio da espada. Vae de vagarinho, que corres mais. Põe-te no teu logar, sim, mas com modo. Não escandalises ninguem. Vê, observa, dirige, ralha, mesmo, mas com termos; e quando te parecer, em coisas pequenas, techa os olhos. Olha que não perdes nada que um ou outro te chame parvo: toma sentido!... Eu estou aqui com cincoenta e quatro annos bem puxados, e tenho-me deixado comer por tôlo tantas vezes ou mais que de cabellos me nasceram na cabeça. Quanto ao resto, ninguem te pede que te mates, que te ponhas a cardar ou tozar pannos. Não vens p'ra cá para isso; vens p'r'administrar, p'ra zelar os interesses do Engenho. N'o é isto, sr. padre David?... N'o lh'estou eu a dar bons conselhos?...

--Bons, bons -- respondeu sua reverendissima.

-- Ora pois ainda bem!... -- exclamou Zé Joaquim. -- Mas dê-lhe sempre o sr. padre David os seus -- accrescentou elle saindo para o quer que fosse. -- Faça-lhe um sermão dos seus!

O sr. padre David satisfez em meia duzia de palavras ao pedido do seu amigo.

-- Ouviste com attenção tudo quanto o Zé Joaquim disse, não é verdade?... Pois oxalá estejam sempre presentes ao teu espirito as palavras d'elle. Melhores, mais memoraveis, não t'as sei eu dizer. Que te sirvam de regra os seus conselhos, e que a confiança e a amizade de que elle te deu publico testemunho te obriguem a ser um homem de brios e de honra, é o que eu estimo, e peço a Deus.

Não lhe disse mais nada. E vá que lhe disse muito! Foi um bello sermão.

A' volta, d'ahi a minutos, Zé Joaquim veiu galhofeiro pôr termo á solemnidade da investidura de João no seu cargo, contando, não sei a que proposito, uma anedocta beirã.

Remonta ella aos historicos tempos das investidas dos francezes. Aquelles famosos aventureiros tinham atravessado Hespanha, e vinham sobre Portugal pelas bandas d'Almeida. A noticia retumbou por aquellas redondezas. Havia pavor e odio. Botto, esse famigerado guerrilheiro beirão, que teve vida para romance e morte para tragedia, alistou gente e foi-se com ella esperar n'um cabeço vizinho de Gouvêa as tropas invasoras. Passaram ellas lá ao longe, e tanto que o numeroso exercito parecia uma columna de formigas. Mas emfim viam-se mexer. «Fogo! -- bradou o capitão da guerrilha.» -- E a guerrilha fez fogo. Ribombaram soturnos os estoiros d'aquella surriada, e toldaram-se de fumo e pó os ares. A soldadesca, então, ouvindo os echos demorados, cavos, dos seus tiros, suppoz-se alvejada e perseguida pelo inimigo, e deitou a fugirem desordenada correria. Ali, o mais valente, era o que tinha melhores pernas! Ali o que se queriam eram pernas!... Aconteceu, porém, um caso ratão. Saltando montes e valles em diabolica vertigem, vinha um dos bravos guerrilheiros clamando misericordia, «Perdão, sr. francez! Perdão, sr. francez, que não fui eu!» bradava o misero. E não olhava para traz, esse bruto, e a cada novo passo elle se imaginava filado pela mão do seu perseguidor implacavel, que afinal era a patrona que agitada pelo movimento da fuga lhe vinha batendo nas costas!

Pois Zé Joaquim contou com muito chiste esta velha historia, realmente pouco lisonjeira para o caracter dos seus patricios, e depois saiu com o sr. padre David.

Já ali não tinham que fazer.

Mal que elles viraram costas, João, que afinal era rapaz, repetiu a scena que de outra vez tinha representado tambem a sós n'aquelle mesmo logar; começou a dar cabriolas, e a fazer outras sortes de rematado doido. Cerca de uma hora gastou-a n'aquillo, em palhaçadas!

Cada qual expande as suas alegrias a seu modo. A uns dá-lhe para beberem até cair; a outros para andarem em estravagancias festivas; a outros para azoarem os ouvidos a meio mundo com gargalhadas e palavriado; a outros, emfim, para palhaçadas!

Tudo n'este mundo é variado. Cada doido com sua mania.

João pertencia aos da ultima classe, que não é a menos divertida.

Quando muito bem lhe pareceu, ou se cançou, deixou-se o rapaz de gymnasticas, e veiu fora conversar com uns e outros operarios.

N'isto se foi passando o tempo, e chegaram as horas do jantar. A sineta do estabelecimento annunciou-a, as machinas pararam, e os operarios atiraram-se aos seus pobres farneis.

D'ahi a pouco entrava no escriptorio a tia Ricardina, meio endomingueirada, com a cesta do jantar do rapaz na mão, e o tio Anselmo com um cantaro debaixo do braço.

-- Que é isso? perguntou João vendo a vazilha.

-- E' uma pinga de vinho p'ra tu dares aos homens cá do Engenho -- respondeu-lhe o pae.

Quizera o tio Anselmo celebrar a elevação do filho, e tivera aquella lembrança. Vinha alegre, de vestia ao hombro, a repartir cumprimentos por toda a gente.

A' sua parte a tia Ricardina quizera ir em pessoa levar o primeiro jantar ao rapaz.

Fazia gosto vel-os; mais contentes que até nem estavam bem de saude!

Entretanto a tia Ricardina estendia o alvo guardanapo, punha a loiça, e tirava os pucarinhos do jantar.

Fazia respectivamente o elogio de cada prato. O tio Anselmo ajudava. Elles já tinham comido.

-- O caldo, filho, está qu'é uma consolação!

-- E' de comer e gritar por mais! -- observava o tio Anselmo -- Se comeres duas malgas d'elle, ficas ahi com 'um barra.

-- N'o queiras, filho; n'o queiras. Tens aqui mais que comer. Olha... tens tromba de porco, de que tu gostas muito, e prezunto, chouriço, e uma doze de cabrito grizado: vês?...

João ia vendo, respondendo e comendo, mas pouco. As alegrias d'elle apertavam-lhe o esophago. Comia mais quando estava triste.

São differentes os genios. Já o tio Anselmo assim não era. Esse comia que nem uma frieira, estando alegre!

Lá para o fim da refeição, emquanto o tio Anselmo saiu a dizer aos operarios que o seu João os chamava para lhes dar uma pinga, a tia Ricardina, com modos supplicantes, rogou muito ao filho que se portasse bem, que tivesse muito tino; e mais lhe pôz na carta, abaixando-se-lhe ao ouvido, e falando-lhe com muito singular maneira...

-- Podes vir a fazer um grande casamento, filho!

O rapaz, ligando repentinamente idéas e palavras, descortinou os intuitos da mãe, e sentiu umas cocegas de riso, que teriam sido objecto para graves considerações da tia Ricardina, se ella apoz o seu dicto, acto continuo, não tivesse saido para se furtar a explicações e denuncias.

XXII

Verdades amargas

Provavelmente o leitor nunca entrou n'uma fabrica de saragoças. Nunca se lhe azou occasião, nunca foi á Beira. Ou, se lá foi, de certo passou por alguns d'esses estabelecimentos, mas sem sentir a menor curiosidade de os vizitar. Talvez, mesmo, sem os reconhecer. Viu, á margem das ribeiras, uns casarões enormes, mas não fez reparo nenhum n'elles. Faltou a chamar-lhe a attenção o apito das machinas de vapor, o vulto esguio das chaminés, a fumarada d'ellas. Ignorava, sem duvida, que por ali é tanta, bemdito seja Deus, tanta a fartura da agua, e tão rija a ventania quando os ventos se desencadeam, que sobre ser um grave erro economico ter caldeiras accesas, havia de ser perigoso erguer altos respiradouros a fornalhas. Eis o caso.

Pois é pena. Devia o leitor ter entrado n'uma d'essas officinas. Ha lá que vêr-se, que admirar-se! Tudo ali são provas da grandeza do espirito humano!... E' curiosissimo observar como por uma serie de operações mechanicas combinadas se logra fazer da tenue fibra de lã o durissimo panno de que nos vestimos. E' maravilhoso!

Mas, emfim, paciencia; do mal o menos. Se a occasião se lhe tornar a deparar, aproveite-a o leitor. Aproveite a, que cedo ou tarde que ella venha, ha-de-lhe permittir ver o que já poderia ter visto; o que existia nos tempos a que remonta esta chronica, e o que existirá d'aqui a bastos annos. Quasi, quasi exactamente o mesmo! Com pequenissima differença a mesma coisa, sem tirar nem pôr.

Começará o leitor por ver pérchas, prensas, pisões de ferro, lustradeiras e outras machinas que por circumstancias especiaes, como por exemplo as do seu grande peso material, e excessivo arrancar de movimentos, só podem estar no pavimento terreo do edificio, assentes e engatadas sobre verdadeiros rochedos de granito.

Ahi é um inferno de barulho : sae-se de lá surdo. O batucar dos excentricos, o ranger pesado das engrenagens, aquelle desencontrado e caracterisco bum-bum, traz-traz, dos operadores e agentes mechanicos, põem a cabeça doida.

Sobe o leitor sem demora ao segundo andar, e ainda não pára senão o tempo strictamente necessario para satisfazer a sua maior curiosidade. O estralejar das lançadeiras dos teares de ferro, a pancada soturna dos pentes dos mesmos teares, a constante e grave musica das thesouras que vão escanhoando o buço dos pannos, aquelle estapafurdio zangarrear dos centenares de rodas das varias machinas de preparo e acabamento que ahi funccionam, tudo isto com acompanhamento obrigado dos assopros e guinchos dos volantes e respectivos tambores transmissores, prompto o porão em marcha para o segundo andar.

Dá lá o leitor comsigo indo com todos os cuidados, não esbarre nas escadas, nem se encoste ás paredes, que tudo aquillo está bezuntado de azeite e cêbo. Escorregar e cair é a coisa mais fácil d'este mundo. Apanhar nodoas no facto, então, é quasi certo. O fabrico é porco. Tudo reluz oleos, tudo respinga gorduras.

Ora n'este pavimento já é mais supportavel a estada. Em parte d'elle pinçam-se, dobram-se, encostalam-se pannos: na outra parte funccionam as fiadeiras mechanicas, que pouco ruido fazem. O que é preciso é não adormecer na comtemplação d'aquellas centenas de fuzellos que vão torcendo o fio e fazendo a maçaroca! Corre-se o risco de ser apanhado pela parte locomovel das machinas, que a espaços recua pelos seus carris fóra para largar trabalho aos fuzos; ou, fugindo d'este perigo, ir ficar entalado n'algum volante! De um momento para o outro, o grande espaço da casa que parece estar devoluto, enche-se completamente. Fica tudo coberto de fios de lã em torcedura, até que o fiadeiro faz avançar outra vez o seu comboio, para que elles sejam recebidos na cannella.

Emfim, sobe o leitor ás aguas-furtadas. Faz-se lá a quebra das lãs. Dez, vinte, trinta, quarenta mulheres, tantas quantas as necessidades do serviço reclamam, e todas amezendadas no chão, ahi desempastam e limpam de chocas e garras a lã, que é trabalho este que ainda as mais perfeitas machinas executam mal. Ao mesmo tempo cantam e murmuram. Calladas nunca!

E está visto o estabelecimento. Retorna o leitor pelo mesmo caminho, e encontra se na rua talvez antes a meditar na miséria d'aquellas centenas de operarios que lá viu dentro, do que propriamente nas engenhosas maravilhas inventivas que teve deante dos olhos.

Talvez. E' caso para isso. Vem atraz da gente aquelle espectro da miseria humana. Só se viram rostos famintos, andrajos sobre os corpos, tristeza opprimindo as almas. Alguem cantava?... Muita vez as cantigas são lagrimas. Sabe-o Deus!

E ainda o leitor, acaso, mal considera a infelicidade d'aquelles desgraçados. Disseram-lhe que aquelles homens que ali estão expostos a serem despedaçados pela dentadura implacavel dos monstros de ferro que estão vigiando, ganham uma diaria que varia entre doze e dezoito vintens?... e que se enfermam vão para o hospital, e se perdem os braços vão mendigar?... que só recebem quando trabalham?...

Pois é certo. Não teem monte-pio, não teem caixas economicas, não teem nada, os infelizes!

Disseram-lhe que aquellas muitas creancinhas, tão pequenas que é uma dor d'alma vel-as ali trabalhando, e que lá estão rotas, sujas, quasi nuas, mortas de fome e fadiga, a apanharem fios, a encherem cannellas, a ganharem já o seu negro pão, têem um pataco ou três vintens por dia, e são a meudo e brutalmente espancadas pelos mestres?...

Pois é tambem certo. Os pobres innocentes são uns machacazes de pancada, uns martyres de trabalho e penuria. Para aquillo não olham os governos!

Disseram-lhe, emfim, que as quebradeiras, trabalhando bastante e bem, podem, quando muito, fazer nove tostões por féria, ou tanto como sete vintens e meio por dia?... que entram para ali virgens e honestas, e sahem de lá mães e desmoralisadas?... que são uma especie de mulheres de harem, cujo sultão é o feitor ou dono da fabrica?...

Pois tambem ainda isto é certo, como certo é ser o Engenho da Sociedade o unico estabelecimento d'entre os do seu genero aonde. Deus louvado, a desmoralisação vilipendiosa não tem quartel. Lá, n'este, nem as mulheres têem senhor que se lhes imponha, nem as creanças têem verdugos que as massacrem. Todos se amam, todos se respeitam, todos mutuamente se tratam e estimam como bons irmãos.

A razão é simples. O sr. padre David e Zé Joaquim, ambos de mãos dadas, com uma solicitude superior a todo o elogio, levam o anno inteiro, dia a dia, a sermonar.

Caridade e amor são a divisa d'estes dois homens. No rebanho não ha ovelha leprosa. D'ora em quando representam se umas scenas theatraes: Zé Joaquim enche-se de séria indignação, e manda despedir um operario. E' algum rebelde, algum reincidente no erro; peccou por desmazellado ou por velhaco. Ha supplicas, rogos, empenhos. A miseria sentou-se ao canto da lareira do delinquente; tudo são lagrimas e luto. Amalia pede, a avó d'ella pede, todos intercedem pelo infeliz, e Zé Joaquim não se move á compaixão. O sr. padre David nega-se a fazer ouvir a sua voz clemente; allega a enormidade do delicto, a repugnancia da sua consciencia em ir pedir por quem lhe não merece confiança. Entretanto vae minorando a dor do condemnado; dá-lhe soccorros, que são de conta d'elle e da de Zé Joaquim, e faz-lhe sermões adequados á sensação do arrependimento e ao proposito da emenda. Mas, emfim, a penuria augmenta, os pedidos apertam, e então o sr. padre David vae com o mizero a casa de Zé Joaquim implorar perdão. Zé Joaquim então cede, mas tornando o sr. padre David responsavel de qualquer nova recaida. Cede, mas com cara de contrariado, e sempre pela ultima vez! O amnistiado agradece muito, chora, sae penhorado a jurar aos seus deuses que se não torna a metter n'outra, e Zé Joaquim e o o sr. padre David, mal que ficam sós, abraçam-se.

XXIII

Actos do sr. padre David

-- Como vos daes vós por lá com o vosso feitor? -- ia perguntando o sr. padre David em particular a uns e outros dos operarios do engenho.

-- N'o ha que dizer em mal, meu senhor -- respondiam pela mesma bocca os interrogados. -- E' munto bom rapaz.

-- Trata-vos bem?... é trabalhador?...

-- Munto. N'o podiam arranjar melhor p'ra cuidar dos interesses da casa e trazer a gente contente.

-- Elle porta-se com seriedade?... dá-se ao respeito?...

-- Se dá! Nem falar n'isso.

-- Mas já me disseram que elle ia metter-se com as quebradeiras!?... -- observava ás vezes sua reverendissima por sua conta e risco, para colher sobre este ponto informações de alguma mais faladora creatura.

-- Ai, é falso! Tal n'o ha. Até é um celeste elle demorar-se no sobrado cinco minutos. Não, que nem passa da porta!

-- Não, algumas vezes...

-- Pois n'o digo que não; n'o digo -- replicava a interlocutora de sua reverendissima. -- Aos sabbados lá se demora, porque tem de ver fazer a pesagem das lãs. Mas o que é certo é que aquella bocca n'o s'abre p'ra dizer uma nem duas ás quebradeiras! N'o é que digamos agora, uma comp'ração, elle debica co'esta ou co'aquella. Co' nenhuma! Faz lá idéa da seriedade d'elle, sr. padre David!?... Quem tal disse a vossa senhoria, mentiu com quantos dentes tem na bocca. O qu'é verdade manda Deus que se diga.

Estes informes, insuspeitos e unanimes, traziam muito satisfeitos o sr. padre David e Zé Joaquim.

Não podia deixar de ser. Padrinhos d'estes gostam sempre que lhes digam bem dos afilhados. O rapaz estava feitor da fabrica devido á protecção d'elles: outras noticias haviam de os desgostar muitissimo. Juntar-se-hia então o pesar de terem protegido um ingrato, ao pesar de terem mettido uma féra no meio do rebanho que aos dois tantos cuidados merecia.

Sem embargo continuava o sr. padre David a sua prégação. A sabedoria está em prevenir, não em remediar.

-- Juizinho, meninas! -- dizia elle ás quebradeiras.

-- Muito juizinho, que todo elle é pouco. Encommendem-se a Deus, e trabalhem, que o trabalho é tambem um grande escudo contra as perseguições do demonio. O demonio não quer nada com quem trabalha, porque quem trabalha honestamente está em união com Deus. E não me venham para aqui murmurar, ouviram?... As murmurações conduzem ao inferno. Rezem, cantem, conversem sem malicia.

A João falava d'outro theor, á vista das mesmas quebradeiras.

-- Olha-me por esta gente. A ti cumpre-te ter mão nos desvarios d'ella. Evita que se diga que alguma d'estas mulheres veiu ao Engenho ganhar a perdição. Não m'as deixes pôr pé em ramo verde!

Aos mestres recommendava caridade para com as creanças.

-- Como se porta cá a rapaziada?...

-- Como de costume, meu senhor.

-- Então, maus como a sarna, hein?...

Accudia a petizada a beijar a mão de sua reverendissima.

-- Qual de vossês é o que se porta peior?

-- Venha o diabo e escolha! -- dizia do lado o mestre.

O rapazio defendia-se. Dando-lhes credito, nenhum d'elles era ruim. Todos empurravam o labeu da maldade uns contra os outros.

-- Vós não quereis querer que ha bruxas! -- bradava com grave compostura o sr. padre David. -- Continuae vós a fazer das vossas, e vereis o que vos acontece!

Esta ameaça era de sempre. Os pequenos não sabiam o que viria a acontecer-lhes portando-se mal; mas calculavam que era coisa muito grave. Os mestres, aproveitando se da incerteza d'elles sobre a sorte que os esperava, tinham pendurado do tecto uma corda, e espetado ao pé, na parede, um facalhão de meio covado. Um dia tinham chegado a despir o mais brejeirote do rancho, fazendo menção de o quererem atar pelos pés á corda, e dar-lhe ou golpe ou sangria com o tal facalhão.

Fez calafrios esta scena ao condemnado e á camaradagem, Apontar-lhes d'ahi em deante o logar do supplicio, e afiar d'ora em quando o ferro, era o bastante para trazer aquelles traquinas ao dedo.

Olhavam, pois, os rapazes para os instrumentos do castigo, e ficavam mais mortos que vivos, assim que o sr. padre David os ameaçava. Um a um, surrateiramente, de vista baixa, começavam a retirarse d'ao pé de sua reverendissima, que, diga-se, sabia do caso tragico referido, e achava muita graça á crendice dos pequenos, e muita utilidade aos beneficios resultantes d'ella.

Voltava então o sr. padre David a falar aos mestres, e agora á puridade.

-- Tratem-me bem estas pobres creanças. Bem lhes basta, por seu mal, tão novas, andarem já aqui debaixo do jugo do trabalho. Não as maltratem, coitadinhas! E' um peccado imperdoavel bater a estes innocentes. Levem-nos pela palavra, que elles vão. O caso é saberem-n'os levar. Emfim, que uma ou outra vez, n'um caso muito extraordinario, lhe dêem uns açoites... Mas com modo, com caridade. Vejam lá, que os não aleijem!

Geralmente recommendava cuidado com as machinas.

-- Cheguem-se pouco para as garras d'estes monstros. Sacudam d'ao pé d'ellas os pequenos. Ponham os olhos na desgraça do Joaquim Rodeiro, que lá anda por esse mundo de Christo a mendigar, sem braços! Ponham os olhos no que aconteceu ao Bernardo Esteves, ao filhito da Marcella, e a tantos que por ahi estão, uns apodrecendo no cemiterio, outros quasi totalmente inutilisados para o trabalho, aleijados. Sirva lhes de lição esse quadro de miserias. De largo!... Sempre, de largo, ou então com mil cuidados. Lá se prende uma aba da vestia, lá vae um braço, os dedos, as mãos, a vida! Um pequeno descuido basta para succeder uma grande desgraça. Tenham cuidado. Que não venham aqui ganhar o pão, e levem de cá a miseria.

Emfim, boa, santa e preventiva de perigos era a doutrina do sr. padre David. Todos o reconheciam, e todos o escutavam com profunda attenção. Não havia excepções. E que o soubesse Zé Joaquim!... Que o soubesse elle!...

Zé Joaquim, tão amigo, tão respeitador, tão admirador das virtudes de sua reverendissima, passaria por carros e carretas, menos por uma desattenção para com o bom do sacerdote. Por isso é que elle não passaria a ninguem! Aquelle que ouvisse com maus modos o sr. padre David, ou lhe respingasse, havia de se haver comsigo. Tinha um cão á perna!

Pois não era o sr. padre David o mais desvelado e solicito amigo de todos os seus parochianos, do primeiro ao ultimo? Não era com o sr. padre David que elles se encontravam em todos os apuros? Não era sua reverendissima a Providencia dos infelizes?...

Zé Joaquim via, sabia e apreciava devidamente a benefica influencia do estimavel parocho Com ser homem de pouca instrucção, não lhe passavam pela malha as esplendidas qualidades do caracter d'elle. Comprehendia a nobreza d'aquella alma, a importancia da sua acção.

Por isto dizia Zé Joaquim aos operarios, e a todos quantos o queriam ouvir, com uma firmeza de convicções que não deixava admittir duvidas de seriedade:

-- Vós não sabeis de quanto sois devedores ao sr. padre David! Sois uma sucia de tapados que andaes cá por este mundo por vêr andar os mais! Não o sabeis, nunca o heis de saber, senão quando elle vos faltar. Então sim, mas é tarde. Quem é que vos trata quando estaes doentes? Quem é que vos leva os remedios, a gallinha, as ataduras, tudo o que vos faz falta?... Quem é que vos dá os bons conselhos, que é vosso amigo?... Quem é que anda de porta em porta a pedir para vos soccorrer nas vossas afflicções?... Qual é a porta que vós sabeis melhor? é a minha, é a do fidalgo, ou a d'elle? Sois uns tapadinhos! Nem que andasseis de rastos como a cobra pagaveis ao sr. padre David os beneficios que lhe deveis!

Ninguem contradizia. Esta opinião era de todos. Zé Joaquim só a expunha para avivar bem a gratidão devida ao seu amigo. Não era, de maneira nenhuma, porque alguem tivesse o atrevimento de a contestar: era sempre a proposito de algum elogio.

Sempre e só a proposito de elogios, porque não havia uma unica pessoa que tivesse razão de queixa, a mais leve que fosse, do sr. padre David. Para elle todos eram irmãos. Differenças, se as havia, eram a favor dos mais desprezados do mundo e da fortuna.

Pensaes, acaso, que o sr. padre David, á imitação de tantos outros sacerdotes, queimava em cêra e incenso o pão dos famintos? Enganaes-vos! Nos altares do seu templo havia decencia sem luxo. Da arca do azeite das lampadas, muitas vezes sahia o tempero do caldo dos miseraveis. As torcidas das velas andavam sempre baixas, para se não gastar muita cêra.

-- Os desperdicios não são agradáveis a Deus, homem -- dizia elle ao sachristão. -- Toze-me as torcidas d'essas velas. Ponha-as rentes. Se a nossa freguezia fosse rica, bem era que tudo se fizesse á grande. Assim, vamos poupando o mais que se poder. Toze, toze as torcidas...

Não obstante ajudava o sr. padre David ás festas populares, e contribuia quanto possivel para as tornar pomposas. Compravam-se mesmo uns foguetes, chamava-se uma philarmonica, vinham padres de fóra.

-- Não só de pão vive o homem -- pensava elle. -- A alegria dá saude.

Porém, diga-se o ponto da verdade, se o sr. padre David podia forrar alguns cobres da liberalidade dos mordomos e devotos, forrava-os, e de muitos modos.

Sempre sua reverendissima achava meio de furtar uns tostões á voragem do fogo. Pelo ordinario, os mordomos eram roubados. Como elle era o caixa, e o encarregado da administração dos capitaes, lá fazia de sorte que os seus pobres tinham duas festas.

-- Quantas duzias de foguetes quereis vós que venham? -- perguntava elle aos mordomos.

-- Cinco; ou dez, ou doze -- respondiam, que é uma comparação, os interrogados.

Ora se elles votavam que os foguetes fossem dos de seis respostas, o sr. padre David observava que esses nem se ouviam, que era melhor virem dos de nove; e os homens condescendiam, e os foguetes que vinham afinal eram dos de seis respostas.

Aqui já o sr. padre David arranjava uns vintens. Se algum mordomo contava os estoires das bombas, e dava no logro, sua reverendissima allegava por desculpa que havia de ser algum foguete que vinha trocado, ou bombas que não tinham ardido.

-- Quantas vélas e de que pezo, para o throno?...

Era ouvido o sachristão, que sempre ia feito com o sr. padre David n'estes arranjos.

Ficava sua reverendissima incumbido de mandar vir a cêra, e as vélas vinham completas em numero, mas falhas em pezo.

Mais uns vintens para os pobres!

Finalmente, havia sempre extraordinarios. Os padres e os musicos, sob varios pretextos, pediam mais do que a praxe. E esse mais, junto á economia dos foguetes, á receita da cêra, e a alguns outros bicos, sommava um peculiosinho que lá ia applicado pelas prosperidades dos mordomos e subscriptores da festa enxugar muita lagrima, accudir a muitos apuros.

O sr. padre David folgava infinitamente com isto, e dizia então para Deus:

-- Vós, ó justo Senhor, havieis de sentir que em vossa honra se celebrassem festas com desprezo das lagrimas dos infelizes que choram de miseria. Valeu-se tambem a esses infelizes, Senhor! Não resoaram affrontosamente aos ouvidos dos tristes que padecem fome, as alegrias dos remediados que vos exaltaram. Abençoae todos, ó bom e misericordioso Deus!... Fez-se segundo a vossa vontade...

XXIV

Theorias oppostas

Realisaram-se plenamente os calculos de Zé Joaquim acerca das prosperidades do Engenho, advindas pela compra de novas e boas machinas.

Com effeito, mal constou que n'este estabelecimento se estava trabalhando melhor que em qualquer outro, correu para elle numerosa freguezia.

Tudo ia bater áquella porta. Não havia mãos a medir. Os pequenos industriaes, ávidos de fazerem face ás difficuldades da crise, procuravam a todo o transe os meios de chegarem cada um de per si a esse fim. Todos queriam apresentar no mercado fazenda que se avantajasse á dos mais, que tivesse maiores probabilidades de prompta saida, que se recommendasse bem pelo seu acabamento e qualidade.

Era, pois, grande o aperto de obra para fóra no Engenho da Sociedade. Aquelles dos seus proprietarios que fabricavam, alguns porque ainda tinham muitas peças de saragoça em deposito, outros porque se temiam arriscar o bem ganhado nos dias felizes, deixavam livres as machinas ao serviço da clientela adventicia, e davam parabens á fortuna por ella ser tanta, tanta, que de alguma sorte lhes estava compensando os prejuizos da apathia do negocio.

Dizer-se, porém, que esta lufa-lufa tornava pesado o emprego de João, seria faltar á verdade. As obrigações d'elle estavam perfeitamente definidas, e reguladas por modo que da maior ou menor affluencia de freguezia não resultava para si nem augmento nem diminuição apreciavel de trabalho. O seu dever era fiscalisar e lançar aos respectivos livros as contas de receita e despeza. Mais nada. Ora, sabe-se, tanto custa, que é uma hypothese, escrever 20 como escrever 200, e tanto custa verificar se um operario está attento ao serviço da sua machina quando ella obra na proporção de quinze, como quando obra na proporção de trinta. A pensão é a mesma.

D'aqui segue-se que a vida do rapaz era mais presa que trabalhosa. Querendo elle, tendo genio para isso, podia levar o melhor dos dias a dormir. Sobrava-lhe o tempo, e havia cem garantias de regularidade na marcha das coisas. Lá estavam os praticos, os encarregados das secções, para espreitarem quaesquer faltas. Lá estavam esses operarios graduados para responderem por tudo, sob pena de perderem os dois ou três vintens que recebiam de gratificação diaria, e passarem de cavallo a burro. Lá estava, emfim, o João Fiandeiro, um argus matreirão, que parecia ter ainda o dom da ubiquidade. Com elle se haveriam os ralacos!

Mas não lhe propendia o genio para ahi. Distanciava-se muitissimo n'este particular, o filho da tia Ricardina, do maior numero dos seus collegas. Boccado que elle tivesse de seu, era para ler. Ia-lhe passando pelas mãos de fio a pavio a riquissima bibliotheca do fidalgo. Uns dias por outros vizitava o illustre velho, que posto ser um homem intractavel, cheio de fiducias e de rabujices, era amigo dos estudiosos e lettrados, e de lá vinha elle com uma carga de livralhada. Passava uma semana, passava outra, e João não apparecia. Tirado de ser á noitinha, quando regressava a casa, e aos domingos, quando ia á missa, na rua ninguem-lhe punha os olhos em cima. Não largava a leitura.

Queixava-se d'isto a tia Ricardina ao sr. padre David. Queria ella que o filho passeasse, que se divertisse. Não achava aquillo divertimento.

-- Entisica-se, sr. padre David! O João entisica-se se continua n'aquillo. N'o larga os malditos dos livros, Deus me perdoe se pecco! Elle é p'la manhã, elle é á tarde, elle é de noite..., a toda a hora!... n'o larga os livros, meu senhor. As mais das vezes está a comer e a ler. Dá-me uma tal cegueira, isto!... Ah, Senhor!... E d'ahi eu, mais o pae, pedimos-lhe que n'o leia tanto, que se mata. Que elle até traz uma côr de desenterrado, n'o sei se o sr. padre David já reparou!... Mas que monta cançarmo-nos?... Bem a préga frei Thomaz! Prégarmos e n'o pregarmos, é tudo uma e a mesma coisa. Elle adiante de nós, emfim, lá tem mão em si; mas assim que nós voltamos costas... livro te valha!... esquece-se da nossa pregação.

Estas allegações da pobre mãe levaram um dia o sr. padre David á fabrica disposto a ralhar.

Tambem elle não approvava tão aturada leitura. O rapaz não andava magro, nem descorado, como a mãe dizia, mas ia dando n'uma voluntaria isolação e n'uma falta de sociabilidade que o podiam arrastar á misanthropia.

Aconteceu il-o encontrar sua reverendissima no escriptorio estiraçado sobre uns costaes de pannos, e olhos ferrados em não sei que volume massudo. Não foram, por conseguinte, necessarios rodeios.

-- Sempre a ler, homem! Sempre a ler! -- exclamou o sr. padre David -- Pouco mais fazes que ler e reler. Isso não tem geito! Deve-te fazer mal!

-- Mal, sim!?... Mal me faria a mim estar para aqui sem ter com que me distrahir. N'alguma coisa se ha de passar o tempo, sr. padre David.

-- Ora adeus, adeus, meu amigo! Tudo tem horas. Tudo o que é de mais faz mal.

-- D'accordo. Mas...

-- Passeia por essa casa, conversa com essa gente -- atalhou o sr. padre David -- Tens muito em que distrair-te.

Aos labios de João aflorou um sorriso triste.

-- Aconselha-me então a que ande sempre de volta das machinas?... a que não perca nem um momento de vista os operários?. . . Seria inútil um tal trabalho, sr. padre David. Absolutamente inutil a todos os respeitos! Os operarios, coitados, não podem mandrear. As exigencias das machinas e a vigilancia dos encarregados, não lhes permittem um instante de folga. A minha constante permanencia ao pé d'elles havia de os incommodar e ser-me prejudicial a mim. Começariam todos a vêr-me com maus olhos, a considerar-me um inimigo. O trabalho não correria melhor, nem seria mais abundante. Todos teem as suas empreitadas marcadas.

-- Homem de Deus! -- exclamou o sr. padre David -- Mas não te digo que opprimas os operarios, que os molestes! Digo-te que converses com elles, que dês uma certa folga ao espirito, que te distraias, emfim.

-- Ora ahi está! Diz me, em conclusão, que me distraí-a!

-- Claro -- affirmou sua reverendissima.

-- E diz-me que me distraia, de que maneira? Passeando por essa casa fora, conversando com os operarios... Boa distracção, na verdade!

O sr. padre David ficou muito admirado d'estes dizeres e respectivos gestos do rapaz.

João fechou a porta do escriptorio, e voltando-se para sua reverendissima, que se conservava attonito, um pouco magoado pela ironia que resumava das palavras do seu interlocutor, disse á queima roupa:

-- Quer crer, sr. padre David, que eu me entrego á leitura principalmente para não pensar nos operarios?... Pois é certo: procuro n'ella o esquecimento da tristissima situação d'estes desgraçados. Se olho para elles, fatalmente medito na sua grande e deploravel miseria. Trabalham do nascer ao pôr do sol, trabalham constantemente, e não têem que vestir, não teem que comer, não teem nada. Vivem incomparavelmente mais abandonados que as proprias machinas, mais opprimidos que se fossem escravos. Andam ahi rotos, famintos, a cahir da bocca da morte. Nasceram homens, e os homens fizeram d'elles machinas. Não teem vontade propria, não teem liberdade, não têem esperança nenhuma de redempção... Compunge-me vêl-os, mortifica-me pensar n'elles!

-- E' triste espectaculo, é -- murmurou já d'outro semblante o sr. padre David.

-- Sabe o que eu queria poder dizer a estes infelizes? -- exclamou João começando a aquecer, a deixar-se apaixonar pela causa que se debatia. -- Insurgi-vos! Abandonae o trabalho! Aqui sois roubados, sois explorados ignobilmente. Vivei roubando tambem. Em ultimo caso, ide para essas estradas. A sociedade ha de vos condemnar como malfeitores: respondei á sociedade que ella, roubando-vos primeiro, vos ensinou o caminho da deshonra. Respondei á sociedade que é d'ella, e não vossa, a culpa dos vossos desvarios. Ide para as estradas, que, se os homens vos condemnarem. Deus ha-de-vos absolver, porque é justiceiro. Ide roubar! Que importa ser ou não ser honesto entre uma sociedade egoista?!... Espera-vos uma cadeia? Lá, ao menos, tereis de comer em socego. Espera-vos uma bala? Paciencia: aqui esperam-vos as engrenagens. Antes morrer d'um tiro, do que morrer triturado. Ha vantagens n'essa vida aventureira de salteador. Dormireis em covis, debaixo de lapas, entre matagaes, ao ar livre, no meio d'esses campos? Aqui dormis n'outra especie de cavernas, n'uns pardieiros infectos, mais humidos que masmorras subterraneas, tristes como sepulturas. Tereis dias de fome, dias de infernal amargura? E aqui?!... Sereis perseguidos monteados?... Igualmente o sois aqui!

Sua reverendissima ouvia espantado estas theorias ultra-socialistas.

-- João, que tolhes o teu futuro! -- exclamou o sr. padre David-- João, que estás peccando!... Cala-te, homem. E' muito estimavel o teu sentimento de compaixão pelos infelizes, mas são muito erradas, muito condemnaveis, as tuas doutrinas.

-- Não me parece -- murmurou João.

-- São erradissimas, detestaveis, que t'o digo eu! -- affirmou o sr. padre David -- A religião mandanos soffrer resignadamente os nossos infortunios. Ha depois da vida transitoria uma outra vida, que é eterna, e na qual são devidamente premiadas ou castigadas as nossas acções no mundo. São erradissimas as tuas theorias, João, repito! Deus não perdoaria ao homem que á mão armada, por violencia, quizesse comparar-se aos outros homens. Tormentos e felicidades de sua mão nos veem para nos provarem o animo. Depois, o homem que se lançasse n'esse caminho, peccaria cem vezes. Quantos innocentes não são victimas directas e indirectas da cegueira d'um malfeitor? Quantos odios, quantas calamidades se não accendem entre vizinhos e parentes, entre povo e auctoridade? Cala-te, João. Desgosta-me o teu pensar. O homem não tem o direito de conspirar contra as determinações de Deus. Bemaventurados os que padecem fome e sede de justiça, porque elles serão consolados no céo! Adoça quanto puderes a desgraça de toda essa gente que tens debaixo do teu governo, e não lhe caves o abysmo da maior das desventuras, que é a desesperança, o destemor de Deus. Ensina-lhe a doutrina, avigora-lhe a sua fé, e aprende com elles a soffrer e a ser paciente. Atira para longe esses livros em que tal peçonha vaes bebendo! Vale mais a ignorancia com fé, que a sabedoria com descrença. A descrença é a morte, a fé a vida. Tem-me sempre isto presente ao espirito.

João ouviu respeitosamente este discurso. Teve, por vezes, tentações de cortar a palavra ao sr. padre David, mas susteve-se. Seria affligil-o. O melhor era não o contradizer.

E' de notar, comtudo, que o rapaz, á maneira que o sr. padre David ia falando, inclinava-se a favor das theorias d'elle em prejuizo das suas, que afinal eram inconscientemente impias, diga-se a verdade.

O rapaz, muito novo, muito phantasista, de coração generoso, tinha-se deixado arrebatar por umas idéas que agora, depois de refutadas ellas, se lhe mostravam pronunciadamente subversivas da boa ordem e da boa doutrina.

O sr. padre David observou com infinito prazer este reviramento de opinião, ou, melhor dizendo, esta contricção do rapaz.

Era o bom do padre assaz esperto para não devassar o que se passava na alma d'elle só pelo exame do seu semblante. Não lhe passaram desapercebidas as impaciencias de João no principio da sua catechese. Tambem lhe não passou pela malha a sua inteira submissão por ultimo.

XXV

O cirurgião

Ainda o sr. padre David estava á porta do Engenho a despedir-se de João, ouviram-se, vindos lá do primeiro andar, gritos afflictivos, dolorosos; e, logo apoz, uma vozearia que mais se notava porque tinham sido repentinamente paradas as machinas.

-- Que foi?... que aconteceu? -- bradavam subindo a duas e duas as escadas o sr. padre David e João, qual d'elles mais falto de côr, mais enfiado.

Ora que havia de sêr?... uma desgraça! Estava um pequenito com dois dedos britados, e umas fortes contusões pelo corpo. Havia minutos, o sr. padre David tinha parado ali, como de costume, a recommendar cuidados. Pois só pelo diabo! Elle voltou costas, dois gaiatos pozeram-se de brincadeira, e um d'elles, fugindo do outro, tinha ido cair com a mão direita n'uma ratoeira fatal, onde em breve espaço de tempo seria todo machucado, se por fortuna não está lá um homem que lhe deita immediatamente a mão, e cheio de coragem, arriscandose a si proprio, o não arranca d'aquelle precipicio.

Cortava a alma ouvir a misera creança, coitadita! Atirava gritos que faziam estremecer o coração.

-- Vamos!... tragam-me este desgraçado ao escriptorio -- disse o sr. padre David depois de examinar a gravidade dos ferimentos -- Podia ser bem mais! bem mais!

-- Foi muito feliz! -- exclamavam sem pinta de sangue os operarios erguendo mãos ao céo.

Dois ou três d'elles, testemunhas presenceaes d'aquelle desastre, narravam como o sinistro se dera, e apontavam á veneração publica o salvador do rapaz.

Era um tal Roque, homem de muito sangue frio, e que já tinha, com esta, disputado tres victimas ás garras da morte.

-- Este tamem deve a vida 'ó Roque! -- diziam elles -- Se n'o é o Roque estar ali 'ó pé da cardadeira, lançar-lhe logo as mãos, e safal-o, agora estava elle todo feito n'uma bóla.

O nome do Roque passava de bocca em bocca entre bençãos e louvores.

Entretanto preparavam-se fios e mais arranjos para o curativo.

-- Ligaduras, ha 'hi? -- perguntou o sr. padre David.

Não havia.

-- Nem panno de que ellas se façam? Vê lá, João...

João deu mil voltas ás gavetas e logares onde costumavam estar estes apparelhos de cirurgia. Não achou: não havia.

-- Nem um palmo d'elle!-- disse o rapaz -- Há só alcool, arnica e vinagre.

-- Ah! não tem duvida -- respondeu tranquillamente o sr. padre David -- Agora me lembro que tenho eu aqui bello panno.

E acto continuo retirou se sua reverendissima para um canto escuso, onde, supposeram todos, teria algum deposito escondido, e uma vez ahi desapertou as calças, puxou a camisa para fóra, e rasgou-lhe a fralda pela cintura.

-- Louvado Deus! -- exclamou elle-- E' magnifico linho... A Providencia é grande!

Feito e dito isto lá entre si, tornou o sr. padre David a petrechar-se, abotoou a batina e regressou á sala.

-- Cá está o panno. Agora façam-n'o ahi em tiras de tres a quatro dedos de largura, tiradas a todo o cumprimento.

Esfrangalhou-se a fralda da camisa. O sr. padre David tirou do bolso um pequeno estojo, e preparou-se para operar o rapaz.

-- Segurem-m'o bem -- disse elle para dois homens -- Deixem-o gritar á vontade. Mas vejam lá não o magoem!? Com geito, com caridade...

Os dedos esmagados eram o annular e o mendinho. Tinham as ultimas das phalanges britadas: as phalanginha, e phalangeta.

Pegou sua reverendissima do escalpello e cortou peritamente. Depois cauterisou. O rapaz nem por isso berrava mais. A insensibilidade causada pelo entalão era muita n'aquelle braço. As maiores dôres haviam de vir mais tarde.

O sr. padre Dnvid, como medico, naturalmente sabia isto. Operou, pois, sem aquelles cuidados com que em diverso caso operaria. Foi rapido e desembaraçado quanto possivel.

Consummada a amputação, e cauterisada e pensada convenientemente a ferida, entrapou sua reverendissima a mão do rapaz, applicou-lhe parches d'alcool camphorado sobre as contusões, e pediu que por caridade o levassem a casa ao collo.

Pegou da creança um d'aquelles mais alentados operarios, e foi caminho fora, leval-o á mãe, que vinha a ser a estalajadeira que teve debaixo de suas telhas o sr. Garik.

A mulher ia cahindo fulminada quando viu o filho em braços, cadaverico, desmaiado. Cuidou que o rapaz lhe vinha agonisante: rompeu n'uns alaridos que faziam arripios. O homem d'ella parecia parvo; chorava que nem vides retalhadas: chamava-se desgraçado. Toda a visinhança ali accudiu alvorotada.

-- Ora vá, va, não gritem! -- disse-lhes o sr. padre David, que vinha no encalço do pequeno, já prevendo estas scenas lancinantes -- Não gritem, que não é caso para isso. São meia duzias de dias. Podia ser muito mais!

-- Muito mais! muito mais! -- confirmava o portador da creança -- N'o foi nada, p'r'o que poderia ser. Se n'o é o Roque salval-o, estava a esta hora c'os anjinhos.

-- Mas o que foi ?... como foi? -- perguntavam todos os adventicios.

O homem ia explicando, satisfazendo a curiosidade d'uns e outros. Historiava o sinistro. A todos falava no Roque: o nome do Roque resoava por toda a parte.

Ao mesmo tempo convencia o sr. padre David a estalajadeira e o homem de que eram ligeiros os ferimentos da creança. Consolava-os, animava-os, dizia-lhe coisas tranquilisadoras.

Foram assim correndo as horas, e á noite appareceu o Roque, ao qual, bem como ao individuo que lhe tinha trazido o filho, o taverneiro, já recuperado do maior susto, deu vinho sem medida.

-- Bebende, rapazes? -- clamava elle -- Bebende ahi até lhe chegar c'o dedo!

Este rasgo de generosidade era correspondido com novas saudes dos obsequiados, e do povoleu que se juntava.

Todos bebiam. O mesmo taverneiro já não sabia de si. Eram copos cheios, copos esvasiados.

Sem embargo terminou muito bem este regalorio. Por volta das dez horas estavam todos os convivas nas suas camas, esquentados da cabeça, mas tranquillos da consciencia, a dormirem como justos.

Dormiam, emfim, em santa paz, todos os personagens do triste drama do Engenho. Todos, á excepção do filho da tia Ricardina e do sr. padre David; o primeiro porque se tinha deixado mergulhar na penosa meditação de tragedias sinistras: o segundo porque não sabia como remedear o estrago da camisa.

Mas não que sua reverendissima chorasse o prejuizo, ou não tivesse mais camizas! Louvado Deus! tantas e tão boas as tivessem todos os homens, e com igual abnegação repartissem das suas, os que as possuem, por aquelles que as necessitam! Era outro o caso. As roupas brancas lá por casa do sr. padre David andavam ás sete chaves. Elle tinha que dar contas d'aquelle estrago. As tias e cunhadas de sua reverendissima eram muito boas senhoras, muito caridosas, muito amigas de bem fazer, mas tambem muito avaras do thesouro das suas teas. Ellas fiavam, e o sr. padre David punha-lhes o seu fiado por pareder. Isto mortificava-as, affligia-as! Hoje uma camisa, ámanhã um lençol, o bom do homem dava tudo!... Eram precisos cem olhos com elle. Um bello dia, abriram ellas os seus bahus, e acharam-n'os pouco menos de vazios. Aquillo era uma preciosa mina para o sr. padre David. Aquellas rouparias ali amontoadas, quando tanta gente andava nua, quando tanto enfermo jazia sobre palhas, cegavam-n'o. A's escondidas ia repartindo pelos pobres consoante as necessidades. Emquanto lhe não descobriram o sequestro, foi uma abençoada farturinha!

Eis a historia: eis porque o sr. padre David estava atrapalhado. Como havia elle de arranjar uma camiza? Que desculpa havia de dar da destruição da que trazia?...

O homem suava. Ouvir um sermão, era o menos. O que sua reverendissima não queria era que as senhoras se affligissem. Foi pois pedir valimento á mais tolerante d'ellas.

-- Aconteceu-me um desastre, mana: rasgou-se-me a camisa -- disse elle humildemente.

-- Rasgou-se-lhe a camisa?!... E é por isso que vem afflicto? Não tem duvida, compõe-se -- respondeu-lhe a bondosa senhora.

-- Pois sim, mas... eu não queria que as tias soubessem d'isto. Affligem-se! -- accrescentou o sr. padre David.

Que as senhoras ralhavam por actos d'estes. Com muita delicadeza, com muito bonitas maneiras, por muito boas palavras, sim, mas ralhavam-lhe, bem que lá no mais intimo da sua alma ellas o adorassem por estas mesmas prodigalidades.

D'ahi a boccado estava o sr. padre David em casa da estalajadeira a ver-lhe o filho.

Tinha-lhe sobrevindo uma ponta de febre. Não era, porém, accesso, este, que suscitasse cuidados maiores. Passaria brevemente.

Affirmou isto o sr. padre David ao paes do enfermo, e a João, com quem se lá encontrou.

Quanto ao mais não havia novidade. O apparelho da mão estava segurissimo: as contusões continuavam a ser devidamente medicadas. O braço achava-se muitissimo maguado, mas sem lesão grave, como a principio se presumiu. Era tudo coisa de pouco.

Cá fóra, na rua, disse João ao sr. padre David:

-- A' noitinha, depois de fechar o Engenho, estará vossa senhoria em casa?

-- Devo estar. Que queres?

-- Desejo falar-lhe.

-- Homem, estou ás tuas ordens.

-- Pois sim, mas agora não me posso eu demorar. O que lhe quero é para conversa de pachorra. Vou para o Engenho, que posso por lá estar fazendo falta, e logo nos avistaremos. Até logo, sr. padre David.

Sua reverendissima deixou ir o rapaz, e ficou fazendo conjecturas sobre o motivo da entrevista que elle lhe pedia.

-- Que me quererá elle?...

XXVI

Uma ordem

Foi chegando-se a noite, e com ella a maior impaciencia do sr. padre David por saber o que João lhe queria.

Havia mysterio declarado na cara do rapaz. Aquelles seus modos e dizeres pedindo uma entrevista, tinham muito que se lhe dissesse. Sua reverendissima perdia-se em conjecturas.

Appareceu emfim João a satisfazer-lhe a curiosidade que o incommodava. Os seus presentimentos não eram agradaveis.

-- Sinto-me profundamente contrariado no Engenho -- disse elle -- Estou lá como quem está pelas orelhas. Não sou homem para aquella vida, para o meu emprego. Se vossa senhoria m'o permitte, despeço me. Resolvi isto de mim commigo. O estabelecimento nada perde com a minha sahida, e eu alguma coisa lucrarei.

Esta revelação, quasi abrupta, deixou o snr. padre David mais que muito admirado; espantado, que é o termo que melhor explica a situação.

-- Essa agora!... Essa agora! -- exclamou pausadamente o snr. padre David -- E porquê, João?... Porque é que tu te queres despedir do Engenho?...

João pareceu hesitar.

-- Fala, João! -- ordenou sua reverendissima com solemne accento -- Fala! Similhante resolução deve de ter por base uma causa muito forte. Eu quero saber qual essa causa é. Alguém te maltratou no Engenho?... Alguem te desconsiderou por lá?... Fala, João!

-- Ninguem me desconsiderou; ninguem me desconsiderou, snr. padre David. Só devo reconhecimento a toda aquella gente.

-- Então porque é que tu lá estás contrariado?...

-- E' porque não tenho genio de encarar a sangue frio o triste espectaculo que naturalmente se representa no espirito á simples vista da miseria dos operarios. Só por isto. Ninguem me tem desconsiderado, ninguem me tem maltratado. Pelo contrario.

Nasceu uma alma nova ao snr. padre David.

-- Grande e generoso coração o teu, rapaz! -- exclamou o sr. pade David -- Afflige-te a desgraça do teu semelhante, choras com elle as suas desventuras. Mas que has de tu fazer, sahindo do Engenho?

-- Ainda não pensei.

-- E' tão amargurada a vida!... Custa tanto a ganhar o sustento á custa da mortificação do corpo!... Que ha de ser de ti, João?...

-- O que Deus quizer! Trabalharei.

-- Trabalharás!... Trabalharás, sim, bem sei. E's homem de honra e de brios, e tanto basta para que tu não fujas ao trabalho, qualquer que elle seja. Irás arrotear os campos, cavarás a terra, regarás a semente com o suor do teu rosto, e á noite voltarás ao teu lar morto de fadiga, mas folgado de espirito. Despontará um dia novo, e tu recomeçarás a dura faina da vespera. Mas o futuro?... o futuro, João?... os teus sonhos, as tuas ambições?...

Houve uma pausa. Esta invocação do futuro, sonhos e ambições, produziu sombras na physionomia do rapaz.

-- Olha, João -- tornou o snr. padre David -- Vou dar-te um conselho. Sustenta-te no Engenho por mais algum tempo.

-- Para quê, snr. padre David?... para presencear mais algum drama como o de hontem, ou peior ainda?... Levei toda a noite a ver espectros e a ouvir gritos. Estou doente. Ando doente. Se continuo no Engenho, morro cedo. O meu emprego é com effeito muito bom. Cinco tostões por dia n'uma aldeia, são um bello ordenado. O trabalho é pouco, e tão pouco, que a ociosidade chega a ser impertinente ali. A auctoridade do logar é muita, e tanta que um feitor pode-se considerar um rei pequeno. Tudo e todos estão mais ou menos na dependencia do feitor. Pensei, meditei tudo isto. Entretanto resolvi pedir licença para deixar o emprego.

-- Terminantemente? -- perguntou com certa resolução o snr. padre David.

-- Terminantemente -- respondeu João.

-- Mas disseste-me já que vinhas pedir-me licença para realisar o teu projecto: e se eu t'a negar?... -- perguntou com manifesta impaciencia o sr. padre David.

-- Decerto será porque vossa senhoria desattende as minhas razões em face d'outras mais fortes, que eu não vi, nem vejo; e n'este caso submetter-me-hei -- respondeu João -- E' o meu dever.

-- Pois denego-te redondamente a licença que me vens pedir! -- disse com decidida resolução o snr. padre David -- As razões que tu allegas para dar esse passo, estão prejudicadas por outras mais fortes. Sahindo tu hoje do Engenho, prompto virá occupar o logar que deixas, e que se creou para ti, um homem qualquer, um desconhecido. Esses pobres operarios que tu lamentas, vão assim ficar á mercê d'um genio caprichoso, d'um despota, talvez. Tu saes por amor d'elles, e elles ficarão oppressos por tua causa. Em ti teem um amigo; em quem quer que venha substituir-te terão um senhor. Tu foges-lhes por egoismo, elles ficam desamparados por descaridade. Denego-te a licença. Mais! Ordeno te em nome de Deus que não desampares aquelles infelizes. E's preciso no Engenho.

-- Visto que assim o quer...

-- Quero -- atalhou de prompto o sr. padre David -- Quero, sim, que tu continues a estar no Engenho. Quero que tu encares as coisas como ellas são, e não como apparentam ser. O teu desanimo, encarado á luz da religião, é uma cobardia imperdoavel. Impressionou-te a desgraça d'hontem? Aterrate a previsão de outra maior? Prova isso que tens um bello coração, mas não te póde servir de bom pretexto para desertares. Tu és um homem, e um homem, n'este mundo, é antes de tudo um soldado do Senhor. O combatente que recua e foge porque viu cair varados de balas os camaradas da fileira, é traidor á sua causa, é desleal aos seus amigos, ao seu rei, a Deus. Ficarás, continuarás no Engenho.

João não replicou.

- Alguem sabe das tuas tenções? Communicaste-as a alguma pessoa? -- tornou o bom do padre.

-- A ninguem, sr. padre David.

-- Tanto melhor. Ainda bem. O Zé Joaquim, se de tal soubesse, havia de ficar muito desgostoso, porque é teu amigo a valer. A outra gente chamar-te-ia doido.

-- Era o mesmo,... que me chamasse doido...

-- Não era tal o mesmo! -- contraveiu o sr. padre David -- Não digas coisas que não sentes.

-- Pouco me prejudicaria o dito.

-- Conforme. Depois, deixa-me te dizer, atraz de tempos, tempos veem. Entretanto vaes ganhando aquelles cinco tostões por dia e acreditando-te, elevando-te aos olhos de certa gente. Quando um dia se te depare emprego melhor, ou que, emfim, possas passar sem o que tens, não te direi que o não largues. Por ora não consinto. Espera. Não contes a ninguem o que se passou entre nós. Tua mãe daria em louca se tu levasses por diante o teu proposito.

-- Tambem pensei n'isso.

-- E d'ahi?... nem ao menos essa idêa, esse pezadello, te desvirou a opinião?

-- Havia de lhe dispôr o animo.

-- Havias de lhe dispôr bem o animo, não tem duvida! Ella que agora tem remoçado vinte annos por te vêr n'um logar decente, ao abrigo de calamidades, de gravata ao pescoço, envelheceria n'uma hora se te visse na tua antiga situação. Coitada!

-- E' muito minha amiga, é, sim, sr. padre David. Chego mesmo a ter pezar de ver que ella, que ainda assim é amicissima de meu irmão, não usa para com elle de tantas bondades como para commigo.

-- Pois ahi tens. Vê lá o quanto tu lhe deves... E teu pae? e o mesmo Manuel!?... Que desgosto não seria para esses teus dois amigos, tão dedicados por ti como elles são, se desses o passo de sair do Engenho?!... Homem, tu não pensaste o que resolvias.

-- A' vista do que vossa senhoria me vae dizendo...

-- Não pensaste, não -- concluiu o sr. padre David.

-- Acredito; acredito que não.

-- Ora pois, muito bem! Felizmente que Deus te mandou vir cá ter comigo. Vae-te para casa. Toma-me juizo. Olha pelos operarios como por familia. Quanto á leitura, já te disse; tudo o que é de mais faz mal. Lê, educa o espirito, mas tem-me cuidado com a ordem dos livros em que pégas. E' muito facil apanhar-se uma doença só por se trazerem nas mãos livros que teem andado pelas de certos enfermos. Cuidadinho!

João despediu-se e recolheu a casa muitissimo mais satisfeito do que de lá tinha saido pela manhã.

Pela manhã tudo eram desalentos, agora tudo eram esperanças. Das replicas e contra-replicas, conselhos e argumentos do sr. padre David, algumas palavras, e mesmo phrases completas, elle tinha especialmente guardado na memoria, como coisa de maior valor, para de seu vagar as dispôr em ordem e tirar-lhes a moralidade.

Fez isto assim que se viu só, e traduziu livremente: O sr. padre David entende que eu poderei casar com Amalia; que o pae d'ella não me fará opposição.

-- Oh, se assim fosse! -- monologava então o rapaz. -- Se eu chegasse a casar! Se as minhas esperanças se realisassem.... ah! como eu seria feliz!...

E monologando, sonhando nos seus amores, cerrou os olhos e adormeceu.

Que delicioso somno!

Ja nem espectros, nem gritos, o atormentavam. Iam longe as visões sinistras da outra noite. Não vinham agora abeirar-se do seu leito, não, esses vultos sombrios, victimas da miseria e do trabalho, que então contemplou. Não echoavam no ambito da sua alcova as vozes plangentes dos desgraçados que choram de fome e dôr. Fadas amigas o velavam. Era sereno o seu dormir, formosa a sua miragem. Apparecia-lhe entre roseiras a elegante figura da sua amada: elle sorria para ella, e ella sorria para elle. Anjos e homens invejavam tanta felicidade. Revertiam se em pomares os matagaes, em torrentes de prata liquida os arroios, em serras d'oiro as searas crespas, em cornocopia o sol, em jardins a terra.

Era formosa a sua miragem.

Accordando, não se desvaneceu o sonho ennebriante do rapaz. A manhã vinha rompendo n'uma abundancia de colorido proprio a dar volume ao seu phantastico devanear. Correu á janella e viu tudo retincto das meias tintas que o astro-rei esparge ao longo dos mundos que passam em reverencia debaixo do seu eixo. As arestas dos montes pareciam de ouro, as planicies vastos jardins onde a luz punha reflexos opalinos. Purpurados eram os horisontes, limpido o céo. Nos salgueiraes, nas moitas, pelas balsas, cantava alegre a passarinhada desperta.

Vestiu-se prestamente o rapaz, e foi dar o bom dia á sua querida Amalia. Ella devia já lá estar a esperal-o no seu miradouro. Trepou a um outeiro, e olhou para lá. Espcrou-a com anceio, com impaciencia. Não despregava os olhos da janella do seu quarto. Subitamente essa janella abriu-se, e Amalia surgiu lá, cabellos soltos, olhos ávidos, procurando nos logares costumados o vulto do seu amado.

-- Eil-o! -- murmurou ella avistando-o.

-- Ella! -- murmurou o rapaz machinalmente.

E ali, sosinho, o olhar attentamente fito no miradouro, accordado, muito accordado, outra vez recomeçou o seu encantador sonho da noite. Falava para os anjos, falava para as aves, para a natureza muda e bruta, e a natureza muda e bruta falava-lhe a si eloquentemente.

-- Fomos nada -- diziam-lhe os montes -- e hoje somos o que vês, mercê da vontade do bom Deus.

-- Fomos nada -- diziam-lhe as arvores seculares -- e hoje somos o que vês, gigantes.

-- Espera -- dizia-lhe a natureza inteira. -- Tem fé. Tudo leva seu tempo a fazer-se.

E as plantas diziam-lhe que tinham sido mesquinha semente, e os fructos que tinham sido pereciveis flôres.

Oh! a linguagem da natureza bruta e muda!...

XXVII

A alma de Zé Joaquim

Vinha uma tarde o sr. padre David a caminho da aldeia, d'onde tinha sahido em passeio por aquellas veigas ao largo, e viu a distancia o seu amigo Zé Joaquim.

Era homem, este, que elle havia já uns oito dias não avistava. As ceifas, malhas, e vários outros serviços agricolas proprios da estação corrente, traziam-no arredio. No povoado pouca gente o lobrigava. Ante-manhã partia para o campo, e de lá recolhia quasi sempre noite fechada.

Saudou-o, pois, sua reverendissima com um agrado extraordinario.

-- Ora viva, viva!... Muito bem apparecido!... Já não ha quem o veja! Viva!...

A estas festas correspondeu Zé Joaquim prazenteira e cordealmente.

-- Pois é vossa senhoria?!... Tem graça! Ora bem dizem elles; pensae no mau...

-- Então por onde tem andado?... que é feito?... que ha de novo?... conte.

-- Que lhe conte o que ha de novo?! -- bradou Zé Joaquim com ares ponderosos -- Temos uma grande novidade!

Tomou o sr. padre David o dito a rir.

-- Faço idéa!

-- Temos. Vae ouvir e pasmar -- affirmou Zé Joaquim pondo-se no serio.

-- Talvez, talvez...

-- Tão certo!...

-- Diga lá então, vá...

-- A ver se vossa senhoria ad'vinha?! -- exclamou Zé Joaquim ferrando ao largo a ponteira do seu varapau, e ficando-se em attitude expectante. -- A vêr!?...

O sr. padre David olhou meio desconfiado para o homem.

Estes preliminares, um tanto graves, um tanto comicos, mais lhe fizeram cuidar que Zé Joaquim estava brincando.

-- Oh! se eu advinhasse!...

-- Não ad'vinha?...

-- Isso sim!

-- Pois n'esse caso vou-lh'o dizer. Saberá que o patife do João tem-me andado a fazer o ninho atraz da orelha! -- disse Zé Joaquim aprumando-se. -- Arrasta-me a aza a rapariga, que é mesmo um desaforo. E digo-lhe que a coisa vae adiantada!

O sr. padre David olhou para o lado, viu uma pedra alli á borda do caminho, e sentou-se.

Começaram-lhe a tremer e a faltar as pernas de modo, que se tão depressa não toma aquelle expediente, cahia redondo ao chão.

Por esta é que elle não esperava! Para uma tal surpreza é que elle se não achava preparado!

-- Hein!?... que lhe parece?... que me diz a isto?... -- ia-lhe perguntando Zé Joaquim.

Sua reverendissima não atinava que lhe dissesse. Era um tal azuratamento d'ouvidos!... um tal desfallecer d'animo!...

Casualmente se lhe soltou dos labios a exclamação consagrada ás coisas extraordinarias.

-- Ora essa!...

-- E' como lhe canto.

-- Ora essa, essa!...

-- Tamem eu m'admirei. Tamem eu cahi das nuvens, como o outro que diz.

-- Como sabe isso, Zé Joaquim?... Quem lh'o disse?... -- afoitou-se a perguntar o sr. padre David.

-- Ah! duvida? Não duvide, qu'é certo, -- apressou se Zé Joaquim em affirmar. -- Sei-o de boa fonte. Foi o mesmo João que m'o disse.

Aqui o espanto do bom do padre subiu de ponto.

-- Pois o demonio do rapaz, sem me consultar, sem mais nem menos... Temos trapalhada! -- pensou e disse entre si o sr. padre David, que principiava a reanimar-se, a discorrer.

-- Essa é boa!... o João?! Foi o João que lh'o disse, Zé Joaquim?!... -- murmurou sua reverendissima com um certo sorriso de incredulidade, explorando.

-- Olé! elle mesmo. E' que não m'o mandou dizer, que m'o disse elle mesmo.

-- Como assim?!... o mesmo João?!... E' lá possivel!? Está a mangar commigo, homem.

Não podia sua reverendissima acreditar em tal.

Zé Joaquim, sempre sorrindo, sempre inalteravel, quiz desvanecer as duvidas de sua reverendissima.

-- Então não querem lá ver?!... o sr. padre David a duvidar do que eu lhe digo?! Palavra!

Houve um momento de silencio. O sr. padre David não desfitava Zé Joaquim, e este quasi lhe não podia supportar o olhar. Dava-lhe vontade de se rir vendo a cara apatetada de sua reverendissima.

-- Palavra! -- repetiu Zé Joaquim solemnemente.

-- E' boa! Gonte-me essa historia, Zé Joaquim. Conte-me toda essa historia -- pediu erguendo-se tremulo e nervoso o sr. padre David.

Zé Joaquim estranhou sobremaneira esta perturbação de sua reverendissima, e não se teve que assim o não declarasse, bem que d'um modo acanhado.

-- Mas que é?... Parece que o sr. prior está incommodado com o caso?...

-- Que quer que lhe eu diga? Estou, é verdade. Estou incommodado com o caso -- respondeu sua reverendissima lisamente.

-- Homem!... pois n'o vejo eu que haja motivo p'r'afflicções -- replicou candidamente o pae de Amalia, um pouco intrigado. -- Essa é boa!... N'o vejo, palavra.

De subito, porem, annuveou se-lhe a fronte. Morderam-n'o atrozes suspeitas, que logo denunciou.

-- Ou o sr. padre David entende que o João não será marido que sirva á minha filha? bom rapaz?... capaz de a estimar?... Pois se assim é... emfim... se o sr. padre David entende que o rapaz não é digno da minha filha,... se sabe d'algum podre d'elle,... eu mereço que m'o diga, que seja franco commigo.

N'este momento já o suor, mas um suor frio, innundava o rosto do honrado lavrador.

O sr. padre David sentiu-se vivamente estimulado por estas falas. A verdade começou a manifestar-se-lhe. O seu desanimo dera logar a um triste incidente. A probidade de João estava sendo posta em duvida. Era mister atalhar de prompto maiores irreverencias.

Ainda, pois, a ultima palavra do commentario de Zé Joaquim não tinha acabado de soar, já a primeira da resposta de sua reverendissima vibravasonora.

-- Não, Zé Joaquim!... Não! Não sei que o rapaz tenha nenhum pôdre. Entendo e entendi sempre que elle é digno da estima e da consideração de toda a gente. E tanto assim é, tanto isto que eu lhe digo é exacto, que ha já uns poucos de mezes que eu sei que elle namora Amalia, e nunca lh'o revelei a si. Pois se n'outra conta eu o tivesse, por honra, por dever, por boa lealdade, immediatamente o tinha avisado d'isto, Zé Joaquim.

O pae d'Amalia ficou de bocca aberta, nem incredulo, nem confiado.

-- A'gora!? Pois o João e a minha Amalia...

-- Namoram-se, que eu saiba, ha bem cinco mezes e meio -- disse com firmeza o sr. padre David.

Zé Joaquim desatou a rir-se.

-- Que me diz?! Eu perco-me de riso!

Contou o sr. padre David como houvera conhecimento d'este successo.

A meio da narrativa começou Zé Joaquim á paulada nas carrasqueiras que serviam de sebe ao caminho, e cego de riso, mais que nunca, a bradar que tambem como sua reverendissima soubera do namoro.

Nasceu uma alma nova ao bom do padre. Esta alegria era de bom agoiro. A principio entendera elle que Zé Joaquim estava irado contra João. E' verdade que elle se mostrava bem assomado, mesmo risonho, mas é verdade, tambem, que elle tinha tratado de patife o rapaz. Na cara nem sempre se transluz o que vae na alma. Aquelles sorrisos e risos podiam ser dos falsos, dos que prenunciam grandes tempestades. O modo como Zé Joaquim abrira conversa dispoz o espirito de sua reverendissima para encarar tudo pelo peor. Agora é que as nevoas começavam a desfazer-se, a verdade a refulgir.

Ao mesmo tempo acabavam de se dissipar as ruins apprehensões do Zé Joaquim.

-- Agora é que eu estou percebendo a intriga! -- bradava elle -- Agora é que eu começo a entender a meada. Vossa senhoria cuidou que deveras o João me tinha falado?!...

-- Pois não me deu a sua palavra que sim?...

-- Não: alto! - bradou formal Zé Joaquim -- Eu disse que elle é que me tinha dito tudo. Sobre isso é que eu dei a minha palavra. Agora, de que modo... ahi é que está o negocio!

-- Então como foi?

-- Ora isso foi um passo muito curioso... Eu, esta tarde, acabei de jantar e parti de casa com destino ao Amial. D'ahi a nada, volto e deito-me. Isto é sabido: em eu não dormindo a sésta, ando vendido, molle que nem uma rabaça. Pouco depois batem á porta. Era o João. N'o sei lá o que elle me queria perguntar da fabrica. A minha Amalia, que n'o me tinha visto tornar a entrar, disse-lhe que eu tinha saido, e eu não dei cavaco: ouvi e callei. O que queria era que me deixassem passar pelo somno. Mas inda bem não... oh! isso é que foi uma dos diabos! ... Eu estava vendo quando me desatava a rir. Inda bem não começam elles... Eu sei lá que lhe diga!?... O de costume entre namorados! Uma cantiga toda lyrica. Por fim...

Aqui metteu um aparte.

-- Mas que eu nunca tinha dado pela marosca?!. .. Pois fazia de mim mais esperto!

Depois proseguiu:

-- Por fim foi-se o rapaz embora, e eu fiquei sabendo que elles estão mortinhos por se casar. Aquillo é de vez, é serio. Dá-se então um caso: a minha Amalia ralha co'João: quer que elle bote o barro á parede, que me fale a mim no casamento; e o João n'o sei lá por quê, quer que a Amalia encommende o recado a minha mãe. Uma comedia!... Agora, o mais bonito, é que a minha Amalia jura que se mata se eu a n'o deixar casar! Pelos modos, até já tem o enxoval prompto!

-- Ora!... Essa agora é sua, Zé Joaquim.

-- Palavra, que não!

-- Isso diz ella.

-- E' claro. Que se mata, diz ella. Eu n'o acredito.

-- E depois?... você appareceu, mostrou-se?...

-- Isso sim! N'o quiz atrapalhal-os. A conversa findou, o João saiu, e eu peguei nos butes na mão e esgueirei-me pela porta da cozinha. Ninguem me viu. Fui Varzea arriba, direito aos Esteios, tornei pelo Castallejo e appareci no Amial sem ter pregado olho. Passou-me o somno!

-- Bravo! -- disse o sr padre David enthusiasmado.

Era como se já estivesse decidido o casamento!

-- E agora que me diz?... -- perguntou-lhe Zé Joaquim.

-- Eu digo-lhe... Homem! n'estas coisas... Vá lá uma pitada.

- Venha da lá isso, e vá dizendo. Que hei-de eu fazer!?... Que me aconselha que faça?

-- Eu no seu caso... emfim... Mas você já ha de ter pensado no assumpto... Qual é a sua opinião?... Oue lhe aconselha a consciencia?...

Abriu-se Zé Joaquim.

-- Francamente; eu gosto do João. Que mais quer que lhe diga?... Gosto d'elle; tenho-o cá n'uma conta muito especial. E vossa senhoria?... tamem em sua consciencia?...

-- Sou comsigo, Zé Joaquim; tal e qual. O João é um homem de bem ás direitas.

-- Então...

-- Sim, eu cá...

-- An?... que diz?!... Com'assim... vistos os autos... O que ha de de ser tem muita força, n'o é verdade?

-- Está claro, homem.

-- Então... se ha de ser 'ó tarde, seja 'ó cedo; que casem! N'o acha?...

O sr. Padre David lançou as mãos aos hombros de Zé Joaquim.

-- Você está-me desfructando, Zé Joaquim!...

Tantas facilidades da parte do pae d' Amalia, pareciam-lhe fabula.

-- Por quem é!... Assim me Deus salve, como eu lhe estou falando serio. Pois que lucro eu em pôr impedimentos ao casamento?...

-- Um abraço!... Dê cá um abraço, homem! -- exclamou transportado o sr. padre David.

XXVIII

Passado e presente

Seria desatino querer negar o bom direito de critica sobre a facilidade do pae de Amalia em concordar com os desejos e projectos de João e da filha. O caso nem é medianamente romantico, nem tão pouco bastante verosimil.

Nada de questões!

Mas porque elle é de si extremamente simples, prosaico, desataviado das galas da poesia que fazem a delicia da alma, ha-de se por isso deturpar, falsear a historia?... E porque a immensa maioria dos homens é avara, materialmente interesseira, e mais olha ao dote dos pretendentes e affeiçoados das filhas do que ás suas qualidades moraes, ha de se dizer, compromettendo consciencia, dignidade e honra, que todos lêem pela mesma cartilha?...

Vamos com Deus, que manda e quer que se diga a verdade. As coisas deram-se tal qual foram referidas. Transvertel-as seria impudor e demencia. Ou não serem ellas do conhecimento de tanta gente, como são, e não virem aqui tão de molde comprovar o que lá para traz se disse com respeito ao caracter de Zé Joaquim!...

Agora o que se póde é apreciar o quilate da acção do pae de Amalia. Isso sim, que é licito.

Arvoremo-nos em juizes. Analysemos, ponderemos. Haveria calculo no procedimento de Zé Joaquim?... Não teria elle já pensado de seu vagar e pachorra no casamento da filha com João?... Recearia elle que a rapariga praticasse alguma loucura?

Basta. E' escusado subir mais. Já d'aqui se nos descobrem vastissimos horisontes. Está fechado o summario: discorramos.

Onde está o pae tão leviano, tão falto d'amor e de tino, que sem protestos, sem remoques, sem nenhuma resistencia, sem calculo algum, entregue uma filha, de mais a mais sendo essa filha unica, ao primeiro pretendente que appareça?...

Dê-se por provado o primeiro quesito, e conseguintemente prejudicados os restantes. Houve calculo e premeditação, larga premeditação até, no acto de Zé Joaquim.

Esta é a verdade. Já por vezes o nosso homem tinha pensado a sério no casamento da filha com João. Discreto, prudente, soffrivelmente illustrado, amigo do trabalho, bem conduzido, honesto, este rapaz enchia-lhe as medidas. Attentou, é certo, na sua relativa pobreza, mas sem nenhum desanimo. Viu o fiel da balança vergado para o lado da intelligencia. Nada disse, nada revelou do seu sentimento a pessoa alguma, por se não querer intrometter descaradamente n'este negocio, nem expor-se a criticas ou futuros encargos. O que elle apenas fez, e isto com a maior reserva de intenções, foi dar a João certa facilidade de entrada em sua casa, tomando a dignidade d'elle como fiadora de seus actos. Nada mais.

-- Ha-de sêr o que tiver de sêr! -- pensava elle -- Se gostarem um do outro, casarão; se não gostarem, paciencia. Será tudo por sua conta e risco.

Passaram-se assim semanas, mezes. D'ora em quando Zé Joaquim espreitava se entre a filha e o rapaz começava de haver alguma correspondencia amorosa, mas não via tal coisa. João e a rapariga trocavam palavras sem significação affectiva: palestravam, riam, com uma tal ou qual semceremonia, ou antes familiaridade, que é como entre gente não palaciana se trata na provincia.

N'uma aldeia todos são irmãos, todos são familia. Fala-se, ri-se, entra-se em toda a parte, convive-se patriarchalmente. Podem os moços conversar, brincar, que não ha reparos, não ha censuras.

Isto mais fazia que Zé Joaquim se contivesse em discreta abstinencia. Não se queria elle aventurar com tamanha desvantagem de probabilidades n'um tão melindroso assumpto. Repugnava ao seu caracter fazer insinuações. Não faltariam noivos á filha, nem mulheres a João. O facto d'elle gostar particularmente do rapaz, não lhe dava azo a revelar-se. Uma coisa é o bem querer, outra é a delicadeza, o melindre do sentir. Apenas porque em sua consciencia elle reconhecia que Amalia era uma perfeita e boa rapariga, e como tal amavel, presumindo que João se retraisse por causa da desigualdade de bens de fortuna, deu-lhe certas largas, tratou de inspirar-lhe confiança, e bem assim á filha.

Emfim, uma vez surprehendeu o nosso homem a rapariga e o rapaz a olharem de modo suspeito um para o outro, e então disse lá para os seus botões que elles começavam a namorar-se.

Ficou contente. Zé Joaquim fez que não tinha percebido. Foi, mesmo, um pouco mais amavel que de costume, o que, diga-se, não surtiu o desejado effeito. João, considerando agora mais uma vez a franca amisade e absoluta confiança de que aquelle honrado homem tantas e tão repetidas provas lhe dava, bem longe de se enthusiasmar, de se animar, esfriou, desanimou. Pareceu-lhe traiçoeiro o seu procedimento. Mas duraram pouco estes atrazadores escrupulos. O mau é querer o coração impor-se. D'ahi a breves minutos já elle se não lembrava de nada, de ninguem, de coisa nenhuma, senão de Amalia.

D'esse dia em diante, uma vez por outra, Zé Joaquim espreitava, tornava a espreitar, ancioso por saber em que altura iam as coisas, mas em vão. Não tornou a observar nada. Cuidou então que se tinha enganado, e n'esta crença viveu até que por méro acaso ouviu a conversa de que deu noticia ao sr. padre David.

Veiu n'esse instante o homem ao perfeito conhecimento da situação dos namorados, e da sua propria em relação á d'elles. Andava atrazadissimo. Ficou maravilhado. Suppunha-se mais esperto, mais perspicaz.

-- Ora esta, esta!... -- bradava elle. -- E que tal?... Sempre eu sou um grande pateta! Então n'o me têem estes demonios andado a fazer o ninho atraz da orelha!?

Resultou d'aqui um mais applicado e profundo estudo das vantagens d'este casamento. Foi o homem sentar-se a pensar de vez no assumpto. Era preciso decidir, resolver. Lá que a filha, como dizia, se matasse, ou se perdesse por amor de João, isso eram coisas que a elle lhe entravam por um ouvido, e sahiam por outro; mas que ella amava o rapaz com todas as véras da sua alma, e que o rapaz a amava a ella com verdadeiro amor, isso é que não padecia duvida nenhuma. Que fazer, pois?...

Agora lhe tremia o coração. E' sempre assim: ás ultimas é que um homem reconhece que é pó.

-- Que hei de eu fazer?... -- pensava Zé Joaquim.

Falou o seu oraculo. O sr. padre David approvava o casamento: a palavra d'elle, como se fosse a expressão da vontade divina, resolveu-o logo.

-- ... Então... que casem! -- disse o homem.

Ainda assim não estava o negocio completamente resolvido. Zé Joaquim decidia na melhor persuasão de ter o applauso da mãe, a quem elle muito piedosamente chamava a sua velhinha. Faltava ouvir esse venerando desembargador. Sem isso nada feito.

Foi, pois, o bom do lavrador conferenciar com a mãe. Expoz-lhe o que se passava, sem omissões nem restricções. De tudo a informou.

A velhinha, toda ouvidos e sorrisos á confidencia, lisamente declarou muito á puridade que já sabia dos amores da neta, e os desejava ver quanto antes abençoados pelo santo sacramento da Egreja. Estava tão callada com o seu segredo, porque ainda lhe parecia cedo para falar. De João formava um conceito superior.

Era muito de se ver e admirar o seu enthusiasmo de palavra e gesto n'este colloquio! Os olhitos brilhavam-lhe como lanternas. Applaudia incondiccionalmente a resolução do filho: estava contentissima com o pensar d'elle. Antes queria vêr a neta casada com o João da tia Ricardina, não tendo elle nada de seu, do que a queria ver casada com algum fidalgote, embora esse tivesse bens.

-- Porque, olha, filho; -- dizia ella -- o João é homem para o ganhar, e para tratar bem a nossa Amalia. Outro,... Deus sabe! Eu havia de ter um grande desgosto se a visse desestimada do seu homem. E é o que mais por ahi se vê! Casa-a!... casa-a com o João. Deix'-o lá sêr pobre. A pobreza n'o é villeza. Aldemenos o João é o que nós sabemos: é oiro sem falha.

-- Bem. N'esse caso, visto que minha mãe quer...

-- Quero! quero! -- porfiou a velhinha -- D'aqui a nada já eu vou dar a nova á Amalia, que vae ahi ficar doida de contente. Deix'-a tu vir!

-- Não!... isso é que não -- contraveiu rasgadamente Zé Joaquim -- N'o quero que por ora lhe diga nada.

A velhinha esmoreceu. Ia a erguer-se muito lampeira do seu estrado raso de esparto, onde estava sentada a dobar linhas quando o filho lhe appareceu, e sem querer tornou a cair para baixo.

A vontade d'ella era mandar immediatamente chamar a neta, e dar-lhe o alegrão da nova.

-- Porquê, filho?... -- perguntou ella com certo receio da resposta.

N'este momento ouviu-se a voz d'Amalia, e Zé Joaquim acocorou-se então para explicar á mãe em segredo o motivo porque não queria que ella dissesse nada á neta.

Foi brevissimo esse aparte. Quando Zé Joaquim se poz em pé, já a sua velhinha estava outra vez contentissima.

-- Mas veja lá!... -- recommendou Zé Joaquim.

-- Vae descançado, filho; faco-te a vontade. Assim me Deus ajude! -- jurou solemnemente a velhinha.

Dada esta palavra saiu Zé Joaquim á rua e tomou em linha recta por umas quelhas fora para casa do sr. padre David.

-- Venho de contar tudo á minha velhinha -- disse elle -- Vota comnosco. Já sabia tudo.

-- Magnifico!... Magnifico!-- exclamou o sr. padre David -- Sente-se.

-- Agora -- tornou Zé Joaquim dando-se fingidos ares de zanga -- eu quero pregar uma pirraça 'os rapazes.

-- Uma pirraça?!

Por similhante palavra não entendia o sr. padre David coisa nenhuma.

-- Sabe qual ella é? -- accudiu Zé Joaquim -- Apregoal-os depois de ámanhã á missa sem lhes dizer nada!

O sr. padre David ficou ébrio d'alegria.

-- Você é um homem das arabias, Zé Joaquim. Pois seriamente resolve isso?

-- Ah, não!... Pois elle é só caçoarem commigo?!... Quero-me desforrar. Verá vossa senhoria a cara que o João e a minha Amalia fazem!

-- Mas... e a Ricardina?... e o Anselmo?...

-- Tamem se lhes n'o diz nada. Ha-de-se fazer a coisa sem ninguem o esperar. Tudo pela calada!

Ficou um boccado pensativo o sr. padre David.

-- O peor é, Zé Joaquim -- disse elle -- que como os noivos são menores...

-- Por causa do consentimento?... -- atalhou Zé Joaquim.

-- Isso.

-- Mas cuida vossa senhoria qu'o Anselmo e a mulher...?

-- Não é isso: é pela formalidade.

-- Oh, demonio! -- exclamou Zé Joaquim -- E n'o haverá meio de despensar essa formalidade?

Meditou sua reverendissima um migalho, e respondeu affirmativamente.

-- Ha. Eu tenho a certeza de que o Anselmo e a mulher approvam o casamento. Respondo perante Deus pela falta que vou commetter. Lerei depois de amanhã os proclamas.

-- Veja lá! Se tem algum escrupulo.. . O que eu n'o queria era que o segredo passasse de nós. Queria pregar a todos uma pirraça!

-- Fica resolvido, Zé Joaquim. Não quero que você não tenha o gostinho de fazer a sua pirraça ao João. Acabou-se!

Dito isto despediram-se os dois amigos: Zé Joaquim recolheu-se satisfeitissimo ao seu lar, e o sr. padre David metteu-se immediatamente no seu quarto a escrever o pregão de casamento que devia lêr no domingo, á missa.

XXIX

A pirraça

Mais cedo que de seu natural costume, o que vem a ser o mesmo que dizer que ainda no ceu scintillavam vivamente as estrellas, ergueu-se Zé Joaquim, enfarpellou-se, agarrou do seu inseparavel marmeleiro ferrado e partiu para o campo.

Um lavrador seriamente cuidadoso muitas vezes assim faz. Ha estações no anno em que elle mal se deita, quando apenas se não encosta para ali a qualquer canto, e logo se levanta. Somno da madrugada nunca o dorme na cama com saude. E' preciso aproveitar o tempo, os momentos: as aguas da rega têem vez e hora certa, os malhadores preferem trabalhar pela fresca, os obreiros querem-se vigiados.

D'isto fiquem scientes os madraços. A paveia que nos ha de dar a mastiga de pão do almoço, custou muitas fadigas, algumas vigilias lambem, suor e lagrimas. O grão não germina sem o amanho da terra, e esta não produz sem que a adubem, sem que o halito do agricultor a vá acalentar, amimar, dar-lhe alma. Estruma-se, cava-se ou ara-se, semeia-se, grada-se, monda-se, rega-se, ceifa-se e malha-se.

Dada ordem ás suas vidas, voltou o nosso homem a casa, comeu-lhe com bom appetite, mudou de fatiota e foi-se dirigindo para o adro.

Já tinha dado o primeiro signal para a missa. Iam sendo horas de comparecer.

Ahi, endomingueirados, de boa côr e melhor assomo, conversavam lavradores e jornaleiros em intima familiaridade

Não ha preconceitos nem distancias entre aquella boa gente. Os remediados, os pobres e os fartos confraternizam cordealmente. Dada a hora de trabalhar, todos trabalham do mesmo modo; dada a hora de palestrar, todos palestram como bons irmãos. Na cava, na esborralha, na ceifa, na malha, bebe-se pelo mesmo copo, come-se da mesma travessa.

Zé Joaquim, não obstante a sua maior superioridade de posses e certa distincção de familia, ia em muita coisa com a generalidade dos costumes. Não era pessoa para etiquetas: até onde lhe ficava bem, contemporisava.

Cortejaram-n'o todos e a todos elle deu provas de liza estima. Foi cavaqueando com uns e outros.

-- Então, Bernardo, dizem-me que tiveste uma bella colheita?...

-- Louvado Deus, sr. Zé Joaquim! Assim pudessem dizer todos. Fui afortunado.

-- Ainda bem, homem; estimo. Bem precisas tu de pão p'ra encher a barriga a toda aquella filharada. E olha que... a proposito! Vi hontem a tua mulher e fiquei espantado. Tem tino, homem! Já tens bastante quem te coma o que tu ganhas. Safa!...

Uma rizada do Bernardo. Outra graça de Zé Joaquim.

-- Eu já te fallei, Miguel?...

-- Já, sim senhor, sr. Zé Joaquim.

-- Homem!... pois foi sem dar por isso. Só agora é que reparo em ti. E a Thereza?.. as maleitas?...

-- Lá vae indo, ora melhor, ora peor. Agora... tão depressa se lá vão ellas, como voltam. São maleitas da casta do diabo.

-- Mas ella n'o se trata?...

-- Vae agora tomar um remedio que o sr. padre lhe receitou. Veremos. Ella tem esperanças.

-- Queira Deus! E a respeito do Manuel?...

-- Estamos a vêr quando elle por'hi arrebenta. Agora é camarada lá d'um sr. alferes. D'aqui a nada tem baixa.

-- Bello, bello... Elle que venha. Sempre t'ajudará a levar a tua cruz. Deus t'o traga.

N'este momento veiu um sujeito pedir a attenção de Zé Joaquim.

-- Põe o chapeo: aqui n'o ha santos. Então que desejas?... é segredo?...

-- Não senhor, sr. Zé Joaquim. O que é póde-se dizer adiante de toda a gente. E' que eu... queria-lhe pedir o favor de mandar augmentar mais alguma coisinha ó pequeno, sendo possivel.

-- Pois fazes bem em pedir, fazes. Quem n'o pede, n'o ouve Deus. E o pequeno merece mais alguma coisa?

-- Cuido eu que sim. O mestre...

-- Quanto ganha elle?

-- Quatro vintens por dia. Já anda no Engenho vae para seis annos, vae fazel-os n'o tarda.

-- E' pouco, é. Mais que isso come elle de pão por dia. Recommendarei esse caso 'ó João, que é quem agora manda tudo lá na fabrica. Tu já lhe falaste? Talvez não!

-- Pois n'o fallei, n'o senhor.

-- Ora ahi está!... n'o lhe falaste. Pois anda, vae-lhe falar, qu'elle além está. Pede-lhe...

O homem foi immediatamente ter com João, a quem Zé Joaquim por este e outros que taes processos ia dando uma grande importancia.

Momentos depois apontaram ao fundo da alameda a tia Ricardina, Amalia e a avó.

Vinham acamaradadas, falando muito á mão.

Tomou-lhes Zé Joaquim a dianteira, e quando as viu a regular distancia dirigiu a palavra á tia Ricardina.

-- Ai! ai! que parece-me que tu me andas a falar a minha Amalia p'r'o tê João!... -- exclamou elle galhofeiramente.

Amalia poz-se vermelha como uma romã ardida do sol: a tia Ricardina, que não era mulher para fugir a papões, rindo foi respondendo ao dito.

-- E' verdade: e atão que tem?... Que tem o meu João que se le deite fóra?... Na' o quer p'ra genro?...

Isto já Amalia o não ouviu. Andava que parecia levar azas nos pés!

-- Eh! bem digo eu!... Bem digo eu, que tu andas-me a desinquietar a rapariga!...

-- Vá mangando... Quem manga tambem morre.

-- Olha!... -- bradou Zé Joaquim á tia Ricardina, que se ia retirando, e parou logo.

-- Diga o mais?...

-- Gostarão elles um do outro?

-- N'o sei, mas posso saber; quer?...

-- E consentes n'o casamento?...

-- Quem dera!

-- An? E o teu homem?...

-- Olhe!... fique-se com Deus! Está a mangar commigo. Até logo.

-- Espera ahi, espera... -- tornou-lhe Zé Joaquim.

-- Diga lá?...

-- Visto o que me dizes... vae andando, vae... Havemos de cuidar n'esse negocio. Logo o sr. prior te dará a resposta da minha parte.

Depois ainda outra vez a tornou a fazer parar.

-- Ainda t'hoje hei-de pregar um pirraça, que tu has-de estar meia hora em grelhas!...

-- Calculo! -- disse a tia Ricardina -- Commigo n'o faz vossemecê farinha. Adeus.

E entrou na egreja.

Então dirigiu-se Zé Joaquim ao tio Anselmo.

-- Saberás que a tua mulher diz que quer casar o João co'a minha Amalia!... Que tal?!...

O tio Anselmo todo se fez escarlate. Pareceu-lhe que este dito, apparentemente simples, bonacheirão, tresandava ironia. Accudiu-lhe logo á lembrança a phantasia da mulher no dia em que ella esmagada de cuidados pela sorte do filho se poz a devanear. Julgou-a capaz de uma inconveniencia.

-- Aquillo é o démo, que n'o é mulher, sr. Zé Joaquim! Desculpe a, n'o faça caso... E' genio d'ella; 'sta-se sempre a rir.

-- Pois sim, mas olha que, bem sabes,... ás vezes, a rir, a rir, se vae falando verdade.

-- Ora por amor de Deus!... Ella bem sabe que o nosso João é uma coisa, e a sua Amalia outra. Não que digamos agora que o João... sim, mas... cada qual no seu logar. Isso foi a rir.

Zé Joaquim fingiu que tinha comprehendido este arrasoado ás avessas da intenção do tio Anselmo, e mostrou-se desagradavelmente surpreso.

-- Inda mais essa! Pois tu, em tua consciencia, entendes que a minha Amalia n'o é digna do João?!..

Aqui fez-se verde o tio Anselmo. Até já lhe parecia que Zé Joaquim estava de proposito e caso pensado a provocal-o, a querer tirar desforra da audacia da sua mulher. Desfez-se em satisfações.

-- Por amor de Deus, sôr Zé Joaquim!... Por quem é!... Tal coisa n'o queria eu dizer. O contrario! O que eu queria dizer na minha é que o nosso João n'o póde pretender a sua Amalia. Que tem elle?... Quem é elle?...

-- Ah! esse é outro falar. Cuidei que tu, por o teu rapaz ter lá seus exames... emfim...

-- Oh! sr. Zé Joaquim!... nem acabe de dizer, Jesus!

-- Bom, bom... Eu...

-- Se eu n'o havia d'estimar a Amalia p'ra nora? S'ella tem alguma coisa que se lhe deite fóra?... Quem déra! Mas nada, nada, nem pensar n'isso. Estou bem certo que nem um nem outro nunca pensaram n'isso. Cada qual com seu igual.

-- Quem sabe lá, homem?! Quem pode affirmar que não?! -- argumentou bem assomado Zé Joaquim. -- Homem... são rapazes. Nós na idade d'elles... Que eu te digo; n'o era coisa do outro mundo, se tal acontecesse, E olha que ás vezes... Tu bem sabes: ás vezes -- repetiu Zé Joaquim dando ás palavras um peso especial -- ás vezes, quando as coisas se n'o esperam, é que ellas acontecem. Por isso, eu te digo; se calhar ouvires alguma coisa a tal respeito, acredita!

E muito desacostumadamente, porque estes cumprimentos não vogam n'aldeia, tomou Zé Joaquim a mão ao tio Anselmo, apertou-lh'a bastante, e retirou-se deixandoo deveras intrigado.

Tudo isto que acabava de se passar era novo, e estranho, e mysterioso para o pae de João. O homem suspeitava não sabia o quê d'esta extraordinaria palestra. Via-se enleado n'um cortejo de phantasiosas supposições, nenhuma das quaes se lhe mostrava rasoavelmente esclarecida. Ora se lhe affiguravam de troça as palavras de Zé Joaquim, e então se azedava elle contra a loquella da mulher, que assim provocara tão desagradavel incidente, ora se lhe apresentavam esperançosas aquellas mesmas palavras. Umas vezes a fronte lhe reluzia de jubilo, outras se lhe coloria de vergonha e tristeza.

Veiu emfim roubai o a esta sua penosa meditação o aviso de que a missa ia começar.

Entrou na egreja. O sachristao, á porta, tangia a campainha, annunciando que o padre estava para subir ao altar.

Ajoelhou, rezou. Ali não é logar para meditações profanas.

D'ahi a instantes ouviu-se um vago sussurro, que logo cessou.

Chegava o sacerdote. Curvavam-se todos os joelhos diante do ministro da religião dos Patriarchas.

Principiou o sacrificio. Tudo era silente: apenas se ouvia o fervoroso ciciar dos labios que resavam, e a voz maviosa d'algumas avesitas que sobre as ramarias do arvoredo da alameda pareciam tambem exaltar na sua encantadora linguagem o Deus de Israel. Mais nada.

Até ao «lavabo» tudo correu sem novidade; no momento, porém, em que, segundo a praxe, o acolyto ia offerccer agua ao celebrante para a purificação dos dedos, correu pelo povo fiel um estremecimento d'anciosa curiosidade.

-- Que será? -- ficou todo o mundo pensando.

Sua reverendissima, então, tinha arrancado d'entre a alva e o cingulo um papel que ahi levava, e refazia-se d'ar e forças para o ler. Via-se que elle estava muito perturbado, muito nervoso, commovido.

Fez-se profundo silencio: suspenderam-se todas as respirações. Eram todos olhos e ouvidos, os assistentes da missa. A voz do sr. padre David vibrou sonora. Leu:

«Na fórma do sagrado concilio tridentino, leis e constituições d'esta diocese, querem contrahir o santo sacramento do matrimonio João d'Andrade Gil, e Amalia da Conceição Martins, filhos legitimos, respectivamente, de Anselmo d'Andrade Gil e Ricardina do Arco Gil, José Joaquim Martins e Anna Martins dos Santos, esta ultima já fallecida.»

Depois, cobrando novos alentos, e dizendo de cór, accrescentou, dando um pequeno rasgão no alto do proclama:

«E' esta a primeira annunciação. Os noivos têem o consentimento dos seus superiores. Se alguem souber que entre elles existe algum impedimento canonico ou civil, debaixo de pena de excommunhão maior o deve declarar; como na mesma pena incorre todo aquelle que maliciosamente o encobrir.»

Immediatamente, dito isto, fez a ablução ritual, resou a secreta o mais depressa que poude, e voltando-se para o auditorio poz gravemente cobro ao irreverente falario que já ia a levantar-se, convidando os fieis a orar.

-- Orate fratres.

A multidão conteve-se e ajoelhou humilde, mas suffocada, impacientada. Ninguem já podia rezar, ninguem atinava com oração alguma. A leitura d'aquelle pregão tinha causado enorme abalo.

Zé Joaquim precenseava este espectaculo com infinita alegria. A's vezes atacavam-n'o grandes cocegas de riso. Era quando se lembrava da estupenda cara que João e a filha tinham feito ao ouvirem denunciar ao padre os seus nomes, e dos olhos atrapalhados que elles então lançaram um ao outro.

O tio Anselmo e a mulher tiveram subitamente o mesmo pensamento, a revelação intuitiva da verdade. Reverberavam agora ondas de clarissima luz as palavras de Zé Joaquim: estavam explicadas. E então a tia Ricardina desatou a chorar. Lagrimas de alegria, que a alegria tambem produz lagrimas! O tio Anselmo, mais forte, não chorou, mas ficou completamente quebrado de commoção. Quando olhou para Zé Joaquim, e o viu de lá sorrir-lhe, os seus olhos ficaram toldados d'agua.

Mal findou a missa começou de se ouvir na egreja um surdo rumorejar de vozes similhante ao da vaga que seguida d'outra, e outra, alterosa arremette para o areal da praia.

Era o povo que desafogava da sua espantosa surpreza. Eram velhos e moços que reciprocamente perguntavam se a noticia ali tão d'improviso publicada agora do casamento de João e Amalia seria com effeito um facto, ou simples novella concebida em sonho d'um instante.

Ninguem se fiava de seu proprio entendimento. Nunca na aldeia se déra um caso assim. Do namoro d'aquelles noivos nem por sonhos se tinha desconfiado.

De sorte que produziu extraordinaria sensação a «pirraça» de Zé Joaquim!

XXX

Boccados de comedia

Pretender historiar a scena que o bizarro procedimento de Zé Joaquim originou, e teve logar depois de missa, seria um cumulo de loucura. O Creador deu á creatura de sua imagem e similhança um tanto ou quanto da omnipotencia que do cahos tirou o mundo e das trevas a luz, mas poz-lhe invenciveis limites ao poder de exercitar tão preciosa faculdade. O homem inventa, compõe, imita, obra e concebe, mas tudo imperfeitamente. A vida, o borborinho, a luz, a ordem na desordem e a harmonia na desharmonia, são maravilhas que só Deus póde operar. Querer fazer ouvir e ver synchronicamente muitas vozes diversas exprimindo cada uma diversa idéa, os sons e os murmurios, as lagrimas e os sorrisos, as gargalhadas e os gestos que as precedem e succedem, equivaleria a querer desthronar o Eterno.

Idialise, pois, cada qual como poder, esse formoso quadro. A imaginação é portentosa e supridora. Amalia, João, as familias d'elles, amigos e conhecidos, todos falavam, todos transpiravam commoção e jubilo. Era um cerrado tiroteio de perguntas e respostas, um ruidoso motim de felicitações e ditos, uma grandiosa manifestação d'amor e fraternidade popular.

Durou horas consecutivas este animadissimo festival, e muito mais duraria se o bom de Zé Joaquim, brincando, não tratasse de o atalhar.

-- Mas então que diabo de historia, de doidice vem a ser esta?! - berrou elle. -- Hoje não se janta?... Rua! Tudo já no olho na rua! Vá cada um comer o que é seu, que eu cá n'o dou nada a ninguém! Ora esta!... quasi duas horas!... Já não vejo com fraqueza. Já tudo no andar da rua!...

-- São horas, são horas -- condisse o tio Anselmo.

-- Has-de ter muita fome, faço idéa! -- retrucou-lhe a mulher. -- Tamem já nem vês co'a fraqueza!

-- Ah, sim?... Elle é isso?... Vós ficaes?... n'o vos mexeis?... Esperae ahi -- disse Zé Joaquim.

E saiu e voltou logo com ares ostensivamente pimpões, de marmeleiro alçado.

-- Atão falo eu, ou chia algum carro?. .

Debandou tudo então. Ficou apenas o sr, padre David.

-- O João tambem fugiu? -- perguntou elle.

-- Parece que sim... Mas volta: eu disse-lhe que jantasse comnosco.

-- Não cabe na pelle: tem reparado?...

-- O melhor na'o sabe o sr. padre David!

-- Que foi?

-- Beijou-me a mão.

-- Sim?... tambem?...

-- E' verdade. E olhe que me fez vir lagrimas p'r'ós olhos. Quando vossa senhoria leu o pregão, e elle olhou p'ra mim, e eu lhe disse... «Vá lá, que apanhaste, maroto. Por esta n'o esperavas tu»!... agarrou-me da mão e beijou-m'a. N'o foi só a vossa senhoria.

-- Gosto. Gosto de saber isso. E' bonita acção.

-- E a mãe d'elle?... E o pae?... Cheguei a ter dó d'elles. Se eu os n'o tenho avisado... oh, c'os diabos!... Agora a minha Amalia... isso!... eu nem m'atrevo a convidar vossa senhoria p'ra cá jantar commigo. Está doida, ficou doida. O meu jantar, hoje, estou vendo que ha-de ser fresco. Uma coisa p'r'ali aldrabada de qualquer maneira! Em ella ou minha mãe me não fazendo a comida, n'o como eu nada, n'o sou capaz de comer.

-- Como ha-de ser isso então agora, Zé Joaquim? Em a Amalia casando... que sua mãe, coitada, está gasta... morre de fome.

-- Ora essa!... O João vem cá p'ra minha casa. Então eu, que vou p'ra velho, e minha mãe, que já mal póde comsigo, haviamos de ficar sós? Nada. N'o temos mais ninguem, ficavamos p'r'ahi a esmar. O João entra p'ra minha casa. E' mais um filho: vamo-nos ajudando a passar o tempo uns aos outros: havemos de comer da mesma panella, viver debaixo das mesmas telhas. N'o consinto separações. Nem a minha Amalia assignava!

-- Melhor. Tanto melhor. Estimo isso. Virei logo por cá um pouco.

Despediu-se o sr. Padre David e foi Zé Joaquim fazer festas á mãe e á filha.

Era louco pela mãe, e louquissimo pela filha.

O que entre estas tres almas se passou, comprehende-se, não se descreve. Zé Joaquim fazia rir muito a sua velhinha, e córar a rapariga. Falar-lhe a ella no João, relembrar-lhe o passado na vespera, e recentemente na egreja, era puxar-lhe ao rosto a côr do carmim. Mas mais curiosa, muito mais curiosa do que esta comedia intima, era a que representavam a tia Ricardina e o marido em sua casa.

-- Ai, homem! -- dizia ella -- a minha vontade era apanhar me onde ninguem m'ouvisse, e deitar a gritar. Apalpa: vê. Parece que o coração me quer saltar cá p'ra fora. Atabafo!

-- Mas porquê? Que tens tu?

-- E' alegria.

-- E dá-te p'ra isso a alegria, mulher?! Oh, senhores!... eu, atão, a minha vontade era cantar, bailar. Mas que raio de gosto!

-- Estou tão alegre, tão alegre, qu'até 'stou doente. Olha, se quizeres o jantar, vae o fazer tu.

E dizendo isto sentou-se a tia Ricardina na arca do renovo.

-- Nem tenho braços, nem pernas, nem vontade p'ra nada. O qu'eu agora queria, parece que era morrer.

Sentia uma grande molleza, uma grande commoção, frouxos de saudosa melancholia, vontade de chorar.

O tio Anselmo começou a dançar á volta da arca, e a fazer requebros amorosos.

Parecia um rapaz. Nos seus bons tempos não fôra mais patusco. Cantava tambem suas cantigas, para apanhar o compasso das piruetas, e dava as vozes da marcação do bailado, como se fosse em pares.

-- Dois e vira! Homens fóra! E uma, e duas... Mulheres adiante! E uma, e duas... Vá de roda!

Com estes rasgos jovialissimos do marido passou a doença á tia Ricardina. Deixou-se mesmo beijar e abraçar por elle, e de bom grado se promptificou a dar uma volta ao jantar.

Na cozinha continuou a scena. O tio Anselmo, em mangas de camisa, ajudava.

-- A's suas ordens, senhora minha ama. Que queres que eu faça?...

-- Vae aconchegando o lume.

-- E' p'ra já!

-- Aqui'stá uma panella de batatas que deixei 'o lume quando fui p'r'a missa. Hão-de estar boas! Ui!... são uma massa.

-- N'o se perdem: comem n'as os porcos. Ferra co'ellas na panella da vianda. Dá cá... Aferventam-se ahi outras emquanto o diabo esfrega um olho.

-- E p'ra fazer o caldo?... Ai, que travalhos!

-- N'o te mates, mulher. Tens as couves migadas? ou é de vagens?

-- Fazia tenção de ser de vagens, mas leva muito tempo. Migo umas couves, faz-se um caldo verde.

-- Está visto, um caldo verde. Se n'o tivesse já ferrado co'a batatada no balde, estava mesmo a calhar uma pouca daquella massa p'ra engrossar o caldo.

-- Deixa lá. Entretanto cozem-se umas poucas de batatas. Vae-as lá lavando.

-- Prompto. Hoje tens tu fachina: é só mandar. Deixa-me passar p'ra ahi.

-- Que queres tu?

-- Quero chegar á cantareira: agua p'ra este alguidar, p'ra lavar as batatas.

-- Eu t'a dou. Dá-me o alguidar.

-- E só caldo e batatas?... N'o ha mais nada?

-- Tens ali feijões com carne. Ha muito que comer, louvado Deus.

-- Isso é o qu'eu quero. A ti a alegria aperta-te as golas; a mim alarga-me a barriga. Dás-me um beijo?... O' velha, dás-me um beijo?

-- Está quedo, diabo, que me fazes queimar. Deixa-me agora.

-- Eia! que rabina que tu estás!... Sabes tu?... Vou á salgadeira. Tens cá ovos?

-- Tenho... ovos... O indez! A gallinha n'o põe vae em trez dias.

-- N'o põe!? Pescoço fora! Isto n'o é casa p'ra bestas á mangedoira. A' noite ou ámanhã, quero umas sopas d'ella. Ouviste, velhinha?...

-- Talvez.

-- Fala-m'assim. Que queres qu'eu faça agora?

-- Olha, dá-me d'ahi um garfo da condeça.

-- Prompto, o garfo. Queres mais alguma coisa?

-- Não.

-- Quero eu. Vou buscar vinho 'ó Pedro.

Sahiu o tio Anselmo pelo vinho, voltou e appareceu na cosinha em passo de dança, cantando.

A tia Ricardina alcunhou-o de doido.

-- Benza-te Deus! Já o viram mais doido?... Tem tino, homem, que já tens idade.

-- Que tal está a velha!? -- exclamou o tio Anselmo fingindo-se agastado. -- Que ja tenho idade p'ra ter tino!...

-- Viste o Manuel?...

-- Vem ahi, o Manuel.

-- E o João? Sempre jantará lá co'o sogro?...

-- Eu n'o sei, nem quero saber. E' mais feliz qu'o Facadas: boa mulher, boa fortuna, tudo caído do céo... Até lhe tenho inveja!

-- E' verdade, ó Anselmo!... E quando eu uma vez te disse... lembras-te?... O que tu t'enfadaste!

-- Então que queres tu?... S'eu inda mesmo agora chego a pensar que tudo isto é um sonho!?...

-- E a tua excommungada lembrança da filha do fidalgo?... o susto que tu me fizeste ter?!... An, que eu!... n'o sei, no sei que presentimento tinha na Amalia. O João n'o querer ser padre, n'o querer ser boticario... Eu tinha este presentimento, Anselmo.

-- Tinhas, mas afinal deixaste-te embaçar como eu. Andaste ahi á perna do rapaz, vigiaste-o, e vieste-me dizer que assim te Deus salvasse como elle n'o tinha debique.

-- Pois sim, é verdade; n'o vi nada. Mas olha que o presentimento, o presentimento... nunca se me foi da malha! Eu, se n'o fosses tu, tinha ido pelo fio 'ó novello. Havia de dizer um segredo á Amalia.

N'este momento principiou o tio Anselmo a fariscar, de ventas inquietas.

-- Cheira-me a bispo! Tu tens alguma coisa a esturrar-se, mulher. Vê lá! E muito.

Lançou a tia Ricardina instinctivamente mão da panella dos feijões.

-- Ai! são os feijões. Ora os meus peccados!... Dá cá depressa esse alguidar. Inda tem agua?... Avia-te.

Deu-se pressa o tio Anselmo em satisfazer o pedido.

Perigava a patria, que é como quem diz, (politicamente falando,) a barriga.

Acto continuo mergulhou a tia Ricardina a panella na agua, para fazer passar o esturro.

N'outro dia, este precalço, havia de lhe dar maior desgosto. Ninguem gosta de ser mal louvado. Hoje, porém, tudo tinha desculpa.

Feita a operação chegou Manuel, que por lá por fóra se demorara a ouvir gabos ao irmão e á sua fortuna, e trataram os tres de jantar.

Disseram-se durante a refeição muitas banalidades, e fez-se uma saude especial.

-- A' de Zé Joaquim! -- brindou o tio Anselmo.

Corresponderam cordealmente a tia Ricardina e Manuel.

Ao fim fez tambem o seu brinde a tia Ricardina.

-- A' saude de todos nós! -- disse ella.

Iam mentalmente incluidos n'este brinde, além dos presentes, João, Amália, o pae e a avó d'ella.

-- Vá lá isso. Nós tamem semos gente. A' nossa! -- disse o tio Anselmo.

-- E tu rapaz?... quando te casas tu?... -- perguntou a tia Ricardina ao filho. -- Já por ahi tens mulher debaixo d'olho, ou ficas p'ra tio?

O rapaz sorriu-se tristemente, respondendo assim uma cousa; e foi que a sorte do irmão tambem a si lhe tinha feito um boccadito de inveja.

A mãe entendeu-o.

-- Ora quem sabe lá se tu inda virás a fazer um casamento igual, ou melhor?!... N'o percas as esperanças.

-- Esperança até morrer -- advirtiu judiciosamente o tio Anselmo. -- A alma de tudo, é a esperança.

A' pergunta da tia Ricardina ficou de responder o futuro.

XXXI

Um rapto

Nenhum estorvo empecilhou o casamento de João. Tudo foram facilidades. Os noivos queriam casar, e as familias queriam-n'os casados.

Effectuou-se portanto a ceremonia da benção nupcial dentro do mais curto espaço de tempo possivel. Foi coisa dita e feita.

Houve na egreja sorrisos florescendo por entre lagrimas, lagrimas refulgindo á luz de sorrisos, muitos beijos, muitos abraços, muita commoção.

Não admira. O acto infunde não sei que mysticas tristezas. A turbação dos que ajoelhados deante d'um altar fazem voto de viverem até á morte na mais estreita união espiritual, sensibilisa, enternece. Ha na solemnidade d'este juramento sagrado uma grandeza que confunde.

Vieram depois, e prolongaram-se pela noite adiante, as desassombradas alegrias. Foi opiparo e ruidosamente festivo o banquete. Os vivórios aos noivos, e as gargalhadas que retiniam á emissão dos ápartes e ditos facetos de alguns convivas, produziam extraordinaria balburdia. João e Amalia agora córavam, logo riam a bom rir. A velhada dizia-lhes jogralidades mordentes como ortigas.

Terminou deixando gratissimas memorias este pantagruelico festim, e começaram os recem-casados a desfructar sua ventura.

Amavam-se, idolatravam-se. A poesia do amor lá lhes continuava a embalar o arriscado sonho bom da existencia. A vontade d'um era a vontade do outro, o sentir d'um o sentir do outro. Para elles os dias passavam como fugitivos instantes.

Ora ainda estava recentissimo este enlace, ainda elle era o assumpto predominante de todas as conversações, rebentou d'improviso um escandalo n'aldeia para o qual se voltaram as attenções do povo em massa.

Cahiu no esquecimento o consorcio de João. Já ninguem falava d'elle.

Fugira da casa paterna a filha do fidalgo, aquella por via da qual a tia Ricardina uma vez teve noite d'oratorio: lembram-se?... Aquella que o tio Anselmo chamava doidivanas?...

Pois essa foi. Deixou-se raptar.

A noticia da sua fuga correu de bocca em bocca entre vozes e gestos que tresandavam lastima.

Não deve, porem, inferir-se de tudo isto, que realmente D. Leonor era doida na vulgar accepção d'esta palavra, pelo que toca a juizo feminino.

Nada de juizos temerarios. Sejamos prudentes, reflectidos. Não é coisa de que sem muito bons fundamentos se passe sentença, a honra de quem quer que seja, e mormente a d'uma senhora, que em tudo periga.

A verdade é dura, mas ha de dizer-se. D. Leonor foi constrangida pelo pae a dar aquelle desairoso passo. A elle, e só a elle, se deve tornar a culpa d'este desvario da fidalga.

D. João queria á viva força casal-a com um primo sabidamente idiota, que ella tinha.

Homem d'outros tempos, erguendo a sua voz altivamente despotica, ordenava aquelle sacrificio impossivel, invocando razões inadmissiveis.

Eis em breves palavras a historia.

D'aqui, d'este desastrado proposito de D. João, e natural e legitima desconformação da filha, provinham perturbabações, amarguras, protestos, rigores vozes que se coavam pelas portas do solar de s. ex.ª, e vinham alterados produzir cá fora commentarios e controversias desagradaveis.

O tio Anselmo chamava doidivanas á filha do fidalgo mais no significado de que a mulher é fragil, do que propriamente porque tivesse a convicção de que ella merecia tal epitheto. Antes elle censurava D. João. Pelo que ouvia, e punha de seu entendimento, para si era o fidalgo o causadôr da desordem que lavrava em sua casa. Agora o que elle temeu foi que D. Leonor apertada por imposições, se rendesse á côrte que por audacia João lhe fizesse.

Tinha pois seu proposito a lembrança do pobre do homem: não era totalmente disparatada.

Durante muito tempo estiveram as coisas n'este pé. D. João esperava que a filha se movesse á obediencia. O mano d'elle recommendava que se não recorresse á violencia senão no ultimo caso. Preoccupavam-n'o receios da vida futura: gastava-se dando conselhos.

Um dia, como D. Leonor por extremo recurso confessasse ao pae que o seu coração ja estava rendido, o velho, fuzilando relampagos de colera pelos olhos, deu promptas e cathegoricas ordens para que immediatamente se tirasse a licença, e reunisse a mais papelada necessaria á consummação do sacrificio.

O mano applaudiu.

Ante-manhã cavalgou e correu á espora fita o procurador dos negocios da casa de sua excellencia, carregado de cartas e dinheiro, para a remoção de todas e quaesquer difficuldades. A' bocca da noite recebeu a creadagem intimação para espingardear phantasma ou creatura humana que passante as oito horas rentasse pelas proximidades do palacio.

Pensara-se n'um rapto, n'uma fuga. Prevenia-se d'este modo a evasão da victima.

Homens educados na velha escola, o fidalgo e o irmão não queriam crer que o grito da liberdade lhes tinha cortado cerce os toros de grandes senhores. Mandavam matar como quem mandava rezar.

Riu a vassalagem de suas excellencias de tamanho despauterio, e rindo tomou armas e veiu formar á roda do edificio.

Como iam lindas as noites, aquillo era divertimento. Passariam homens, cães e gatos, e a guarda municiada do solitario palacio deixaria ir tudo e todos na santa paz do Senhor.

Não valia a pena contrariar o mandado dos preclaros fidalgos.

A' quarta noite de sitio, a horas mortas, luziu lá longe, n'um córrego enxuto, uma lumieira fugaz. D. Leonor, postada então á janella do seu quarto, accenou com um lenço ás guardas despertas do palacio.

Estavam falados os homens.

Momentos depois ouviu-se um breve e discreto assobio.

Era o signal ajustado da traição dos soldados: queria dizer que não havia nada a receiar.

Immediatamente recolheu se D. Leonor á sua camara, escutou á porta por onde devia sair, não fosse haver ali alguma ronda destacada, e depois, pé ante pé, leve e ligeira, atravessou o corredor que se lhe franqueava e desceu ao pateo.

Salva!... Estava salva. Os seus carcereiros dormiam.

D'ali, depois de protestar o seu reconhecimento aos creados que lhe tinham favorecido a fuga, foi D. Leonor conduzida por um d'elles ao ponto onde minutos antes havia brilhado o pharol redemptor.

Aguardavam-na ahi uma senhora de meia edade, e um sujeito ainda bastante novo e de boa presença.

Era este o seu namorado, ceaquella uma tia d'elle.

Cumprimentaram-se, pozeram-se todos a cavallo, desceram ao valle, metteram á estrada e desappareceram nas pontas das unhas dos quadrupedes.

Passada meia hora, pouco mais, ouviu-se um tiroteio cerrado, que poz em maior alarme os desprecavidos habitantes da pacifica aldeia.

-- São ladrões! São ladrões! -- gritaram aterrados homens e mulheres nas suas casas.

Mas não eram tal. Eram os creados do sr. D. João que descarregavam as escopetas para fazerem crer ao amo que se não tinham deixado subornar. Era uma farçada theatral.

D. João enfiou as calças e desatou a gritar como um possesso. O mano, em mangas de camisa, correu instinctivamente ao quarto da sobrinha. As creadas, á excepção da ladina que tinha ajudado a combinar aquella fuga, barricaram as portas dos seus quartos e andaram em fralda a rezar estações á volta das paredes.

Talvez lhes lembrassem os francezes, de terrivel memoria.

Chamadas a depoimento as ordenanças defensoras da integridade patricia, falaram todas pelo mesmo theor e feitio. Não sabiam o que se tinha passado. Aquillo fora como que coisa de magica. O luar tinha acabado. Pareceu que lá longe se mexiam vultos no meio do matto. Olharam para aquelle ponto suspeito. Alguns engatilharam logo, para o que désse e e viesse. Depois viram clareando roupas brancas. Chegaram a cuidar que fossem almas do outro mundo. D'ali não despregaram mais os olhos. Um boccado era passado, sentiram rumor da outra banda. Viraram as pontarias. O que quer que era não se divisava, ouvia se tão sómente. Vae não tinham corrido dez minutos, appareceram-lhe correndo á desfilada dois ou tres cavallos. Atiraram então. Cumpriram as ordens recebidas: mas tinham ido vêr, e não havia victimas.

D. João e o mano ouviram passados de raiva estas narrativas engendradas para escapatoria de responsabilidades a tomar, e depois de se consultarem em conselho privado correram com a creadagem toda. Toda!

Não lhes convinha em casa quem tão mal os tinha servido. Pozeram tudo na rua, homens e mulheres. Tomaram outra gente.

Entretanto o mal, se mal era aquillo, estava feito. D. Leonor tinha fugido para casar a seu gosto.

Ficaram então os dois velhos, a contemplarem-se, e a desabafarem um com o outro as suas magoas. Pouco mais faziam que gemer tristesas e verberar anathemas. Quizeram ainda tentar represalias, mas já as pernas, e os achaques proprios dos annos, sem excepção da falta de bom tino, lhes peavam a acção. De mais a mais D. Leonor tinha chegado á maioridade. Era livre, forrada a poderes tutelares. Os conventos tinham fechado suas portadas, o absolutismo tinha caido do throno. Nem preponderancia suzerana, nem influencia cortezã, nem dinheiro valiam n'este transe doloroso para os brios d'aquelles homens costumados atriumphar de todas as adversidades.

Reconhecido isto fizeram D. João e o mano por paliar a vida, que, sendo-lhes fardo pezadissimo, não o era tanto que d'elle se quizessem despojar, e lá foram soffrendo as molestias e os desgostos até que naturalmente os veiu a morte abraçar no refugio do ermo.

Cairam de maduros.

XXXII

Consequencias do rapto

Servindo de creada grave, ou aia de D. Leonor, havia em casa do fidalgo uma mulher chamada Ermelinda dos Anjos.

Era esta sr.ª Ermelinda geralmente estimada pela sua muita bondade, e conservava todo o viço dos vinte annos, bem que já fosse correndo para os trinta e dois. D. Leonor queria-lhe immenso, e ella queria immenso a D. Leonor. Viera menina e moça servir a segunda esposa de D. João, sua madrinha, e agora, depois da morte d'essa malograda senhora, que se finara na primavera da vida, continuara desempenhando junto da filha o mesmo papel que desempenhara junto da mãe.

Pois comprehendida no decreto de expulsão com que o fidalgo pretendeu desaggravar-se do logro de que os servos o deixaram ser victima, consentindo ou não sabendo impedir a fuga de sua filha; comprehendida n'esse fomoso decreto, que nem para o pessoal da cozinha teve uma excepção, a pobre mulher preparou resignada os seus bahus, enviou um saudoso olhar de despedida áquellas salas e objectos que tão intimamente familiares lhe eram, saiu humilde e foi bater á porta de Amalia.

Ia ali pedir guarida, e ao mesmo tempo entregar uma carta que D. Leonor lhe tinha confiado.

Recebeu-a Amalia de braços abertos, com grande alvoroço. Ermelinda melhor que ninguem, e com toda a verdade, lhe podia contar como as coisas se tinham passado no palacio. Tão sua amiga como ella era, e tão intima de D. Leonor, naturalmente a esclareceria em tudo quanto desejava. A noticia do rapto, tal como ella corria na aldeia, carecia de confirmação. Mais tinha o caracter de capitulo de novella, do que de facto real, positivamente certo. Pretendera já Amalia tirar-se de duvidas, mas debalde fizera tentativas n'esse sentido. Agora, á chegada d'Ermelinda, estava ella tratando de se vestir para pessoalmente a procurar, a ver se lhe falava. Morria de impaciencia. Era dedicadissima a D. Leonor: interessava-se pela sorte d'ella tanto como pela sua propria.

Satisfez Ermelinda sem nenhuma reserva a curiosidade d'Amalia: contou-lhe com todos os pormenores a historia do rapto. Nem mesmo omittiu que de alguma sorte fora cumplice na fuga de D. Leonor.

Amalia não a poude censurar. Tambem ella acreditava que o casamento da filha do fidalgo com o primo era uma desgraça. O rapaz tinha notoria fama de doido. D. Leonor detestava-o: imporem-lh'o para marido, equivalia a quererem-n'a impellir para um abysmo fatal.

Um ponto, porém, restava ainda averiguar. Ouvira Amalia que o fidalgo tinha posto na rua todos os criados. Custava-lhe a crer. Perguntou. Tambem Ermelinda seria incluida no numero dos condemnados?

A resposta foi affirmativa.

-- Ora essa!... -- exclamou Amalia afflicta -- Mas então agora o que vae ser de si?

-- De mim?... Paciencia. O que Deus quizer. A sr.ª Amalia faz-me o favor de me cá dar uma cama e umas sopas emquanto eu n'o decidir a minha vida, n'o faz?...

-- Uma cama e umas sopas! Pois porque não?! A casa, tudo o que lhe seja preciso! Ficará até de todo comnosco, se quizer. Terei eu n'isso muito prazer. Será aqui uma pessoa de familia. Ora essa!.. Pois porque não?...

-- E o seu marido?... que dirá elle? -- perguntou Ermelinda com bondosa advertencia.

-- O meu João?... Dá por bem feito tudo quanto eu fizer! -- respondeu convictamente Amalia -- Olhe que é muito meu amigo. Nem faz idéa!

-- Oxalá que sempre assim possa dizer!

-- Ah! posso, posso... -- affirmou Amalia -- O meu João é muito bom rapaz. E' uma joia!

Ouviu e acatou Ermelinda com sincero applauso estes elogios, que a sua amiga fazia ao marido, de quem ella formava já um muito favoravel conceito, e pediu pormenores do casamento.

Vagas noticias d'elle tinham chegado ao solar de D. João. O reboliço que lá ia por casa não tinha permittido apurar toda a verdade dos factos. Amalia, naturalmente perturbada pela precipitação dos acontecimentos, e cuidadosa das coisas do seu enxoval, ainda lá não tinha ido.

Historiou Amalia circumstanciadamente o caso, e n'isto se foram passando as horas até que João appareceu.

Pediu-lhe logo a esposa que sem demora lhe lêsse a carta que D. Leonor lhe enviara por via de Ermelinda. Estava anciosa por saber o contheudo d'ella.

João cumprimentou Ermelinda, a quem era sobremaneira affeiçoado pelo modo como ella o tratava sempre que elle ia ao palacio buscar livros, e depois de se informar por alto da occorencia da madrugada leu a carta:,

Era simples, e na sua mais liza simplicidade profundamente commovedora. Dizia assim:

«Minha querida Amalia:

«A' hora que tu receberes esta minha carta, estarei eu longe da nossa aldeia, dos logares que tão queridos me são, dos olhos da minha mãe, que ainda do seu tumulo me terá visto e soffrido muito, por muito me vêr soffrer. Fujo porque me querem sacrificar em nome de preconceitos barbaros. Vou com o meu amado Jorge, vou refugiar-me no seu seio, viver da vida d'elle...

«Ultimamente o meu tio tornou-se o meu algoz, e meu pae o instrumento cego da sua desatinada ambição. Tenho estado reclusa, guardada á vista com um apparato de forças, que nem que eu fosse uma grande criminosa. Vou gosar as auras da liberdade, fujo a uma morte violenta. Quero viver, que ainda tenho quem chore por mim...

«Invejo a tua sorte, Amalia! Tu foste favorecida pelo céo, emquanto que eu tenho sido torturada pelo inferno. Ha quatro dias que os rochedos que ficam por baixo da minha janella me convidam a regal-os com o meu sangue. Fujo porque temo a tentação d'este abysmo.

«O mundo dirá, talvez, que eu fui má filha e má mulher. E tu?... tu que me conheces, tu que sabes quanto eu tenho soffrido?...

«Olha, Amalia: dize ao povo da nossa aldeia que eu tenho sido uma martyr. Conta-lhe as minhas tristezas, as minhas amarguras desde o dia memoravel da minha orphandade até ao de hoje, e pede-lhe que me não amaldiçõe.

«Quizera abraçar-te antes de partir. Não o permittem, porém, as circumstancias. Tenho medo de comprometter os esforços que se fizeram para me facultar a liberdade. Mas abraço-te espiritualmente, como á minha mais querida companheira da infancia. Sê feliz, tanto como eu o desejo ser.

«Adeus. Peço-te que dispenses á Ermelinda toda a protecção de que ella precise emquanto eu a não poder chamar para mim. Fio que será em breve.

Tua amiga

Leonor.»

-- Muito bem -- disse João para a mulher. -- Eu responderia por ti a este ultimo ponto, se tu n'o estivesses presente. Creio que não haverá duvida nenhuma em que a sr.ª Ermelinda, querendo, fique até na nossa casa?...

-- Já lh'o disse a ella -- respondeu Amalia enxugando os olhos. -- Não nos faz peso nenhum. Com muito gosto. O sr. D. João despediu-a.

-- A sr.ª Ermelinda foi despedida da casa do fidalgo? -- perguntou João.

-- Fui, sr. João.

-- Saiu já de todo?

-- De todo.

-- Pois muito bem. Minha mulher já lhe disse o que devia dizer-lhe. Eu repito-lhe as palavras d'ella. Não nos faz pezo nenhum. Com todo o gosto lhe franqueamos a nossa casa. Fará de conta que ella é sua. Como sabe, aqui não ha fidalgos: seremos todos familia.

Ermelinda agradeceu com os olhos razos de agua.

XXXIII

Outro casamento

Ficou Ermelinda em casa de João. Era como se fosse uma irmã d'Amalia; nem senhora, nem criada: costurava, dava a sua ajuda em todos os trabalhos cazeiros. Dizerem-lhe e não lhe dizerem que se poupasse, quererem e não quererem que ella estivesse de braços cruzados, tudo era a mesma coisa.

-- Oh senhores!... pois eu sou alguma fidalga?... Jesus! -- clamava ella -- Se me n'o deixassem fazer alguma coisa, morria d'aborrecimento. A mim o trabalho diverte-me.

Tornava-se d'este modo Ermelinda cada vez mais querida. Bem longe d'estar sendo pezada, era uma companhia muito apreciavel. Zé Joaquim, com o seu genio folião, dirigia-lhe muitas graças, rendia-lhe muitos galanteios, mas diante de quem quer que fosse, não á subcapa. E d'ahi não passava. Chalaceava com ella como chalaceava com toda a gente. No fim de contas respeitava-a immenso. Que, honra lhe seja! nem ella dava azo a doidices; sabia muito bem tomar o seu logar, era mulher séria. Vinte annos, para mais, que não para menos, estivera ella em casa do fidalgo, que tinha fama de conquistador de primeira ordem, e o fidalgo D. João nunca poude fazer farinha com ella. Até, pelo contrario, constava que Ermelinda, uma vez, lhe tinha ido ao pello! E de facto, assim succedera. Só se dava um erro na versão: é aue não foi com o cabo d'uma roca, como se dizia, mas sim com um bello pau d'espinheiro, o pau de mexer a palha dos enxergões, por tal signal, que ella correspondeu aos atrevimentos de sua excellencia.

Sempre o bem e o mal se sabe.

Não obstante tinham censor as inoffensivas graças de Zé Joaquim: e esse era Manuel. Nâo gostava o rapaz d'aquillo: todo elle se incommodava com estas graças.

Durante algum tempo ninguem notou este curioso phenomeno; mais tarde, porém, todos o observaram. Em Zé Joaquim se pondo a debicar com Ermelinda, já Manuel começava a estar inquieto, a rir sem vontade e desengraçadamente. Parecia um camaleão a fazer-se de côres!

Provocou reparos profundamente criticos este caso, e veiu-se ao inteiro conhecimento de que Manuel amava aquella mulher. Elle, d'antes, ia a casa do irmão uns dias por outros, não todos, e pouco lá parava. Fazia lhe umas vizitas a que Amalia chamava de medico. Agora, depois que Ermelinda lá estava, elle ia lá todos os dias, todos, e lá se demorava horas esquecidas. Depois do largar do trabalho, ás séstas, aos domingos, Manuel era certo n'aquella casa.

Tudo se ponderou e apurou. O mais interessante, porém, é que já Ermelinda começava a olhar muito para o rapaz, a dar-lhe muita attenção, a mostrar alegria quando elle chegava, e pezar quando elle se ia!

Gostavam um do outro, não havia que ver. Os olhos não mentem.

Tratou então Zé Joaquim de affervorar aquelle namoro. O meio era simples: logo que Manuel apparecia, começava elle a fazer a côrte a Ermelinda.

Queria que o ciume operasse.

A' sua parte, o tio Anselmo e a tia Ricardina riam-se. Não eram contrarios á inclinação do filho: tanto mais que constava que Ermelinda tinha o seu bello pé de meia.

Uma noite, no balcão, onde toda a familia reunida ria e conversava, proseguiu Zé Joaquim na sua engenhosa empreitada, com grande applauso geral.

-- Isto n'o tem geito, minha querida amiga! O melhor... Qu'eu inda valho um rapaz, com trinta diabos!... O melhor é ajuntarmos os trapinhos. Que me diz, sr.ª Ermelinda?... Com' assim, s'havemos d'andar n'este fado... a penar um pelo outro... Que me diz, sr.ª Ermelinda?... O melhor é casarmos, n'o lhe parece? Gosto de si, palavra. Os seus olhos põem-me doido. Que dizes, João?... caso-me ou n'o me caso?... E tu, Manuel, que aconselhas?...

Os circumstantes, incluindo a propria Ermelinda, desataram a rir a bom rir, e Manuel saltou do balcão abaixo e foi-se embora quasi sem se despedir de ninguem, fulo.

Zé Joaquim deu-lhe no seu intimo a devida desculpa, e ficou colorindo o estranho caso.

-- Ai, ai, minhas encommendas, que eu parece-me que o Manuel tem ciumes! Pois temol-a travada! Por ahi vamos nós jogar á pancada. Eu cá n'o sou homem que me fique. Por quem é vossemecê, sr.ª Ermelinda?... Qual de nós é que prefere? eu, ou o Manuel?... Sim, que eu sempre quero saber em que lei vivo.

Ermelinda respondeu-lhe com um sorriso bem composto, que as lagrimas a bailarem-lhe nos olhos contrariavam.

Percebeu então Zé Joaquim que a sua alegria estava provocando mágoas, e presto virou de rumo. Fingiu que lhe tinha accudido á idéa um assumpto serio, e passou a conversar com o genro em negocios particulares.

Entrou assim tudo na ordem, e em muito boa paz e ordem se retiraram cada um aos seus apozentos quando bem a todos pareceram horas.

No outro dia Manuel não appareceu. Zé Joaquim fez reparo n'este caso.

-- E' que teria que fazer -- lembrou João.

-- Nada! O rapaz melindrou-se co'a minha laracha. Foi hontem d'ahi damnado. E' preciso chamal-o ao rego: ámanhã já o procuro. Havemos de nos entender, verás.

-- Não procure, deixe-o -- disse João. -- Se elle com effeito tem fraco pela mulher, embora de cá fosse esturrado, breve voltará. Se não... em ultimo caso falarei eu com elle. Como elle tem aquelle genio...

-- Ora adeus, adeus!... Ahi 'stás tu já a sonhar. Qual genio nem qual carapuça! Teu irmão é um excellente rapaz: o qu'elle afinal é, é um pelludo. Aquillo cuida qu'eu lhe quero tirar a rapariga. Falarei com elle.

E falou. Volta do meio dia do dia seguinte foi-o esperar á porta da casa do pae, saindo lhe ao encontro como por acaso. Assim que o viu chamou-o a terreiro.

-- Oh! Ainda bem que t'encontro, homem! Tenho estado em braza por tua causa. Diz'-me cá: tu ante-hontem ficaste zangado commigo?...

Manuel córou. Esta pergunta á queima-roupa logo lhe fez perceber que se ia bolir n'um assumpto em que elle estimaria que não se tocasse.

-- Eu!?... zangado!?... Não senhor, sr. Zé Joaquim -- respondeu bastante confundido o rapaz.

-- Homem! pois olha qu'eu havia de jurar que sim. E eu cá sei pelo quê.

Mais córou Manuel, mais se perturbou.

-- Este dedo que tu aqui vês adivinha-me tudo! -- tornou Zé Joaquim com grande expressão de gestos. -- Tudo!... Tu, se quizesses ser bem franco commigo... caramba! nós agora haviamos d'aqui tratar um casamento!

Isto deu certa alegria ao rapaz, que entretanto estava compromettidissimo.

Era muito acanhado, o Manuel.

-- Promettes tu dizer-me uma cousa em segredo?

Manuel ficou calado.

-- Aqui só p'ra nós, e como bons amigos -- tornou Zé Joaquim aproximando-se quanto possivel do rapaz. -- Esse coraçãosito anda lá dentro aos saltos?...

-- Sempre o sr. Zé Joaquim tem umas taes coisas!... -- tartamudeou Manuel distrahindo a vista sobre o chão.

Parecia uma menina, muito timido.

-- E diz-me cá: se assim é, porque te n'o declaras tu?... porque n'o tratas de casar?... Fizeste voto de ser frade? Não, por certo, que já os n'o ha. Então em qu'está o empeno?... Mulher n'o vejo que a tenhas por ahi mais geitosa; idade, tens; portanto...

-- Ora o sr. Zé Joaquim, o sr. Zé Joaquim!...

-- Homem! -- deixemo-nos d'arcas enfuscadas. Cartas na mesa. Eu tenho-te andado a estudar. Ante-hontem pilhei-te. Estás pelo beicinho; gostas da Ermelinda.

-- Sr. Zé Joaquim, qu'está a dizer?...

-- N'o te faças vermelho, homem. Pois é algum crime gostar d'uma mulher? Gostas da Ermelinda, gostas, que eu bem o sei. E mais sei e te digo que ella gosta tamem de ti!

Manuel ergueu os olhos. Quiz verificar na cara de Zé Joaquim se era verdade o que elle lhe dizia. Foi um acto authomatico.

-- Já te disse! -- porfiou Zé Joaquim. -- Teu irmão deu me uma lição que me vae aproveitando. Eu agora tenho mais olhos qu'o démo. Ella morre por ti, affianço-te.

-- Está-s'a rir... Pois se nem eu o sei!

-- Ora n'o te faças creança, meu amigo. Temos conversado! Então p'ra que tens tu olhos?...

-- N'o sei, acredite.

-- Bem me fio eu n'essa! Olh'o innocente!... Pois ha lá nada que diga mais do qu'uma empiscadella?!... Mas emfim, voltemos 'ó caso... Que tu tens quéda pela Ermelinda, já n'o é segredo p'ra ninguem. Tua mãe, teu pae, teu irmão, eu... toda a gente o sabe, toda gente o tem visto. Agora o qu'ind'é segredo para mim, é se tu tens com effeito idéas de casar co'ella, ou se queres só derriçar. Se é isso, eu te digo qu'andas dando mau emprego ao teu tempo. A Ermelinda é uma mulher séria; merece o teu respeito, n'o a deves trazer enganada. Se n'o é, s'a coisa é séria, vamos a isso, rapaz! O mais qu'eu te posso fazer é ser padrinho do casamento. Convem-te?... queres mais?... Fala! Um homem entende-se pelas palavras. Entr'homens n'o ha acanhamentos.

-- Mas atão... palavra, que n'o sei o que lhe diga, sr. Zé Joaquim. Elle dizendo o ponto da verdade... sim, n'o sei se m'entende... eu afinal tenho de casar. Um homem só, na real verdade... Ora eu... n'o sei, n'o sei que lhe diga, sr. Zé Joaquim!

-- Bem se vê: estás todo atrapalhado. Mas sei eu! Eu sei perfeitamente o que tu queres dizer. Tu gostas da Ermelinda... e gabo-te o gosto!... mas n'o sabes s'ella gosta de ti. Nunca chegasteis á fala. Ora pois bonda que eu te diga que sim. Portanto, n'o andes a perder tempo. O qu'ha de ser 'ó tarde, que seja 'ó cedo. Vamos a isto, qu'é uma pressa. Auctorisas-me a qu'eu diga á tua cunhada que trate d'ouvir a Ermelinda? e a que fale com teu pae, que trate d'esses arranjos do casorio?... Bem vês que t'estou falando sem cerimonias. Não te me ponhas tu com ellas. S'eu visse que fazias mau casamento, aconselhava-te a que te deixasses de pensar n'elle. Que respondes?

-- Mas quer que lhe dê já a resposta?

-- Está claro que sim. Quem muito pensa, pouco acerta. Tu já has de ter pensado no negocio, já has-de ter uma opinião formada.

-- A mim... parece-me que a Ermelinda me convém.

-- Tamem a mim me parece. E' verdade que ella n'o é mulher p'ra pegar d'um sacho, e sachar, nem p'ra outras vidas d'essas, do campo: mas é-o p'ra te governar bem a tua casa, p'ra ser bem tua amiga, que é o principal, e emíim p'ra t'ajudar no que poder, e com certeza mais e melhor do que cem que p'r'ahi ha costumadas a todo o trabalho. Além d'isso... olha que tem o seu pé de meia!

-- Ora o pé de meia é o menos. Mal m'iria a mim s'eu n'o ganhasse com que a sustentar.

-- Pois sim, mas sempre é uma ajuda. Emfim, que respondes?...

-- Visto que me quer fazer o favor... E obrigado, sr. José Joaquim.

-- Bem. N'esse caso, isto vae-se decidir emquanto o diabo esfrega um olho. Fica a meu cuidado. Vae jantar, e faz' lá recados a tua mãe. Falarei logo ou amanhã co'ella. Adeus.

Já lá de largo parou Zé Joaquim para advertir o rapaz que não faltasse ao cavaco da noite.

-- Olha se fazes como hontem, que te venho buscar p'las orelhas! Não faltes. Vae, que eu agora n'o torno a fazer-te arreliar. Agora differente é o caso.

Dito isto foi para casa.

-- Que te disse eu, João? lembras-te? -- disse elle para o genro -- Entendi-me com teu irmão; dei-lhe um vomitorio que o fez deitar cá fora tudo quanto trazia dentro do peito. Está namorado da Ermelinda; é preciso arranjar-lhe o casamento, que tua mulher fale com ella.

João ficou admiradissimo. Apesar de tudo custava-lhe a crer em tal.

-- E' possivel!... Está falando verdade?!...

-- Pois n'o te disse eu, homem, qu'eu e teu irmão haviamos de nos entender?... Aqui tens a prova. Elle ainda começou a ladear, a ladear,... mas depois veiu de cabeça abaixo. Deseja casar co'a Ermelinda.

-- Com effeito! é boa surpreza!... E ella quererá casar com elle?

-- Ora! Está morrendo por isso, verás. E n'o vão mal um co'outro Vou conversar co'a Amalia.

Foi.

A' tarde disse elle para o sr. padre David.

-- Vá-se lá preparando p'ra fazer outro casamento d'aqui a dias. Os rapazes estão desaforados!

-- Quem se casa?

-- O Manuel, o irmão do meu João.

Zé Joaquim, quando falava do genro, dizia sempre assim; o meu João.

O sr. padre David ficou assombrado.

-- Que me diz você, Zé Joaquim?! E com quem?...

-- Co'a Ermelinda.

-- E' possivel?...

-- Não é possivel, qu'é certo.

-- Está o mundo roto, Zé Joaquim! Mas isso já é official?... já foi decidido?

Historiou Zé Joaquim os factos. Ermelinda tinha recebido com infinita alegria a proposta do Manuel. Ella nunca renunciára a casar-se dignamente.

-- Prompto! prompto! Os noivos que venham.

-- E que lhe parece? -- palpitou Zé Joaquim -- Elles farão fortuna?... Eu cuido que sim.

- Parece-me que é um bom casamento, Zé Joaquim -- respondeu o sr. padre David. -- O Manuel leva uma excellente mulher, boa e honesta; e ella leva um excellente marido, honrado e trabalhador.

-- Pois somos da mesma opinião Ainda bem! Lá p'ra domingo, provavelmente, pregões á missa!

E de facto. Como Ermelinda respondeu affirmativamente á consulta de Amalia, e a tia Ricardina e o tio Anselmo, chamados a capitulo, déssem o sim ao projecto, logo n'essa tarde se resolveu annunciar o casamento no proximo domingo.

Deu celeridade ao negocio a sollicitude de Zé Joaquim. Segundo elle, um namoro comprido era um disparate ainda mais longo.

Corridos os proclamas, realisou-se o matrimonio e foram os noivos viver para casa da tia Ricardina, a requerimento d'esta e do marido, do tio Anselmo, que por esse tempo estava meio paralytico, e que se finou ao cabo de sete mezes, contando setenta e seis annos de edade e trez dias.

XXXIV

Um macacão

Escreveu D. Leonor dando novas suas, e chamando a si a sua velha amiga e criada Ermelinda.

Já tinha casado. Sentia pesar pelo que haveria feito soffrer ao pae, evitando, como evitou, a imposição das suas vontades, mas era-lhe lenitivo a esta dôr a convicção de que, fugindo, ella o poupara a um mais sévo desgosto. A pessoa do primo causava-lhe dó e repugnancia. Tanto que teria por especial mercê divina a eliminação d'aquelle idiota! De resto era muito feliz. D. Duarte, que vinha a ser irmão d'ella por parte do mesmo pae, mas filho d'outro matrimonio, e mais velho cerca de vinte e tres annos, attentas as causas do procedimento tinha-lhe dado todas as desculpas. Recebera-a com nobre generosidade. E o marido amava-a loucamente.

Respondeu lhe João em nome da mulher, felicitando-a pelo seu novo estado e expondo-lhe com elegante singeleza, ás vezes fulgentissima de graça, como Ermelinda se deixára envisgar d'amores e assim voluntariamente se collocára na impossibilidade de correr ao seu honroso chamamento.

Veio de lá uma carta digna d'esta, e um macho carregado com lençarias e objectos que D. Leonor pedia para entregarem á noiva, a quem tudo offerecia em lembrança amistosa. Para Amalia vieram tambem uns mimos e para João uma canneta de prata dourada com um formoso solitario cravado no topo entre uma rosa de brilhantes. Acompanhava-a esta especial referencia: «A canneta é um presente que meu marido me pede para offerecer por elle ao teu secretario, dizendo que a merece quem tão bem sabe escrever.»

João gostou immenso d'este elogio. Não ha ninguem que não tenha o seu migalho de vaedade. Respondendo, pois sempre em nome da mulher, poz elle na carta: «o meu João, que é como V. Ex.ª sabe o meu secretario, ficou encantadissimo com o presente que o esposo de V. Ex.ª quiz ter a bondade de lhe fazer. Agradece o muito reconhecido, e diz que por força é fidalgo quem por tão lindas maneiras sabe obsequiar».

Esta ultima parte do paragrapho epistolar, era uma contestação especiosa do que o fidalgo e o mano diziam de maior contra o marido de D. Leonor, enchendo as bochechas a chamarem-lhe plebeu.

Depois d'isto houve ainda uma espaçada troca de correspondencia, e naturalmente tudo foi cahindo na ordinaria regularidade mundana. O assumpto ia-se fazendo velho, e a velhice é a morte. Pasto á besbilhotice não n'o havia: Manuel e Joáo davam-se muito bem com as suas mulheres.

Era no emtanto bastante inquieta a vida do marido de Amalia. Manuel, homem de poucas ambições, deitava-se e dormia como um justo. João, pelo contrario, noites havia em que não pregava olho. Não fazia senão rebolar-se na cama.

-- Mas que tens tu, João? -- perguntava-lhe muito carinhosamente a mulher.

Davam-lhe grandissimo cuidado estas insomnias do marido.

-- Fugiu-me o somno. Puz-me cá a parafusar na vida... foi-se!

Havia umas meiguices.

-- Ora que homem que tu és!... Pois n'o temos nós, graças a Deus, bastante com que viver?... Que matacão a tua!... Matas-te!

-- E os filhos?... em vindo os filhos?... -- replicava João -- Ahi é que está o negocio: os mezes fogem.

E tudo era elle preoccupar-se com a vida, com o futuro. Desejava, dizia, ter uma velhice tranquilla, vêr os filhos fartos, agenciar-lhes meios. Não parava.

-- Pois se meu sogro ajuntou esta casa, porque n'o hei d'eu augmental-a, leval-a ao dobro, pelo menos? -- discorria elle. -- Não faço maravilha nenhuma se tal conseguir.

-- Isso! Assim, meu rapaz!-- bradava lhe Zé Joaquim. -- Vae-m' assim pensando, que pensas bem. Emquanto um homem é novo, é que é dar-lhe; depois bau-bau senhor doutor; depois laverunt galhetas! Anda-me p'r'a frente!

Amalia não gostava d'estes incitamentos. Parecia-lhe bastante o natural enthusiasmo do marido pelas prosperidades da casa: de tanto que o estremecia, cuidava que as canceiras da vida acabariam por lh'o matar. Andava sempre a rezar coroinhas a Nossa Senhora para que elle lhe não cahisse doente.

-- E' certo-- obtemperava pois Amalia -- masquem se mata morre cedo.

-- Ora adeus, adeus! -- amollava Zé Joaquim -- O trabalha n'o mata ninguem: dá saude, enrija. Aqui 'stou eu p'ra exemplo. Pensas tu que eu tambem n'o perdi muita noite a martellar na vida?... que n'o tive muitas canceiras, que n'o lidei noite e dia emquanto pude?... Pois atão! Perdi muita noite a labutar na minha vida, trabalhei muito!

E mais influia o genro.

-- Deixa lá falar a Amalia, que ella n'o sabe o que diz. Trabalha! Das pedras se faz pão quando ha boa vontade. N'o ha coisa melhor do que um homem chegar á minha idade, e dizer: «agora posso descançar: ganhei pão p'ra mim e p'r'os filhos.» Não ha coisa melhor! Póde vir uma doença, póde vir uma infelicidade... Trabalha!

Estes discursos afervoravam o animo de João, e puxavam lhe o espirito para o terreno dos grandes problemas economicos. Porque meios havia -- d'elle fomentar o seu capital?... dobral-o, triplical-o, multiplical-o infinitamente, que era o seu desejo?... empregando-o em explorações mercantis, industriaes, agricolas, ou quê?...

Respondeu-lhe imprevistamente a fortuna. Ha d'estes bons acasos na vida. Acabava de ser posta em praça a construcção d'uma estrada que lhe passava quasi á porta. Graças a uma reviravolta politica, a uns compromissos eleitoraes, ia emfim ser aberto á viação publica aquelle caminho havia tempos esquecidos gizado no papel. Lembrou-lhe concorrer á arrematação de toda a empreitada, ou de parte d'ella. Foi ás carreiras dar conta da sua idéa ao sogro. Segundo João, aquella estrada devia ser uma bella mina para si.

Zé Joaquim encarou n'elle com ar assombrado. Não duvidava que a estrada fosse, com effeito, uma rica mina para o empreiteiro que a fizesse. Tinha n'um seu conhecido exemplo abonador. Esse sujeito tomara conta d'um ramal, e arranjára n'essa pequena empreza avultados lucros. O seu assombro provinha da bella miragem da empreitada, e da revelada audacia e finura do genro.

-- Oh, co'os diabos! -- bradou Zé Joaquim deixando transparecer todo o seu enthusiasmo -- apanhares tu a estrada, era um negociarrão. Enriquecias como quem vae de caminho. Quem te deu essa idea?...

-- A idéa!?... Tive-a eu, é minha.

Zé Joaquim não se poude dispensar d'uma diligencia vã: quiz lêr na fronte do genro a divisa do talento.

-- Saiste-me da pelle do diabo, rapaz! -- exclamou elle.-- Quando é a arrematação?...

-- D'aqui a vinte dias. As propostas devem ser apresentadas até á uma hora da tarde do dia 18 do mez que vem.

-- Valeu! -- disse Zé Joaquim depois de breve meditação. -- Vae-se cuidar quanto antes d'esse negocio. No sabbado não, p'r'amor das ferias do Engenho. Será no domingo. No domingo montamos ambos a cavallo e vamos saber as bases do contracto.

-- Saber as bases do contracto e falar com um engenheiro, com pessoa que nos possa dizer que difficuldades terá o trabalho-- emendou João.

-- Claro! E's dos meus. N'o se deve entrar ás cegas n'este negocio. A mim parece-me qu'esta estrada n'o tem nada que fazer: mas em todo o caso é bom averiguar. Falarei 'ó mesmo tempo com dois ou tres amigos, p'ra qu'elles dêem umas voltas e favoreçam o negocio. Que n'o vá eu só sêr homem p'ra dar votos em eleições! O concurso é publico, sabes?...

-- E' por carta fechada.

-- Melhor. Agrada-me isso. Entretanto vae-te lá tu consultando. Olha qu'a empresa é rendosa, calculo, mas ha de ter espinhos.

-- N'o tem duvida.

-- Sentes te com forcas?...

-- Ora essa! Pois eu n'o sei o que me interessa, o que me convem?...

-- N'o é isso qu'eu quero dizer. Bem vês que ha pontes, ha aqueductos... o diabo!

-- Bem sei. Mas para que tenho eu olhos na cara?... N'o m'ha-de servir d'alguma coisa o que sei, o qu'estudei?...

-- Acabou-se! saiste-me da pelle do diabo. Lá iremos no domingo tratar d'esse negocio. Com'assim, seja!...

No dia aprazado, antes do alvorecer, montaram a cavallo e partiram para a Guarda João e o sogro, dispostos a informarem-se miudamente do que lhes convinha, e a empregarem todos os esforços para lograrem o seu intento, caso as informações colhidas fossem boas.

Chegados lá, correu-lhes tudo a primor. Tiveram a fortuna de ser apresentados ao engenheiro que fizera os estudos da estrada, e que da melhor vontade se prestou a fornecer-lhes os mais detalhados esclarecimentos que se podiam pretender sobre o assumpto. Mas tristes, desesperadores esclarecimentos esses! Segundo o homem, que logo lhes declarou que lhes ia falar com a mão na consciencia, a estrada tinha para base de licitação um preço baixissimo: as terraplenagens eram custosas, as obras de arte cheias de exigencias, o arroteamento difficil. Em summa, um empreiteiro conhecedor d'aquelles serviços poderia ganhar na construcção d'aquella estrada uma meia duzia de libras: um empreiteiro sem experiencia d'elles, por muito feliz que fosse, havia de perder as orelhas.

Ouvindo isto, João ficou passado de terror: caiu-lhe a alma aos pés! Saiu de casa do engenheiro esmorecido, morto. Afinal, ao inverso do que elle esperava, a sua phantasia era uma rematada loucura. Nem já se atrevia a erguer olhos para o sogro!...

Zé Joaquim, porém, saiu diversamente impressionado. Trazia uns beiços que pareciam o gargallo d'um cantaro. Vinha falando com os seus botões.

-- Tantas difficuldades, tantos riscos... -- monologava elle. -- Nada! -- disse para o genro depois d'um breve hesitar. -- Desconfio d'este patusco. Isto é passaro bisnau: é dos de treta e beta. Vem d'ahi. N'o olhes p'ra traz, que n'o vá elle dar pelo que nós dizemos. Mas que gajo!...

João tinha parado, muito surprehendido. Não sabia se devia dar razão ao sogro. Continuou andando.

-- Deix'o homem por minha conta -- ia-lhe dizendo Zé Joaquim -- Tu verás que n'este negocio ha grande cantiga. Segue-me.

Lá longe parou, e poz-se para ali a matutar. Depois deu umas voltas, e foi sósinho a uma baiuca saber se na cidade havia algum conductor d'obras, algum engenheiro, sem ser aquelle a quem vinha de falar.

O modo como elle realisou esta diligencia foi altamente habilidoso. Começou por pedir meio quartilho de vinho. Tinhi medo que o diabo lhe descobrisse o seu plano. Já por isso fôra só, não quizera levar comsigo o genro. O diabo tece-as!

-- Ora vossemecê saberá dizer-me uma coisa, por favôr? -- perguntou elle ao taverneiro.

-- Se souber...

Puchou Zé Joaquim do bolso um papel, e fingiu ler n'elle.

-- Saberá dizer-me adonde móra um tal sr. Antonio Moreira, ou Moraes, ou coisa assim, que p'los modos é engenheiro?

-- Por esse nome n'o conheço -- disse o taberneiro. -- Vocês conhecem?-- perguntou elle a uns poucos de freguezes que tinha na loja.

-- Como é elle, como é?... -- inquiriu muito abelhudamente um dos da roda, sujeito já de edade.

-- Antonio Moreira, ou Moraes, ou que demo é elle! -- respondeu Zé Joaquim tornando a relancear os olhos pelo papel, e passando-o logo ao bolso.

-- E' coisa que n'o conheço, engenheiro d'esse nome -- disse-lhe á boa fé o seu interlocutor. -- Nem que se pareça.

-- Essa é qu'é uma dos demonios! Fizeram-me uma incumbencia... recommendaram-me este homem... Só s'a pessoa s'enganou.

-- Pois olhe que n'o é outra coisa. Quem quer que foi que o dirigiu, enganou-se.

-- Vae uma pinga?...

-- Vá lá isso, visto que quer.

-- Mais meio quartilho, ó patrão!...

O patrão ou taberneiro, servia o vinho, e a conversa proseguiu, falando o informador de Zé Joaquim.

-- Os engenheiros qu'ahi ha, são bem conhecidos, e são só dois: um é o sr. Azeredo, qu'está p'ra Lisboa; outro é o sr. Murteira, qu'ahi está, cuido eu, e mora na rua Velha.

-- Pois olha que n'o é outro qu'este senhor procura, ó Miranda -- interveio do lado um ouvinte -- E' qu'ell'em vez de lhe chamar Murteira, chama-lhe Moreira. Ha-de ser o proprio.

-- N'o é, não, tenho a certeza -- replicou Zé Joaquim -- D'esse já me falaram. Pelos signaes n'o é elle.

Ora de casa d'este é que Zé Joaquim vinha! Por isso é que elle contradisse o alvitre.

O primeiro informador corroborou, respondendo ao interventor.

-- N'o póde ser. Este sr. diz qu'elle é Antonio. Ora o sr. Murteira n'o é Antonio, é Sebastião.

-- E é verdade, é Sebastião, esse -- condisse Zé Joaquim. -- Só me disseram que elle é engenheiro, e afinal elle é algum conductor.

-- Tamem não -- responderam redondamente os companheiros da baiuca. -- N'o ha'hi nenhum d'esse nome.

Já todos prestavam esclarecimentos. Provavelmente faziam namoro a algum meio quartilho.

-- Conductores -- explicou o feliz que tinha sido obsequiado por Zé Joaquim -- n'o ha'hi senão um com estudos, capaz. Mas esse nem é Antonio, nem Moreira, nem Moraes. E' Carlos Diniz. Mora na travessa da Guarita. Sendo p'ra lhe préguntar alguma coisa da sua profissão, esse competente é: sabe onde tem a cara.

-- Pois paciencia. Desculpem, e muito obrigado pelo incommodo -- disse Zé Joaquim despedindo-se logo para que lhe não esquecesse o nome e a morada do indicado conductor. -- Vivam!

E sahiu lesto.

Apoz a partida d'elle, deu-se na taverna um reboliço estranho. Zé Joaquim não tinha pago o vinho que bebera, nem o que offerecera. Todos eram a prevenir d'isto o taberneiro, e muito particularmente o obsequiado com a dadiva do meio quartilho, para se desobrigarem de responsabilidades, já se vê

-- O' Saturnino! olha qu'o homem n'o pagou.

-- Chama ali o homem depressa, que s'esqueceu de pagar o vinho!

-- Avia-te, qu'elle lá se vae. Olha qu'eu n'o pago!

Saltou o Saturnino d'um pulo o balcão da loja, e accudiu á porta a chamar Zé Joaquim, que parecia ir fugindo de pagar a despeza feita. A' porta agrupavam-se cheios de curiosidade os freguezes do estabelecimento.

-- Pschiu?.. O patrão?... O senhor?... -- gritava em altos berros o taberneiro, sempre correndo no encalço do freguez.

Zé Joaquim voltou-se, bem que nem se lembras se que o caso era comsigo.

-- Atão vossemecê bebe e n'o paga ?... -- disse-lhe petulantemente o Saturnino.

-- Oh, co'os diabos!... -- bradou Zé Joaquim enfiado -- Desculpe, homem: haja de perdoar; de todo m'esqueceu. Ora uma d'estas, uma d'estas!... Quanto é elle?...

-- Dois patacos -- disse-lhe o taberneiro, que já se pagava d'este modo n'um vintem da corrida dada atraz do freguez.

-- Tome lá, tome... -- disse-lhe Zé Joaquim dando-lhe um tostão em prata -- Cresce um vintem, é p'r'o susto que vossemecê teve. E perdôe!

E lá se foi elle muito envergonhado d'aquelle compromettedor descuido, e mais arreliado ainda porque com o incidente se lhe varrera da memoria o nome do conductor. Só se lembrava da rua.

-- Mas n'o tem duvida -- assentou elle de si comsigo -- Quem tem bocca vae a Roma. Com'eu sei onde o homem mora, o resto é fácil.

Feito este raciocinio foi encontrar-se com o genro ao posto em que o tinha deixado, e depois de lhe contar o caso do calote de que o taberneiro ia sendo victima, dirigiu se com o rapaz ao domicilio do conductor.

Não quiz apresentação nenhuma. Tambem não teve difficuldade nenhuma em lhe dar com a porta. Lá o dirigiram mal elle abriu a bocca. Nas terras pequenas é assim; todos se conhecem.

-- Desculpe o sr. a nossa confiança -- principiou Zé Joaquim -- Vimos-lhe pedir o obsequio d uma consulta, por a qual aparte a paga que nos levar lhe ficaremos muito agradecidos.

-- Estimarei podel os servir -- disse o conductor d'obras convidando as suas vizitas a sentarem-se.

-- Ah! isso póde -- replicou Zé Joaquim-- E' que tencionamos concorrer á arrematação d'uma estrado, mas precisamos que antes alguem nos explique a qualidade do negocio em que nos vamos metter. Ora vossa senhoria é muito competente, sabemos.

-- Obrigado, pela conta que faz de mim... Dirá, então...

-- Dá cá os papeis, João -- disse Zé Joaquim ao genro.

João entregou-lhe os documentos que possuia relativos á estrada, e Zé Joaquim passou-os á mão do conductor, que se deu pressa em os ver.

-- Ah! -- exclamou elle -- Conheço perfeitamente esta estrada: ajudei a fazer os trabalhos de campo, e os de gabinete. Perfeitamente!

Zé Joaquim deu um salto na cadeira. Custou-lhe bastante a dissimular a alegria que tal revelação lhe causou.

-- Tanto melhor -- disse elle com a possivel compostura. -- N'esse caso ninguem mais competente para nos desenganar. Que nós já temos um voto favoravel! -- advertiu elle finoriamente -- Dizem-nos que a construcção é facil, e promette bons lucros. Em todo o caso... a empreza é arriscada.

O conductor sorriu-se.

-- Arriscada, esta empreza?! Tomára eu podre lançar mão d ella. O preço porque a põem em praça é exaggeradissimo. Ha de dar ganho, por força.

-- E' o mesmo que nos disse o outro -- advertiu Zé Joaquim para o genro, piscando-lhe o olho á subcapa.

O rapaz ia deitando tudo a perder com este áparte do sogro. Sentiu uma irresistivel vontade de rir.

-- Quem?... -- perguntou o conductor.

-- Um nosso patricio que sabe de engenheria. Um sujeito que vossa senhoria não conhece. -- respondeu Zé Joaquim com ar solemne. -- Entretanto, p'ra tirar bem as duvidas... «Vamo-nos entender com pessoa que tenha auctoridade!» disse eu aqui p'r'o mê genro. Poderemos dar uma, duas, ou tres libras, o que for, pela consulta?... E' o mesmo. Dariamos de boamente quatro, ou oito, ou doze, a quem lealmente nos aconselhasse a desistir do nosso intento. Que mais forrariamos, está claro.

-- Pois n'o hei de ser eu aue tal conselho lhes dê! Não, srs.: pelo contrario; digo-lhes que concorram á arrematação, e até lhes digo mais; que apresentem uma proposta de preço bastante inferior ao da base da licitação.

-- Veja lá, sr... Não me lembra a sua graça!

-- Carlos Diniz, um seu creado -- respondeu cortezmente o conductor.

-- Muito obrigado! - respondeu inclinando-se Zé Joaquim -- Pois sr. Carlos, veja lá em que nos mette... Nós preferimos dar-lhe até... eu sei lá quanto! e livrarmo-nos só que seja de cuidados. Já se não fala em perdas: só por n'o trabalhar p'r'o bispo, p'ra n'o andarmos co'a cabeça doida.

-- Ora pois que assim me fala, vou fazer-lhe uma proposta -- disse o conductor.

-- Dirá vossa senhoria.

-- Eu faço-lhe todos os calculos de despeza, elaboro-lhe a proposta, estudo-lhe a preceito o assumpto, dirijo-o, e o sr. dá-me por tudo isto, ficando com a empreitada, e ganhando quantia superior a trez contos de réis, dois por cento sobre esses trez contos de réis, ou sejam sessenta mil réis: e no caso de ganhar menos, não me dá nada. Convem-lhe?...

-- Por mim, acceito -- respondeu promptamente Zé Joaquim. -- E tu que dizes, João?...

-- Tambem acceito.

-- Acceitamos.

-- Fiquemos então n'isto. Vão os srs. com Deus, e voltem amanhã por esta hora. Mas guardem segredo da minha interferencia n'este negocio, ouviram? Eu não quero inimizades. Não lhes posso dizer mais nada.

Tomado o compromisso de sigyllo, cumprimentaram-se e despediram-se os homens. A dois passos da porta do conductor, Zé Joaquim parou e disse para o genro:

-- Ouviste?... «Mas guardem segredo! N'o quero inimizades»... Ah! eu bem te disse. Eu logo te disse. O patife do engenheiro leva rasca na obra, e quiz-nos empulhar. Vae feito com alguem na empreitada. Este, sem querer, desmascarou-o. Ah! qu'a mim ninguem me come!.. . Alegra-te: dei na marosca: o engenheiro deu co'a fôrma do seu pé. Isto, meu amigo, quem n'o tem manha morre n'o ar como a aranha. Vae aprendendo, qu'estás novo. Tu sabes muito, mas inda tens comido pouco sal. Eu cá já sou macacão. Amigo!... p'ra um pellado, um careca!

XXXV

Um bom informador

Homem experimentado, ou macacão, como elle dizia, e tudo vinha a ser um nas affinidades do seu vocabulario, não descurou Zé Joaquim procurar informações acerca do conductor d'obras. Querias-as da capacidade moral e da capacidade intellectual, desenganadas, insuspeitas, fidedignas. Eram excellentes as que lhe tinha dado a pessoa que o inculcára, o consocio da taberna; e eram tambem magnificas as suas impressões; mas não bastava tudo isto a satisfazel-o. Os muitos precalços e desenganos da vida tinham-lhe roubado a boa fé, a candura, inclusivamente a confiança dos seus proprios conceitos. Já que, parecia-lhe, por fortuna se não tinha deixado embahir pelas arteirices do engenheiro, que não fosse o diabo leval-o ás mãos do conductor para lhe castigar peccados!

-- Nunca fiando! -- dizia elle para o genro com muito encarecido modo. -- Gato escaldado d'agua fria tem medo. Pareceu-me qu'o sujeito nos falou com muita lizura, e que o outro é um trastalhão de marca d'anzol: mas é bom averiguar. Vamos pelo seguro, qu'o Seguro morreu de velho. Vale a pena ter o trabalho.

Uma difficuldade, porém, e essa realmente grave, se lhe encontrava com o desejo. Não sabia a quem havia de recorrer: os seus conhecimentos de pessoas na cidade eram conscriptos a meia duzia d'individuos, uns muito altos para serem encommodados por este motivo, e outros muito baixos para poderem corresponder ao seu empenho. No emtanto, expondo isto ao genro, ia-lhe sempre dizendo:

-- Mas é o mesmo, n'o tem duvida. Quem bem procura, acha. Vamos andando.

E caminhava sempre.

João seguia-o sem lhe dizer palavra. Estava ancioso por ver onde elle iria dar comsigo, desencantar o tal informador fidedigno que pretendia. Pelos modos Zé Joaquim andava em diligencias de o topar no seu caminho: não fazia senão correr ruas, olhando á direita e á esquerda, com ares de quem procura o desconhecido.

O rapaz sentia-se morto de curiosidade e pasmo. Tudo o que n'este dia se estava passando era novo para si. Afinal elle era uma creança, um innocente: tinha os homens em conta de mais leaes: não cuidava que elles fossem tão maus. Mas tambem não suppunha que o sogro fosse tão matreiro; lá isso é que não! Fazia-o um simples bom homem.

Ao cabo de muitas voltas para traz e para diante, para baixo e para cima, parou emfim Zé Joaquim, e disse para o genro com grande satisfação:

-- Descobri! Já sei quem nos vae pôr em pratos limpos o que queremos. Já vejo o homem.

João dirigiu a vista no sentido em que o sogro olhava, e por intuição apurou que o indicado sujeito era o barbeiro da rua.

Estava o homem á porta da sua loja todo relusente de oleos, todo penteado, risonho, vendo quem ia e vinha.

Era elle, com effeito. Não podia ser outro.

-- Conhece-o?... -- perguntou João ao sogro.

-- Elle não. Nunca o vi mais gordo. -- respondeu Zé Joaquim -- Mas aquillo n'o falha. Repara n'elle... Vel-o?... E' o homem! Quanto mais penteado, mais maroto. Vaes ver s'eu m'engano!

Dito isto dirigiu-se Zé Joaquim para a loja.

Era um pequeno quadrilongo com as paredes cobertas d'um sem numero d'estrellas e de bonecos de papel de todas as côres, rendilhado á thesoura, e d'algumas estampas baratas de batalhas encarniçadas. Do tecto pendiam uns vassoiros de fetos, postos ali para poisio do mosquedo.

Todo aquelle arranjo era obra do mestre, que nas horas de pachorra assim ia enfeitando o estabelecimento.

Correspondeu Zé Joaquim o melhor que poude e soube ao floreado cumprimento do sujeito, entrou e sentou-se na cadeira do officio.

-- Ora faça de mim um rapaz!... -- disse elle ao mestre.

O mestre sorriu se amavelmente, e saia-se logo com umas lisonjas adoraveis. João, que presumia que o sogro ia perguntar sem mais rodeios quem era o conductor, não poude reprimir um gesto de espanto.

-- Senta-te -- disse-lhe Zé Joaquim

-- Então?... n'o paga mais por estar sentado! -- accudiu o mestre arrastando logo uma cadeira a João -- A' vontade: esta casa é sua.

João sentou-se authomaticamente, e o mestre correu a dispensar os seus cuidados a Zé Joaquim.

-- Esponta as suissas?...

-- Vá lá isso: uma espontadella ao de leve. O resto bem escanhoado.

-- Descance. Ha de ir bem servido.

-- Também mal feito fôra que um mestre de primeira ordem...

-- Oh senhor!... -- exclamou o mestre curvando-se todo de reconhecimento -- Faz-se o que se póde.

Immediatamente lançou o penteador ao pescoço de Zé Joaquim, e começou a espontar-lhe os cabellos das suissas. Deu algumas tesouradas.

-- Assim, ou quer mais curto?...

-- Assim, assim... Vae bem. Nem muito ao mar, nem muito á terra. Meio termo.

-- Percebo: só a igualar.

-- Tal e qual.

-- E' um instante,

D'ahi a pouco estava finda esta operação.

Bateu o mestre a navalha, alisou a na palma da mão, ensaboou o queixo e o beiço superior a Zé Joaquim, e principiou a barbeal-o.

Tinha muito que se admirar a graça com que elle segurava o cabo da navalha. Uma galanteria!

Zé Joaquim ia a pouco e pouco puxando-lhe pela lingua.

-- Então tem muita freguezia, mestre?... Ha de ter. Um estabelecimento d'estes... de primeira ordem...

Respondeu o mestre fleugmaticamente, entretanto tornava a bater o fio da navalha no assentador.

-- Assim eu tivera mais mãos!

-- Calculo: a cidade é grande.

-- Tenho ahi mais dois collegas, mas... no sei p'lo que é! n'o engraça a freguezia com elles! Um, emfim...

Deu o mestre nova raspadella, e ergueu prompto a mão. Pareceu-lhe que Zé Joaquim se tinha constrangido. E com effeito! Mas era porque João, a quem elle estava vendo pelo espelho, tivera um ataque de riso, que felizmente poude reprimir. O mestre cuidou que fosse porque a navalha estivesse má.

-- Arranha?... A navalha arranha?... -- perguntou o mestre.

-- Não senhor, 'stá boa. Póde continuar.

-- Como o vi encolher-se...

- N'o faca caso. Foi uma ferroada d'uma mosca.

-- Estes diabos... Tamem é tempo!... Pois como eu ia dizendo -- continuou o mestre voltando gentilmente á faina do escanhoamento -- um d'elles, dos taes meus collegas, vive; o outro... Vá dizendo se a navalha o incommoda?...

-- Não senhor, não. Continue.

-- O outro -- tornou-lhe o mestre -- como é malcreadote... Dizem! dizem!... -- observou elle.

-- Oh, diabo! -- exclamou Zé Joaquim.

-- Além de que tamem se mette em politica!

-- Oh! que grande pateta!

Depois, como quem pergunta por acaso, como quem é de improviso sacudido por uma idéa, entrou Zé Joaquim no caminho das suas vistas.

-- Ah! diga-me cá, mestre?...

-- Direi, se souber.

-- Ha de saber. Vossemecê conhecerá por acaso um tal, um tal... Não me quer acudir o nome! E' um conductor d'obras chamado... chamado...

-- Silvella? -- perguntou o barbeiro.

-- Nada: tem outro nome.

-- Reis?...

Tambem não.

-- Atão ha de ser Carlos Diniz. -- affirmou o mestre.

-- Atinou!... Carlos Diniz. Conhece-o?...

-- Com'as minhas mãos.

-- Pergunto por elle, porque elle andou lá por 'ó pé da minha terra a estudar uma estrada. Falei-lhe uma vez.

-- Pois se eu o no conheço!... Mora logo aqui arriba, ao voltar do bêco que vae p'r'a praça E' muito esperto, mas muito levado da bréca. A mim já uma vez me fez uma partida!... Mas, emfim, acabou-se.

-- Alguma pouca vergonha?

-- Uma doidice; uma doidice.

-- Atão elle é doido?...

-- Doido, que digamos doido.. Tem venetas! Tem munto mau genio!

-- E' uma infelicidade.

-- E é. Por isso é qu'elle n'o tem amigos. Depois tem uma mulher!...

-- Ah! é casado?... Alguma doida por ahi?...

O mestre requebrou-se todo com efeminada denguice, e suspirou.

-- Têem-se p'r'áhi contado umas historias!...

-- Toma! Pois munto me conta.

-- Porém... n'o 'stá provado!

João sentiu-se a estalar de riso, e fugiu para a porta, fingindo que levava o intento de reconhecer alguem que passava.

-- Ora munto me conta o mestre!-- tornou Zé Joaquim. -- E provavelmente tudo baléla?...

-- Hun!... inclino-me a que sim!

-- Provavelmente vinganças: como o homem tem inimigos...

-- Já se tem pensado n'isso. E aqui p'ra nós: -- advertiu o mestre com solemne accento, em tom confidencial -- eu digo que sim!

-- Ah, sr. mestre! sr. mestre!... -- exclamou Zé Joaquim por tons.

O mestre respondeu á censura que resumava d'estas palavras com um sorriso brejeiro, e mais esta illucidação, tambem confidencial:

-- Fiz-lh'as diligencias!

Evidentemente o patife tinha feito a côrte á mulher do conductor, e evidentemente, tambem, não só tinha sido mal succedido, como o conductor lhe fôra aos lombos ou ás bochechas.

-- Pois eu cuidei que o tal Carlos fosse p'r'ahi algum doido, algum parvo -- disse Zé Joaquim para remeter a conversa o carreiro. --Agora p'lo qu'o mestre me diz...

-- Não, senhor... Qu'elle é esperto, n'o ha duvida nenhuma: e qu'é direitinho, tamem não. Porque se n'o fosse isso já o tinham posto á pá de pirula! Na repartição na'o podem ver: quer levar tudo á ponta da espada... O qu'a elle lhe vale é temerem-n'o. Temem n'o!

-- Mas porque?... elle é forte?... é valente?

-- N'o é isso. Sabe onde tem a sua mão direita: sabe do seu officio: todos le vão 'ó beija-mão.

-- Um desgraçado, afinal. E olhe lá?.. um engenheiro chamado Sebastião Murteira, conhece?... Tamem andou lá na tal estrada.

-- Oh! isso é outra loiça!

E assobiou-lhe.

Zé Joaquim, mau grado toda a sua prudencia, toda a sua cautela, d'esta vez ia-se rindo. Occorreu-lhe logo que o sujeito não era freguez d'este mestre. Era o diabo que o tentava!

-- Isso é qu'é uma abelha!.. Esse sabe a toda, tem um casão. Muntas achegas, muntas habilidades... Está rico, é o que lh'ei sei dizer. E é um tal sovina!... Eu d'antes ia-lhe lá a casa fazer a barba'ós sabbados. A's quartas-feiras fazia-a elle, por economia. Depois, o maldicto, deixou crescer a barba toda, só p'r'amôr d'avença.

-- N'o digo que não!

-- Olhe que nunca me deu um tostão p'r'amendoas, por umas festas!

-- E' assim que s'enriquece, mestre.

-- Assim?!... Pois n'o foste! Enriquece-se mas é fazendo toda a casta de trapaças, como elle faz. E sempre c'umas falinhas!... sempre c'uma labia!...

N'esta altura já o mestre pouzava a navalha e se preparava para lavar e limpar a cara a Zé Joaquim.

-- Deixe, qu'eu me lavo, mestre -- disse Zé Joaquim. -- N'o s'incommode.

-- A seu gosto... Aquelle senhor quererá tamem fazer a barba?

Apontava João, o mestre.

-- O' João?... tu queres fazer a barba? -- perguntou Zé Joaquim ao genro -- Ou faze-la logo?...

-- Logo -- respondeu o rapaz. -- Virei logo.

Entregar-se elle agora ao mestre, era não ter amor nenhum aos queixos. Estaria continuamente a rir-se; viria a apanhar golpe sobre golpe.

Em vista d'isto Zé Joaquim puxou de um pataco e pagou. Não quiz troco. O mestre cobrava-se d'um vintem por todo o seu trabalho.

-- Guarde, guarde...

Agradeceu com muitas mesuras o homem esta liberalidade verdadeiramente fidalga de Zé Joaquim, e ficou-se a vel o desapparecer pelas costas.

Lá adiante, ao largo, parou Zé Joaquim, agarrou o genro pelo braço, e disse-lhe:

-- Vês, qu'era elle o homem?... Quando quizeres saber alguma novidade, apurar alguma coisa, n'uma terra de provincia. . . váe 'o barbeiro.

XXXVI

Fortunas e desgraças

Ouvido e criticamente apreciado tudo quanto o mestre barbeiro disse, nenhuma duvida ficou restando a Zé Joaquim de que o conductor d'obras era pessoa honesta e intelligente. Portanto, no dia seguinte, á hora indicada, foi-se encontrar com elle cheio de confiança.

-- Cá nos tem, sr. Carlos Diniz-- disse elle apresentando-se a si e ao genro.

-- E veem mesmo a ponto -- disse o conductor correspondendo-lhes ao cumprimento. -- Agora mesmo acabei o trabalho a que me comprometti. Sentem-se.

João e Zé Joaquim sentaram-se.

-- E que tal?... -- perguntou este ultimo. -- Tem boas noticia a dar-nos?

-- Magnificas. Calculando tudo pelo peor, os senhores devem ganhar n'esta empreitada um dinheirão. Muitos contos de réis! O caso é obterem ser os adjudicatarios d'ella -- observou Carlos Diniz.

-- Havemos de lhe fazer as diligencias. Por desleixo é que nós n'o havemos de deixar de ser preferidos! -- protestou Zé Joaquim.

-- Pois muito bem. Vamos ao assumpto. Ora... os senhores já hão de ter feito os seus planos. Digam me; que tencionavam?... apresentar ambos a mesma proposta em concurso?... São parentes?...

-- E' meu genro, este rapaz-- respondeu Zé Joaquim -- Elle foi que se lembrou d'este negocio, e a nossa idéa é apresentar-se elle só ao concurso.

-- Reprovo! -- disse redondamente o conductor. -- Devem concorrer ambos em separado. E' este o meu conselho, e será por este meio que os senhores terão mais probabilidades de conseguirem o que desejam.

Tal affirmativa produziu grande confusão no espirito de Zé Joaquim.

-- Ora essa!...

João era todo ouvidos. Não perdia uma palavra da conversa.

-- Antes de mais nada, -- atalhou Carlos Diniz; -- os srs. nunca tomaram nenhuma empreitada d'estas?

-- Nenhuma -- respondeu lisamente o pae d'Amalia.

-- Ah! Então é por isso que o sr. ficou desnorteado com o caso das duas propostas... Pois isso é uma trica vulgar. Vejo que os srs. ignoram muita cousa.

-- Não diremos que não -- condisse Zé Joaquim.

-- Pois fiquem, sabendo que ha empreiteiro que ás vezes apresenta não uma, nem duas propostas, cada qual em diverso nome, mas tres, quatro..., conforme!

Zé Joaquim sorriu se incredulamente. Cada vez se via mais intrigado. Já começava a não fazer bom conceito do conductor. Já estava a parecer-lhe que elle era um pantomimeiro.

-- Acredito por o sr. o dizer, mas n'o vejo a rasão d'isso -- retorquiu elle com moderada expressão irrisoria.

-- Não admira que o sr. a não veja. Mas apontolh'a eu... Vamos por partes. Sabe que nenhuma proposta é acceite sem que o proponente primeiro tenha feito um certo deposito, um deposito provisorio?

-- Perfeitamente.

-- E sabe que depois da adjudicação, o adjudicatario tem que augmentar esse deposito, que fica sendo definitivo?

-- Tamem sei.

-- Ora muito bem. Dado isto, visto ser pequeno o deposito provisorio, que é aquelle sem o qual são consideradas nullas quaesquer propostas, o que faz o sr.?... o que faz um empreiteiro esperto?... Apresenta, supponha, quatro depositos: um em nome de José Maria, outro em nome de Antonio Reis, outro em nome de Pedro, outro em nome de Martinho. Tem quatro amigos, quatro individuos de sua confiança, que assim se chamam. Depois... vae, e apresenta as quatro propostas respectivas a cada nome. O primeiro offerece-se para fazer a obra, supponhâmos, por doze contos de réis; o segundo por onze contos e quinhentos; o terceiro por onze, apenas; o quarto por dez e oitocentos. Vae entendendo?

-- Faça favor de ir dizendo... Faça favor de continuar.

Agora estava Zé Joaquim mortinho por ouvir o final d'este estranho exordio.

Não, sr. Vou-lhe explicar melhor, com mais clareza. Supponhamos... O sr. deposita os trezentos mil réis, ou o que é que lhe requerem para lhe acceitarem a sua proposta a este concurso, e depois offerece-se para fazer a estrada por trinta contos; e aqui o seu genro, á sua parte, tendo depositado egual quantia, offerece-se para a fazer por vinte e sete. Não sei se me entende?...

-- Muito bem. Vá andando...

-- D'aqui o que resulta?... E' que, admitindo que as duas propostas de que estamos falando são as mais favoraveis, ou unicas, a preferida é a minima, a dos vinte e sete contos, a do seu genro. Percebe?...

-- Vou entendendo.

-- Mas o seu genro, que vae feito comsigo, o que é que faz se a sua proposta é a que segue á d'elle?...

-- Perde o deposito! Não faz o deposito definitivo! -- disse João abruptamente.

-- Claro! P'ra quê?... Sendo genro e sogro tudo a mesma coisa, e seguindo se a ser admittida a proposta dos trinta contos depois da dos vinte e sete, não será melhor, mais interessante, perder os trezentos mil réis do deposito provisorio?... Porque d'este modo já se ganham dois contos e setecentos mil réis, que é a differença achada entre as tres sommas!

- Ah! ah! -- exclamou Zé Joaquim. -- Sim, senhor, tenho entendido. Isso é uma tratantada bem feita. Mas que tratantada!

-- Diz bem, é uma tratantada. Mas é licita. Desde que o senhor perdeu o que depositou para ser admittido a concurso, acabou-se, ninguem lhe pode pedir outras contas.

-- N'esse caso... Está muito bem! A gente tem qu'ir c'os tempos. Quer vossa senhoria que nós apresentemos duas propostas: eu uma, e o meu genro outra; n'o é assim?...

-- Exactamente. Um vae concorrer por um preço mais alto, outro por preço mais baixo, ambos em condições favoraveis. Dado o caso das suas duas propostas serem as mais baixas, perdem o deposito da menor, para serem providos na segunda; dado o caso de entre uma e outra se metter uma terceira; levantam o deposito da mais alta, que assim é quite, e fazem o deposito definitivo na primeira.

-- Muito bem! Muito bem! Grandes novidades nos 'stá dando o senhor Carlos... E já tem preparadas as propostas?

-- Já as aqui tenho. Não me descuidei.

Apresentou o homem em seguida os seus calculos, deu a razão d'elles a João, com quem logo viu que se podia entender perfeitamente em operações algebricas, e despedindo os seus clientes, com os quaes deveras ficara sympatisando, renovou-lhes o aviso de que não dissessem que lhe tinham falado, e que sob a sua direcção tencionavam concorrer ao concurso.

-- Seria porem de sobreaviso alguem que lhes poderia fazer mal por concorrencia -- advertiu o conductor. -- E a alma do negocio é o segredo. Basta que apresentem as suas propostas á ultima hora.

Zé Joaquim e o genro apertaram-lhe reconhecidos a mão, e foram d'ali falar com um dos mandões politicos do districto.

Durou vinte minutos, nem tanto, essa entrevista. Era occasião d'eleições, e o sujeito não sabia para onde se havia de voltar. Queria attender todo o mundo, contentar toda a gente.

O resultado d'estes trabalhos foi ser João o adjudicatario da empreitada. A sua proposta, entre as quatro que appareceram, era a mais favoravel. A do sogro ficava preterida por duas, nem menos, feitas em diversos nomes, e representando acaso a mesma individualidade, talvez o engenheiro.

Sabido isto, correu João a casa do conductor a pedir-lhe instrucções, que elle da melhor vontade lhe prestou, e partiu a dar começo aos trabalhos.

Desenvolvia uma actividade prodigiosa. Era vel-o por aquelle campo, dirigindo, destribuindo ordens, inspeccionando! Era vel-o d'um para outro lado, por todo o tempo, incessantemente inergico!

O sr. padre David pasmava; Zé Joaquim benzia-se. O rapaz em tudo dava leis, em tudo sabia falar, em tudo sabia mecher. Com tres ou quatro lições que o conductor lhe deu, pegava nos instrumentos d'engenheria e utilisava-os como se nunca tivesse cuidado d'outra coisa. Um perfil lia-o como quem lê uma poesia lyrica!

D'este modo ia tudo de vento em pôpa: a estrada apparecia feita por encanto rasgar uma trincheira, aplainar uns taludes, fazer um aterro, alizar o novo caminho, eram coisas que se realisavam a olhos vistos.

Não obstante, como a estrada era bastante longa, aquillo ia de vagar. Tudo é relativo. Progredia-se muito, mas não tanto quanto se póde pensar dando-se credito á imaginação.

Corriam no emtanto explendidamente as coisas sob o ponto de vista do interesse. Melhor, muito melhor do que seria razoavel presumir! A's vezes, grandes tractos de terreno que haviam sido explorados e classificados rocha dura, ou terra compacta, revelavam-se terra molle. Dados uns tiros, tudo se desfazia: destruida a crosta que os cobria, tudo ficava feito. Veios de quartzo, que são o desespero dos empreiteiros d'estes trabalhos, nenhum appareceu que désse canceiras: areia para argamassa, pedra de cantaria para obras d'arte, era onde a quizessem levantar. Havia em toda a parte.

Em termos que João viu realisado o seu sonho. Ganhou um dinheirão n'aquella empreitada, finda a qual começou a comprar quantas quintas, hortas, vinhas, olivaes e lameiros se offereciam á venda dentro dos limites da sua aldeia. Ao conductor deu o dobro da quantia que tinham combinado.

Infelizmente, porém, não viu Zé Joaquim todas estas felicidades. Quinze mezes depois de começada a tarefa, precisamente no dia do seu quinquagesimo oitavo anniversario, caiu de cama para de lá nunca mais se levantar. Passados vinte dias, ao pôr do sol, expirou. Vieram medicos de toda a parte, tentou-se por todos os meios conservar-lhe a vida, alongar-lh'a um pouco, mas tudo em vão. A sua hora derradeira tinha soado. Morreu aquelle nobilissimo homem; perdeu um dos seus mais queridos filhos a obscura aldeia que lhe fôra humilde berço.

Mas não pararam aqui os lutos de familia. Uma desgraça nunca vem só. Finou-se tambem a desolada velhinha, a avó de Amalia. Dir-se hia que a sua vida estava presa a do seu filho bem amado. Pedirem-lhe que não velasse as noites, quererem e não quererem que ella estivesse noite e dia, continuadamente, á cabeceira do seu querido filho, tudo era um. Lagrimas ninguem as via n'aquellas faces engelhadas, n'aquelles olhos pizados das vigilias: soluços, suspiros, tambem ninguem lh'os ouvia. Orações, só orações murmurava a velhinha. O que ella de todo o seu coração pedia a Deus, era que tendo de lhe levar o filho, a levasse a si quando a elle. E Deus, o bom Deus ouviu-a; quando Zé Joaquim, voltando os olhos para ella, soltou o ultimo suspiro da vida e reclinou a face para o seu lado, ella, convulsa, tremula, silenciosa, ergueu-se e enleou nos braços aquelle cadaver ainda quente, ainda palpitante. Depois rompeu n'um choro e gritos de abalarem corações de pedra. Quizeram então arredal'a d'ali, confortal-a, e ella resistiu, pediu, supplicou que a deixassem estar. Deixaram'n'a, e ella acalmou-se... Mais tarde, quando tornaram a tentar demovel-a, tiral-a do contacto do cadaver, acharam outro cadaver. Era morta a velhinha!

XXXVII

O fim d'um sonho

Prosperava João a olhos vistos. Não fazia senão comprar terras, derrubar lindes, accrescentar as suas propriedades. Parece que as pedras se lhe transformavam em pão!

-- De quem é aquella quinta? -- perguntava-se.

-- Do tio João Gil, meu senhor.

Que assim era o nosso homem nomeado e tratado por toda a gente, e muito a seu gosto. Pegára o costume desde que elle entrou feitor para o Engenho. Ao principio chamavam-lhe o tio João do Gil. Este «do Gil» era por causa das confusões com o João Fiadeiro, o antigo encarregado da fabrica, de quem muitas vezes se falava appellando só o nome baptismal. Depois, por maior abreviatura, deram em dizer apenas tio João Gil.

-- E aquellas varzeas?... aquelles casaes?...

Do tio João Gil, meu senhor.

Meu senhor, minha senhora, são expressões de cortezia que andam sempre na bocca do pobre aldeão beirense. Nunca ouvireis que elle vos trate differentemente!

-- E aquelle pinhal?...

-- Do tio João Gil, meu senhor.

-- E aquellas vinhas?... aquellas hortas?...

-- Do tio João Gil, meu senhor.

Tudo do tio João Gil, do filho da tia Ricardina, do marido d'Amalia! Tudo d'elle!...

E todavia João não era feliz, como se poderá cuidar. Não que elle tivesse falta de saude, ou fosse desestimado, ou se não desse bem com a familia. Deus louvado! saude tinha elle como poucos: a familia, os vizinhos, todo o mundo o estimava. Nada d'isto. O caso vinha a ser outro. A felicidade é uma coisa extravagante; não está n'aquillo em que no-la consideram; está no que nós individualmente a pomos. E' que a mulher não lhe dava filhos. Elle queria ter filhos. Feliz, segundo elle, era o irmão, o Manuel, que esse emfim, lá tinha um pequerrucho. Esse sim!...

Mas vão lá entendel-os!... Aqui têem uma prova de que a felicidade é uma coisa extravagante. Manuel chamava-se desgraçado pelo mesmo motivo por que o irmão o chamava feliz!

-- Se eu tivesse que lhe deixar!... -- dizia elle a meudo -- agora n'o tendo eu nada!...

Ora verdade seja que João, por amigo e generoso alvitre do sogro, tinha feito desistencia do que bem lhe podesse vir a caber em partilhas do casal paterno: e que por conseguinte, Manuel ficaria com toda a casa do pae. Mas e d'ahi?... que bens possuia o tio Anselmo?... A sua casita, quatro pedaços de terra, e disse. Pouco mais ou menos o valor de novecentos mil réis. E novecentos mil réis o que é?... Accuda-nos o Senhor, que n'uma doença bem se gastam elles!

Este o motivo de Manuel chamar-se desgraçado. Ah! se elle tivesse uma casa como a do irmão!...

Uma esperança, porém, consolava o coração do pobre pae. Dá-se que muitas vezes as desditas do proximo são as nossas alegrias. O homem é o maior enigma que o Creador lançou ao mundo. Como João não tinha filhos, e até se dizia que a mulher d'elle sahia ao lado do pae, cujas irmãs foram estereis, fiava-se Manuel que o pequenito, o seu Pedro, viria a ser senhor da fortuna do tio, ou de boa parte d'ella.

Falava o rapaz em segredo com a mulher e a mãe n'estas coisas, mas nem uma nem outra queriam crêr em tal.

-- Ora quem sabe lá, quem sabe!... -- dizia-lhe Ermelinda. - A tua cunhada é uma creança. Tem-se visto tanta coisa!...

-- E' verdade que sim, é, Ermelinda -- corroborava a tia Ricardina. -- N'o ha que fiar. A Amalia é uma rapariga. Onze annos esteve minha tia Rosa casada, e sem ter filhos. Onze annos, que n'o é qualquer coisa! Muitas vezes me falava n'isto minha mãe, que Deus haja, que também esperava por sapatos de defunto p'ra mim. E 'ó despois?... Morreram-lhe elle uns cinco, senão tinha a minha tia Rosa hoje um regimento. Veio o primeiro... ora! andava sempre de proveito! Era um fóra, outro dentro. Deitou cá alguns treze, louvado Deus! E aqui a nossa vizinha Marcella?... E' o que se vê! Depois de tres annos de casada, ahi 'stá ella de barriga á bocca!

Manuel esmorecia, esmorecia..., mas para logo se reanimar. Cada vez que vinha de casa do irmão e ouvia dizer que por lá não havia novidade, eia! mais uma sardinha á braza! E no entretanto pretendia confortar o irmão.

-- Ora deixa lá, homem! Afinal quem os n'o tem n'o tem cuidados. Queres tu o meu p'ra cá, p'ra te divertires?... Se o queres..., n'isso n'o 'steja a duvida. Faz de conta que elle é teu, e acabou-se. Lá a rapariga, por mal dos mês peccados, sempre apresentará outro!

João ouvia, e malucava. Não podia crêr que o irmão lhe dissesse a serio que lhe dava o filho para a sua companhia. Pois assim se deixa ir um filho para casa da avó, que seja?!...

Não podia crêr. Julgava por si: affigurava-se-lhe que por coisa nenhuma d'esta vida elle daria um filho seu nem ao Deus Padre!

O facto, porém, é que o petiz lá andava sempre em charola de casa do pae para a de João, e que João lhe começou a crear amizade tal, que por fim já todo se desgostava quando a mãe lh'o ia tirar á noite de casa.

-- Deixe-o ficar, Ermelinda -- pedia elle.

Não se ageitava a chamar á cunhada por tu. Nem ella a elle.

-- Isso sim! - respondia-lhe Ermelinda.-- Deitava ahi tudo abaixo com choro, se de noite acordasse e n'o tivesse quem lhe chegasse o peito. De dia, bem vae, lá se entretem elle co'a pápa; agora de noite!...

João convencia-se, e então olhava tristemente para a mulher: ella entendia-o, e tambem dava o cavaco por não vêr o marido contente n'este particular.

Chegou assim um tempo em que já Amalia e João queriam a toda a força que a cunhada desmammasse o filho. A razão é que o desejavam sempre comsigo,

-- Coitadinho! -- dizia a mãe.

-- Póde lá ser?!...-- commentava o pae. -- Só com quinze mezes de mamma!... N'o consinto!

-- Aldemenos deixal-o chegar aos dezoito mezes -- aconselhava a tia Ricardina. -- N'o é elle tão forte que ás carreiras se lhe tire o bico.

Amalia não concordava. Tinha creado tamanho amor ao pequeno, que já não podia soffrer a ausencia d'elle. Estava como o marido.

-- Olh'o tamanhão! -- exclamava ella. -- D'aqui a nada come trapos, se trapos lhe derem, e inda a mammar, o tamanhão!... Com effeito!

-- Filha!... -- observava circumspectamente a tia Ricardina -- o teu João, ond'o vês, já corria tudo por sê pé, já sabia pedir o que l'appetecia, e eu inda le dava de mammar.

Aqui havia risota. Depois se a questão voltava a carreiro, começava a tia Ricardina com seus conselhos, e com elles se punha remate á lucta travada.

Ermelinda não queria ficar com remorsos de ter tratado menos bem o seu querido filho.

Ao cabo de muitos debates veiu a combinar-se que logo que o pequeno podesse passar sem os soccorros maternos, iria para casa de João. E foi.

Realisou-se o contracto passados quatro mezes. Ermelinda tirou o leite ao filho, costumou-o a tratar-se com outros alimentos, e entregou-o aos desvellos da concunhada e do cunhado.

Era então galante ver o que João fazia com o sobrinho! O petiz sujava-o, arrepellava-lhe as barbas, fazia-lhe diabruras espantosas, e João, com uma paciencia de anjo, tudo lhe soffria a rir-se. Era um doido encantador. A breve trecho começou a persuadir-se que o pequenito lhe pertencia só a si, a mais ninguem. Por muito favor consentia que a mãe o levasse uns poucos. Mas havia de lh'o pôr logo para ali! Se acertava d'ella o levar, e demorar-se por lá com elle, Amalia tinha que ouvir-lhe.

-- Pois se tu és doida!... Havia d'eu'star cá, a vêr se a mãe o levava... P'ra quê?... p'ra que o levou ella?... Não o podia beijar ahi?... Ahi'stá! levou-o, anda por lá co'elle ao sol, póde-o deixar cair... Algum dia traz-l'o ahi co'a cabeça partida. Deix'a vir, qu'eu a ensinarei.

E Ermelinda vinha, e elle prégava-lhe um sermão, que findava sempre por estas formaes palavras:

-- Quem governa no pequeno, sou eu!

Manuel e Ermelinda gostavam immensamente d'isto, e muito mais ainda d'ouvirem dizer a João que, se elle, por felicidade, viesse a ter uma filha, havia de a casar com o sobrinho.

Isso sim, é que dava alegria ao Manuel!... Até elle já, apesar de toda a sua avareza, pedia ao céo que désse uma menina ao irmão. Só uma! Só uma filha! Ao menos veria o irmão bem contente do seu contentamento, bem feliz da sua felicidade. Se o Pedro havia de casar com outra mulher, e levar a essa toda a fortuna herdada do tio, então que casasse com a prima, que tudo ficava em familia.

Nem mesmo está averiguado que Manuel não entrasse com a cunhada e o irmão no compromisso d'algum voto á santa ou santo que elles invocassem n'este sentido. Talvez...

Entretanto em sonhos ia passando o tempo, e cinco annos, nem menos, correram n'este curioso anhelo, até ao dia em que finalmente Amalia revelou ao marido, em pormenores intimos, o segredo da maternidade, e a noticia circulou na aldeia. Porque n'esse dia perturbaram-se consideravelmente as coisas. Agora exultava João d'alegria, e Manuel anceava de duvida. Foram ambos n'essa mesma tarde á egreja accender vélas, mas por diverso motivo: um dava porque emfim trazia a promessa feita desde muito: ia ser pae, ia ter um filho. O outro dava para que o seu empenho fosse ouvido. Queria que a cunhada désse á luz uma menina. De maneira nenhuma um menino!

Pobre do Manuel!... Isso é que elle andava sobresaltado!... Isso é que elle sentia umas colicas!... E se nascia um rapaz?... E se não vinha uma menina?...

Comprehende-se: se Amalia tivesse um filho varão, esse naturalmente viria roubar-lhe ao filho da sua alma toda a fortuna, todas as caricias, todos os mimos, todas as ridentes esperanças de futuro; se, porém, tivesse uma menina...

Ah! mas vélas no altar de Nossa Senhora dos Afflictos é que não faltavam... Isso é que não!

Foram no emtanto correndo os mezes, e o momento critico aproximou-se, chegou. Um dia, á tardinha, estava Manuel começando a cear, vieram dizer-lhe que havia novidade em casa do irmão.

Está claro: dizer-se que ha novidade n'uma casa onde a cada hora, a cada instante, se espera a chegada d'um filho, é o mesmo que dizer-se que ou está por pouco a fabulosa apparição do hospede, ou que o hospede é já chegado.

Levantou-se pois Manuel de um pulo, e perguntou aparvalhadamente á mensageira:

-- E' menino ou menina?

-- Ainda é segredo -- respondeu a mensageira.

Manuel deitou fóra a mastiga que tinha na bocca, e levou a mão ao peito no louco pensamento de querer segurar o coração, que todo elle lhe tremia.

-- Agua!... Deem-m' agua!... -- murmurou elle anciado, livido, sentando se para não cair.

Ninguem o socorreu. Ermelinda tinha desapparecido ligeira como o fumo: a tia Ricardina devia áquella hora estar em casa de João.

-- Agua!... Dêem-m'agua, por Deus que, morro!... -- tornou elle a supplicar.

Cobriam-n'o uns suores de morte. Tão depressa se lhe afogueava o rosto, como logo lhe voltava a pallidez, uma pallidez cadaverica.

D'ahi a um bom pedaço, cobradas algumas forças, ergueu-se Manuel e foi-se, tem-te não caias, a casa do irmão.

As pernas abanavam-lhe como vimes batidos por vento. A's vezes parava para ver onde cairia, se uma vertigem mais forte o acomettesse. Andava-lhe tudo á roda.

-- Já?... -- perguntou elle ás primeiras pessoas que topou em casa do irmão.

Responderam-lhe desattentamente essas pessoas que ainda não: que a cunhada ainda não tinha tido o seu bom successo, percebe-se.

Entrou; sentou se. Faltava-lhe o ar, faltava-lhe a luz dos olhos... Atirou com o corpo para ali, para o primeiro banco em que tropeçou. Podia morrer que ninguem lhe susteria a cabeça no seu derradeiro estertor de vida. Todos n'aquella casa andavam cegos, apatetados, a correr d'um lado para o outro em bicos de pés, rezando sempre...

D'ahi a uns dez minutos, que foram para Manuel um seculo de tortura, retumbou pelos cantos da casa um grito alegre e breve, como de sentinellas que passam palavra.

-- E' uma menina!... E' uma menina!...

Manuel, tremulo, offegante, como quem sonha e em sonhos fala, ergueu-se de chofre e repetiu o pregão.

Parecia a sua voz o echo longinquo do grito corrido, um vago murmurio da natureza morta...

Immediatamente cahiu sobre o banco de que se levantára.

Tinham-se-lhe retingido as faces d'um modo estranho.

-- Vinho!... Dêem-me vinho!... -- murmurou elle com a voz apagada, e um sorriso alegrissimo a pairar-lhe nos labios coados de côr.

Os que o ouviram, se é que alguem o poude ouvir, não fizeram caso d'elle. Ninguem sabia o que fazia. Parecia aquillo uma casa d'orates.

-- Deem-me de beber!... Jesus, que morro!... -- tornou Manuel n'um tom murmuroso, e ainda o mesmo sorriso alegre a pairar-lhe nos labios.

João, que n'aquelle instante ia passando, e o ouviu, e comprehendeu o jubilo que transbordava d'aquella alma, correu para elle de braços abertos.

-- E' uma menina, Manuel! -- exclamou elle radiante, a rir e a chorar ao mesmo tempo.

Manuel ergueu-se, apertou-o muito nos braços, quiz-lhe dizer o que quer que fosse, mas não pode já articular palavra. A voz, surda entaramelada, prendeu-se-lhe na garganta; depois os braços laçaram-se-lhe, a fronte pendeu lhe para o lado, e o corpo inerte quiz prostar-se-lhe por terra.

-- Manuel!... Manuel!... -- bradou João aguilhoado pela mais terrivel das suspeitas -- Manuel?!...

E Manuel não lhe respondeu; estava morto, fulminado por uma congestão.

Morto, o pobre Manuel!...

XXXVIII

A filha de João Gil

A desordenada gritaria que a morte de Manuel subitamente levantou em casa de João, ia produzindo consequencias fataes. Amalia, cujo estado melindroso n'aquelle momento afflictivo todos esqueceram, soffreu cem essa tempestuosa irupção d'alaridos um tão violento abalo, que por pouco elle lhe não foi irremediavelmente funesto. Logo lhe sobreveiu uma ardentissima febre puerperal, que a teve em perigo imminente. Cerca d'onze dias nem deu accordo de si; esteve n'um constante delirio. Medicos e familia julgaram-n'a perdida.

Complicou-se d'este modo espantosamente a situação de João, e tambem a da tia Ricardina, e de Ermelinda. Acabavam todos elles de passar por uma prova tremenda, e já temiam a aproximação d'outra. Cortava a alma vel-os lacrimosos, succumbidos á dôr que os opprimia. Na alcova da enferma, as lagrimas de todos corriam a quatro e quatro, mas silenciosas; cá fóra, em logar onde Amalia os não podesse ouvir, escondidos cada qual por seu canto, era um arrancar de soluços e ais abafados que faziam estremecer o coração. E rezavam sempre, rezavam noite e dia, apellavam para Deus.

Felizmente, porem, Amalia não tinha ainda os seus dias contados: melhorou, poz-se boa Dois mezes e meio depois estava completamente restabelecida.

Vieram então francas alegrias compensar as passadas amarguras. Tudo neste mundo é transitorio, tudo acaba por se tansformar. De Manuel restava apenas uma saudosa recordação. A mesma viuva, a pobre Ermelinda, que foi positivamente a pessoa que mais perdeu com a sua morte, conformou-se, resignou-se com ella. O filho, que era o objecto de todos os seus cuidados de mãe e de mulher, o thesouro das suas affeições, tinha em perspectiva um futuro risonho. O tio continuava a querer-lhe bem como d'antes; olharia sempre por elle com paternal sollicitude, casal-o-ia com a filha, como tinha promettido ao irmão.

Aquelle anjinho do céo que sorria no berço, era uma esperança fagueira, um penhor de felicidades no porvir. Adoravam-n'o todos, pães, avós e tia. Mas sobre tudo João.

Era curioso observar o que este homem fazia com a filha. Parecia doido. Não se lhe dava que a menina o sujasse: andava sempre com ella ao collo, estava sempre a beijal-a, a cantar-lhe cantigas, a fazer-lhe festas. Se a ouvia chorar, ahi começava elle a embalal-a, a mostrar lhe bonitos, a pedir logo que lhe dessem a mamma: se a via afrontada pelas moscas, agoniada com o leite, descontente por qualquer motivo sabido ou não sabido, ahi começava elle a querer remediar tudo, todo atarefado. Nem faltavam recommendações á mãe, nem prendas á ama, para que a menina fosse tratada como os anjos.

Por tudo isto dizia a tia Ricardina que o seu João era muito menineiro, outro que tal pae: porque pelos modos já o tio Anselmo assim fora louco pelos filhos. Que alguém lh'os maltratasse! Não lhe podiam fazer maior offensa.

Isto, porém, é muito e não é nada. Quando João mais pôz em evidencia o entranhado amor que tinha á filha, á sua Therezinha, foi quando ella começou a engatinhar, e d'ahi por deante. A mãe, o pae, a cunhada e a mulher fartavam-se de rir com as pantomimas e doidices que lhe viam fazer, e á conta das quaes o innocentinho tinha por elle tão grande affeição, que se deixasse de o ver um dia inteiro, já não havia quem a calasse. Estava sempre a olhar para a porta, a chamal-o. Em o lobrigando eram umas alegrias doidas.

Mas afinal que fazia João? O que fazem muitos paes; doidices. Tão depressa se mettia debaixo de uma cama, como saltava para cima de uma mesa, ou andava de gatinhas. Brincava com a filha, jogava as escondidas com ella. Tudo eram tagatés. A pequerrucha, por sua vez, escondia-se-lhe atraz das portas, pelos cantos; quando ella dava com o esconderijo do pae, ou o pae dava com o esconderijo d'ella, então faziam ambos uma algazarra espantosa. Pedro arranchava a estas grandes festanças, e era igualmente bem amimado, Amalia tratava-o como seu filho, sem nenhumas differencas: tinha-lhe creado amisade maternal. João, o mesmo. Muitas vezes pegava elle da menina ao collo, e do pequenino, que já era grandinho, pela mão, quando os não tomava a cada um em seu braço, e lá se ia assim muito contente com ambos para o Engenho, para as fazendas, para toda a parte.

Este era o seu maior regalo; andar com os pequenos pelo campo. Se Amalia ralhava, porque não queria ficar só, faziam-se as pazes indo ella também n'aquellas peregrinações patuscas.

Entretanto ia o orphãosinho crescendo, e João cuidando em o mandar educar. Queria fazer d'elle um homem. A dar-se-lhe credito, os analphabetos, os grandes ignorantes, não são homens; parecem o, mas não o são.

Ora elle queria fazer do sobrinho um homem.

Logo, pois, que Pedro completou os doze annos, pegou d'elle o tio e levou-o para Coimbra; metteu-o no seminario. Como elle era tão novo ainda, ali estaria melhor que em qualquer outra casa emquanto fazia preparatorios: depois, feitos os preparatorios, viria estudar cá para fora, escolheria livremente a carreira que bem quizesse seguir.

E assim foi. Aos dezesete annos entrou o filho de Manuel Gil para a Universidade. Consultado, respondeu que se queria formor em direito. João sanccionou a eleição d'elle, e D. Leonor, que vivia em Coimbra em companhia do irmão, e que por gosto, voluntariamente, se encarregara de velar pelo rapaz, e era amicissima d'elle, applaudiu tambem.

Emfim, seguiria Pedro a carreira da magistratura, que é nobre. Para medico não tinha vocação absolutamente nenhuma: era homem que perdia a côr em vendo sangue. Para padre, menos: cuidava muito de sua pessoa; olhava muito para a sombra. Estes indicios não falham: rapaz que procura agradar ás mulheres, nunca pode agradar a Deus nem ao mundo ao serviço da Egreja. Será sempre um mau padre, que é peor, e bem peor, do que ser simplesmente um mau homem.

Não ha nada mais damninho do que são os maus exemplos dados por quem pela sua posição social os deve dar bons.

Ao mesmo tempo ia João educando a filha com todas as prendas que era possivel. Entregou-a aos cuidados do sr. padre David, e das cunhadas de sua reverendissima, que eram senhoras de esmerada educação. Quiz metel-a n'um collegio, e tratou d'isso, mas a mulher d'esta vez impoz-se, não deixou. Morria, se lhe tirassem a filha de casa. Ainda se ella tivesse mais! Mas nem esperanças. Esterilisou-a, talvez, a doença que soffreu depois de ter aquella pequena.

No emtanto, diga-se, pouco perdeu Thereza em não ir alguns annos para a companhia de mestras especiaes. O sr. padre David ensinava-lhe portuguez; as cunhadas d'elle ensinavam-lhe o que ha de mais mimoso em trabalhos de mão, desde o bordado a fróco e ouro, até ao ponto d'agulha mais apreciavel; a mãe ia-a instruindo nos mil segredos do bom governo d'uma casa: o pae ensinava-lhe francez.

Era uma mania de João ensinar francez á filha. Ainda ella não tinha oito annos, já elle a levava tão adeantada, que era um regalo ouvil-a. Conversava com o pae com tanta correnteza em francez, como com a mãe em portuguez. A tia Ricardina, o tio Anselmo, Amalia e Ermelinda escutavam as lições n'um recolhimento piedoso, de bocca aberta: no fim d'ellas abafavam a menina com beijos, e ás vezes desatavam a questionar a origem d'aquelle talento.

Tinha graça! Mas, em summa, uns dando uma opinião, outros outra, todos chegavam a uma conclusão unica, e era que João e Amalia tinham uma filha adoravel.

E não ha duvida que sim. Thereza reunia qualidades de primeira ordem: era linda, linda, gentilissima. A' maneira que medrava, tornava-se mais bonita, mais elegante. Possuia um coração d'anjo, e possuia talento. As pequenitas da aldeia, os pobres, os enfermos, tinham n'ella uma protectora sem egual. A grandeza de que ella se via cercada, não a assoberbava. O pae e a mãe viam-n'a muitas vezes sahir á porta com abadas cheias de pão, e gostavam: ouviam-n'a algumas vezes por interprete d'algum infeliz, e gostavam, despachavam favoravelmente; sabiam que ella muitas vezes dava os seus brinquedos, e gostavam. Só por graça é que o pae lhe dizia, e a mãe secundava:

-- O' filha, tu fazes-nos pobres!

Em paga compravam-lhe o que havia de melhor em veludos, rendas, sedas, bretanhas, tudo! Queriam vel-a sempre muito aceada, um brinco. Depois havia seus estimulos. Se a mãe lhe comprava um vestido, o pae em despique lhe comprava dois. Andavam sempre os dois esposos n'estas justas. Tudo quanto fosse para a Theresinha, nunca era de mais.

Cresceu, fez-se mulher a menina, e começou a usar de maiores larguezas. Ninguem lhe ia á mão. O pae e a mãe davam por bem feito tudo quanto ella fizesse. Lá ia então uma quarta de feijões para ali, meio alqueire de batatas para além, um pedaço de presunto para outra parte, conforme os pedidos, as necessidades e as miserias que havia na vizinhança.

D'esta beneficencia era fiscal e advogado o sr. padre David. Raro dia não tinha elle um pedido a fazer a Theresinha. Os requerimentos ferviam. Havia tanta pobreza!

-- E' tanta a pobreza, filha! -- dizia elle á rapariga constantemente -- E' tanta a pobreza!

D'este modo deu a filha de João Gil em ser adorada. Não se faz idéa! Rua por onde ella passasse, moços e velhos se levantavam para a saudar. Os pequenitos beijavam-lhe a mão. Era verem n'a! Ella não queria, mas queria o sr. padre David, e estava acabado. Tanto que elle é que os trazia assim disciplinados.

-- Pois porque é que as creancinhas te n'o hão de beijar a mão? -- dizia elle. -- Deixa-as aprender a ser humildes e reconhecidas, que a humildade e o reconhecimento são duas virtudes sublimes. Beijam a mão que as soccorre.

XXXIX

Symptomas criticos

Justamente no dia em que Thereza completou os seus desesseis annos, dia esse que, por ser tambem o do anniversario do trespasse de Manuel, nunca era festejado, mas sim, em vez d'elle, o correspondente ao do baptismo, que vinha a cahir trez mezes depois, recebeu João duas cartas, ambas datadas de Coimbra, e versando sobre o mesmo assumpto.

Uma era do sobrinho. Contava o rapaz que o sr. D. Duarte, cada vez mais impertinente, mais aborrecido de tudo, do convivio, do bulicio e da vida, resolvera deixar a cidade e ir acantoar ali na aldeia com os filhos e a irmã. Que esta pretendera fazel-o derogar a sua resolução, mas que o não conseguira. Que, emfim, já se estavam fazendo os preparativos da partida.

Outra era de D. Leonor. Confirmava esta senhora absolutamente o que Pedro dizia, e solicitava de João o obsequio de dar as ordens que bem entendesse necessarias para no mais curto espaço de tempo se prepararem no palacio aposentos para seu irmão, para si e para seus sobrinhos D. Isabel e D. Luiz.

Concluindo, escrevia D. Leonor: «Acompanham n'os quatro criados, para os quaes tambem fará o favor de mandar preparar acommodações. São um escudeiro, que deve ter quarto ao pé do de meu irmã e, um cozinheiro, e duas mulheres.

«Meu irmão decidiu ante-hontem, quarta feira, esta mudança, e já queria partir para ahi no sabbado. Está muito rabujento. Annos e desgostos! Mas de certo não sairemos antes de terça feira».

Foram estas novas recebidas com grande alegria de Amalia, que emfim tornaria a ver ao pé de si a sua amiga da infancia, a sr.ª D. Leonor, e com infinito enthusiasmo de Thereza, que já conhecia pessoalmente D. Isabel, e era sobremaneira affeiçoada a essa sympathica menina.

Relacionou-se com ella em Coimbra, havia trez annos feitos, por occasião da festa da Rainha Santa, a que o pae a levára. Muitas vezes escreviam-se.

Faziam uma pequena differença de idade. Izabel tinha apenas mais dezenove mezes e meio que Thereza.

Dado tudo isto, tratou immediatamente o pae de Thereza de prover ao necessario para que os filhos e netos de D. João viessem encontrar no seu bello palacio solar os possiveis confortos.

A esse tempo administrava ainda os bens do fidalgo, conservados em massa, o antigo procurador da casa, homem de muitos annos e de muitos achaques, e por tanto inutilisado para trabalhos de certa urgencia e maior canceira.

Entendeu-se João com esse velho, que bem longe de melindrar-se pela interferencia d'um estranho n'aquelles serviços domesticos folgou com ella, e deu-se pressa em mandar varrer, caiar e desempoar as salas, quartos e mobilia do palacio.

Havia ali, accumuladas desde seculos, riquezas enormes. As tapeçarias ricas, a baixella, a copa, os leitos lavrados, as mesas d'alto valor artistico, as formosas cadeiras de couro e pau preto com pregarias vistosas, os preciosos jarrões da India, tudo era em abundancia.

Contribuiram para tamanho explendôr não sei que viso-rei, e um capitão de naus que andou pelas terras de Santa Cruz. Do Brazil e da India tinham vindo para ali arrobas de ouro representado em joias, alfaias, marmores, madeiras e louças.

Ao sexto dia da empreitada estava tudo convenientemente espoado, limpo e bonito.

Parecia outra a casa lá por dentro. A rataria, os aranhiços e a poeira tinham afeiado tudo. Os deliciosos frescos dos tectos, os arraz das paredes, lustros, candelabros e mais mobiliario, desappareciam sob uma espessa camada de pó e teias d'aranha. Nada brilhava, nada se via. Agora tudo se via, tudo brilhava. Tudo levou volta. A magestosa escadaria de entrada, toda de bellos marmores e granito fino, estava viscosa, ennegrecida, medonha: mettia medo. Foi corrida a escóda, limpa das manchas que lhe davam um aspecto de caverna. As paredes do edificio, cheias de lickens, parasitas nos intersticios e crescida herva nas cornijas, foram lavadas. Emfim, a cavallariça levou duas demãos de cal, e a cocheira, onde repousavam duas liteiras, um carro antiquissimo de rodas entalhadas, arreios, librés dos machilas, e outros aprestos de viagem, levou outras duas demãos.

Foi uma limpeza em fórma. Andaram occupadas n'ella mais de quarenta pessoas.

Faltava só arranjar o jardim. Ali era comida a cultura arvense por ortigas e cardos. Os tanques d'agua estavam cheios de limos e pedregulho; as ruas d'arvores invadidas de herva; os canteiros cobertos de silvas. Faltaram os donos ali, faltou tudo. O velho procurador lidou emquanto poude: depois cançou, apenas queria saber do recolhimento das rendas. Tudo era desordem. Só a capella do palacio, graças aos cuidados do sr. padre David, que lá ia celebrar missa todas as semenas, é que estava aceada.

Podiam, pois, chegar os nobres senhores d'aquella principesca moradia. O mais essencial estava feito, o restante seria arranjado depois.

Isto dizia João uma tarde para os seus botões, quando vozes d'arrieiro, e relinchos de cavallos que presentem farta manjedoura, acordaram os adormecidos echos do velho solar.

Eram os fidalgos que chegavam.

Na ante-vespera tinham vindo alguns creados, entre elles o cozinheiro.

Correu o marido de Amalia a dar-lhes as boas vindas. D. Leonor abraçou-o; D. Duarte estendeu-lhe a mão com desusada affabilidade; D. Isabel cumprimentou-o alegremente; D. Luiz fez-lhe uma ceremoniosa cortezia com a cabeça e offereceu-lhe dois dedos a cumprimento, por não poder deixar de ser por menos.

Rapaz, trazia a cabeça cheia de tolos preconceitos nobiliarios. Ficou muito espantado de vêr a tia abraçar aquelle homem, e a irmã e o pae tratarem-n'o como quem trata um fidalgo de linhagem. Fez uma careta muito feia quando tal espectaculo se lhe deu aos olhos.

Não reparou João, porém, n'estes desagradaveis pormenores. Estava desprevenido contra similhantes desconsiderações, e além d'isso muito attento ás perguntas que D. Leonor, D. Isabel e D. Duarte lhe faziam.

Subiu D. Duarte ao andar nobre do palacio amparado ao braço de João. Vinha trôpego.

A essa hora agonizava o sol no occaso. Montes e vales tinham um colorido phanlastico. Era tudo da côr do sangue.

Entretanto que subia, ia o fidalgo dirigindo a palavra a João. Falava especialmente de si. Sentia-se gasto, cançado. Vinha, dizia, procurar n'aquelle retiro algum repouso e algum algum allivio aos seus padecimentos. Affigurava-se lhe que viveria ali bem. Aquelles sitios começavam a despertar-lhe saudosas recordações do seu passado.

As saudades são para o homem o que as ruinas são para as heras.

João ouvia-o respeitosamente. Quando lhe chegou a vez de falar, procurou confortal-o. Fazia votos por que sua excellencia ali encontrasse a paz appetecida. Estimaria vel-o reviver, erguer-se do abatimento physico em que o via.

Na sala juntaram-se a João e D. Duarte a irmã e filha d'este. D. Luiz tinha ficado na cavallariça, á espera que chegasse o mestre ferrador para lhe vêr porque era que o seu rabalvo coxeava d'uma pata. Suppunha que elle estivesse encravado.

Tinha um grande fraco por cavallos e cães, o filho do fidalgo. Não cuidava n'outra coisa.

Ia João responder ás perguntas que as senhoras lhe faziam ácerca da mulher e da filha, appareceram estas acompanhadas do sr. padre David.

Produziu viva alegria este encontro. Trocaram-se abraços e beijos. Mãe e filha, tia e sobrinha, tinham umas pelas outras grande estima. D. Leonor evocava o passado: Amalia avivava essas recordações. Ia em vinte e quatro annos que ellas se não viam. Vinte e quatro annos!...

Ha muito que se dizer depois de uma tão longa ausencia. Ambas se conheceram meninas, e ambas estavam com cabellos brancos. Principalmente D. Leonor. Amalia passara, é certo, por muitos desgostos, mas ella passara por elles bem maiores: vira expirar o marido e vira expirar um filho, o unico filho que teve!

Não ha dôr igual á dôr da mãe que vê morrer um filho.

Foi, pois, aguada de lagrimas esta primeira entrevista. D. Leonor e Amalia choraram.

Entretanto riam e tagarellavam em ponto affastado da sala Thereza e Izabel. Ambas raparigas, qual d'ellas mais dada, mais meiga, immediatamente se puzeram em aberta communicação. Recordavam o que tinham feito em Coimbra havia trez annos. Passearam muito, divertiram-se muito, gosaram, emfim.

Tudo eram reminiscencias d'esse tempo.

De subito, como no discorrer da palestra naturalmente se falasse de Pedro, na participação que elle tinha tido nos folguedos que se memoravam, attrahiu Izabel com ares mysteriosos a filha de Amalia para o desvão de uma janella, e ahi, precavendo-se contra surprezas, tirou do seio um retrato, uma miniatura, e apresentou-o á rapariga perguntando-lhe se o reconhecia.

Era de Pedro.

Apesar de tantas prevenções, Thereza falou mais alto do que seria para desejar.

-- Ai! é elle, é o Pedro! -- exclamou ella immediatamente que viu a photographia.

Izabel apertou-lhe o pulso, recommendando-lhe assim que falasse baixo.

-- Que parecido! Que bom! -- continuou Thereza em voz segredada -- E foi elle que lh'o deu, foi? -- perguntou-lhe ella quasi a medo, ingenuamente.

Izabel apenas teve tempo de lhe dizer que sim, e de lhe fazer um signal para que se calasse. Acabava de entrar Luiz, e vinha-se dirigindo para ella.

Evidentemente Izabel não queria que o irmão soubesse que na sua mão existia aquelle retrato. N'um abrir e fechar de olhos fel-o desapparecer.

Thereza comprehendeu por intuição estes manejos, e calou-se. Luiz, ainda a respeitosa distancia, olhou para a irmã como a pedir-lhe que o convidasse a aproximar-se, e o apresentasse áquella sua amiga.

Tinha lobrigado a rapariga da porta, e caminhára para ella fascinado, contemplando-a.

A meia luz que vinha de fóra illuminar Thereza, punha em brilhantissimo relevo toda a sua formosura. O rapaz suppunha estar sonhando. Nunca lhe passára pela mente que ali na aldeia, n'aquelle obscuro recanto provinciano, houvesse dama tão donairosa, tão gentil. Não sabia que admirar mais; se o encanto das suas feições, se a correcção fidalga do seu porte. Sentia pressa de a examinar bem de perto, de a ouvir respirar, de a conhecer!

Era um sincero admirador do bello sexo.

Izabel, que percebeu o que o irmão queria, não o fez soffrer; chamou-o.

-- Então não reconheces esta menina, Luiz?... -- disse ella ao irmão. -- Tu já a viste, já lhe falaste muitas vezes, já brincaste muito com ella!

Luiz estendeu machinalmente a mão a Thereza, e ficou pensando, entretanto se regalava de sentir o contacto da mão d'ella na sua.

-- Não tenho ideia!...

-- Então não te lembras da filha do sr. João Gil, a que ha trez annos esteve em nossa casa, em Coimbra?

-- A filha aqui do sr. Gil?! Ora essa!... -- exclamou elle, olhando muito de fito para Thereza, e apertando-lhe muito a mão. -- Pois creia que folgo devéras em a tornar a encontrar. Não a cumprimentei logo, porque a não reconheci. Estava longe de a reconhecer!

Ao mesmo tempo que Luiz assim falava, comia a rapariga com os olhos, fazia-a estar contrafeita.

Esquecia-se dos seus pergaminhos quando via um palminho de cara. Ficava logo com a cabeça a razão de juros.

Immediatamente estabeleceu-se entre os tres uma conversa amiga, que D. Leonor cortou chamando o sobrinho para o apresentar ao sr. padre David, e á mulher de João Gil.

Pediu o rapaz licença a Thereza para se retirar, e foi receber os cumprimentos de sua reverendissima e de Amalia.

Já parecia outro. A vista de Thereza tinha-o desvirado. Tratou muito affavelmente o sr. padre David, chegou a ser democratissimo com Amalia, e voltando-se para Gil tornou a cumprimental-o, mas agora a valer, dizendo-lhe, á cautella, que o não reconhecera quando o viu á porta, e por isso talvez o não estimára como devia.

Logo que poude afastou-se d'aquelle grupo, sob um pretexto falso, e foi de novo ajuntar-se á irmã e Thereza.

A imagem d'esta rapariga animava-o totalmente. Já não houve n'essa tarde quem o separasse d'ao pé d'ella. Estava encantado. Prodigalisou-lhe mil attenções, mil amabilidades. Quando ella se retirou com o pae a a mãe, dignou-se il-a acompanhar até á porta da rua.

XL

Os filhos de D. Duarte

Luiz era um excellente rapaz com todos os defeitos dos homens da sua raça. Costumado a ouvir falar em genealogias, em pergaminhos e feudos, no miguelismo e nas prerogativas dos nobres, tinha a cabeça cheia d'alluviões de coisas tolas. Para elle não era gente quem não fosse fidalgo. Titulares modernos nem os podia ver nem tragar; chasqueava-os atrozmente. Chegava por exemplo á cavallariça, e bradava para o criado:

-- Deita cá fóra a baroneza!

A baroneza era a mula, com perdão das damas.

-- Põe-me cá fóra o visconde!

O visconde era o cavallo, o rabalvo.

Achincalhava tudo e todos accintemente. Tinha um cão que era o «conselheiro», e outro que era o «commendador». Por tal signal que algumas vezes aconteceu o rapaz chamar os bichos, e voltarem-se e pararem, crendo que era com elles, honestos conselheiros e pacatos commendadores. Os cães tambem, está claro.

Do desapontamento dos enganados, bem se faz idéa!

Reprehendia-o por estas e outras que taes irreverencias a tia, senhora muito cordata, e que tinha profundo desgosto em o ver assim com tão pouco tino, mas era o mesmo que nada. Dize-me com quem vives, dir-te-hei as prendas que tens. Perdiam-n'o as companhias: matava o a convivencia com uns diabos de uns primos que não tinham onde cair mortos, e que, apesar d'isso, talvez para se distinguirem de outros miseraveis, faziam poucas vergonhas de açoite.

Eram os Mellos Falperrões de Condeixa. Mais orgulhosos e mais petulantes, não os havia.

Quanto a trabalho tambem Luiz era fidalgo, e mais fidalgo que em coisa nenhuma. Não mexia uma palha d'aqui para ali. A sua vida era comer, beber, dormir, caçar, cavalgar, e perseguir as raparigas. Uma vida regalada! Não tinha nem queria nenhuma canceira, nenhuma pensão. Emquanto pequeno estudou, fez quatro exames: assim que lhe aqueceu o sangue na guelra, deu de mão aos livros. Nem os podia ver. A muito custo pegava nos das rendas da casa. Contentava-se com as contas dos administradores. O futuro nunca lhe metteu medo: o pae e a tia tinham muito que lhe deixar.

Mas a par d'estas ruins qualidades, possuia Luiz outras altamente apreciaveis; era docil, bondoso; os seus despeitos, os seus furores, eram momentaneos: não tinha alma para odios, coração para reservas. Conseguia-se d'elle tudo o que se quizesse. O caso era querer-se, sabel-o levar. Só o que nunca se conseguiu, foi que elle perseverasse n'alguma coisa. Isso é que nunca.

Era Luiz de uma inconstancia e de uma volubilidade assombrosas. Tudo principiava com enthusiasmo, e de tudo abria mão com enfado. Começou por exemplo, a estudar musica, e logo da musica se aborreceu antes de saber o que era um sustenido; começou a estudar pintura, e d'ahi a dias mandou as télas e as tintas ao diabo; lembrou-se de ser photographo-amador, e depois de ter todos os pertences e arranjos photographicos metteu tudo n'um caixote e mandou-o pôr na cocheira.

Com as mulheres era o mesmo. Namorava-as a todas, e sobretudo ás bonitas. Porque n'este particular não tinha escrupulos: a belleza era a nobreza. Mas feita a declaração saccramental, trocadas duas cartas, e, quando bem podia ser, trocados tambem dois beijos, fazia-se ao largo. Umas imagens substituiam outras n'aquelle espirito com a mesma facilidade com que um soldado substitue outro desapparecido da fileira aguerrida.

Possuia assim Luiz um verdadeiro museu de prendas amorosas; cartas perfumadas, retratos, madeixinhas de cabellos, uns louros, outros pretos, outros castanhos; amores perfeitos, botões de rosa, malmequeres desfolhados, petalas de flores, folhas de hera, ramilhetes, pedacinhos de fita, e até cinzas. Mil ninharias! Que todas as ninharias guardam os namorados, como judeu avaro guarda as joias do seu thesouro. São outras tantas reliquias que falam do passado, d'um dia ou outro feliz, d'esperanças e amor. São o pó dos sonhos que se desfizeram, ou o penhor das promessas que se juraram.

Dava, porém, Luiz pouco apreço a tudo aquillo, a todos aquelles objectos: conservava-os por luxo, pensava pouco n'elles. Mal tinha tempo de que dispor, que lhes consagrar. Aquella cabeça andava constantemente levantada: dias havia em que elle escrevia a tres mulheres: ás vezes, por abreviar trabalho, copiava a mesma carta e mandava-a a mais. Fazia edições várias: era conforme o aperto das circumstancias.

N'isto, n'esta volubilidade, era elle a opposição completa da irmã. Mas perfeitamente completa, absoluta.

Isabel, ao contrario de Luiz, era d'uma constancia a toda a prova. Não tinha nada de leviana, nada tambem de voluvel. Pertencia a essa nobilissima raça de mulheres que se um dia dizem a um homem que o amam, é porque realmente o amam, e a ponto que serão capazes de conspirar contra todos, de saltarem por cima de todas as barreiras para se dedicarem ao eleito do seu coração.

Uma prova bem positiva d'isto, é o ter-se ella deixado enamorar do filho de Ermelinda, a antiga creada de seu avô paterno. Não viu que a separava do rapaz um enormissimo barranco social; não viu que teria de luctar contra influencias poderossimas; não viu que a esperavam desgostos, adversidades atrozes. Ou antes, não quiz ver, não quiz attender todas essas adversidades. Reconheceu que Pedro era um perfeito homem de bem e de talento, sympatisou com elle, affeiçoou-se-lhe, e disse-lhe que o amava, que seria eternamente sua.

Estava no seu coração esta sentença do destino: amava-o, disse-lhe que o amava.

Teria de soffrer por amor d'aquelle rapaz? Sim, naturalmente se levantaria o espectro dos preconceitos: ninguem quereria reconhecer que Pedro era digno, pelo seu comportamento e pela sua illustração, de pedir logar entre o escol social. Mas era o mesmo: a si lhe bastava a convicção de que elle seria um excellente marido.

No emtanto confiava Isabel na protecção da tia. Implorar-lhe-ia que fosse sua advogada. Não tinha ella casado tambem com um homem do povo, e não tinha sido tão feliz com elle?

Pensou Isabel no valimento da tia e na forca do argumento que o seu exemplo lhe dava.

Os exemplos fortalecem. Deus nol-os envie bons!

Pensou em tudo, finalmente. Esperaria o dia das condescendencias. Pedro seguiria a carreira da magistratura, e então a sua posição faria abrandar as durezas dos oppositores. Se não, em ultimo recurso, seguiria o caminho que a tia lhe ensinou. Sentia-se forte para o percorrer de cabeça erguida. Era corajosa bastante.

De resto, concorriam em Isabel qualidades apreciabilissimas: era meiga, cariciosa, boa para toda a gente. Tinha um coração de anjo.

Physicamente era um encanto: rosto oval, elegantissimo; olhos negros, de uma grande vivacidade; tez muito mimosa, d'um alvor e d'um colorido deliciosos; bocca pequenina, e cabellos finos como seda. As mãos eram o que ha de mais gentil; a cintura delicada, o tronco esculptural.

Parecia-se immensamente com o irmão. Vel-a a ella, era vel-o a elle. Não podiam negar o parentesco. A differença estava só nos cabellos. Luiz tinha-os louros, ella pretos. E tambem não podiam negar a paternidade. Luiz, principalmente, era o vivo retrato do pae. Até tinha, como elle, os mesmos geitos, os mesmos costumes, o mesmo metal de voz.

Crearam-se estas duas creanças com a tia, que era uma segunda mãe d'ellas. A senhora que os deu á luz falleceu tendo Isabel cinco annos incompletos, e Luiz pouco mais de tres e meio. Era muito doente, muito fraquinha. Morreu tisica. Felizmente que o germen d'essa traiçoeira doença que a victimou se não transmittiu aos filhos. Ambos eram sadios, bem conformados, de optima compleição; apparentemente fracos, mas realmente fortes.

D'isto, porém, é que nem D. Leonor nem D. Duarte se capacitavam absolutamente. Animavam se mais pela fé, que pela convicção. Qualquer pequenino incommodo que Luiz ou Isabel tivessem, era o bastante para os pôr em alarme. Estremeciam-n'os loucamente, idolatravam-n'os.

XLI

Factos interessantes

Isabel e D. Leonor conheciam Luiz tão bem, sabiam lhe tanto os fracos, as baldas e as virtudes, que muitas vezes um gesto seu, um olhar, meia palavra, era o bastante para ellas inclusivè lhe surprehenderem os pensamentos. Liam-lhe na alma como quem lê em livro aberto.

Naturalmente, pois, ambas perceberam que o rapaz tinha ficado encantado com a filha de João Gil. Revelou-lhes o facto uma serie de circumstancias curiosas, a ultima e mais notavel das quaes foi elle dar-se o incommodo de a acompanhar á porta da rua. Porque de certo Luiz não tinha praticado aquelle acto de maior cortezia em honra de Amalia e do marido; tinha sido em honra de Thereza.

Falavam então n'isto sobrinha e tia, quando o nosso homem regressou á sala. Commentavam o caso: achavam-lhe summa graça.

Luiz, que era d'estes sujeitos que não têem peito para segredos, que tudo relatam, tudo contam á primeira pessoa que topam, nem sequer deu tempo a que ellas cuidassem de o sondar: denunciou-se logo; poz immediatamente tudo a limpo. Ainda vinha lá ao fundo do corredor, e já tributava os mais rasgados elogios a Thereza. Tinha-a achado formosa, gentilissima, cheia de graça e d'espirito. Dava a sua palavra de honra em como nunca vira quem se lhe pudesse comparar.

Interrompeu-o a tia.

-- Mas que enthusiasmo, que enthusiasmo, Luiz!... Por ahi te vaes tu agora deixar apaixonar?!

-- Cuidado! -- disse-lhe do lado maliciosamente a irmã. -- Lembra-te da Antoninha.

-- Da prima?... Longe da vista, longe do coração.

-- Então dizias que gostavas tanto d'ella...?

-- Que havia de casar com ella! -- advirtiu Izabel.

-- Isso não foi a sério -- replicou Luiz immediatamente.

-- Affirmaste que sim. -- observou a tia.

-- Pois sim, mas não foi a sério -- insistiu Luiz.

-- Ora essa! Então não sei eu quando tu falas a sério, menino.

-- Agora, por exemplo -- replicou Luiz imperturbavel. -- Não desgosto da Antoninha, confesso, mas nunca pensei em casar com ella. O meu ideal é outro.

-- A Thereza, talvez?... -- aventurou D. Leonor.

Luiz meneou a cabeça como quem não sabe se deve responder logo que sim, se antes tome o partido de se calar.

-- Pois Isabel -- disse D. Leonor voltando se para a sobrinha -- vae cuidando do enxoval de teu irmão. Agora sim, é de vez: está aqui, está casado.

-- Pode muito bem ser -- disse Luiz simplesmente.

D. Leonor sorriu-se por ver que o rapaz pretendia dar a estas palavras um tom de solemnidade que os precedentes da sua vida desacreditavam, mas lá no fundo da consciencia vibrou-lhe corda intima que despertou no seu espirito longas e complicadas apprehensões.

De ligeira faulha resulta pavoroso incendio. Luiz podia muito bem vir a amar Thereza. Nada mais facil, nada mais natural. E depois? casaria com ella, está claro. O caso era elle e ella quererem. Mas não haveria impedimentos? condescenderia com a vontade de seu filho o orgulho de D. Duarte? seria João Gil bastante pacifico, bastante bondoso, para soffrer os impetos do genio d'este? Não se levantaria então entre pae e pae uma guerra implacavel, sem treguas, em que seriam victimas Luiz e Thereza?... E se Luiz, por fatalidade, fazia com Thereza o mesmo que tinha por costume fazer com todas as mulheres?!... se principiava a namoral-a, e depois a deixava? que succederia?...

Amargurava-se a excellente senhora n'este medonho dédalo de supposições, entretanto Luiz e a irmã continuavam falando da Antoninha e de Thereza. D. Leonor não os ouvia. Por fim...

-- O que Deus quizer! -- disse ella entre si.

E fez por espairecer.

D'ahi a pouco já nem se lembrava do seu atroz pesadello. Afinal acreditava no cavalheirismo de Luiz, na bondade do irmão e na de João Gil. O rapaz havia de se portar como homem digno, que ella havia de lh'o recommendar; D.Duarte e João Gil haviam de ser condescendentes. O resto bem iria: se alguma tempestade se levantasse, prompto viria a bonança.

Não tornou D. Leonor a pensar em tal assumpto. Certa hora, a proposito de não sei quê, deu ao sobrinho conselhos salutares, e deixou-o em liberdade. Nem lhe disse que fizesse a côrte a Thereza, nem que lh'a não fizesse. Mesmo porque recommendar-lhe que lhe não fizesse a côrte, seria talvez peior, sobre ser uma incoherencia. Pois não sabia ella que a sobrinha amava o primo de Thereza? não era certo que ella nunca impozera á sobrinha o esquecimento ou despreso d'aquelle rapaz? e que esse rapaz era filho de uma antiga criada sua, ao passo que Thereza estava n'umas condições muito differentes? Sim. Logo seria uma incoherencia.

O que D. Leonor simplesmente fez, e era do seu dever, foi explicar a Isabel, quando suprehendeu a sua intimidade com Pedro, quaes as difficuldades com que ella teria a luctar por parte dopae, se porventura continuasse com o namoro, e um dia quizesse realisar o casamento. Chamou-a, disse-lhe com irreprehensivel delicadeza tudo quanto julgou por bem que ella soubesse, e por ahi se ficou.

Pois porque o rapaz era filho de Ermelinda, havia de ser despresado?!

O homem nasce, e depois faz-se. A nobiliarchia é um preconceito erroneo: á face da razão, a verdadeira nobreza é puramente individual. O filho do humilde artista que soube e que poude viver uma vida digna, engrandecer-se, elevar-se á custa do seu proprio esforço material ou intellectivo, é mais nobre que o filho do fidalgo que nomeia trinta avós, e come em ociosa mandriice aquillo que elles lhe deixaram. Infinitamente mais nobre.

Nada por consequencia disse a delicada senhora á sobrinha, que a podesse magoar; apenas lhe chamou a attenção para a realidade das coisas mundanas, tão falsas, d'apparencias tão enganosas para olhos desprevenidos.

Izabel chorou. Talvez lhe perpassasse pela mente que a tia assim lhe falava no proposito de lhe tornar repugnante aquelle a quem ella amava perdidamente, aquelle por quem sentira os primeiros estremecimentos do coração. Mas não tardou que a verdade refulgisse.

-- Vamos!... Não valem lagrimas, minha filha -- disse-lhe D. Leonor com verdadeiro carinho materno. -- Eu não te digo estas coisas para te affligir: digo-t'as para que tu as medites. Esquece, se poderes, e se não poderes esquecer, continua a amar. Que mais queres que eu te diga?... Creio que o Pedro é digno de ti. Sentes-te com coragem para soffrer as adversidades que te hão de perseguir?... Terás forças para luctar?... Pois se precisares d'alguem que te defenda, que te proteja, que seja por ti, a mim me terás a teu lado. Vamos!... não chores; bem vês que eu te falo como verdadeira amiga.

A estas caricias respondeu Isabel com beijos e abraços.

De então para o futuro começou a filha de D. Duarte a sentir-se mais feliz que nunca. Se um dia, uma hora ou outra, lhe vinham á idéa os horrores da situação que a tia lhe fizera entrevêr, logo as promessas d'ella acudiam por sua vez a alegral-a. D. Leonor estaria da sua parte; Luiz tambem, talvez; mas era tão incerto o favor d'este, que nunca ella se affoitou a fazer-lhe uma ligeira revelação dos seus amores. Temia a sua leviandade. D. Duarte oppor-se ia abertamente aos projectos, reprovaria altivo a sua escolha, seria inclemente, mas emfim, mais cedo ou mais tarde, esqueceria tudo para a receber nos braços.

Taes eram as previsões de Isabel, previsões que ella occultava a Pedro. Continha-a n'esta reserva o presentimento de que elle, apreciando-as, se retrahiria por dignidade de todos. Affigurava-se-lhe que o rapaz nem por sonhos tinha ainda reparado no abysmo que os separava, e que, se o viesse a descobrir, então recuaria aterrado da sua cegueira. Conhecia-lhe os brios, os melindres, a coragem e o sentimento.

Pelo mesmo motivo lhe não quiz tambem Isabel dar conta da sua conferencia com a tia. Seria abrir-lhe os olhos, mostrar-lhe o precipicio que se estendia ao longo do seu caminho; seria assustal-o, querel-o perder. O mais que ella fazia era dizer-lhe que D. Leonor estava sempre a elogial-o, que era singularmente amiga d'elle, que lhe era deveras dedicada. Isto é, embriagava-o: e elle deixava-se embriagar, e vivia contente n'aquella sua ebriedade. Tinha a certeza indelevel de que D. Isabel o amava quanto se póde amar, e de que D. Leonor realmente o estimava como filho. Nunca teve um pezadello, nunca teve uma vizão má.

XXLII

Uma aventura quixotesca

A's cinco horas da manhã, ainda ellas não eram dadas, estava Luiz a pé. Accordou, saltou immediatamente da cama abaixo, e tratou logo de se vestir.

Havia tempos esquecidos que elle não fazia similhante coisa. Em regra erguia-se ao meio dia: antes das dez, era caso raro; antes das nove, rarissimo. Chamassem-n'o, que o não chamassem mais cêdo, tudo vinha a dar no mesmo: ouvia, respondia, voltava se para o outro lado, e continuava a dormir. A's vezes nem abria os olhos!

D'ahi a pedaço appareceu na cavallariça a mandar sellar o cavallo.

Ia todo de ponto em branco: bota de cano, esporas de prata, calção de malha, frak, chapéo de côco, luvas e chicote.

Observou-lhe respeitosamente o moço que o animal ainda não estava limpo como devia ser. O suor e o pó da viagem tinham-n'o enxovalhado muito.

-- E' o mesmo. Deita-lhe o xairel e sella o -- disse-lhe o rapaz.

-- Se V. ex.ª quizesse esperar um boccado...

-- Não. Avia-te com isso.

Calou-se o homem e obedeceu. Minutos depois estava Luiz a cavallo. Picou e saiu o portão do palacio fóra.

Para onde ia elle? em procura de Thereza? Adivinhou quem teve este pensamento: com effeito, ia em procura de Thereza. Sonhou com ella: estava mortinho por a tornar a vêr, por a tornar a ouvir, por lhe falar.

Aquella cabeça doida era um vulcão de phantasias doiradas.

Metteu o nosso aventureiro ao acaso por aquelles caminhos adiante. Já tinha assentado o seu plano de campanha. Não lhe convinha perguntar em que sitio era a casa de João Gil. Correria a aldeia de ponta a ponta, até a descobrir: passaria por todas as quelhas, por todos os beccos, por todas as ruas, olhando á direita e á esquerda. Segundo a sua phantasia, essa casa devia ser, depois da sua, a melhor do povoado: daria com ella sem nenhum custo.

O cavallo, ennovellado sob a pressão dolorosa das puas das esporas, ladeava, trotava, jogava saltos travessos. Luiz, muito aprumado, risonho, explorava discretamente o terreno. Quem o via passar julgava que elle andava passeando, vendo a terra.

Ao cabo d'umas tantas voltas deu o rapaz comsigo no pavimento da ponte, uma ponte baixa, coberta de heras e musgo. A povoação já lhe ficava para traz: para diante eram campos sem fim. Apenas ali e além se destacava um cabanal, algum solitario casalejo.

Seguiu Luiz adiante. Retroceder seria talvez uma denuncia. Lá longe, no meio de um soito, á distancia d'uns seiscentos metros, olhou á retaguarda, parou.

Estava n'um ponto elevado: via de lá toda a aldeia; o seu solar, a egreja, muitas casas; mas o que elle não via, por mais que procurasse, era a casinha branca, alegre, risonha, que tinha imaginado dever ser a residencia de Thereza.

Subitamente o coração bateu-lhe. Acabava de a lobrigar. Dizia-lhe o presentimento que essa casa era uma que alvejava entre as ramagens de copado arvoredo, um tanto afastada do grupo geral da freguezia.

Estudada a direcção do sitio, deu Luiz de freio ao cavallo e retrocedeu a galope. Passada a ponte, tomou sem hesitar pelo caminho que lhe ficava á esquerda.

Havia mais dois: um que torneava á direita, e outro que era aquelle por onde elle tinha vindo para cá.

Durante cinco a oito minutos viram-se cavallo e cavalleiro seguindo ao longo do leito da ribeira; depois perderam-se totalmente de vista.

Tinham-se internado no meio d'uma barroca, uma especie d'azinhaga delimitada por duas paredes, das quaes pendiam interminaveis tufos de silvas.

No primeiro momento Luiz pensou que poderia romper por ali: que aquella quelha daria passagem; mas depois, andádos uns vinte metros, começou a desconfiar da veracidade do seu juizo. As paredes apertavam-se cada vez mais: as silvas começavam a morder-lhe a pelle, ao mesmo tempo que lhe faziam desesperar o cavallo. O chão, na entrada do caminho coberto de tojo, palha e rama de pinheiro, agora apresentava-se-lhe cheio de pedregulho, como esteira de ribeiro enxuto.

Parou, quiz orientar-se.

-- Mas onde demonio me vim eu metter!? -- exclamava elle lá comsigo -- Que maldito caminho é este?!... Ah! mas deve ter uma saida. Vamos adiante! -- brandou elle falando á sua coragem.

Andou mais um boccado, e tornou a parar. Firmou-se em pé sobre os estribos, e olhou. A' esquerda era um milharal; á direita uma quinta.

D'este lado, lá bastante longe, andavam trabalhadores.

-- Ora esta, esta!...

Picou ainda. Fazia-se-lhe vergonha voltar para traz. Além d'isso, presumia que o caminho havia de ter uma saida.

Mais uns quinze passos andados, sofreou o cavallo, parou abruptamente. Agora o leito da barroca era viscoso, escorregadio, aos socalcos, n'um declive medonho. Querer ir por diante, seria rematada loucura.

-- E agora?! -- murmurou elle -- E agora?!

Desesperou-se.

-- Mas aonde eu me vim metter, com mil demonios!! Isto não é caminho, é impossivel. Enganei-me, tenho que voltar para traz. Mas como?... Agora, como?...

O suor cobria-o. Bem olhava elle!... Bem matutava elle, a vêr se conseguia safar- se d'ali!... Mas qual? Nem podia voltar o cavallo, nem apearse. As silvas cobriam-n'o, não o deixavam manobrar. As paredes, menos.

-- Ora a minha vida, a minha vida!...

Lembrou-lhe gritar por soccorro. Mas que vergonha! Preferia ficar ali enterrado.

Ao cabo de muito scismar e praguejar, occorreu-lhe tirar-se d'aquelle inferno levando o cavallo ás recuadas. Amimou-o, falou-lhe, puxou-lhe o freio, e deu-lhe d'espora. O pobre animal recuou um passo, e desatou ao coice. As silvas espicaçavam-n'o infernalmente nas ancas, no ventre, por todo o corpo. Luiz fez-se pallido, acovardou-se.

-- Ai a minha vida, a minha vida!

Nunca se tinha visto n'uns apertos assim.

-- Não me poder eu apear!

Tornou a por-se em pé sobre os estribos, e a olhar.

La estavam ainda na quinta os jornaleiros. Se elle os chamasse?!...

Mas era uma vergonha: rir-se-iam.

Ameigou outra vez o cavallo, e falou-lhe no intento de repetir a tentativa de o recuar. Não tinha outro meio de salvação. De subito cahiu sobre elle uma matilha de cães. Cinco, nada menos.

O rapaz fez-se da côr da cidra. O arreganho, a voz estridurosa d'aquelles molossos que acabavam de o accommetter, punha-lhe os cabellos em pé. Peorára consideravelmente de situação. Agora achava-se entre dois perigos, qual d'elles o mais grave; ficar debaixo do cavallo, que se tinha espantado e disparava coice bravio, ou ser mordido pelas feras, que lhe chegavam a roçar com o focinho pela cara.

O coração apertava-se-lhe. Julgava ser aquelle o derradeiro dia da sua vida. Via por cima da cabeça as fauces da morte, e aos pés o leito da sepultura. Sentia-se aniquilado. A espaços affigurava-se-lhe estar sendo victima d'um pezadello infernal, de que não podia despertar. Repentinamente os nervos sobre-excitaram-se-lhe, apoderou-se-lhe do animo uma raiva cega: allucinado, perdido da cabeça, agarrou do chicote e começou á bordoada nos cães. Dava-lhe por onde o acaso queria que elle os colhesse. Não os via, não via nada!

Foi isto como polvora lançada ao lume. A furia dos animaes redobrou. Os seus rugidos, as suas arremettidas, eram terrivelmente ferozes. A's vezes a dentuça d'elles levava um pedaço da manga do casaco ao rapaz. Queriam lacerar o braço vingativo que os açoitava. Sem o silvado a contel-os, Luiz estaria irremediavelmente perdido. Se um caisse á barroca, aquelle desgraçado iria sem demora a terra. O cavallo, agora offegante, irrequieto, mas quedo, como que assombrado do espectaculo a que estava assistindo, uma vez mordido, cuspiria o dono da sella.

Cerca de oito minutos depois de travada esta medonha lucta, já Luiz se sentia exhausto então, soou-lhe aos ouvidos uma voz de homem.

Quem quer que era parecia vir correndo do lado d'onde estavam os cães, aos quaes gritava, a chamal-os.

-- Mas que é isto, meu Deus? que é isto?!... Turco!... Francez!... Perdida!...

-- Segure!... Chame esses cães, senão mato-os! -- gritou então Luiz -- Mato-os!...

-- Turco!... Serrano!... Catita!... -- bradou já mais perto, com imperio, a voz do desconhecido -- Já aqui!... Já aqui!... quedos!...

A estas vozes imperiosas, os cães retrahiram-se, mas de má vontade. Estavam aculados, rebeldes, Luiz tomou folego. No mesmo instante, em pé sobre a parede, atraz do macisso de silvas que a coroavam, surdiu o vulto do homem salvador.

-- O quê?!... o sr. D. Luiz!?... -- exclamou elle profundamente surprehendido -- Fóra d'aqui, malditos! -- gritou em acto continuo para os cães, pondo-os logo de fugida d'ali para fóra a poder de pontapé -- Fóra d'aqui, malditos!...

Luiz, como que magnetisado por aquella voz que acabava de lhe falar e de amaldiçoar a canzoada, voz que lhe não era de todo estranha, levantou os olhos para cima e embatucou.

Quem estava ali, quem o tinha vindo soccorrer, era João Gil, o pae de Theresa.

De muito ia a rapariga ter que se rir!

-- Mas o senhor está todo coberto de sangue, n'um estado lastimoso! -- exclamou João deveras penalizado. -- Os excommungados cães morderam-n'o, n'o ha que vêr!

-- Felizmente, não -- tartamudeou muito vexado o rapaz.

-- Pois eu não lhe vejo a cara cheia de sangue?!

-- E' das silvas -- disse Luiz levando o lenço ás faces, onde o suor se confundia com o sangue.

-- Ah! com seiscentos macacos! -- bramou João verdadeiramente afflicto.

E logo apoz...

-- Rapazes! -- gritou elle para os trabalhadores que trazia na quinta. -- Accudam cá de pressa!...

- Não chame ninguem, sr. João -- pediu-lhe Luiz. -- Para que está a chamar?

Queria, coitado, encobrir a sua situação. Que quanto menos gente, melhor, soubesse d'aquella sua aventura quixotesca. Estava envergonhadissimo do que lhe tinha acontecido.

-- Então não o havemos de tirar d'ahi? Pois como ha de o senhor sair d'esse buraco?!...

Luiz calou se. Realmente... como havia d'elle sair d'ali?

Era preciso que o tirassem, que lhe valessem. Eram precisos braços, gente.

-- Mas que idéa foi a sua, sr. D. Luiz?!... Como se veiu o senhor metter n'este sitio, n'esta barroca?!... -- perguntou-lhe João, que não sabia explicar-se como é que o rapaz tinha ido dar comsigo ali, a una ponto onde nem as cabras chegavam: que nem era caminho, nem atalho, nem vere da, mas sim um canal de passagem d'aguas d'alluvião.

-- Então que quer?... E' o que acontece a quem não sabe por onde anda. Pensei que isto fosse um caminho, mau, é verdade, mas em todo o caso um caminho -- respondeu Luiz -- Enganei-me Se é caminho, de certo é o do inferno.

-- Por um triz! -- exclamou João -- Por um triz não está o senhor a estas horas morto. Mais dez braças abaixo d'esse sitio ha um poço sem fundo, um verdadeiro abysmo.

Luiz sentiu porem-se-lhe os cabellos em pé. Teve um calafrio medonho. Até tremia! Já pensava em se deitar ao chão, que não fosse o cavallo espantar-se-lhe e atiral-o ao tal abysmo. João, via-se, fallava-lhe muito a serio.

-- Os cães voltarão por ahi? -- perguntou elle muito intimidado.

-- Não senhor, descance.

-- Comtudo... não se afaste, hein?...

-- Não senhor, não tenha medo. Nós vamol-o tirar d'ahi n'um instante. Aguente-se.

-- Por mim, não ha duvida -- disse Luiz.

Entretanto os homens que João tinha chamado aproximavam-se a correr.

-- Mexe-te!... Anda de pressa! -- bradou João para o que trazia a dianteira. -- Corre com o Manuel ahi ao lagar, e trazei de lá ambos meia duzia de caibros. Lijeiro!

O homem deitou a correr para o lagar pelos caibros que João pedia.

-- E tu -- disse este para o que vinha na colla d'aquelle -- vae n'uma carreira buscar trez ou quatro pannaes dos mais fortes, e uma foice roçadoira. Corre!... Avia-te!...

-- Para que são os pannaes, sr, João? -- perguntou Luiz a medo.

-- Hão de ser para cobrir bem o cavallo, por causa das silvas, para se recuar á mão. O sr. trepa cá para cima por uma ponte que nós vamos improvisar, com os caibros que ahi vêem... Tenha mão no cavallo. Não o deixe mexer-se.

Luiz estava sem alma para nada. A voz de João Gil tinha-o tornado terra. Já lhe tardava vêr-se longe d'ali.

XLIII

As enfermeiras de Luiz

Vieram e foram lançados os caibros de parede a parede. Luiz, ajudando-se de braços e pernas, subiu, sem se fazer rogado, para aquelle pontão que mãos amigas acabavam de improvisar, e atravessou para a quinta de João Gil pelo carreiro aberto á foice no meio do silvado que a cercava.

Estava, emfim, salvo.

-- Agora o cavallo? -- perguntou elle.

-- O cavallo não lhe dê cuidado, que não ha de ter perigo -- respondeu-lhe João Gil -- Vae-se já cuidar d'elle.

E voltando-se para os seus homens, ordenou-lhes o que tinham a fazer n'este sentido.

-- Ide vós lá abaixo; tu, Manuel, e tu Joaquim. O Bernardo fica aqui em cima, para o que for preciso. Ide de volta, pela ribeira. Cortae com a roçadoira as silvas que fizerem maior embaraço, cobri bem o cavallo com estes pannaes, e depois recuae-o á mão, mas com, geito hein?...

-- Sim sr.: n'o ha de haver duvida.

-- Nada de pressas! -- recommendou João Gil.

-- E o sr. -- prosseguiu João dirigindo-se a Luiz -- venha commigo. E' preciso cuidar d'esses ferimentos, lavar-se, que tem a cara bastante arranhada, salpicada de sangue. Ora deixe ver?...

-- Isto não valle nada -- disse Luiz.

-- Pois sim, não é coisa de cuidado, com effeito. Comtudo... venha, venha commigo. Esta gente cá tira o cavallo, socegue.

Acompanhou Luiz o marido de Amalia. Não podia deixar de ser. Mas com que coração, sabe-o Deus.

Ter que se apresentar n'aquelle estado diante de Thereza!...

Em verdade, isto era ridiculo. Roto, mazellado... Mas que lhe havia de elle fazer?... ir assim para sua casa?... ir assustar a familia?... atravessar n'aquelle bello arranjo as ruas da aldeia?...

Do mal, o menos. Tinha que acceitar o obsequio de João Gil: ir a casa d'elle lavar-se, compor-se. E portanto seguiu-o. Em certo ponto do caminho, porém, parou. Acabava de ver um tanque a transbordar d'agua. Queria-se lavar alli, remediar um pouco o seu deploravel aspecto. Mas João não consentiu.

-- De maneira nenhuma!-- exclamou elle detendo o por um braço -- E' coisa que não consinto. Essa agua é de mina, fria como gello, e o sr. está suado. Por quem é! deixemo-nos de temeridades. Ha de se lavar mas é n'uma pouca d'agua mórna.

O rapaz, comprehendendo a loucura que esteve prestes a commetter, deixou-se levar por João Gil: não reagiu.

D'ahi a minutos estava em casa do seu amigo.

-- Trago aqui uma vizita! --bradou João á entrada da porta.

-- Quem é a vizita, a estas horas? -- perguntou Amalia lá de dentro.

-- O sr. D. Luiz, o sobrinho da sr.ª D. Leonor.

-- Sim?! Será possivel?!... Sempre quero ver.

Palavras não eram ditas appareceu Amalia, e ouviu-se um grito repassado de dó.

-- Ai, o sr. D. Luiz, que vem morto, coitadinho! -- exclamou Amalia assim que encarou com o rapaz.

-- Cala-te ahi, mulher: n'o faças alarme, que n'o é nada.

-- N'o é nada!?... Pois eu n'o vejo o sangue?!...

-- Vês, sim, vês sangue, mas são só umas arranhaduras de silvas. Foi ali na barroca. Metteu-se lá a cavallo... imagina tu!

Amalia parecia idiota. Olhava ora para Luiz, ora para o marido, com olhos muito espantados, e profundamente compungida.

-- Na barroca!?... Mas como?... como foi parar á barroca?... cahiu, menino?

-- Felizmente, não -- respondeu o rapaz.

-- Qual caiu, nem qual carapuça!

-- Deixe ver a cara, sr. D. Luiz, deixe ver... -- disse Amalia com certo desembaraço.

-- São umas belliscaduras, coisa de nada -- ia dizendo João a compor o caso.

Luiz prestou-se ao exame de Amalia.

-- N'o tem duvida, que n'o são más belliscaduras estas!... -- ia Amalia exclamando -- Olhem que feitios!... Já viram?... Ai, Nossa Senhora! Podia ficar sem os olhinhos, sr. D. Luiz.

-- Escapou de boa, n'o tem duvida -- ponderou João.

-- Mas então como foi o menino dar comsigo á barroca a cavallo?! -- perguntou Amalia, que nem ouviu o áparte do marido.

Sim, como é que o rapaz tinha ido dar á barroca a cavallo? matutava Amalia.

-- Espantou-se-lhe o cavallo?... -- inquiriu ella.

-- Não espantou: pensei que aquillo era caminho.

-- Caminho!?...

-- Metteu por ali ao acaso, crendo que iria sahir a alguma parte -- explicou João.

-- E atão 'ó despois?...

-- Depois... ajudamol-o eu e os moços a subir cá para a nossa quinta. Subiu por uns caibros.

Amalia mostrava-se incredula, espantada.

-- Foi assim, foi -- confirmou Luiz.

-- E sabes a que sitio elle chegou? d'onde o fomos livrar?... D'ao pé da romeira.

Amalia estremeceu, teve um calafrio horrivel.

-- Que dizes tu João?!

-- E' como te digo. E viu-se lá a braços com os nossos cães, que lhe não deitaram os dentes por milagre. Apenas lhe despedaçaram o casaco, vês?...

Amalia, que ainda não tinha visto aquelle estrago do fato de Luiz, e que foi obrigada pelas provas em exposição a crêr no que ouvia, benzeu se duas vezes e soltou confusas exclamações de terror e compaixão.

-- Santo Deus! santo Deus!... Mas n'o haver uma alma que lhe dissesse que aquillo n'o é caminho, que podia muito bem não sahir de lá vivo!?...

João tirou-a das suas pavorosas visões.

-- Bem -- disse elle -- O que lá vae, lá vae. Não pensemos mais no que poderia acontecer. Tens tu lá agua mórna?...

-- Tenho.

-- Vae então quanto antes buscar uma bacia d'ella para o sr. D. Luiz se lavar. Depois ha de pôr arnica.

-- E n'o queres que mande chamar o sr. prior? ou tu já o mandaste chamar? -- perguntou Amalia.

-- Não. Não é preciso penso, eu. Que lhe parece, sr. D. Luiz?.. quer que o mande chamar?..

Luiz, apesar de todas as suas tristezas, sentiu umas cocegas de riso irresistiveis. Desatou a rir, a rir, a rir...

João, que percebeu o motivo, riu-se tambem a estalar. Amalia, muito intrigada, olhava para ambos com olhares desconfiados.

-- Então eu já estou em artigo de morte?! -- poude emfim dizer o rapaz.

Ignorava que sua reverendissima era medico.

Explicado isto, e restabelecida a ordem, Amalia foi pela agua para Luiz se lavar, e João, por satisfazer o implicito desejo do seu hospede, foi saber se o cavallo já estava a bom recato.

Ficou Luiz sósinho, mas por poucos minutos: d'ahi a migalho voltou Amalia com uma bacia de agua tépida nas mãos, e duas finissimas toalhas de linho penduradas no braço.

-- Tenha paciencia, desculpe -- disse a mulher de João -- Nós temos lavatorios; mas os nossos quartos inda estão por arrumar, e os que são dos hospedes estão n'uma desordem dos nossos peccados por via das obras que se andam fazendo n'elles. Ponho-lhe a bacia aqui mesmo de cima d'uma cadeira.

-- Está perfeitamente, sr.ª Amalia.

-- Ah! se a sr.ª sua tia o visse agora!... E a minha Thereza?... Lave-se! lave-se depressinha, n'o entre ella por ahi. N'o pode ver sangue. Até desmaia.

Luiz, como todo aquelle que ama, e que por coisa alguma quer ver afflicto o ente amado, metteu logo mãos á agua e tratou em acto continuo de se lavar, mas tão atabalhoadamente, tão sem caridade nenhuma para comsigo, que foi necessario Amalia avisal-o de que estava a fazer espirrar de novo o sangue das feridas.

-- De vagar, menino; com geito -- recommendouIhe ella -- Lave-se com cuidadinho, p'r'as feridas n'o sangrarem mais. Assim até se magoa. Olhe, quer o sr. D. Luiz que eu o lave?...

-- Não, muito obrigado.

-- Mas está a fazer espirrar o sangue!... Dê cá, desculpe -- disse Amalia com todo o seu desembaraço e sem ceremonia -- Estas coisas n'o se fazem á força, é com geito. O sangue seccou, é preciso amollecêl-o. Quer vêr como é?... Olhe... olhe... assim... dóe-lhe?...

E sem nenhuma especie de acanhamento puxou o rapaz para si e começou a laval-o como quem lava uma creança. Poz-lhe uma tolha ao pescoço, molhou uma ponta d'ella na bacia, e começou a piedosa operação, que se tinha incumbido, com um carinho verdadeiramente materno.

Luiz não reagiu, nem tentou reagir. Sempre tão opinioso, tão altivo, agora estava manso que nem um cordeiro. Deixou fazer de si tudo quanto Amalia bem quiz. Achou mesmo adoravel este desembaraço e lindo modo d'ella.

Minutos depois dava Amalia por terminada a sua tarefa.

-- Promptinho! -- disse ella -- Magoei-o?... Ande, diga lá se eu o magoei! Não que quem é mãe... Agora parece outro. Quer ver?... Viu-se depois?...

Apresentou-lhe um espelho.

-- Vê?... Afinal parecia mais do que era. D'aqui a tres dias nem se conhece nada.

-- Podia ser peor, não ha duvida -- condisse o rapaz -- Entretanto... não fiquei com a cara em bom estado.

-- Ora não é nada, não é nada -- tornou Amalia, a consolal-o -- Verá! Em ahi pondo um boccadinho de arnica, verá! é com 'a graça de Deus.

N'este momento appareceu Thereza. Luiz alvorocou-se todo ao vel-a.

Vinha vestida com uma simplicidade encantadora. Exactamente como ella costumava andar vestida por casa, em manhãs de verão, sempre: nem mais, nem menos. Não tinha posto adorno algum, não tinha feito nada, para se apresentar mais bella ao rapaz. Trajava uma saia lisa, de musselina clara, decentemente curta, que deixava ver-se-lhe o pé, pequenino e elegante, calçado em perfeito sapatinho de pellica fina: trazia um amplo casaco de bretanha guarnecido de rendas delicadissimas, e ao pescoço, o que lhe dava ao alvôr roseo das faces um maravilhoso destaque, um bello lenço de seda azul celeste.

Luiz, sempre tão desenvolto, sempre tão correntio diante de mulheres bonitas ou feias, novas ou velhas, fidalgas ou tricanas, sentiu-se profundamente enleado diante d'esta. Cumprimentou-a com um acanhamento extraordinario, invencivel. Via mal, respirava, mal, ouvia mal: sentia uma commocção nova, estranha, indefinivel, misto de goso e temôr, d'esse temor que dizem apoderar-se dos bemaventurados ao comtemplarem vizões celestes.

Foi Amalia que inconscientemente o despertou do seu extase, que o poz á vontade. Animou-o, deu-lhe alentos com a sua loquella.

-- Vês? -- disse ella para a filha, apontando-lhe Luiz Estavas tão afflicta!... Não foi nada.

Depois, voltando-se para Luiz...

-- Mas p'ra onde queria o sr. D. Luiz ir pela barroca? -- perguntou ella.

Porque Amalia não achava assás satisfatoria a explicação do marido; que o rapaz tinha mettido pela barroca ao acaso. Parecia-lhe haver n'aquelle acontecimento o que quer que fosse de mysterioso.

-- Não levava direcção determinada -- respondeu o rapaz -- Suppuz que aquillo era caminho: andava passeando, vendo a aldeia.

-- Mas não reparou...

-- Ia distrahido, a olhar para os campos. Lá muito adiante é que eu reparei que o supposto caminho ia apertando, e que, emfim, descia em grande declive, que não dava passagem. Mas a esse tempo já era tarde para voltar para traz, e já os cães me tinham assaltado.

-- Os cães! -- murmurou Amalia -- Nem o sr. sabe o que foi de feliz em o meu João lhe accudir. Os cães eram capazes de o devorar: são uns tigres.

-- Acredito.

-- São uns cordeiros para gente conhecida: mas para quem não conhecem, e sobretudo de noite, são umas feras -- explicou Thereza -- Depois, castigando-os, peor. E por isso é que minha mãe diz que elles eram capazes de devorar v. ex.ª.

-- De modo que, como lhes eu bati, elles ficaram-me naturalmente protestando pela pelle, e se um dia me apanham de geito... despedaçam-me?

-- Não tenha medo - disse João, que n'este momento reentrava na sala -- Desde que o viram commigo... logo que o reconheçam... De noite é falar-lhes. Falar-lhes sempre! Entretanto eu vou-os mandar chamar: quero lhes apresentar o sr. D. Luiz como amigo da casa Bernardo?... -- gritou João da janella -- Assobia ahi aos cães: chama-os cá.

Ouviu-se um assobio repetido, fortissimo, especial. Os cães accudiram rapidos, afadigados, á chamada: João attrahiu-os a casa d'um simples aceno, a uma só voz.

-- Aqui!...

Correram os animaes, latindo, apressados, orelha afilada, escada acima, e foram de rojo, humildes, n'uma ganidela surda, postar-se aos pés de João, que os esperava em frente da porta da sala. Luiz, só de os vêr, estremeceu. Eram corpulentos, enormes. E quando elles, falados pelos donos, lhe cahiram com as patas em cima, a lamber lhe as mãos, a cumprimental o, julgou-se outra vez perdido.

-- Não tenha medo. Não tenha receio. Agora podia-os o sr. esfollar vivos, que elles nem se queixavam -- disse João Gil -- São muito leaes.

-- Vae tu buscar uma codea, menina, para o sr. D. Luiz lh'a dar -- disse Amalia.

Thereza sahiu e voltou com uma enorme fatia de pão, que Luiz repartiu pelos mastins.

Estavam feitas as apresentações.

-- Mas agora me lembro eu! -- exclamou João Gil -- O sr. ainda não poz arnica n'esses ferimentos?...

-- Ainda não. Nem será preciso -- respondeu Luiz.

-- E' -- contrariou João -- Indispensavel, até. Filha! vae pelo vidro da tintura. Traz tambem um panninho de linho, para se ella applicar.

-- Eu vou, eu vou -- disse Amalia levantando-se e sahindo -- Eu vou, por causa do panno.

-- O cavallo já está na cavallariça -- disse João a Luiz -- Ficou um tudonada resaebeado, mas aquillo passa-lhe. Mandei-o esfregar todo com vinagre bem forte e sal.

-- Fez bem, obrigado.

Amalia estava de volta.

-- Prompto! a arnica e o panno.

-- Bello. Vamos lá a isto, sr. D. Luiz. Ha-de-lhe arder, mas ha de têr paciencia. O que arde, cura. Eu dou-me excellentemente com este medicamento: qualquer contusão, qualquer golpe... arnica! A's vezes é alcool camphorado. Também é prodigioso. Outras vezes é uma e outra coisa. Vamos á obra. Quer o sr. fazer o curativo, ou quer que lh'o façam?

-- Eu arranjo isto -- respondeu Luiz -- Está aqui um espelho para me ajudar.

Embebido o trapo no liquido, começou o rapaz a cauterisar as escoriações do rosto. O ardor da applicação, porém, foi violento. Eram bastante profundos os golpes. As lagrimas, bem contra sua vontade, brotaram-lhe immediatamente dos olhos.

-- Espere!... espere!... -- accudiu João segurando os braços ao rapaz. Não chegue com as mãos molhadas da tintura aos olhos. Tenha paciencia, já se lhe limpam. Tens ahi um lenço, filha?...

-- Tenho, sim, meu pae.

-- Dá cá. Ou não. Eu tambem tenho as mãos humidas da tintura. Limpa tu os olhos ao sr. D. Luiz.

A rapariga não se fez rogada. Já a mesma lembrança lhe tinha accudido á idéa.

Luiz, sentindo nas faces o contacto d'aquellas mãos pequeninas, mimosas, avelludadas, teve mil tentações de as comer com beijos. De repente passaram-lhe todas as dores. Já até se dava por feliz com a sua desgraça!

Findo o tratamento, como Luiz se preparasse para ir-se, agradecendo muito, e muito sinceramente penhorado, os obsequios que todos lhe tinham dispensado n'aquella casa, João convidou-o para almoçar comsigo.

-- E entretanto -- accrescentou elle -- manda o sr. a sua casa buscar um casaco, para não ir com esse tão despedaçado na manga.

-- Muito obrigado. O casaco escapa... de fugida.

-- Sem ceremonia...

-- Agradecidissimo.

-- Ou tu não tens, Amalia, para almoço, coisa que se possa offerecer ao sr. D. Luiz? -- perguntou João para a mulher, que vinha entrando.

-- Ora se tenho! Porquê?... Almoce comnosco, sr. D. Luiz. Olhe, dou-lhe frango, dou-lhe lombo de porco assado... muita coisa. E a boa vontade! Que mais quer? Se ficar com fome, almoça logo outra vez em sua casa.

-- Que diz? -- perguntou João ao hospede.

-- Não teime, meu pae -- sobreveiu Thereza com certo ar de graça -- O sr. D. Luiz sabe perfeitamente que n'estes casos quem offerece é que recebe obsequio de quem acceita.

João, que todo se regalava de ouvir á filha d'estas subtilezas reveladoras de bôa educação, e abonatorias de lucida intelligencia, tornou a dirigir-se a Luiz, mas d'esta vez com certa ufania e desplante.

-- E agora?... agora, sr. D. Luiz?!... -- exclamou elle.

-- O dito por não dito, meu caro amigo -- respondeu Luiz -- Acceito a sua offerta.

E voltando-se para Thereza, accrescentou:

-- Não a tinha rejeitado senão por não querer abusar das bondades com que fui recebido; creia, minha senhora. Simplesmente por isso. E se me retrato, o que faço com sincero prazer, é por me querer constituir no bom direito d'amanhã, um dia qualquer, empregar com toda a efficacia as suas mesmas palavras d'agora...

-- Pois fica assente isso -- disse João Gil com modo risonho, cortando por cumprimentos.

-- Entretanto, pedirei um favor -- sobreveiu Luiz -- Ou ames, se m'o permittcm, porei uma condição.

-- Dirá, sr. D. Luiz -- accudiu o pae de Thereza.

-- E' que não hão de fazer commigo ceremonia nenhuma, absolutamente nenhuma. Senão escusam de me tornar a offerecer nada, que eu nada acceito.

-- Combinado! -- replicou João Gil. -- Ceremonia nenhuma: como amigos velhos. Ouviste, Amalia?

-- Está dito -- disse Amalia sahindo apressadamente, e vizivelmente satisfeita -- D'aqui a boccadinho já os chamo.

-- Vamo-nos chegando -- disse João para Luiz

-- Quero que verifique pelos seus proprios olhos que não usamos de ceremonias. O almoço deve estar a ser posto na meza. Nós costumamos almoçar a estar hora, ás sete e meia. Costumes patriarchaes: almoço ás sete e meia, jantar ao meio dia, ceia ao anoitecer. Se ficar contente com a nossa hospitalidade, e alguma vez quizer fazer-nos o obsequio de se aproveitar da nossa meza, já sabe o horario das refeições.

XLIV

Um almoço divertido

Tanto João, como Amalia, eram muito economicos, muito poupados, mas nada miseraveis. A sua casa podia-se vêr por gosto: era em parte a d'um lavradôr, em parte a d'um homem d'estado. Havia n'ella uma ordem, um asseio, um conforto, que encantavam. Não se viam grandes luxos, mas tambem se não notavam faltas. A sua meza era abundante, saborosa, portuguezissima. O serviço d'ella, desde o prato até ao guardanapo, combinavam perfeitamente.

Começou Luiz por observar isto na sala onde se esteve curando, e foi acabar de o verificar á casa de jantar.

Era esta casa um ceu aberto. Illuminavam-n'a trez espaçosas janellas, a central de sacada, que davam para a quinta, e que se achavam guarnecidas de folhagem e flores de várias trepadeiras vindas do jardim ali. Ao centro estava a meza já posta, muito decentemente posta, por tal signal, e com certeza não preparada por causa de Luiz. Tudo o affirmava: era inadmissivel uma duvida. Do lado direito havia um aparador de carvalho cru, e defronte um bello guarda-loiças antigo, recheado de vidraçaria fina, porcellanas e alguns crystaes: entre a porta da cozinha, e a particular, existia um lavatorio de pedra, servido d'agua por uma torneira entalada na bocca de um golphinho: aos cantos da casa, vicejando, floridas, ostentavam-se diversas plantas dispostas em vasos, curiosidades de Thereza. Emfim, o tecto era estucado, as paredes achavam-se adornadas por alguns quadros proprios, e as portas tinham reposteiros e as janellas cortinados.

Luiz ficou maravilhado com este arranjo. Não o tinha imaginado provavel.

-- Mas que linda casa o sr. tem! -- disse elle para João com toda a simplicidade.

-- Não é feiasinha -- disse o marido d'Amalia, que tinha o fraco de gostar que lhe gabassem as suas coisas.

-- Um encanto! -- tornou o rapaz -- Que soberba vista d'aqui se desfructa!...

-- E' muito alegre, pois não é? -- perguntou Amalia, que vinha entrando com uma data de guardanapos e de coisas para reformar a meza.

E voltando-se para a filha...

-- Menina, ajuda-me.

-- Mas que queres tu fazer, mulher? -- perguntou João.

-- Mudar a toalha, estas coisas.

-- Olha que me comprometti com o sr. D. Luiz a não se fazer ceremonia nenhuma! -- observou João sorrindo -- Não me deixes ficar mal.

Thereza e Amalia, não obstante os pedidos de Luiz, teimaram em mudar a toalha.

-- Ora, ora, se isto é ceremonia!... Sempre tens umas coisas, Joãol Olha que o sr. D. Luiz não te conhece, para que tu comeces já com as tuas brincadeiras do costume. Vê se tens tino.

João sorriu-se, e disse para Luiz:

-- E' isto que vê; estamos sempre a ralhar um com o outro.

Luiz estava gostando infinitamente d'este bom humor de João, e não menos dos ares graves de Amalia. Tudo lhe dava a entender que os dois conjuges eram amicissimos um do outro, adoraveis na sua lhaneza e simplicidade.

A's vezes Thereza comprazia-se em assim o advertir a Luiz por breves e gentilissimos modos.

-- Não faças nada que não tivesses de fazer para nós -- ia continuando João -- Traz'-nos a paparoca que houver, e acabou-se. Nada de ceremonias.

-- Ora tu, tu, homem!... Se o sr. D. Luiz te soubesse o genio, emfim, vá: mas não t'o sabendo... N'o faz idea, Luizinho: está-se sempre a rir!

Este Luizinho e menino com que d'ora em quando Amalia tratava o filho de D. Duarte, era muito do agrado do rapaz.

D'ahi a pedaço, poucos minutos depois d'isto, começou o almoço. Thereza tomou assento á direita do pae, e Luiz á direita de Amalia.

João e Amalia ficavam em frente um do outro.

Veiu o primeiro prato, frango guisado.

-- Ora vamos a vêr se o sr. D. Luiz gosta da nossa comida. Eu o sirvo, -- disse Amalia.

-- Não, mulher! Elle que se sirva. Isso é ceremonia -- observou João com o seu costumado ar de graça.

Amalia teimou em servir o rapaz sob um pretexto plausivel. Queria que elle comesse bastante. Se elle se servisse, punha-se com ceremonias.

-- Basta! -- dizia Luiz.

-- Mais este boccadinho de moella -- contrapunha Amalia.

-- Basta!... basta!... -- tornava Luiz.

-- Só mais esta azinha -- volvia-lhe Amalia -- Pois se isto é quasi tudo ossos!... Bem: agora é que basta. Prove lá, sr. D. Luiz. Que tal está?...

-- Delicioso.

-- Gosta?...

-- Delicioso, francamente.

-- Anda, agradece, mulher -- disse de lá João -- Que a cozinheira é ella -- explicou elle para Luiz.

-- E' verdade; e que tem?... Mas sabe porque sou eu a cozinheira, menino?... porque eu n'o quero que ninguem me faça a comida?... E' porque n'o ha nada mais triste que dal-o Deus na eira, e tolhel-o Maria na masseira. Em eu n'o cozinhando, n'esta casa ninguem come.

Luiz comia com bom appetite: João tambem. A palestra ia-se animando: iam-se achando todos muito á sua vontade.

Appareceu outro prato, cujo contheudo João não reconheceu, ou fingiu não reconhecer.

-- Que é isso? -- perguntou elle.

-- Lombo com batatas -- respondeu-lhe a filha.

-- Ah! fui atraiçoado! -- exclamou João com ares tragi-comicos -- Conspiraram contra mim.

E voltando-se para Luiz:

-- Desculpará, sr. D. Luiz. Absolva-me d'esta falta ao meu compromisso em honra da minha lealdade. Nós cá em casa não comemos lombo senão quando temos vizitas. O lombo de porco é o prato de resistencia da mesa de hospedes. Desculpará.

Amalia, bem que percebesse que o marido estava gracejando, córou até á raiz dos cabellos.

-- Ora sempre tu és bem velhaco! -- exclamou ella.

João trocou um ar de intelligencia com Luiz.

-- Então n'o 'stá teu pae a comprometter-me, menina?!... Pois deixe falar o meu João, sr. D. Luiz. Eu mandei aquecer o lombo, porque já estava decidido que nós hoje ou amanhã haviamos de comer um boccado d'elle. Foi pelo que foi. N'o é verdade, Therezinha?...

-- E', sim, minha mãe.

Serviu-se o lombo. Luiz comeu, e repetiu.

-- Pois se foi por minha causa que a sr.ª Amalia arranjou este prato, francamente que teve uma idea feliz. Gosto d'isto. Mais um boccadinho, por favor.

-- Ora anda! -- exclamou Amalia voltando olhos triumphantes para o marido -- Pois o dito por não dito, menino. O lombo mandei-o com effeito aquecer por sua causa; porque eu bem sei que quem vem lá das cidades, aprecia-o muito. O almoço que estava para nós, para a familia, era o frango, cabrito assado, mas frio, de hontem, e uns bolinhos de peixe muito bons, que logo veem, quentinhos.

-- Está-me a comprometter, minha mãe! -- exclamou Thereza.

-- Ouviu, sr. D. Luiz?... Veja lá se eu lhe falei verdade.

Veiu o cabrito, e vieram os bolos ou pasteis de peixe.

Luiz ia-se familiarisando: comia, bebia e tagarellava correntemente. Era como se já conhecesse aquella familia ha muitos annos.

Depois veiu chá, bolos e bolachas. Na meza havia queijo, doces e fructas; coisas que sempre se apresentam a hospedes, ainda os mais intimos.

João, fingindo que fazia isto muito ás escondidas, pegou da garrafa e encheu de vinho a chavena que a rapariga que servia á meza lhe tinha posto. Amalia córou intensamente.

-- O' João!... qu 'estás tu a fazer, homem?... -- bradou-lhe ella de lá profundamente vexada.

Luiz, que tinha visto o manejo e percebido a intenção que presidia a elle, riu-se do caso, e muito mais, ainda, do ar gravemente comico de João na sua replica á mulher.

-- Ora com effeito! -- exclamou elle -- Mas que mal te fiz eu para tu não tratares senão de me comprometter em tudo e por tudo?!

O aspecto risonho de Luiz serenou Amalia. Estava-se a vêr a todo a evidencia que elle reconhecia que o acto de João era pura brincadeira.

João continuou.

-- Que necessidade havia, mulher, d'o sr. D. Luiz saber que eu tinha deitado vinho na minha chicara? que estava tomando vinho, e não chá?!... Para que te serve a malicia?... Mas a tua esperteza percebo eu agora: o que tu quizeste foi deprimir-me a mim, para te exaltares a ti: o que tu quizeste foi que o sr. D. Luiz ficasse sabendo que eu sou homem de vinho, e tu mulher de chá. Nega!?

Estes gracejos foram saudados com grandes risadas. Por fim já tambem Amalia se ria.

Depois, falando sério, explicou João que não gostava de chá.

-- Não gosto -- disse elle -- Faz-se todos os dias cá em casa pela manhã e á noite, mas é só para minha mulher, minha filha e minha mãe, que o sr. não vê aqui á meza porque anda adoentada, coitadinha. Almoça na cama: não a deixamos levantar cedo. Eu é bebida de que não faço uso senão de festa em festa, ou por doença, ou por ceremonia. Ora quanto a ceremonias... qual foi o nosso ajuste?...

-- Bravo! Applaudo! -- exclamou Luiz, que deveras sympathisava já com João, e apreciava o seu espirito e a sua franqueza -- No modo como o sr. tem procedido para commigo, só haverá um inconveniente; é eu, um dia por outro, vir-lhe comer o almoço, o jantar ou a ceia.

Recebeu Amalia alegremente esta declaração, que era a prova capital de que o seu hospede tinha ficado satisfeito com o almoço, e com a gente de casa. João tambem a ouviu com prazer, e Thereza com muito maior prazer ainda. Porque, diga-se a verdade, o rapaz não lhe era indifferente. Pelo contrario: de cada vez ella ia engraçando mais com elle.

Findo o almoço passou-se a falar da aldeia. Luiz dizia que a achava encantadora.

-- E' agora nos primeiros dias -- retorquiu-lhe Thereza -- Logo se aborrece d' ella.

Luiz presentiu n'esta observação da rapariga como que um sondamento, e respondeu com grande fogo de eloquencia que para si não havia nada mais bello que uma aldeia bonita.

Já n'isto ia tambem, d'envolta com a palavra banal, a intenção meditada d'uma idea. Queria elle assim fazer perceber á rapariga, caso na sua replica houvesse o mysterio d'um pensamento, a intuição d'esse pensamento e a resposta que a sua alma lhe dava.

João e Amalia ouviram este questionario, e nempor sonhos suspeitaram absolutamente nada do sentido occulto que n'elle havia. O que, afinal, não é para admirar: a linguagem do amôr é tão subtil, tão subtil!...

-- Finalmente, -- disse Luiz em conclusão do seu arrazoado -- o que n'uma aldeia me poderia causar desgosto, mesmo tédio, seria eu não têr com quem conversar, quem me entendesse, gente amavel: mas aqui, acabo de o verificar, essa falta não se dá.

O marido d' Amalia agradeceu o quinhão que lhe tocava n'este encomio, que era sincero e justo.

-- E para me divertir -- disse ainda o rapaz -- não faltará por ahi caça. Eu gosto muito de caçar. Sabe caçar, sr. João?...

-- Elle a perguntar-me se eu sei caçar!?... Bôa! Ponha-se o sr. um dia ao meu lado, deante d'umas perdizes, e nós veremos quem faz maior destroço n'ellas!

Luiz enthusiasmou-se.

-- Oh! mas isso é um encanto, uma maravilha!... E tem bons cães? muitos cães?...

-- Para quê? Eu não preciso de cães -- respondeu João dando-se grandes ares.

-- Então?...

-- Para dar conta d'uma, até duas perdizes, basto eu. Não lhe deixo senão os ossos!

Luiz desatou a rir perdidamente. Não esperava este logro em que tinha cahido. Suppôz que, de facto, João era caçadôr. Fez-lh'o crer a compostura, o modo soberbo como elle lhe falava.

Thereza e Amalia, esta agora muito segura de que Luiz gostava a valer das brincadeiras de João, tinham-n'o deixado lograr. Só deram signal aberto de si quando o rapaz descobriu a mystificação de que fôra victima. Até ahi contiveram-se mudas, disfarçadas.

Acabada a rizota, declarou João lisamente que nunca tivera arte para acertar um tiro. Nos seus tempos de rapaz foi algumas vezes á caça, mas sem nenhum proveito. Era capaz d'errar uma porta! Só d'uma vez, e d'essa por grande infelicidade sua, é que derrubou uma ave: fez pontaria a um pardal n'uma eira, e matou um gallo que andava esgaravatando lá longe. O pardal fugiu, e o dono do gallinaceo foi-lhe aos lombos. Nunca mais pegou em espingarda.

Apoz esta historia contou, a proposito, outras mais, tambem curiosas, da sua vida, e depois andou mostrando toda a casa ao rapaz: levou-o á cozinha, aos quartos e salas, ao seu escriptorio, que era simultaneamente casa de costura de Thereza, á adega, á tulha, á cavallariça, a todos os anexos do edificio, que era feito pelo seu risco e com o seu dinheiro, desde os alicerces até ao telhado: e por ultimo foi-lhe mostrar a entrada principal d'aquelle paraizosinho.

Condizia essa entrada para o adro, e constituia um perfeito museu de todas as alfaias agricolas dispostas com muitissima arte.

Era um espaçoso vestibulo, illuminado por duas bellas janellas gradreadas a varões de ferro, e servido por uma porta sólida e ampla.

D'um lado, formando um grupo, estava o carro e toda a sua respectiva apeiragem: do outro, formando outro grupo, a dorna cercada de varios instrumentos ruraes. Fronteiro á porta, no patamar da escada, via-se, em guisa de tropheu, o arado, e á volta do arado sachos e picaretas de todos os tamanhos e feitios. Aos lados da escada, á direita, jazia a grade, e ao redór d'ella crivos, cirandas e ancinhos: á esquerda, ostentavam se mangualdes, forquilhas, foices, rodos, pás e gadanhos.

Havia ali de tudo, e tudo era novo e bom.

XLV

A industria dos namorados

Regressou Luiz a sua casa profundamente influido pelas mais gratas phantasias que podem embalar um coração juvenil. Ia ébrio de contentamento. O modo como João e Amalia o tinham acolhido, aquella affabilidade e simplicidade d'ambos, que tanto o captivaram, fazia-lhe conceber mil phantasias, architectar mil sonhos d'amôr em que a imagem de Theresa era o symbolo e a substancia, o principio e o fim, o alpha e o omega.

D. Leonor e Izabel, a quem elle logo que entrou no palacio foi dar conta da sua aventura e consequencias d'ella, não poderam deixar de se rir ao ouvirem-n'o gabar com tamanho enthusiasmo os encantos de Thereza, e as bondades e excellencias de João e Amalia, que já parecia que o seu coração estava com effeito devéras affectado.

-- De modo que -- disse-lhe a tia, sondando-o -- agora é que é realmente de vez; estás apaixonado?

-- Estou, acredite, minha tia -- respondeu Luiz com grande ardôr d'expressão.

Izabel não poude conter o riso.

-- Foi chegar, ver... e apaixonar-se -- observou ella para a tia.

-- E' verdade, filha: foi chegar, ver, e apaixonar-se -- condisse D. Leonor.

E voltando-se para Luiz, exclamou:

-- Ai, pobre cabeça louca!... Sempre o mesmo phantasista, sempre a mesma creança!

Luiz estimulou-se.

-- Duvida então minha tia do que eu lhe digo?... de que estou realmente apaixonado pela filha do João Gil?... de que gosto immensamente d'aquelle homem e da mulher d'elle?...

-- Os precedentes, Luiz...

-- Sim, os precedentes...

-- Tambem a mana não acredita?... Pois bem: dê-se tempo ao tempo. O tempo falará! -- replicou Luiz.

E calou-se: nem mais palavra disse sobre o assumpto. Por mais que a irmã e a tia fisessem para o tirarem a terreiro, nada conseguiram. Luiz entrincheirara-se a todas as perguntas, a todos os commentos, com a phrase com que se tinha recolhido ao silencio.

-- O tempo falará!

-- Esperaremos, pois, que o tempo fale -- disse-lhe D.Leonor resignada -- Entretanto, sempre te direi, Luiz; para divertimento, não namores; deixa viver em paz quem vive em paz: a sério... que Deus te ajude. Medita, pensa antes de mais nada no que vaes fazer,... regula-te pelos meus conselhos de hontem.

Foi com estas palavras que D. Leonor poz ponto ao seu colloquio com o rapaz.

Observou elle estes salutares preceitos que o bom criterio da tia lhe dictou?... sondou-se, fez um recto exame de consciencia antes de se abalançar a novas aventuras?... Não! O coração não pensa, e Luiz, agora, era todo coração. O coração dominava-o.

-- «Mas amava elle Thereza? -- pergunta-me por certo a minha leitora.

-- «Pois amava, amava... Ou, se ainda a não amava, sentia por ella uma grandissima sympathia, uma attracção irresistivel, que a pouco e pouco refinou em amôr».

-- «E ella, Thereza, amava o tambem?»

-- «Sim, minha senhora; tambem o amava. Ou antes, tambem o veio a amar.»

Esta é a verdade: graças ás excellentes relações que existiam entre a familia do fidalgo e a familia de João Gil, Luiz conseguiu em pouco tempo verdadeiros triumphos na sua campanha amorosa. Thereza, logo d'ahi a dias, começou a dar-lhe provas evidentes d'uma affeição cordialissima, a mostrar-se-lhe devéras dedicada, a corresponder ás suas manifestações. A attitude correcta d'ella, o seu commedimento, tudo o que falando-se d'uma rapariga solteira se chama seriedade, eram poeira para os olhos do mundo e luz para os olhos de Luiz.

Quem ama entende o que ninguem mais é capaz de entender, ouve o que ninguem mais é capaz de ouvir, adivinha o que ninguem mais é capaz de adivinhar. O comportamento de Thereza era um disfarce ostensivo: Luiz reconhecia-o perfeitamente, e fazia porque os outros o não podessem perceber. O que n'ella, porem, era filho do instincto, n'elle era filho da practica.

Habil em torneios d'esta ordem, Luiz disfarçava á maravilha os seus intentos, e punha a coberto de suspeições o animo da rapariga. Gumprimentava-a com grande cortezia, falava d'ella com muita descrição, e não a provocava a expansões. Quando lhe passava á porta, ou quando lhe ia a casa, era sempre com um motivo justificavel. Umas vezes fazia-se encontradiço com João, e acampanhava-o, palestrando. Subia, se o instavam, se o não instavam, retirava-se. Outras vezes queria dar á lingua, cavaquear: na aldeia não havia com quem se conversasse, a não sêr com João ou com o sr. padre David. Emfim, outras vezes, acompanhava a irmã ou a tia, vinha da caça, passeava a cavallo, etc.

Contentava-se assim o rapaz com um aperto de mão, muito significativo, se podia ser, e se não podia ser, muito diplomatico; um olhar furtivo, muitas miradas de longe, e muitos respeitos ao pé. Thereza, apparentemente, era uma senhora que elle estimava por ser senhora, e por ser filha de quem era. As pessoas suas amigas, de sua especialissima affeição, eram Amalia, o marido e a tia Ricardina, a quem, verdade seja, elle era muito dedicado.

Tempo veiu, porem, em que Luiz começou a achar pouco vêr Thereza. Queria mais: queria poder-lhe dizer expressamente que a amava, communicar-lhe as suas phantasias, os anhelos do seu coração, corresponder-se epistolarmente com ella. Mas como? Como principiar essa correspondencia? Como fazer-lhe chegar ás mãos a primeira carta?...

Encontrou Luiz um meio muito engenhoso, depois de activo parafusar.

Namorados são prodigiosos inventores!

Como Thereza apreciava muito a leitura de romances, e a miudo pedia a Izabel que lhe emprestasse aquelles que ella lia e tinha por melhores, foi-se um bello dia o rapaz a um que lhe pareceu recommendavel, e com uma paciencia digna de todo o elogio principiou a lel-o e a sublinhar-lhe palavras a lapis verde. Depois, na primeira occasião, que se não fez esperar, inculcou-lhe a obra, encarecendo-lh'a bastante: e Izabel, com toda a sua innocencia, confirmou tão especiosos encomios.

Estava jogada a cartada.

Recebeu Thereza o livro, levou-o, começou a lel-o, e encontrou o primeiro sublinhado. Não fez caso, naturalmente. A palavra era Desculpe, uma palavra indifferente, sem significado que despertasse curiosidades. Passou adiante, e deparou-se-lhe segundo sublinhado, e este agora sob uma phrase redonda; a minha audacia. Tambem não fez caso. Proseguiu na leitura, e terceira, quarta, quinta, oitava vez se lhe deparou o traço verde.

Tanto risco! Começou aquillo a fazer-lhe especie. Voltou a folha, depois outra folha, logo outra, agora procurando mais signaes, até que de subito sentiu um baque de coração.

Acabava de encontrar, assignalada a palavra amo-a, e logo apoz, assignalado igualmente, um T.

Voltou immediatamenteatraz,ao comecilho d'aquella estranha meada, e começou a fazer a ligação das palavras sublinhadas. Lia, e o coração arfava-lhe, n'uma anciedade enorme. Lia, e quanto mais lia maior anciedade sentia.

Dizia assim o apanhado d'aquelles esparsos retalhos do romance: «Desculpe a minha audacia, este desafogo de quem se sente martyrisado pelo silencio, este expediente de quem já não póde calar por mais tempo o sentimento que o domina, que o escravisa; amo-a, T. Amo-a com todo o ardor da minha alma, de todo o meu coração, apaixonadamente, perdidamente. Não a teem illudido os meus olhares, não a teem illudido as mudas manifestações do immenso affecto que eu lhe consagro. Costumei-me a vêr em si o ideal dos meus mais bellos sonhos, a admiral-a e a veneral-a como a imagem perfeita do meu mais fervoroso culto. Um dia em que eu a não veja, é para mim um dia de luto, um dia de trévas, frio e triste, de saudades e amarguras, como os dias d'um proscripto no exilio... Os seus sorrisos, os seus olhares, são a luz, o sol que me illumina, que me aquece... a minha alegria e a minha esperança... Auctorise-me a escrever-lhe, peço-lhe, e creia na minha descrição, no meu amor, no profundo reconhecimento da minha alma pelas suas atlenções para commigo. L.»

Releu a rapariga a estranha epistola, depois de ter transladado ao papel, seguidas, unidas, todas as suas partes, lettras e virgulas, e quedou-se como abysmada n'um mar de conjecturas.

Evidentemente aquelles signaes graphicos constituiam uma carta, uma declaração d'amor: e n'aquella carta havia um T, que podia querer dizer Thereza, e um L, que podia querer dizer Luiz: e Luiz já muitas vezes, por olhares, por apertos de mão, por gestos rápidos, lhe tinha dito que a amava, parecia-lhe. Mas quem lhe affirmava a ella que aquillo tinha sido escripto para si? Quem lhe assegurava que não tinha sido escripto para outra?...

Verdade era que Luiz é que lhe tinha indicado a leitura d'aquelle romance, e com certo encarecimento; o que parecia um indicio affirmativo de que a carta lhe fôra dirigida a si; e verdade era, tambem, que nomes de mulher começados pela lettra T havia só dois, Thomazia e Thereza, que ella soubesse. Mas ha tanta Thereza! tanta Thomazia! E depois... podia muito bem sêr que a recommendação de Luiz não fosse intencional. Que havia de ella pensar?... Como apuraria a verdade d'aquelle extraordinario caso?

Deitou-se e levantou-se a rapariga a meditar n'isto, na solução do problema.

E se ella escrevesse no romance alguma coisa?... Mas escrever, não; seria comprometter-se; podiam-lhe reconhecer a caligraphia. E se ella, com um lapis preto, vermelho... plagiando aquelle systema epistolar... respondesse á carta?...

Optou por este expediente. Buscou nas paginas do romance as palavras que maior conta lhe faziam, e sublinhou-as.

O todo dizia assim: »Li. Agradecida pelas suas expressões. Concedido o que pede. Confio na sua descrição e na sinceridade dos seus protestos. Farei por corresponder á affeição que me tem. T.»

Passados quatro dias, que lhe pareceram quatro longos annos, disse Thereza a Izabel que já tinha lido o livro, e que lh'o levaria, em lá indo a casa, para trazer outro.

Foi isto na rua, deante de Luiz.

-- E gostou d'elle? ou não o leu, não gostou? -- perguntou-he o rapaz com olhos prescrutadores, cheio de interesse.

-- Gostei, gostei muito -- respondeu Thereza córando, acanhada.

-- Pois agora estou eu acabando de lêr outro, que ainda é melhor -- disse Luiz - A'manhã ou depois está elle á sua disposição.

E voltando-se para a tia, e para Amalia e Izabel, que conversavam, metteu-se á fala com ellas com o ar mais dissimulado d'este mundo.

Continuar a falar com Thereza, para quê? Era comprometter a partida. Mais que confusa já ella tinha ficado com a sua pergunta; podia alguem notal-o. Dirigir-lhe mais perguntas, para quê? Seria uma impertinencia, uma temeridade, uma falta de juiso a toda a prova. O que Luiz queria saber, estava sabido. Thereza, positivamente, lêra a sua carta e não ficára desagradada d'ella: pelo contrario: affirmava-lh'o aquelle gostei, gostei muito, com que ella lhe respondeu, e a commoção da sua voz ao dizer-lhe aquillo, uma coisa tão simples.

Mostrando-se no emtanto o rapaz muito satisfeito, muito despreoccupado, não o estava tanto quanto parecia. Lá por dentro tudo eram desejos, anciãs de colher ás mãos o livro, e verificar se n'elle vinha algum bilhetinho, alguma promiessa, alguma resposta.

Não foi, pois, sem sobresalto que elle á porta de João Gil, no momento em que as duas familias acabavam de se despedir, e iam apartar-se, disse para Thereza, como por lembrança casual:

-- Ah! se quizesse dar-me agora o romance, levava-o eu: porque, com franqueza, fiquei com um pedaço d'elle por ler.

-- Pois não! -- exclamou Thereza.

E foi-lh'o buscar, deu-lh'o.

-- Quer o sr. D. Luiz que lh'o eu lá mande? -- perguntou Amalia obsequiosamente - E' melhor -- disse ella.

-- Não, obrigado: com estes fardos posso eu -- respondeu o rapaz -- Adeus.

E partiu.

Assim que se apanhou em casa sósinho, agarrou-lhe pelas capas, como se agarrasse nas azas d'um frango, e saccudiu, saccudiu as folhas. Nada! nenhum papelinho; nem mesmo a petala d'uma flôr. Depois, sofregamente, n'uma grande agitação nervosa, principiou a examinar-lhe as paginas. Quando achou o primeiro risco de lapis preto, estremeceu: quando achou o segundo, o terceiro, os seguintes, sentiu-se progressivamente abafar d' alegria, d'enthusiasmo.

Parecia louco.

LXVI

De vento em popa

Influidissimo pela resposta que acabava de ter de Thereza, resposta que era um testemunho brilhante de sagacidade e dedicação, apressou-se Luiz em escrever á rapariga uma longa e bem urdida carta, cheia de ternura e mimos de linguagem, na qual terminava dizendo que d'ora avante estava prompto a todos os sacrificios, prompto a todas as provas, fossem ellas as mais crueis, para lhe poder dar o dôce nome de esposa, ambição suprema da sua alma, anhelo unico de seu coração.

Ia, como se vê, de vento em popa, a todo o panno, audaz como um corsario...

Dobrou o rapaz aquella confidente folha de papel por modo a deixal-a reduzida a menos que o tamanho d'uma mortalha de cigarro, atou-a com uma fitinha de setim rosa pállida, metteu-a no bolso e dirigiu-se a casa de João Gil.

Eram então dez horas da manhã.

Tinha resolvido entregar elle proprio a missiva a Thereza. Não queria intermediarios: confiava mais de si que de ninguem. Empresas eguaes, e outras ainda mais arriscadas, já elle tinha realisado muitas, todas com exito. Deitar-lh'a-ia no regaço, collocar-lh'a-ia atraz de qualquer objecto,... como pudesse sêr! Pretexto para se não estranhar a sua apparição, já elle o tinha inventado.

Foi pelo portão do carro, que era a serventia ordinaria da casa, e que ficava uma duzia de passos abaixo da entrada principal d'ella.

Dava este portão para um espaçoso pateo, á direita do qual se topavam duas escadas amplas, cada qual encimada por sua porta, uma de uso particular, outra para creados e serviço de cosinha, e ambas ligadas entre si por uma larga varanda alpendrada. Defronte d'esta varanda existia um grande telheiro, e sob esse telheiro, entre rumas de lenha feita e madeiros para rachar, achava-se um homem aparando paus de empa.

Dirigiu Luiz a palavra áquelle homem, corpo meio dentro meio fóra do portão, que n'aquelle instante se achava escancarado.

-- O tio João está cá? -- perguntou elle.

-- Saberá vossa excellencia que não, meu senhôr -- respondeu o homem descobrindo-se, em attitude respeitosa.

-- E onde estará, você sabe?

-- N'o sei, meu senhor -- volveu-lhe o homem -- Eu vim ha uma migalha de fóra. Mas se vossa excellencia quer... a tia Amalia ou a menina hão de saber. Ellas 'stão lá em riba.

«Lá em riba» era defronte, em casa, para onde o homem apontou com o gesto.

E logo apoz, sem esperar resposta, obsequioso, bradou para uma rapariga que acabava de chegar á varanda:

-- O' Victoria?... diz' á nossa ama que faça favor de ahi chegar; avia-te.

-- Que é?... quem me chama?... -- ouviu-se perguntar a voz d'Amalia, ainda invisivel -- Ah! o sr. D. Luiz! -- exclamou ella com o seu ar prasenteiro mal assomou á varanda e deu com os olhos no rapaz -- Então n'o entra?... n'o quer subir?... Entre: passe ao menos da porta.

-- Obrigado: não me quero demorar -- disse Luiz.

-- Ora não se quer demorar!... Vem sempre com pressas! -- murmurou Amalia -- N'esse caso vou eu lá abaixo.

E dito e feito; desceu.

Luiz, que afinal estava morrendo porque o «obrigassem» a entrar, correu ao encontro d'Amalia.

-- Não se encommode -- ia elle dizendo -- Não desça... Queria saber onde encontrarei seu marido; mais nada.

-- Está em Gouveia: foi p'ra lá pela manhãsinha. Queria-lhe talvez alguma coisa?...

- Queria, sim, mas visto isso....

Completou Luiz a phrase por um gesto significativo de forçada resignação.

-- E não será coisa que esteja na minha mão, o que lhe quer a elle?... -- sondou Amalia.

-- Não é. Desejava que elle diligenciasse obter-me uma espingarda com que fosse agora dar uma volta com os cães. A minha está muito suja; precisa uma limpeza em fórma.

-- Ora mas que zanga! -- exclamou Amalia -- Logo elle hoje havia de sahir!

-- E a que horas voltará? -- perguntou Luiz.

-- Por certo que só depois de passado o calôr.

-- Pois paciencia -- volveu Luiz dando á vóz muita expressão de descontentamento.

-- Mas espere -- sobreveiu Amalia -- Vamos a ver se eu o posso servir... O' Fortunato?...

O Fortunato era o sujeito com quem Luiz já tinha falado.

-- Tia Amalia?

-- Anda cá... Tu sabes quem por ahi tem uma arma boa, com que o sr. D. Luiz possa ir á caça?

-- Espingardas... -- murmurou Fortunato aproximando-se, cogitando -- Elle por ahi ha muitas, sim, mas competentes... São todas de vareta, de carregar pela bocca -- explicou a Luiz.

-- Isso não importa.

-- A do Miquelino? -- lembrou Amalia.

-- Essa é do tempo dos Affonsinhos! Já era arma nas mãos do bisavô d'elle, imagine vossemecê!

-- Mas o Miquelino mata muita caça com ella -- observou Amalia.

-- Pois mata, sim sr.ª, n'o ha duvida; mas é elle, que a conhece, que sabe lidar co'ella -- respondeu Fortunato com encarecido gesto.

E voltando-se para Luiz accrescentou:

-- Isso é o primeiro caçador d'estas redondezas. Peça que lhe levante, seja lebre, gallinhola, perdiz ou coelho... nem Deus! só se lhe prantarem uma porta de ferro adiante da arma!

-- E a do Imagens? -- perguntou Amalia, que pelo seu muito empenho em obsequir Luiz ia lembrando os nomes de todos os caçadores da terra.

-- Tamem é muito velha, e essa, sobre ser muito velha, é muito manhosa -- respondeu Fortunato redondamente -- Já atirei co'ella. Foi boa! Eu só queria tantos pintos como de francezes o tio Brandão deitou a terra co'ella. Mas agora 'stá estafada: as mais das vezes erra fogo.

-- E a do Anacleto?...

-- Uma qualquer -- observou Luiz -- O caso é que ella não seja podre.

-- Pois vês ahi. Ora a do tio Anacleto... p'ra que digamos qu'ella é má, má... Mas tem um defeito; dá coice bravio. Aqui haverá tres semanas, veio da serra o meu primo Chico co'a cara n'uma lastima. Em se lhe deitando mais um grãosinho de polvora... os dentes é que o pagam.

-- Nada; eu não preciso os dentes arrancados -- disse Luiz de galhofa -- Essa não.

-- E a do Mantas?... E a do Amaral?...

-- Da do Amaral já eu m'alembrei. Que nos casos estava essa. Mas o peor é qu'o Amaral emprestou-a ao genro do tio Eusebio, que foi esta manhã p'r'a espera das perdizes. Agora a do Mantas... o ponto 'stá que o Mantas a tenha em casa, e não na quinta.

-- Serve essa? -- perguntou Amalia.

-- E' quasi nova, e de dois cannos. Ou essa ou a do tio Ramos -- respondeu Fortunato.

-- Pois corre a casa do Mantas, e de lá, se o n'o topares a casa do tio Ramos, e diz'-lhe que o meu João lhe manda pedir o favor de lhe emprestar a arma, qu' é p'r'o sr. D. Luiz ir á caça. N'o te demores; vae.

Partiu lesto o homem, e Luiz ficou á espera de ver Thereza e de ter opportunidade para lhe entregar a carta. Que nem para outra coisa elle tinha ido ali! A espingarda era o pretexto para a sua apresentação.

-- Suba, sr. D. Luiz, entretanto o Fortunato não volta -- disse-lhe Amalia.

-- Não, obrigado -- respondeu Luiz -- Elle por certo se não demora: espero-o aqui.

-- Ora aqui, no pateo! -- exclamou Amalia -- Isso n'o póde ser. Então no jardim.

-- Pois seja no jardim -- volveu o rapaz.

E dirigiu-se com Amalia para o jardim da casa, que ficava sob as janellaa da sala de jantar e quarto de Thereza, ao nascente.

Era o jardim um rasoavel tracto de terreno exclusivamente destinado a plantas ornamentaes, e separado da quinta por uma grade de ferro e madeira a que se enleiavam diversas trepadeiras. Tinha muitas roseiras, muitas camelias, que na Beira vecejam lindamente, muitas dhalias, muita flôr, mercê dos cuidados de Thereza, e alguns bancos entre macissos de verdura.

Chegados lá, chamou Amalia a filha, com o que deu um grande alegrão a Luiz.

-- Vem até cá abaixo -- disse Amalia para Thereza.

-- Por minha causa não, não se encommode -- advertiu Luiz solicitamente.

E a morrer porque ella descesse!

Thereza desceu, Luiz apertou-lhe a mão com a maior simplicidade, e explicou-lhe por que motivo estava ali. O motivo apparente, está claro.

-- Vae então hoje á caça?

-- Vou, se arranjar arma. N'alguma coisa hei-de eu matar o tempo.

-- De certo.

-- Mas tenha cuidadinho n'o lh'aconteça alguma infelicidade! -- recommendou Amalia -- Sobretudo hoje.

-- Ah! descance... Nunca me aconteceu o menor desastre.

-- E n'o vá p'ra longe, n'o se cance muito -- tornou-lhe ella -- Olhe que a caça estraga a saude, tenho ouvido dizer. N'o se sente a descançar em lenteiros, nem beba agua estando suado... Tenha cuidado! Pode apanhar um resfriamento, umas sezões...

-- Eu sou muito cauteloso -- disse o rapaz -- Descance..

E logo apoz, sempre no intento de preparar a opportunidade que desejava, e porventura tambem para fazer virar de rumo a conversa, pediu agua.

-- Manda-me a tia Amalia dar, por favor, um copo d'agua fresquinha, da da mina?

-- Pois não! Vou-lh'a mandar buscar n'um instante -- disse Amalia.

E acto continuo chamou para cima, para casa.

-- O' Victoria?... Chega ahi á janella.

-- Quer alguma coisa? -- perguntou de lá a rapariga por quem Amalia chamava.

-- Traz' cá um copo e a bandeja. N'o te demores. Tira-o do guarda-loiça, sabes?... Mas vê lá! com cuidado; n'o te atarantes...

-- Sim sr.ª.

-- N'o faças cacos.

Sumiu se a rapariga, e d'ahi a momentos reappareceu no jardim trazendo um bello copo de crystal lapidado n'uma salva de prata antiga.

-- Vae ahi á mina encher esse copo d'agua -- disse-lhe Amalia -- Mas lava-o bem, vê lá!

Foi a rapariga pela agua, e voltou.

Luiz dessedentou-se. Já se tinha desfeito da carta, sorrelfamente, entretanto Amalia falava com a creada.

Tinha-a deixado cahir no regaço de Thereza.

-- Ora bem haja a tia Amalia! -- disse elle pousando o copo -- Agua ninguém a tem melhor cá na terra. Obrigado tambem, Victoria,

-- Nanja por isso, meu senhor.

Thereza, a este tempo, fingia cuidar d'um craveiro. Tinha voltado as costas á mãe e a Luiz, para que se lhe não visse o afogueamento das faces, o arfar precipitado do seio.

Luiz entendeu conveniente dizer alguma coisa, entreter a attenção de Amalia por mais uns minutos.

-- Isto que é? -- perguntou elle apontando um arbusto que lhe estava aos pés.

-- E' um lilaz. N'o é um lilaz Therezinha?...

-- E' sim, minha mãe.

-- E isto?...

-- Então não conhece esta flôr?... Isto são hortenses.

-- Ah! sim, hortenses.

-- E isto gyrasoes, e isto malvaisco.... limonete...

-- Limonete ou lucia-lima? -- perguntou o rapaz.

-- Nós chamamos-lhe limonete. Não é filha?... Qu'estás tu a fazer?... Deixa o craveiro; sae do sol, que te faz mal. Olhem como ella está corada! já viram?... Ora ir-se pôr ali á torreira do sol!...

-- Que dizia minha mãe?... que me perguntou?...

-- Perguntou se isto é lucia-lima ou limonete -- disse Luiz.

-- Tanto importa chamar-lhe lucia-lima como limonete. E' tudo a mesma coisa. Mas cá toda a gente lhe chama limonete.

-- Bem. Continuo a vêr se sei o nome das plantas... Dhalias, geranios, fuchias...

-- Como?... como?... -- atalhou Amalia.

-- Brincos de princesa ou fuchias tambem é a mesma coisa, minha mãe -- explicou Thereza.

-- Fuchias... -- repetiu Luiz -- jarros, baunilha, martinetes...

-- Ou velludos -- observou Thereza -- Na Beira velludos, e tambem moncos.

-- Sim?... Não sabia.

-- E esta flôr... sabe como tambem na Beira a chamam?

- Melindres? -- palpitou Luiz.

-- Não sr.; papagaios.

-- Papagaios?!

O rapaz riu-se, duvidou.

-- Isso. Chamam-lhe por cá papagaios.

-- Tem graça!... Mangerona, malva-rosa, outra malva...

-- Malva-maçã -- explicou Thereza.

-- Cheira que consola -- disse Amalia -- Quer ver? Dá lá um boccadinho d'ella ao sr. D. Luiz, menina.

Thereza colheu e offereceu ao rapaz duas folhas da tal malva-maçã.

-- Um aroma delicioso! -- exclamou Luiz -- Um encanto! Vae para a botoeira do casaco.

E collocou as folhas na botoeira.

-- Dá-lhe mais, filha.

-- Não: mais não -- disse Thereza -- Então antes um botãosinho de rosa.

E cortou e deu ao rapaz o mais lindo botão de rosa que viu.

-- Prompto; aqui está.

-- Agradecidissimo. A pouco e pouco levo um ramilhetinho que não ha dinheiro que o pague. Encantador, não é?... Falta um alfinete.

-- O alfinete dou-lh'o eu -- accudiu Amalia -- Aqui está. E se quer linha, mando-lh'a vir.

N'este momento appareceu o Fortunato, mas com as mãos a abanar.

-- Então n'o trazes nenhuma arma? --perguntou-lhe admirada Amalia.

-- Não sr.ª. O tio Mantas tem-n'a na quinta; e o tio Ramos está p'ra Gouvêa.

Amalia ficou desgostosissima.

-- E agora? -- exclamou ella para Luiz.

-- Agora... paciencia -- respondeu o rapaz.

-- Mas que zanga!

Olhou Amalia para Fortunato, e Fortunato adivinhou o que ella tinha em mente, o que ia para lhe dizer, e antecipou-lhe a resposta.

-- N'o pense, qu'é o mesmo que nada. Falei co'tio Manuel do Rosario, que me desenganou. N'o ha 'hi arma que preste, que possa servir ao sr. D. Luiz. Nenhuma! Além d'aquellas de que nós já nos alembrámos, ha só mais duas; a do tio Amieiro e a do Barnabé: ora o Barnabé tem a d'elle encravada vae em meio anno, e a do tio Amieiro está a compôr.

-- Bem -- disse Luiz resolutamente, despedindo-se -- Não ha, paciencia. Mando dar hoje uma lavagem á minha, e vou caçar amanhã. Obrigado pelos encommodos que tiveram commigo. Até sempre.

E partiu contentissimo, bem que Amalia ficasse persuadida de que elle ia seriamente contrariado.

LXVII

Uma nuvem passageira

Leu, releu, e quasi decorou a rapariga a carta: e depois guardou-a no mais obscuro dos escaninhos d'um antigo e formoso contador de pau rosa que tinha no seu quarto, e cuidou da resposta que lhe havia de dar.

Que diria ella a Luiz? Que tambem o amava? que tambem lhe tributava todo o seu affecto?... Sim, por certo: que essa era a expressão da verdade. E como lhe entregaria a carta?... Ah! ella havia de ter meio e coragem para isso. Faria pouco mais ou menos como elle: atirar-lh'a-ia da janella, pôr'lh'a-ia ao alcance da mão,... de qualquer modo.

Meditado e resolvido isto, elaborou Thereza a sua resposta, menos effusiva que a declaração de Luiz, mas nem por isso menos eloquente, e ficou-se á espera de ensejo de a entregar.

Esse ensejo não tardou: deparou se-lhe logo no dia seguinte em casa de D. Duarte, onde ella tinha ido com a mãe de vizita. Lançou-a no chapeu de Luiz, que muito propositadamente lh'o tinha posto ao pé para este fim, e que n'um abrir e fechar d'olhos a fez desapparecer.

A partir d'aqui, combinados signaes e meios para a mais facil e segura troca de correspondencia, Luiz e Thereza escreviam-se a meudo, mas portando-se sempre com tal dissimulação, com tão bem fingida e rasoavel cortezia, que d'aquelle namoro, aparte D. Leonor e D. Isabel, ninguém tinha conhecimento nem suspeita.

Quem havia de imaginar que quando Luiz trazia ao pescoço certa gravata annunciava por este facto a Thereza que tinha carta para lhe dar?... que se a flôr que trazia ao peito era branca, a carta estava entre o forro do seu chapéu, se côr de rosa debaixo de certo objecto, se roxa em determinado sitio, se amarella n'outro sabido sitio?...

Quem havia de imaginar que o simples facto de Luiz apparecer com um papelinho atado á corrente do relogio, um annel a mais, um annel a menos, certo alfinete na gravata ou certo collete vestido, significava um sim, um não, um amanhã, um voltarei, um recebi, &, & ?...

E, por outro lado, quem havia de desconfiar de que os lenços, a tosse, uma dada palavra, qualquer gesto, um estalinho de dedos, uma pergunta innocente, eram linguagem de Thereza para Luiz, um aviso, uma resposta, uma advertencia, uma indicação?...

Ah! defenda-nos Deus, que pode, das ruins suggestões do demonio: que a communicação espiritua de gente namorada, não ha meio de a evitar.

N'estes termos, e porque João e Amalia tinham a filha em conta de muito ajuizada, e formavam de Luiz o mais favoravel conceito, pois que nunca tinham visto coisa por que elle perdesse, foram correndo para todos amenamente os dias, até que uma bella tarde occorreu um caso critico que teve em cheque toda a felicidade dos nossos mysteriosos namorados.

Pedro, sobrinho de João Gil, tinha concluido a sua formatura, e devia chegar em breve á aldeia, onde, segundo elle dizia, vinha esperar que houvesse concursos para delegado, e segundo dizia o tio d'elle... vinha esperar pelo seu dia para casar com a prima.

-- Pois se tem de ser, porque não ha de sêr? -- exclamou certa hora João Gil para D. Leonor diante de Luiz -- E se tem de ser ao tarde, porque não ha-de sêr ao cêdo?...

Luiz fez-se pallido como um cadaver.

-- Delegado!?... continuou João Gil -- E' uma carreira bonita, não ha duvida, a da magistratura: mas é tão demorado o posto a que por ella se chega, o alvo a que todos miram!... São tantos os afilhados, tantos os pretendentes!...

-- Em todo o caso, como elle está novo... se tiver alguma fortuna... -- obtemperou D. Leonor.

-- Nada! -- retorquiu João Gil -- O meu parecer é outro. O que o Pedro deve fazer é abrir banca de advogado na villa, que não ha lá um unico em quem se possa pôr cera benta, e deixar-se de concursos. Estar na villa, e estar aqui em casa, é tudo a mesma coisa. Monta pela manhã a cavallo, pode até têr um carrito em que faça a viagem, e á tarde volta. Fica assim commigo, e deixa-me têr na minha companhia a mulher, a minha filha, que é o que eu e a Amalia mais estimamos. Se não, e esse seria talvez o verdadeiro passo, deixe-se estar aqui em casa, que sua é a minha casa, e acabou-se. Não acha? -- perguntou elle a Luiz.

-- De certo -- respondeu Luiz contrafazendo-se, com leve ar de ironia -- Talvez elle por comprazer se resolva ao sacrificio que o sr. lhe quer impor.

-- Sim, sacrificio, diz bem -- confirmou João Gil á melhor bôa fé -- Talvez para elle seja sacrificio ficar aqui na aldeia. Mas então?... Vem-se a acostumar... A vida d'aldeia não é tão desagradavel quanto muita gente cuida. Bem pelo contrario. E quando se tenha um curso como elle tem...

-- E fortuna. -- interrompeu Luiz.

-- Sim, e meios de vida... ah! então é se um rei n'uma terra d'estas.

-- Ora se é! -- tornou-lhe Luiz, sempre no mais fino tom de troça, afogueado em cólera, atordoado de ciumes.

-- A! se eu não saberei! -- continuou João Gil -- Ao que devo eu a consideração, a estima que todos me teem?... Ao boccado que estudei, em parte, e em parte aos meus recursos. Não, com certeza, aos meus lindos olhos: menos a artes minhas, que as não tenho para me impôr... Ora meu sobrinho, que já vem em melhor occasião que eu não vim, que encontrou outros meios e outros principios que eu não encontrei, de certo se ha de dar muitissimo bem aqui, querendo cá viver.

-- Inquestionavelmente -- disse D. Leonor.

E anciosa como ella estava porque a conversa variasse, pois tinha o animo prevenido, e naturalmente via a crescente excitação febril de Luiz, e temia que o rapaz dissesse alguma inconveniencia, soltasse alguma palavra ou fizesse algum gesto que desse rebate a João Gil dos factos que elle ignorava, derivou com subtil delicadeza do assumpto em campo para outro muito differente.

N'esta aberta Luiz ausentou-se, partiu direito ao seu quarto; e lá, estiraçado sobre a cama, com o coração a transbordar d'amargura, presa de ciumes e raiva, chorou.

As palavras de João Gil tinham-lhe causado uma crise nervosa medonha. Ainda bem que elle chorava, que desabafava d'aquelle modo. Bemaventurados os que choram. Que peor seria se lhe desse para remoques.

Foi-o surprehender a tia em tão dolorida situação.

-- De maneira que estás realmente apaixonado pela Thereza?... Creança! e choras.

-- Oh minha tia, minha tia! -- exclamou o rapaz com indizivel expressão de voz.

-- E não crês no amôr d'ella?

O rosto do rapaz illuminou-se d'uma luz celestial.

-- Creio! Creio firmemente, cegamente. Mas que importa o amor d'ella, se o pae a quizer obrigar a casar com o primo?

-- Mais de vagar, Luiz. O pae certamente a não obrigará a casar com elle.

-- Pois não o ouviu?... não observou a decisão das suas palavras?...

-- Ouvi e observei simplesmente que elle deseja que a filha case com o primo. Mais nada.

-- E d'ahi, então?...

-- D'ahi a elle impor-lhe o casamento... que distancia, filho!

-- Que distancia, que distancia!... -- murmurou o rapaz -- Sabe que Thereza, se o pae lhe disser que deseja que ella case com o Pedro, dá-lhe uma ordem?...

-- Penso que sim.

-- Então que mais é preciso?

-- Que o Pedro queira casar com ella -- respondeu simplesmente D. Leonor.

Luiz exaltou-se.

-- Que queira casar com ella!... -- exclamou elle quasi desvairado.

-- Sim, que queira casar com ella -- tornou D. Leonor com placidez, mas solemmemente.

Luiz ainda mais se exaltou:

-- Então cuida a minha a tia que o Pedro já agora, e sobretudo quando sabedôr da intenção do tio, não ha-de empregar todos os esforços, fazer toda a diligencia por me tornar odiado, só com a mira na fortuna da prima, só para se apossar da fortuna d'ella?!... Ah! como se engana!...

Esta argumentação encommodou vivamente D. Leonor.

-- Luiz! -- disse ella com sevéra compostura -- nós devemos sêr, antes de tudo e sobretudo, justos. O Pedro é incapaz de uma vilania, e o que tu acabas de phantasiar, se se desse, seria uma vilania. Conheço-o tão bem a elle como te conheço a ti. O Pedro não era homem que cazasse com a prima só para se apossar da herança do tio; nem homem para te denegrir a ti, só para se livrar d'um rival.

-- Como a tia se engana! Como faz do Pedro um conceito errado! -- exclamou Luiz com lastimoso entono.

-- Como tu te enganas! Como tu fazes do Pedro um conceito injusto! -- replicou em mais refinado tom de compunção D. Leonor.

-- Póde muito a ambição -- proseguiu Luiz -- Onde é que o Pedro tem casamento tão vantajoso como o da Thereza? onde?...

-- Ignoro isso. Elle é que o deve saber.

-- E eu tambem o sei -- replicou Luiz -- Em parte nenhuma. Pois quem é elle? Que direitos tem elle a pretender uma alliança invejavel?

-- E que direitos tens tu? -- volveu D. Leonor.

-- Eu?! -- bradou Luiz agastado -- Eu tenho um nome, sem falar no meu patrimonio.

-- Bravo! um nome. Pois é alguma coisa!

Desagradaram a Luiz estas exclamações, estas ironias com que a tia lhe replicou. Ficou assombrado: a custo poude reprimir um gesto significativo de toda a sua indignação.

-- Admira que tu te apaixonasses pela Thereza, tão orgulhoso como és do teu nome, do teu Dom -- proseguiu D. Leonor apoz breve pausa -- Pois quê!? Não são elles primos, o Pedro e a Thereza? filhos de pães 'irmãos?! Valha-te Deus, Luiz, que na tua cegueira, não vês que bates em ti proprio.

Luiz estava amuado, e ao peso d'estes argumentos ficou succumbido.D. Leonor retomou a palavra.

-- Ah! que se tu não fosses uma creança!... que se eu não tivesse receio da tua leviandade... eu podia-te fazer tranquilisar.

-- O quê?! --perguntou Luiz apuado de curiosidade por estes dizeres.

D. Leonor não lhe deu resposta: fez que o não ouvia; proseguiu.

-- O que é preciso é que tu te não illudas, Luiz. O Pedro tem nos seus conhecimentos, no titulo que conquistou pelo estudo e pelo talento, um capital não inferior ao teu. Tu nasceste nobre, e elle nobilitou-se a si proprio, o que mais nobre é ainda. Respeita-o para que elle te respeite, estima-o para que elle te estime... e sê justo, repito-te. Olha que offendendo-o a elle offendes a Thereza, e o pae e a mãe da Thereza... e mais alguem, ainda, que te deve merecer a maior consideração.

Estas ultimas palavras foram recitadas com um accento especial, que mais ainda aguilhoou a curiosidade que outras pouco antes tinham despertado em Luiz.

-- Mas disse-me a tia ha boccadinho que se eu não fosse creança,... que se não receasse da minha leviandade, me podia tranquilisar; e agora acaba de me dizer... Oh! por quem é, fale. Juro-lhe sobre a minha palavra!... juro-lhe por tudo o que eu mais amo e estimo, que serei discreto. A Izabel... o Pedro...

-- Basta! -- disse D. Leonor pondo o dedo no nariz -- Basta.

E com os olhos disse o que poderia ter expressado por palavras; isto é, que Izabel era namorada de Pedro.

-- Jure-m'o! Jure-m'o! -- instou o rapaz -- Ah! eu tinha o suspeitado!

-- Mas o que queres tu que eu te jure...? Fica tu com os teus segredos, que eu fico com os meus.

No brando e doce sorriso de D. Leonor, havia afinal um juramento; pelo menos uma affirmativa.

-- Ah! eu tinha-o suspeitado. -- exclamou então radiante o rapaz -- O peor é se o João Gil insiste...

-- Silencio! -- murmurou D. Leonor.

Chegava Izabel. Ouviam-se já perto os passos d'ella.

LXVIII

Miscellanea.

Graças a D. Leonôr, estabeleceu-se promptamente a paz de espirito de Luiz, tão de subito e tão a sério perturbada.

A noticia do namoro da irmã restituiu-lhe toda a serenidade, toda a confiança anterior. Cerca de trez mezes antes, essa noticia tel-o-ia feito disparatar. Era bastante leviano, bastante altivo por convenção o filho de D. Duarte, para que assim não acontecesse. Agora, porém, outros tempos outros pensares, exultava com ella, recebia-a como o mais seguro penhôr de paz e felicidade.

Findou, pois, o pezadello: recomeçou o sonho: e devido a esta circumstancia, á de ser o sonho cada vez mais fágueiro, ninguem foi mais affectuoso para com Pedro no acto da sua chegada, e d'ahi para o futuro, do que Luiz. Ninguem lhe deu mais do coração as bôas-vindas, ninguem o tratou d'essa hora em diante com mais sincera estima.

Era-lhe por este motivo reconhecidissimo o filho de Ermelinda, e não menos o tio d'elle, João Gil, ao qual o rapaz ia d'este modo ganhando maiores sympathias.

Para o nosso homem, Luiz era uma joia; possuia excellentes qualidades: era dado, bondoso, simples; impunha-se pela delicadeza do trato, e pela lizura das suas acções: só tinha um senão: a ociosidade; curassem-n'o d'este mal, e a joia ficaria sem falha.

Assim o declarava elle com grande convicção, ora falando com o sobrinho, ora com a mulher, e muitas vezes, com o sr. padre David. Que o sr. padre David era pessoa dilecta da sua familia: não tinha segredos para elle.

-- Ah! é um excellente rapaz, uma joia -- dizia João Gil -- Mesmo uma joia. E' dado, simples, bonacheirão. E não lhe ha-de ir peor por isso! Presentemente o povo domina-se mais pelo modo, do que já se dominou pela força. Os tempos mudaram: o despotismo foi desthronado, a civilisação esmagou o. O peor é elle não querer saber de trabalho. Ah, que se elle quizesse!... se tomasse a seu cargo a administração da casa!... Mas acabou-se: isso é lá com elle. Ora...

E transitava de assumpo. Este «ora» era um estribilho de que elle usava para passar a falar n'outra coisa, para se remetter a caminho de mais interessante conversa

-- Mas porque lhe não dizes tu isso? -- affoitou-se um dia a perguntar-lhe a mulher.

Estava presente Pedro. Umas ideas chamam outras, e João Gil tinha vindo com aquelle discurso a proposito d'umas referencias do sobrinho.

-- Porque não quero que elle me chame atrevido -- respondeu simplesmente o marido d'Amalia.

-- Ora logo te havia de chamar atrevido!

-- Se m'o não chamasse alto, chamava-m'o mentalmente, é o caso.

-- E d'ahi talvez nem isso.

-- Talvez: mas na duvida... nunca fazer sermões sem que no-los encommendem. Se elle um dia me pedisse o meu conselho, eu dava-lh'o, dizia-lhe o que sinto, e n'isso cumpria o meu dever: se, porém, nunca m'o pedir, não serei eu que lh'o offereça. Tanto mais que elle já não é tão creança que não veja o que lhe interessa. Não achas, Pedro?

-- De certo.

-- Era assim que tu farias no meu caso?

-- Naturalmente.

-- Ora então... vamos a falar de nós: deixemos os outros. Afinal, que resolves tu com respeito ao que eu hontem te disse? Já tens opinião assente?

-- Parece-me que eu não devo deixar de ir aos concursos, meu tio. Isso seria um erro. O meu desejo, e tambem o seu durante muito tempo, era que eu seguisse a carreira da magistratura. Para isso e n'esse proposito estudei. Ora abandonar agora esse caminho seria para todos um prejuizo, e para mim um sacrificio enorme, incomparável. Emfim... meu tio decidirá.

-- Um prejuizo!... um sacrificio incomparavel!... Não me parece. E' um falso modo de ver. Entretanto, eu não quero tolher o teu futuro. Puseste o teu futuro n'essa idéa, segue-a.

-- Mas meu tio fica descontente?...

-- Não. Quero dizer: ficava mais contente se tu renunciasses ao teu plano de vida, e abrisses banca de advogado na villa: emfim, que te conservasses cá ao pé de casa, ou em casa: que melhor era isso para todos: mas não fico descontente por te vêr na magistratura.

-- Entretanto posso advogar... e quem sabe? talvez eu mude d'opinião; que prefira fazer vida de advocacia.

-- Sim, bem pode ser. O tempo é grande conselheiro. E quanto ao resto, já te disse e repito: a minha bolsa é tua: para o que te fôr preciso dinheiro, está á tua disposição. Recommendação, tambem, se a quizeres, para o juiz, para o delegado, para alguma pessoa, é falar. Tanto o Dr. Villanova como o Visconde, que são quem dá as cartas cá no concelho, se me teem offerecido muitas vezes para o que fôr preciso.

-- Sim, sr.: se fôr preciso eu lh'o direi.

-- Em querendo. E por agora vou-te deixar. Tenho de ir ao Engenho.

Partiu com effeito João ás suas vidas, e ficou Pedro a conversar com a tia e com a avó. Thereza tinha sahido a passeio com D. Leonor e Izabel. D'ali a pedaço foi para casa.

Vivia sósinho. A mãe d'elle achava-se por determinação dos medicos a ares na terra da sua naturalidade, havia já tempo, atacada d'uma tisica implacavel, a que poucos mezes poderia resistir. O tio quiz tel o de cama e meza em sua companhia, mas elle recusou-lhe a generosa ofterta por motivos faceis de perceber, e louvaveis.

Habitava a casa em que nascera, isto é, a casa que fôra do avô, ou antes uma pequena parte d'ella; apenas uma sala e um quarto: na parte restante viviam uns seus parentes, gente desvalida a quem a generosidade de João Gil accudia solicitamente.

Mal apontou á porta, correram para elle duas creancinhas, formosas como anjos, a annunciarem-lhe que tinha ali uma «cata».

Era uma carta. Para os pequerruchos todos os papeis grandes eram livros, e os pequenos cartas.

-- Então onde está a «cata»? Quem trouxe a cata? -- perguntou-lhe Pedro.

A resposta foi uma trapalhada de vozes e gestos que o rapaz não poude decifrar. Ambos os petizes queriam ser escutados, attendidos; e o resultado foi elle não os entender. Mas deixando-se dirigir pelo mais velhinho, que lhe tinha tomado á sua conta as abas do casaco, e se propunha arrastal-o comsigo, foi dar com a carta em cima da meza da sala.

Abriu-a, leu-a. Era de Isabel. Era um pequeno cartão de vizita com estas unicas palavras. «Não deixes de apparecer amanhã por volta das duas horas».

-- E quem foi que trouxe esta «cata» -- perguntou Pedro aos pequenos.

--Uma «muer» -- disseram ambos em côro.

-- Ha muito tempo?

Os pequerruchos olharam um para o outro com modos agaiatados e fugiram.

Não tinham percebido.

Pedro riu-se d'aquelle desproposito, e atirou comsigo para cima da cama.

A vida n'uma aldeia é estupida por vezes. Não sabia em que matar o tempo. Doiam-lhe tambem as pernas. Já tinha dado grandes voltas n'aquelle dia. Que havia de elle fazer?...

Tudo serve para recreio. Foi por uma pera, atou-lhe o pé a uma linha, e voltou para a cama.

-- O' Miguel, queres uma pera?... Vem cá, toma...

E atirou para o chão a pera amarrada á linha.

Immediatamente accudiram á porta os dois pequenos, o mais novo á frente.

Accodem assim os peixes ao engodo.

-- Apanha a pera, Miguel -- disse Pedro.

Miguel era o mais velho dos dois. O outro, porem, mais ladino e mais resoluto, cahiu rapido sobre a pera e tomou-a. Quando Pedro puxou, veiu-lhe só a linha. Os brejeirotes já estavam matreiros: o mais novo sobretudo.

-- Oh que patife! -- exclamou Pedro cego de riso pelo mallogro de que acabava de ser victima.

E tornou a descer da cama, tornou a amarrar outra pera á linha, e voltou a deitar-se.

-- Miguel!... esta agora é para ti, toma...

Accudiu ligeiro o Miguel á chamada, e formou salto á pera. Pedro puxou a linha, e o pequeno ficou roubado; mas á segunda tentativa, o roubado era Pedro.

-- Ora mas que patifes! -- murmurou o rapaz -- Ah! eu vos arranjo.

E segunda vez saltou da cama ao chão, e tornou a armar á cubiça dos pequenos, mas agora d'outro modo. Suspendeu a pera do tecto, no proposito de vêr que manobras elles fariam para a haverem ás mãos.

N'este momento, porem, veio Luiz distrahil-o da sua brincadeira.

-- Tens que fazer amanhã? -- perguntou-lhe elle.

-- Que eu saiba, nada.

-- Queres ir commigo dar uma batida aos coelhos?

-- A que horas?

-- Pela manhã. Sahimos pela manhã cêdo, e voltamos á noite. Mette-se fornecimento nas bolsas, e ála.

-- E deixármos nós essa passeata para depois d'amanhã?... não seria melhor? A mim fazia-me mais conta. Amanhã, talvez mesmo eu não possa sahir.

-- Pois sim, fica para depois d'amanhã. Está combinado. E agora, tens que fazer?

-- Nada. Estava a brincar com os pequenos por não saber em que matar o tempo.

-- Então anda d'ahi, vamos passear.

-- Oh! estou tão moido das pernas!

-- Vamos de vagar.

-- Para onde?

-- Para qualquer sitio; para onde tu queiras. Podemos ir esperar minha tia, que deve estar a chegar de Mello com a mana. Vamos pelo Bravio, atravessamos ao Moinho, e esperamos-las nos Lagares. E' um passeio catita.

-- Está dito: prompto.

E lá partiram ambos.

A pouco mais de meio do caminho, porem, Pedro declarou que se não sentia com forças para maior digressão.

Estava fatigado, moido. Ainda se não tinha habituado áquelles caminhos, aos altos e aos baixos, subidas e descidas.

-- Ao menos -- disse-lhe Luiz -- mais meia duzia de passos. Vamos para o moinho.

-- Ainda é tão longe!

-- Qual historia! D'aqui ao moinho são duas pernadas. Vamos, mexe-te.

Tornaram os dois rapazes a pôr-se em marcha, e deram emfim comsigo no moinho.

-- Já tens visto um moinho, Pedro? -- perguntou Luiz ao rapaz.

E truz-truz: bateu á porta do moinho.

Respondeu áquellas pancadas a voz profunda do jumento, que ali vivia na mais intima sociedade com o moleiro.

-- O' Marcello; foste tu que falaste? -- beirou Luiz. -- Abre que é gente de paz.

-- Provavelmente o homem não está lá -- disse Pedro,

-- Qual não está! Mas, se não estiver, é o mesmo. Queres ver onde está a chave?...

Foi Luiz a um buraco, tirou a pedra que o tapava, e apossou-se da chave.

-- Eil-a... Foi o moleiro que me ensinou o esconderijo. «Que em eu querendo descançar»... E' meu caseiro... Entra...

Entraram Luiz e Pedro no moinho, que estava trabalhando: e nas pegadas d'elles, o seu arrendatario.

Era este sujeito um velhote miseravelmente vestido, todo empoado de farinha, mas risonho e de muito agradavel semblante.

-- Ora Deus Nosso Senhor dê muito boas tardes a vossas senhorias! -- disse o homem.

-- Onde estavas tu, Marcello?

-- Estava p'r'ali dando uma sachadella á horta, meu senhor.

-- Ou estavas a dormir a sesta?...

-- N'o ha tempo p'ra dormir, meu senhor.

-- Então não dormes?

-- De noite, meu senhor.

-- E de dia?...

-- Isso!... quem pudera!

-- Conheces este meu amigo?...

-- Com'as minhas mãos, senhor. Algumas vezes peguei eu n'elle 'o collo. Uma tarde trouxe-o no meu burrinho, com perdão de vossas senhorias, até aqui perto. Ind'o pae d'elie era vivo, que Deus haja! Elle é que n'o me conhece a mim. Ora o tio d'elle, sim.

-- E' um homem feliz, cá o tio Marcello -- disse Luiz para Pedro -- Aqui onde o vês tem muito milho! bagalhoça, entende-se.

Os olhos do velhote brilharam de contentamento.

-- Quantas moedas tens, diz' lá, ó Marcello?

-- Vinte com trez quartinhos -- respondeu o homem com grande profusão de gestos, em tom confidencial.

Coitado! imaginava-se rico com aquella quantia!

-- Ah! meu senhor! mas ha quantos annos eu não ando a juntar o meu dinheirinho?!... Quasi que n'o teem conto! -- volveu o homem pondo-se no serio.

Depois, retomando o seu ar alegre, proseguiu:

-- Em chegando ás vinte e duas...

-- Em chegando ás vinte e duas?... -- repetiu, como pergunta, o sobrinho de João Gil.

-- Compro aquella hortinha em que eu agora andava a sachar. E' logo!

-- E em morrendo, deixas-m'a? -- perguntou-lhe Luiz -- Se m'a deixas, dou te eu o que falta.

-- O sr. D. Luiz n'o precisa.

-- Então a quem a queres tu deixar?

-- A' minha filha -- respondeu o velho promptamente -- A' minha Maria: mas... pschiu! isto é segredo. Vive tão desgraçada, coitadinha!

O rosto do moleiro alterou-se: de risonho passou a melancholico.

-- Aquelle bebedo do homem tem-n'a tratado peor do que os judeus trataram Christo.

-- Olha lá, ó Marcello, -- disse Luiz para atalhar ás irritações do homem -- esta musica, este barulho que ha aqui dentro, não te encommoda de noite?

-- Nunca, meu senhor. Estou acostumado. Esta musica é a minha alegria. Pobre de mim quando eu a n'o oiço. Este barulho é da t'ramela.

-- Qual é a taramela?

-- Esta taboinha que vossa senhoria aqui vê -- respondeu o moleiro apontando. -- E' ella que regula a entrada do grão nas mós: e aqui, onde está o grão, chamamos-lhe nós a moéga. Walgumas terras é tremonha...

-- Vae explicando, que eu gosto de saber. Então a mó é essa pedra?

-- Saberá vossa senhoria que sim. E a debaixo tamem. Ora á de riba chamamos-lhe nós galga ou corredoira, e á debaixo poiso. Lá de vez em quando picamo-las, para moerem melhor: e p'ra isso temos este ferro, que é a picadeira.

-- Então as arrestas da mó gastam-se...

-- E nós avivamo-las, fazemos de pedreiros -- concluiu o moleiro -- A mó, á força de molinhar, torna-se lisa com'a palma d'uma mão: depois, pica-se... Ora quem põe em andamento a mó, é a segurelha, que pega tamem no rodizio, e elle lá está embaixo, quer vêr?... Olhe...

Levantou o homem um alçapão, e mostrou o rodizio, que fica justamente por baixo da mó.

-- Elle lá está no inferno.

-- N'o inferno, não, Marcello; na ribeira -- redarguiu graciosamente Luiz.

-- No inferno, e perdoará, meu senhor -- replicou o homem -- Chama-se inferno o sitio onde trabalha o rodizio.

-- Ah! agora percebo.

-- E quando se quer que o moinho pare -- proseguiu sempre explicando o moleiro -- n'o ha a fazer mais que puxar a corda. Assim... vê?... 'stá parado. A agua deixa de bater nas pennas do rodizio, e o rodizio pára e com elle tudo. Esta corda tem mão na adufa qu'stá na calha.

-- Vou entendendo. E a respeito de maquia, ó Marcello, costumas tiral-a grande?

-- Não, meu senhor. Tiro o que me pertence. O que é roubado n'o luz. E graças a isso é qu'eu tenho sempre que moer. Todos me dão a taleiga.

-- Então confessas-te?

-- Todos os annos, meu senhor.

-- Ora muito me contas! Pois meu amigo, visto isso, e peio trabalho que acabo de te dar, quem se encarrega de te inteirar as vinte e duas moedas sou eu. Apparece-me lá em casa amanhã. Quero que compres a horta. Vae cêdo.

O moleiro ia enlouquecendo ao ouvir a promessa. Custava-lhe a crêr que estivesse accordado. Mas emfim, o caso era um facto; elle não estava sonhando.

-- Vae cedo -- tornou-lhe Luiz sahindo apressadamente porta fora, ao encontro da irmã, da tia e de Thereza, que já lá vinham descendo a encosta. -- Vae cêdo

O moleiro, meio assombrado, meio idiota de contentamento, deu ainda dois passos em seguimento do rapaz, para lhe agradecer a esmola que elle acabava de lhe fazer, mas parou logo. Não podia andar, sentia caimbras nas pernas. E então sentou-se, e chorou, ah! mas de alegria! Ia finalmente ser sua a hortita!

XLIX

Outra nuvem passageira

Desceram uma tarde D. Leonor e D. Isabel do seu palacio á casa de João Gil, em vizita, e como encontrassem a familia toda reunida na quinta, ali mesmo quizeram sêr recebidas; o que muitas vezes acontecia.

Era ao declimar do dia. João, a mãe, a mulher e a filha estavam áquella hora sentados sob um frondoso castanheiro secular que os abrigava dos ultimos raios do sol, já tremulos, incertos, mas ainda bastante vigorosos. Aos pés corria-lhes um crystalino fio de agua roubado ás entranhas da terra pelos alcatruzes de vetusta nora que lá estava mais acima trabalhando, enchendo o espaço dos seus rusticos gemidos.

Houve, naturalmente, muitas festas. Era sempre assim. Amalia quiz mandar buscar cadeiras, mas as suas amigas não lh'o consentiram, e sentaram-se, D. Leonor em cima d'um cêpo, restos de velho gigante florestal que para ali jazia, e D. Izabel no chão, ao pé de Thereza, em cima de feno.

Preferiram ambas estar assim. No campo, como no campo.

-- Então como tem passado a tia Ricardina? -- perguntou D. Leonor á mãe de João.

-- Ora melhor, ora peor, minha senhora; bem haja -- respondeu a velhinha, que tinha já muita falta de ouvido, e que as mais das vezes entendia o que lhe diziam só pelo gesto, como agora.

-- O que ella está é cada vez mais surda -- disse do lado Amalia para D. Leonor.

-- Olhe... -- tornou D. Leonor para a tia Ricardina, alto e pausadamente, para que ella a entendesse.

-- Diga, sr.ª D. Leonor.

-- Agora, pelo menos, traz bom parecer.

A tia Ricardina não percebeu, e pediu á nóra que lhe repetisse o que D. Leonor tinha dito.

Thereza e Izabel entretinham-se falando de bordados. João afastara-se para saber o que um creado de lavoura lhe queria.

-- An?... que foi que a sr.ª D. Leonor disse, filha? - perguntou a velhinha.

-- Que a mãe Ricardina agora traz boa cara.

-- Ah! E' a graça de Deus, minha senhora - disse a tia Ricardina para D. Leonor. -- Quando nada já tenho oitenta feitos!

-- Oitenta!?... Ninguem o dirá.

-- An?...

-- Que ninguem o dirá -- repetiu D. Leonor elevando mais a voz.

-- Ah! já os fiz, já, sim, minha senhora. Fizo-os em agosto.

-- Não me entendeu -- disse D. Leonor para Amalia.

-- An?... o quê?... Pois que disse a sr.ª D. Leonor? -- perguntou a tia Ricardina á nora.

Amalia sorriu se, e quiz por delicadeza poupar D. Leonor a esta impertinente conversa sua com a sogra, a quem ella aliáz muito estimava. Thereza accudiu em soccorro da avó.

-- Eu vou servir de porta-voz á avozinha. Olhe...

-- Diz', filhinha -- respondeu a tia Ricardina.

E voltando-se para D. Leonor, disse-lhe com manifesta satisfação.

-- O que a minha neta me diz, entendo eu perfeitamente. Tudo!

-- Olhe... A avozinha diz que tem oitenta annos...

-- Já os fiz -- interrompeu a tia Ricardina.

-- Pois sim. E a sr.ª D. Leonor diz que o não parece.

-- Ah! agora sim, entendi.

-- A' sua edade com certeza que não chego eu, tia Ricardina.

-- An?...

-- Que não chega á sua edade -- explicou Thereza, a quem era dirigido o «an?» da tia Ricardina.

-- Ah! entendi, entendi... Quem sabe lá, minha senhora! O qu'está p'ra vir, a Deus pertence. Tamem eu na edade da senhora assim dizia, e afinal... cá estou inda no mundo.

-- E' que a tia Ricardina é de melhor tempera -- observou D. Leonor.

-- O que disse ella agora? -- perguntou a meia voz a tia Ricardina a Thereza, que se tinha distrahido a falar com Izabel.

-- Que a avozinha é mais fórte.

-- Pois sim, talvez. N'o digo que não.

N'este momento reappareceu João Gil.

-- Estão a conversar com a minha velhinha?... -- exclamou elle -- Ah! isso é o que ella quer. Mãe?...

-- Filho?..

-- Se não fosse ouvir mal, ein?...

-- Ah! isso era um encanto! -- exclamou radiante a velhinha.

E aproximando os labios do ouvido de D. Leonor, disse-lhe com grande enthusiasmo:

-- Ninguem tem um filho como eu!

E dizendo isto toldaram-se-lhe de lagrimas de commoção os olhitos, vivos e irrequietos. Depois, disfarçando, accrescentou no seu tom de voz babitual.

-- A minha tristeza é eu n'o ouvir bem.

-- Ora antes surda que cega! - replicou-lhe o filho -- Mas tem boa vista e anda ahi rija com'as armas.

-- Louvado Deus!

-- Vê excellentemente, melhor que eu -- explicou João Gil a D. Leonor.

-- Enfia uma agulha! basta dizer-se isto -- observou Amalia.

-- Sabe a senhora o que me vale?... E' eu entender a minha gente, e principalmente a minha neta, só pelo bolir dos beiços!

-- E é verdade -- confirmaram João e Amalia.

-- E foi em boa parte por esse motivo, para não desgostar minha mãe, que eu não metti em devido tempo a minha pequena n'um collegio. A minha Amalia não queria, mas emfim... foi por minha mãe! -- testemunhou João.

-- Ai, que zangas que eu tive! -- exclamou Amalia.

-- Então porque não querias tu, Amalia?

-- Ora, senhora! pois havia de me dar Deus a filha p'ra eu a pôr longe de mim?!

-- E os outros paes e mães?... meu irmão, por exemplo?... E quererás tu mais atua filha do que meu irmão á d'elle?

-- Ora eis ahi. Essa era a minha matacão.

-- Mas é differente o caso. O sr. D. Duarte tinha a filha ao pé da porta: queria-a vêr, ia-a ver.

-- E nós?... não a viamos tambem quando quizessemos?... não a tinhamos em casa nas ferias?... não podiamos ir a Coimbra quantas vezes nos appetecesse?

-- Pois sim; seja o que tu dizes -- replicou Amalia -- E depois nós mandavamos a nossa filha p'ra um collegio... p'ra quê?...

-- Para se illustrar -- disse D. Leonor.

-- Para se apresentar sem vergonha em toda a parte, fosse diante de quem fosse -- replicou João -- E' bôa!

-- Isso! E vinha do collegio cá p'r'a terra, e casava p'r'ahi com qualquer diabo. Ora bem empregado tempo, e bem empregado dinheiro, e bem empregado sacrificio, o de a termos longe de nós! mandal-a educar p'ra casar com um rapaz de lavoira!

Esta argumentação encommodou vizivelmente João Gil.

-- Com um rapaz de lavoira!... com qualquer diabo!... -- murmurou elle -- Tu nem sabes o qu'estás a dizer, mulher. Ora essa! Havia de haver muito quem tivesse lume no olho e a quizesse.

-- Diz bem, sr. João -- applaudiu D. Leonor -- Uma menina com fortuna, bonita, perfeita... estou vendo! E não só teria, que ha-de ter muito quem valha bastante, e a pretenda.

-- N'estas terras... -- murmurou Amalia.

-- Depois -- sobreveiu João Gil -- é preciso notar-se, eu dando-lhe uma educação esmerada, não fazia mais que cumprir o meu dever. Meu pae, que Deus haja, não me quiz ordenar?... não me quiz por ultimo fazer boticario?... E meu pae, bem se sabe, era pobre: ganhava-o, como o outro que diz, de dia, para o comer á noite. E afinal... diz' lá! o que é que a mim me tem valido? Ao que devo eu a minha posição, o que sou, o que valho, o que possuo? Porque é que eu tenho prosperado? Teu pae queria-me para genro se eu fosse um simples cavador, se não tivesse habilitações nenhumas?... Ah! é muito bom saber!

-- E então a nossa filha não está tão prendadinha? não lhe ensinaram as cunhadas do sr. prior lindas prendas,... lêr, escrever, bordar, tudo?... N'o lh'ensinaste tu nada?... n'o sabe ella francez com'aquelles que o sabem?... Fortuna tivesse ella, que n'o conheço eu por estes sitios rapaz que a mereça. Salvo o teu sobrinho, o Pedro; mas esse...

-- E's capaz de dizer que o Pedro a não queri?

-- N'o sei que te diga, homem-- respondeu Amalia com certa expressão.

-- Ora bem digo eu que tu não és d'este mundo -- exclamou João Gil -- Tomara-a elle!

-- N'o digas assim, João. Quem sabe lá quaes são as suas ideas?

-- Ora adeus, adeus!-- disse sorrindo, desannuveado, risonho, o marido d'Amalia, para quem as duvidas apresentadas por esta não passavam de sêr uma cegueira de criterio.

-- Que, direi -- accrescentou Amalia dirigindo-se a D. Leonor, que se estava interessando vivamente por este inccidente, e o não queria interromper -- a minha Thereza tambem me n'o parece mesmo nada inclinada ao primo. Trata-o com uma frieza... E' amiga d'elle, sim, mas quanto a coração...

João Gil ficou positivamente embatucado com este aparte da mulher. Nunca ella lhe tinha falado a si com tanta franqueza, e mais ella sabia que os seus desejos eram casar a filha com o sobrinho.

-- Nunca me disseste nada d'isso!... -- murmurou elle apprehensivo.

-- Porque nunca calhou. Mas agora, visto como tu falas... bom é que saibas.

-- E' boa! -- exclamou João.

-- Que, afinal -- sobreveiu elle apoz uma breve pausa, e já melhorado de parecer -- o que tu me dizes pouco ou nada significa; ou antes, significa que um como outro teem juizo, o que eu estimo: porque doidices nem eu as consentiria. Pode-se amar muito sem se fazerem grandes manifestações. A ti te namorei eu uns bons dois annos sem ninguem dar por tal; e se não é o quererem-me obrigar a metter o nariz no calix... haver o que houve... quem sabe quanto mais tempo duraria o mysterio?!

-- Chegou então ás alturas de ordens sacras? -- perguntou emfim D. Leonor, por se não tornar reparado o seu silencio.

-- Se cheguei! Por um triz que não fui obrigado a cantar missa, minha senhora. Minha mãe queria á viva força que eu fosse padre. Não é verdade, mãe?... vossemecê não queria que eu fosse padre? -- perguntou João á tia Ricardina, que estava para ali como creatura gasta, silenciosa, a ouvir sem perceber.

-- Ai, minha senhora, que doidice a minha!... -- exclamou ella para D. Leonôr com gestos de arrependimento pelas suas passadas phantasias.

-- Mas não tinha que sêr -- continuou João -- E ainda bem que não foi. Eu amava muito o mundo, a liberdade...

- E a Amalia... -- accrescentou D. Leonôr.

-- Justamente; e a Amalia.

-- E casou, e tem sido um homem feliz...

-- E' verdade, sr.ª D. Leonôr; um homem feliz... Feliz e digno, com reconhecimento a Deus e orgulho de mim o digo. Um homem feliz e digno. Nunca tive de que me lamentar, nunca dei maus exemplos ao próximo. Se, porém, me ordenasse... não sei que lhe diga que eu teria sido, minha senhora! Porque se não é padre simplesmente porque se tem uma corôa aberta, porque se enverga uma batina e usa um cabeção. Padre não é aquelle que celebra os officios divinos, só porque celebra os officios divinos; padre é o homem que em nome da religião faz completo sacrificio da sua liberdade, do seu orgulho, da sua força, da sua industria, de todas as suas acções, do que tem e do que pode haver, do coração, da vida, a favor dos outros homens. E eis a razão por que eu sou tão amigo do sr. padre David. Eu devia ser um mau padre.

-- E' um santo, aquelle homem -- disse Amalia.

-- Avosinha?... tia Ricardina?... -- vinham n'este instante clamando lá de longe Thereza e Isabel, que se tinham afastado do grupo havia boccado.

-- Tia Ricardina?... avosinha?...

Vinham correndo, alegres como creanças, risonhas e felizes como anjos.

-- Olhem se cahem! -- advirtiu Amalia.

-- Que é?.. . -- perguntou João.

-- Avosinha! a sr.ª D. Isabel quer que vossemecê lhe ensine o conto de S. Pedro e do moleiro.

-- Ora, ora... pensei que fosse outra coisa! -- exclamou D. Leonôr.

-- Pois sim, ensino -- disse a tia Ricardina.

-- P'ra ensinar orações e contos...

-- O Padre-Nosso já eu sei; quer ouvir?...

-- Diga lá, diga, sr.ª D. Isabel - pediu Amalia.

-- O que disse a menina, Therezinha?...

-- Que váe dizer o Padre-Nosso; que já o sabe...

-- Vá lá... Deixem-m'o dizer de vagar.

E principiou:

Padre Nosso pequenino,

Quando Deus era menino,

Tinha as chaves do P'raizo:

Quem lh'as deu, quem lh'as daria?

S. Pedro e Santa Maria.

-- Bom. Até ahi vae bem. Agora o resto -- disse Amalia.

Isabel estava evidentemente atrapalhada: mas pediu pelo gesto que a deixassem recordar-se do resto.

-- Agora... -- murmurou ella...

E proseguiu. Já lhe lembrára o seguimento.

Cruz em monte, cruz em ponte,

Nunca o demo te encontre,

Nem de noite, nem de dia,

Nem á hora do meio dia.

Já os gallos...

Tornou-se a pegar.

Thereza accudiu-lhe n'um murmurio de vóz quasi imperceptivel.

-- ... pretos..

-- .. cantam -- disse de lá João Gil.

-- Isso! - exclamou Isabel, que, emfim, com mais esta ajuda, estava de novo a carreiro.

Já os gallos pretos cantam,

Já os anjos se alevantam,

Já o Senhor sóbe á Cruz,

P'ra sempre amen Jesus.

-- Bravo! Bravo! Muito bem -- exclamou João Gil batendo palmas.

-- Muito bem, muito bem! -- ouviu-se exclamar no mesmo instante a certa distancia em dueto -- Muito bem!

Olharam todos para o ponto d'onde vinham aquellas vozes, e viram D. Luiz e Pedro, que eram as creaturas que as tinham soltado.

Chegavam ambos da caça. Vinham de espingardas ao hombro, fatigados, e sem duvida mais fatigados ainda que elles, uns pobres cães que os seguiam, arquejantes, de lingua pendida.

L

Exercicio de fogo

Foi ruidosamente festejada a chegada dos dois rapazes. Thereza e Isabel exultaram de contentamento ao vel-os.

-- Ora ahi vem caça que nem em tres dias se consome! -- bradou João Gil.

- E' o costume -- disse D. Leonor.

-- Veem mesmo derreados com o peso d'ella -- advirtiu Amalia.

-- Vejam! vejam que abundancia de caça! -- continou João Gil apontando para o sobrinho e Luiz, que nem um pardal traziam á cinta.

-- Pedro! quantas perdizes?...

-- Luiz! quantos coelhos?...

-- Mas quem disse que nós tinhamos ido á caça? -- perguntou Luiz com simulado ar de zanga pela parte que lhe cabia n'esta troça amiga -- Sim, quem disse que nós tinhamos ido á caça?...

-- O quê! pois nem um pintasilgo!? -- exclamou João Gil examinando as bolsas dos rapazes. -- Nem sequer um melro, uma cotovia!?...

-- Eu não matei nada -- disse Pedro com aberta franqueza.

-- Que dizes tu, homem, nada!? E' impossivel!

-- Mesmo nada. Oito tiros dei, oito errei.

-- E tu, Luiz? -- perguntou D. Leonor ao sobrinho.

-- Eu matei um coelho, mas o Conselheiro fez o favor de o devorar.

-- Olha o maldito do cão! -- bradou João Gil.

D. Leonor e Isabel riram-se. Aquelle cão, por via de regra, era o bode expiatorio das infelicidades venatorias de Luiz. Ellas sabiam-n'o.

Luiz ficou contrariado com estas manisfestacões de descrença. Recorreu ao testemunho de Pedro.

-- Pois não é verdade, Pedro, que eu matei o coelho?... Não me ouviste berrar ao Conselheiro?...

-- Ouvi.

-- E não o viste sahir do giestal a lamber-se todo?

-- Parecia que se vinha a lamber.

-- E não reparaste que elle trazia a barriga crescida?

-- N'isso é que eu não fiz reparo.

-- Reparei eu. Comeu-o. Acredite, minha tia; comeu-o. E' vicio que elle tem, e que não perde. O coelho saltou-me d'uma moita, e eu... fogo! dei-lhe o tiro. Ora vi-o cahir! Eu vejo muito bem. Depois... béu-béu! béu-béu!... era á borda d'um giestal... e o Conselheiro sumiu-se para dentro do giestal com elle.

-- Ah! bom tiro! -- exclamou João Gil.

-- E não matei mais porque afinal nós fomos a Nespereira a casa do tio D. Antonio. A' volta é que viemos batendo umas sebes... Nâo é verdade Pedro?

-- O quê, sr. D. Luiz?...

Pedro estava entretido com a prima e Izabel em palestra differente. Não tinha ouvido a pergunta.

-- Não é verdade que nós fomos d'aqui direitos a Nespereira, e que só á volta, de caminho, é que viemos caçando? -- tornou Luiz.

-- Ah! isso é verdade. A' ida para lá quasi que nem caçamos.

-- Tivesse eu cães que me ajudassem! E' que eu não tenho cães que me ajudem. Chumbo a caça, mato-a... mas de que vale? O Liró... esse é uma lastima. Fareja bem, corre bem, mas é cego. O Conselheiro, peça em que ferre o dente, é sua. E o Commendador, coitado, não tem habilidade nenhuma. De modo que eu, por exemplo, firo uma perdiz d'aza; mato um coelho: se o Conselheiro vê a peça, bem, apanhada está ella, mas é para elle. Come tudo. Se não vê, era uma vez! E eu não é que hei-de fazer de cão, procurar. Ora se tivesse bons cães!...

-- O' Luiz!... e quando tu uma vez trouxeste para casa um coelho que tinha morrido havia mais de oito dias?! -- exclamou D. Izabel.

-- Ora mas isso foi uma ratice. Achei-o morto, confessei. E d'ahi quem sabe se eu o não teria matado, afinal! Porque no sitio em que elle estava cabido andei dias antes á caça. O mais certo é que quem o matou fui eu.

-- Essa agora! -- interveio D. Leonor -- Então não te lembras que me contaste que o tinhas achado n'uma ratoeira?... Que até elle trazia as mãos partidas; pois não te lembras?...

-- Ah! é exacto; foi isso: não o matei eu, esse.

-- E aquellas celebres perdizes... -- tornou Izabel.

-- Ah! bem me lembro: que eu comprei. Foi brincadeira.

-- Olhe lá, sr. D. Luiz; é capaz de acertar n'aquella abobora que lá está em baixo?... -- perguntou João ao rapaz.

-- Se quer vêr... Dá licença?...

-- Atire! -- disse o pae de Thereza.

-- Perdão: primeiro eu -- atalhou Pedro.

-- Está dito: atira tu primeiro.

Metteu o rapaz em pontaria a abobora, que era de tamanho formidavel, e errou-a. Disparou o segundo cano, e errou-a tambem.

Houve troça, naturalmente.

-- Agora eu; a vêr... -- disse Luiz.

Ouviu-se um tiro, e logo apoz outro tiro. Examinada a abobora, estava intacta. Nem um grão de chumbo a tinha attingido.

-- E' da polvora, que é fraca -- allegou Luiz -- Se fosse com outra polvora...

-- Agora eu -- disse João Gil. -- Quem me empresta a espingarda.

-- Prompto! prompto!-- responderam a um tempo os dois rapazes.

-- A minha, que já está carregada -- disse Luiz.

Foi saudada com grandes risotas esta resolução de João Gil.

-- Estamos aqui em segurança? -- perguntou Amalia -- Vê lá, João!

-- Sem receio! Nada de sustos! A espingarda não dispara para traz.

-- Alto! alto! -- conclamaram diversas vozes.

Vinha lá longe o sr. padre David.

-- Fuja, sr. padre David!

João Gil esperou que sua reverendissima se retirasse do alcance do tiro.

-- Mas que é isto?... exercicios de fogo!?

-- Uma lição d'alvo a estes rapazes, sr. prior -- respondeu João Gil.

-- Atire! -- clamaram Luiz e Pedro.

Ouviu-se a detonação do tiro.

-- Acertei! -- bradou João Gil.

-- E é verdade que sim -- confirmou Pedro.

-- Um acaso -- disse Luiz depois de verificar que a pontaria tinha sido certeira.

-- Dispare o outro tiro, meu tio. Vamos a vêr se foi acaso.

Tornou João Gil a disparar, e tornou a crivar de chumbo a abobora.

-- Bravo! bravo! -- exclamaram D. Leonor, Isabel e Theresa, o sr. padre David e Pedro. -- Bravo! Não foi acaso.

-- Ein?...

-- Bravo! bravo!...

-- Tornem-me a carregar a espingarda, façam favor. O' Amalia?... tu não ralhas se eu matar aquella gallinha que lá anda em baixo?

-- Não. Se se ha de matar amanhã, mata-se hoje: come-se ao almoço.

-- Então... vae morrer ja.

-- Aposto em como a não mata? -- disse Luiz.

-- Vamos a vêr se sim ou não -- replicou João Gil.

E apontou, fez fogo, e não matou a gallinha. Tornou a apontar, e a mesma coisa; errou-a.

-- Ha mais cartuchos? -- perguntou elle.

-- Deixa agora atirar o sr. D. Luiz -- disse lhe Amalia.

-- Está dito: atire agora o sr. D. Luiz.

-- Prompto- -- disse o rapaz.

E apontou e disparou, tornou a apontar, e tornou a disparar, e a gallinha viva!

-- Agora é a minha vez! -- bradou Pedro.

-- Os espectadores d'estes fiascos riam-se perdidamente.

Tomou Pedro a arma, alvejou a gallinha e errou-a: tornou a alvejar, e tornou a a errar.

Redobraram as gargalhadas. Quizeram então os tres infelizes atiradores recomeçar o desafio de competencia, mas nem Izabel nem Thereza lh'opermittiram, porque incitadas pelo sr. padre David tinham corrido ambas a salvar o animal... d'um acaso funesto.

Findou pois o tiroteio, mesmo porque já era quasi noite cerrada, e entabolou-se muito juvial e vária cavaqueira.

Umas coisas lembram outras, umas idéas suggerem outras. D'ali a boccado todos falavam cada qual sobre o que mais lhe aprazia, divididos em grupos. João Gil conversava com o sr. padre David ácerca de negocios; Amalia e D. Leonor faziam o elogio, mutuamente, de Pedro e Luiz; estes palestravam com Thereza e ízabel; e a tia Ricardina ouvia uns, ouvia outros, apanhava palavra aqui, palavra acolá, e conservava-se muda: não gostava de importunar ninguem.

Causava lhe no emtanto certa amargura este isolamento, esta situação em que o seu estado de surdez a collocava, e foi por isso com verdadeiro jubilo que ella ouviu o neto dirigir-lhe a palavra.

-- Avozinha!... está triste?...

--Não.

-- Parece. Vejo-a tão mettida comsigo, como que a pensar em coisas tristes!...

-- Ah! é geito meu. Não oiço!...

- N'outro tempo?...

- Ah! n'outro tempo!... -- repetiu saudosa a velhinha -- Mas foi tempo que passou, filho; tempo que não volta.

-- E tem muitas saudades d'elle, pois não tem, tia Ricardina? -- perguntou-lhe Izabel, que se acabava de aproximar d'ella e de Pedro.

-- Ah! se tenho!... Estas tardinhas bonitas fazem-me muitas saudades, minha menina.

-- Mãe!... -- disse João Gil aproximando-se -- A sr.ª D. Leonor diz que se vae embora, que são horas de se retirar.. Vamos nós tambem para a nossa casa?...

-- Vamos; vamos -- disse a tia Ricardina tratando prestamente de se erguer.

-- Dê cá a mão, que eu a ajudo -- disse-lhe o filho -- Vá, upa! acima!... Quer vossemecê que eu a leve ao collo?... Vá lá isso: vamos a ver s'eu inda posso comsigo. Upa!...

E lá partiu João Gil com a mãe ao collo, muito contente d'aquelle seu acto, que todos ficaram a elogiar, e que era uma nota simples do amôr filial d'aquelle excellente homem.

Tinha feito aquillo tanta vez!...

LI

Maus prenuncios

Muito instado pela irmã e pelo sr. padre David, que era pessoa da sua mais particular estima, dignou-se um bello dia D. Duarte sahir do seu palacio, onde vivia vida de voluntaria clausura, e ir até ao povoado em vagarosa digressão.

O solar de sua excellencia ficava retirado um pouco do grupo da casaria que constituia a aldeia: a cento e cincoenta metros, talvez, do coração da terra, que vinha a ser, por curiosa coincidencia, a egreja parochial. Ao redor da egreja é que se espraiava o povoado.

Era esta a primeira vez que o fidalgo punha pé na rua, desde que ali se tinha installado, ia em quatro mezes: e esta obstinada falta de exercicio, tão contraria aos conselhos da sciencia, acabara por lhe aggravar os padecimentos. Achava-se quasi tolhido, muito desvalido de pernas. Mal se podia arrastar.

Acompanhavam-n'o os filhos, a irmã, e sua reverendissima. Amparava-se ao braço do escudeiro, e á sua inseparavel canna da India: o que logo á sahida de casa lhe fizera dizer para o padre, n'um assomo de comica gravidade, n'elle coisa rara, que por maior castigo de seus peccados passara da condicção de humano á condiccão de irracional: allusão bem frizante aos esteios a que se apoiava.

Era um domingo, pela tarde. Os habitantes da terra, áquella hora assentados nas soleiras de suas portas, erguiam-se a cortejar respeitosamente o illustre rancho, e fitavam com demorada attenção o rosto do velho, que era venerando com as suas longas barbas alvas de neve.

-- Para onde me levam? -- perguntou D. Duarte, parando, em certa altura do caminho, a tomar folego.

-- Se o mano quizesse -- disse-lhe D. Leonor -- poderiamos ir até a casa do João Gil -- Descançaria lá um migalhinho.

-- Pois sim: pois sim -- acquiesceu com o seu mais prazenteiro modo o velho -- Era n'isso que eu pensava... A mana adivinhou-me os intuitos... Visto que sahi, desejo agradecer a esse homem as vizitas que elle me tem feito. Fica longe, a casa d'elle?

-- Não fica.

-- E' ao fundo d'este caminho; alem no adro -- esclareceram quasi a um tempo Luiz e Izabel, aos quaes as palavras do pae muitissimo alegraram.

-- E elle estará em casa? -- perguntou D. Duarte ao sr. Padre David.

-- Deve estar -- respondeu sua reverendissima -- Só por invencivel contrariedade elle não passa com a familia as tardes dos dias santificados.

-- Pois vamos lá, vamos -- volveu o velho remettendo-se a caminho.

Luiz partira adiante, rápido como uma flexa, em direitura a casa de João Gil, para dado o caso de elle estar lá, o prevenir de que não sahisse; e dado o caso contrario, mandal-o chamar.

Passados uns dez minutos dava entrada em casa de João Gil o respeitavel cortejo.

Estava lá, com effeito, o nosso homem, que veio á porta receber as vizitas.

Esperava-as acompanhado da mulher e da filha.

-- Grande honra para mim e para os meus a vinda de vossa excellencia a esta sua casa, sr. D. Duarte! -- exclamou elle, saudando o ancião.

-- Cançado!... -- murmurou o velho -- Muito cançado, meu amigo -- repetiu elle apertando cordialmente a mão de João Gil, em testemunho de agradecimento pela sua saudação.

-- Descance aqui um boccadinho, mano -- disse D. Leonor offerecendo ao irmão um banco que estava ali perto.

-- Ah! ahi, não -- disse João Gil -- Eu vou buscar uma cadeira...

E sem que o podessem segurar, sem attender ás vozes de D. Duarte, subiu lesto a escada e voltou immediatamente, trazendo elle proprio uma cadeira de braços.

-- Aqui, sr. D. Duarte -- disse elle convidando o velho a mudar de assento -- Aqui está melhor.

-- Já vejo que vim cá para lhe dar encommodos -- murmurou D. Duarte -- Ora obrigado... Perfeitamente. E' uma cadeira devéras commoda.

Thereza e Amalia já lhe tinham apresentado os seus cumprimentos, que elle retribuiu com o mais lindo agrado.

Entretanto o fidalgo não deixava de examinar o vestibulo da casa.

-- Explendida!... Artistica esta entrada, sim, senhores -- ia elle dizendo -- Sim, senhor, sr. João! Já m'a tinham gabado, mas eu não fazia idéa que ella fosse de tão delicada compostura... Sim, senhores!... O carro, o arado, a dorna, foices, manguaes, cirandas... tudo tropheos do trabalho... Lindo!

-- Brazões de familia -- accrescentou João Gil.

-- E muito honrados, muito nobres -- affirmou D. Duarte -- Tropheus que são a base de brazões d'armas de grandes familias, até de principes... Lindo! Original! Idea original, e magnificamente executada. Tudo disposto com tanta graça!... Sim, senhor; merece os meus elogios esta entrada. E agora... começo a ter curiosidade de ver o resto da casa.

-- Porque não, sr. D. Duarte!... Com muito gosto... Subamos... Quer-se amparar ao meu braço?... A escada é boa de subir: comtudo...

-- Acceito -- disse D. Duarte pondo-se em pé e amparando-se ao braço de João Gil -- Vamos...

Subiu sua excellencia vagarosamente a escada, amparado da direita ao braço forte de João Gil, e da esquerda ao do seu escudeiro, e foi introduzido na sala de vizitas.

Era essa sala muito alegre, espaçosa, e mobilada com a mais estricta delicadeza. Tinha seus reposteiros e cortinados, mobilia estofada, bom tapete e lindos quadros em bellas molduras guarnecendo as paredes. No logar de honra, lá se via o retrato de Zé Joaquim, pintado por mão de mestre: fronteiro a esse, em photographia, destacava se o do sr. Garrik. Sobre um rico bufete antigo, vários objectos d'arte de valor, adquiridos por uma e outra parte, e ali religiosamente estimados: sobre um vetusto sócco de carvalho rendado, a um canto, um precioso jarrão da India.

D. Duarte não poude deixar de esboçar um gesto de profunda surpreza, ao divagar olhos por aquella sala.

-- E' a capella cá do meu palacio -- disse-lhe João Gil com o seu habitual ar de graça, quando os olhos d'elle, assombrados, se encontraram com os seus.

-- Palacio, sim, sr., diz bem -- attestou o fidalgo -- Tenho-os visto menos bem concertados.

E sentando-se accrescentou, falando para sua reverendissima:

-- Ha em tudo uma nota de bom gosto e ordem, que realmente me surprehende.

João, n'este momento, tinha deixado o fidalgo para se aproximar de D. Leonor, que lhe tinha feito signal a chamal-o.

-- Este João Gil é positivamente um homem notavel entre os homens cá d'estes sitios -- disse elle a meia voz ao sr. padre David -- Vejo que são muito legitimos os elogios que o meu amigo lhe faz.

E depois de tornar a passar uma vista d'olhos pela sala, volveu no mesmo tom confidencial:

-- E o resto da casa?... harmonisa-se com o que eu tenho visto?...

-- Perfeitamente -- respondeu-lhe o sr. padre David -- E se não... O' João? -- chamou elle.

João Gil accudiu prompto ao chamamento.

-- Talvez o sr. D. Duarte estimasse ver toda a casa.

-- Mas porque não?... Com muito prazer... Quer vossa excellencia o meu braço?...

-- Sim -- disse D. Duarte erguendo se -- Já agora...

E sahiu com elle pelo braço a mostrar-lhe todo o edificio, que era obra sua.

Da casa, que ali fôra, de Zé Joaquim, apenas tinham ficado em pé algumas paredes. Tudo fôra refeito ao sabor e risco de João Gil.

As dependencias e annexos d'ella indicou-lh'os o nosso homem da sala de jantar.

D. Duarte não podia andar a descer e subir escadas.

-- Alem é o lagar -- ia elle explicando -- Acolá os estabulos: ali tulha e adega. A casa tem uma parede divisoria, para o caso d'um fogo. Adiante, aquelle barracão que lá se vê, é palheiro. Cá por baixo de nós, nas lojas, tenho as accommodações dos creados, trem de lavoura, etc.

-- Sim, sr.; sim, sr. -- ia dizendo o fidalgo -- E esta sua quinta, que limites tem? -- perguntou elle.

-- E' todo este terreno que se vê desde o pinhal para cá, a morrer álem n'aquella tapada que fica ao poente, e que é de vossa excellencia.

-- Todo este campo abrangido pela linha de álamos que vae por ahi fóra?...

-- Justamente. Aquelles álamos ainda me pertencem. São á borda do ribeiro. Do ribeiro para cá, é meu. E' uma propriedade muito boa, muito farta de agua.

-- Vejo, estou vendo.

-- Gastou aqui muito dinheiro meu sogro, que Deus haja, e não tenho eu gasto menos. Mas a terra compensa-m'o: dá muito milho, muito vinho, muito azeite, muita batata, muita fructa... de tudo muito! Motivo porque eu faço muito gosto n'ella

-- Calculo. E' natural. Não acha?...

D. Leonor tinha-se aproximado do irmão. Era a ella que D. Duarte se dirigia.

-- Sem duvida. E ainda o mano a não conhece bem! Se a percorresse, como eu a tenho percorrido, é que ficaria fazendo uma idea exacta do que ella vale. Olhe... já viu o jardim?... Quer vel-o?...

Debruçou-se o fidalgo no peitoril da janella, e olhou para baixo, para o sitio que a irmã lhe indicava.

As cameleiras, grandes como castanheiros, e já carregadas de flôr, davam áquelle recinto um aspecto delicioso. Umas carregadas de flores alvas de neve, outras de flores carminadas, algumas raiadas de branco, eram o encanto dos olhos que as viam.

D. Duarte extasiou-se a contemplar lá do alto aquelles enormes ramilhetes que os já tremulos raios do sol poente esmaltavam de luminoso brilho.

-- Mas já camelias?! -- exclamou elle -- Então as camelias não veem mais tarde?

-- N'estas paragens -- exclareceu João Gil -- florescem mais cedo. A grande força d'ellas está a chegar.

D. Duarte continuava a regalar a vista na contemplação das flores. Estava-lhe parecendo aquelle boccadinho de terreno um paraiso de fadas.

-- Pode se ir para a rua por esta escada? -- perguntou elle indicando a escada que dava da casa de jantar para a quinta.

-- Pode. E é muito boa de descer -- disse João Gil -- Em vossa excellencia querendo...

-- Vamos... Vamos para baixo, que são horas...

E tomou o braço de João Gil, e foi descendo para o jardim.

O sr. padre David, D. Leonor, Thereza e os filhos do fidalgo, seguiram-lhe os passos.

Ali, todos sentados sob um caramanchão revestido de jasmim e baunilha, armou-se variada palestra.

Todos riam, todos diziam coisas no humanitario intento de tornarem agradavel o tempo a D. Duarte, que havia mezes feitos não passava um hora tão recreado.

Até D. Leonor o estava estranhando! A sua cosumada misanthropia, como que tinha desapparecido de vez. Mostrava-se muito bem humorado, satisfeito, communicativo.

Mas era já posto o sol: e D. Leonor, temendo que as brizas da tarde lhe viessem a fazer mal, lembrou-lhe que talvez fossem horas de partir para casa.

O fidalgo acquiesceu, e feitas as suas despedidas tomou o caminho do seu paço.

João Gil e o sr. padre David quizeram acompanhal-o lá.

-- Não se encommodem -- dizia-lhes D. Duarte.

-- Absolutamente nada -- replicavam-lhe elles.

E assim, sempre palestrando, pareceu ao velho o caminho mais curto.

Depois, quando a sós, quiz D. Leonor sondar bem o animo do irmão.

-- Então que lhe pareceu a casa do Gil? -- perguntou ella.

-- Magnifica. Uma vivenda invejavel -- respondeu decisamente D. Duarte.

-- Dizia o mano que eu exaggerava!?

-- Não, com effeito. E deve estar realmente muito bem, aquelle homem!... Deve ter uma fortuna razoavel?...

-- Cincoenta contos, dizem. E eu creio.

-- Tambem eu.

-- O que é um bonito dote para Thereza, devemos concordar -- adiantou D. Leonor.

-- Ah! por certo. Náo hão de faltar filhos de lavradores abastados que a pretendam.

-- E de fidalgos, porque não? -- avançou D. Leonor.

-- Tambem póde ser -- conveio D. Duarte -- Não será caso virgem -- Desgraçadamente não faltam homens que cuidem em readquirir por meio de allianças hybridas as fortunas que malbarataram.

Estes dizeres desagradaram profundamente a D. Leonor.

-- Allianças hybridas!... -- murmurou ella n'um suave tom de censura.

-- Anormaes, se prefere -- emendou por condescendencia o velho.

D. Leonor resolveu promptamente fugir da beira d'este precipicio que as palavras de D. Duarte denunciavam. Tergiversou.

Podia azedar-se o animo do illustre varão, e então sobrevirem maiores complicações, já e para o futuro, ás intenções de Izabel e Luiz. Não convinha aos intuitos de D. Leonor por-se agora a questionar com o irmão. De vagar é que se chega ao longe.

Tergiversou, pois. Fingiu que tinha replicado simplesmente á propriedade dos termos, não das ideas n'elles enunciadas.

-- Ah! anormaes, é mais bonito, menos cruel -- disse ella -- E devemos dizer que anormaes... n'outro tempo: presentemente ordinarias, vulgares. E se quizermos ser justos,... que não deslustram senão aquelles que as realisam por miseravel especulação.

D. Duarte meneou a cabeça em signal de aborrecimento. Esta prégação da irmã, bem que elle lhe não descobrisse o alcance, já lhe ia fatigando a paciencia. De mais... que lhe importava a si que com a filha de João Gil casasse filho de lavrador ou filho de fidalgo?... Era isso da sua conta?... Podia-lhe interessar tal assumpto?...

Evidentemente elle estava aborrecido de tal conversa: não estava para falar, nem tão pouco para ouvir falar. O seu bom humor tinha passado.

Percebeu isto D. Leonor, e logo ella discretamente o deixou. Mas, diga-se a verdade, bem pouco satisfeita das disposições em que o encontrára.

As palavras d'elle eram um mau prenuncio.

Entretanto não descoroçoou. Atraz de tempos, tempos veem.

Positivamente, a côrte de familia que nos ultimos tempos o assistira, tinha-lhe determinado uma certa regressão de condemnavel orgulho de raça: mas elle era bom, docil, justo e sensato: e a despeito de qualquer influencia contraria á vontade dos filhos, o amôr, que é sempre mais forte que o orgulho, havia de dominal-o, submettel-o.

Ficou se pelo menos D. Leonor consolada n'este pensar.

LII

Um fura-vidas

Obstinara se sempre João Gil em não tomar parte em eleições. Nâo tinha feitio nem genio para tal ordem de trabalhos: não queria metter-se em barafundas, hostilisar ninguem, crear difficuldades a quem quer que fosse, eleitor ou elegivel. Até agora, a despeito dos maiores empenhos, evitara systematicamente qualquer compromisso politico. Era livre. Com o que afinal lhe não ia peor, seja dito de passagem. Nem por isso o cortejavam menos todos os cabos de guerra, gregos como troyanos; bem pelo contrario: uns porque não perdiam as esperanças d'um dia o verem terçando armas a favor da sua bandeira, outros porque temiam despeital'o, e portanto pol-o na situação de inimigo, todos o estimavam, todos faziam quanto possivel por o obsequiar.

Que assim são os homens: ou os vence o interesse, ou os domina o medo. Pedido seu tinha grande importancia, quer se tratasse de livrar um recruta, quer de fazer d'um barbeiro um funccionario publico. Mas, emfim, forçado por circumstancias especiaes, teve agora de entrar em campanha.

Ia haver eleições. Propunha-se deputado ás côrtes pelo circulo, contra um desconhecido, creatura do governo d'então, o dr. Gaspar de Miranda, antes de tudo seu amigo pessoal, e em segundo logar recommendado de muitos cavalheiros graúdos, á frente dos quaes figurava D. Duarte, cunhado do candidato.

Que ha de fazer um homem, por mais valente que elle seja, em face de vinte ou trinta que o assaltam a um tempo, cada qual por seu lado? reagir, bater-se? Não; entregar-se. Antes a bolsa que a vida. E posto que mal comparado, tal era o dilemma: ou João Gil condescendia com a vontade d'aquelles senhores, e n'este caso lhes dava testemunho de amisade, ou não condescendia, e n'este caso elles repudiavam-n'o.

Esta é a maxima exarada no livro da sabedoria: quem não é commigo, é contra mim. A occasião era critica, e os grandes trunfos politicos invocavam a grandes brados aquella maxima. Não acceitavam a neutralidade de João: pediam-lhe o seu apoio, toda a sua influencia, todo o seu prestigio. Queriam, reclamavam uma situação definida, clara, cathegorica.

Força, pois, foi, que o nosso homem cedesse: e como quem se obriga a amar obriga-se a padecer (pensem bem os namorados estas palavras que o acaso aqui fez traçar!), ahi ficou elle sujeito ás impertinencias do mais activo e endiabrado candidato que até áquella data por ali se tinha proposto: um verdadeiro fura-vidas.

Logo na sua primeira entrevista com João Gil elle o revelou.

Era um velhote secco, rijo, falador, com grandes dotes oratorios e larga experiencia de eleições. Até ali, trabalhando para os outros, dera que fazer a meio mundo: agora, como trabalhava para si, imagine-se o que elle não promettia!

-- Ora diga-me, diga-me, meu caro João Gil -- dizia elle -- Quantos votos me dá o senhor?

-- Francamente, olhe que não sei.

-- Essa é boa! sabe tal. Vamos por partes... Isto quer-se muito apuradinho. Quantos rendeiros tem o meu amigo?... quantos homens occupa diariamente nos seus serviços?... quantos trabalham na fabrica?...

-- Mas olhe que o Engenho não é só meu -- observou-lhe João Gil.

-- Bem sei. Mas é como se fosse. Quem o administra é o sr. Só e exclusivamente o sr.!

-- Sim, mas... como administrador.

-- Exactamente. E como é o administrador e o principal socio da empresa, e como a empresa não quer por coisa nenhuma perder o administrador, ergo... vae em latim! quem manda na gente da fabrica é o amigo Gil.

-- Continue -- disse-lhe João Gil.

Estava o nosso homem de bocca aberta.

-- Continue...

- Ora esta lebre está corrida. Adiante, pois. Os votos da fabrica são todos seus.

-- Não ha tal! -- protestou João Gil.

-- Adiante. Eu bem sei que são -- retorquiu-lhe o dr. Gaspar -- Adiante... E cá na freguezia, a maioria da votação, é toda sua.

-- Não é tal! -- tornou a protestar João Gil.

-- Adiante. Eu bem sei que é -- replicou-lhe o seu interlocutor -- Ora, depois, tem lá por fóra, pelas outras freguezias, caseiros, serviçaes, amigos, an?... muita gente! E tudo isso, toda essa gente, cá e fóra, quanto somma?... trezentos, quatrocentos, quinhentos, seiscentos votos?...

-- Eis! eia! Augmente mais o numero, vá!

-- Então?

-- Ora se eu lhe der cento e cincoenta, será o mais. E nem tanto!

O dr. Gaspar sorriu-se.

-- Cento e cincoenta! E nem tanto! -- repetiu elle dando grande importancia ás palavras -- Decididamente o amigo está-se fazendo modesto. Ora... devagar!... por partes... Quantos votos dá cá a freguezia?

-- Não sei.

-- Qual não sabe!

-- Acredite. Nunca me metti em eleições; não sei.

-- Um calculo...?

-- Não faço idéa.

-- Bom. Tambem eu não. Mas hei-de-o saber, importa averigual-o. Pelo caderno do recenceamento é que isso se pode verificar. Diga-me; o sr. pode amanhã apparecer em Gouveia?

-- Oh! diabo! isso é impossivel. E' sabbado, dia de férias, muito mau dia.

-- Ah! sim, é sabbado. Nem me lembrava. E na segunda feira?

-- Mas para que quer o sr. doutor que eu vá a Gouveia?

-- Para lhe mostrar o caderno do recenceamento da freguezia. A' vista d'elle é que o meu amigo fica sabendo os nomes e o numero d'aquelles com que pode contar.

-- E não podia ser isso n'outro dia da semana? na quinta feira por exemplo?

-- E' dia de mercado, é mau dia. Na quinta feira quero eu atirar-me a certa gente que por lá ha de vir.

-- Está o diabo! E na sexta feira?

-- Seja. Fica combinado que o meu amigo apparece na sexta feira. A que horas, pouco mais ou menos?

-- De manhã, se quer; das nove para o meio dia.

-- Convem-me. Lá estarei ás suas ordens. Mas não falte!

-- Não falto.

-- Olhe que é preciso andar com brevidade. A candeia que vae adiante, é a que primeiro alumia. Ha toda a vantagem em nos pormos em campo sem demora: vae-se falando a um, vae-se pedindo a outro... Muita vantagem! E se eu venço... ah! amigo Gil!... Que venço: tenho mil probabilidades. D'esta vez leva o governo uma batida em fórma. Mas se venço, acredite!... seu sobrinho ha de ser despachado para onde eu quizer. Comarca á minha escolha!

João Gil mostrou de certo modo um boccadinho de duvida. Pareceu ao doutor.

-- Ha-de! -- affirmou elle.

E proseguiu no mesmo tom em que vinha discursando:

-- O governo tem grandes elementos, não ha duvida. Basta-lhe ser governo. Mas a opposição não os tem pequenos. Pois hão de os governos levar sempre ao parlamento pelo nosso circulo quem elles muito bem querem?! Não póde ser, não ha de ser. Salvo se os meus amigos me falharem; que digam uma coisa e façam outra; que promettam agora diligenciar ajudar-me, e que depois se fiquem em casa.

-- Commigo, assevéro-lhe, não ha de ser assim: prometti, prometti. Costumo ser escravo da minha palavra.

-- Isso sei eu! Vossê é dos leaes.

-- Com o que o sr. doutor não deve contar pela minha minha parte, é com violencias. Já lh'o disse, e repito-lh'o: tudo quanto eu poder fazer a bem, faço-o: a mal, nada. Nem isso está no meu compromisso, nem no meu caracter.

-- Mas é o que eu quero, amigo Gil! Mas é que nem mais é preciso! Basta que todos os que me ajudam sejam diligentes e sérios: nada mais. Confio em si; sei que o sr. ha-de ser um dos meus grandes homens. Que'mais quer que eu lhe diga?

João Gil abaixou a cabeça em signal de agradecimento por estas tão lisongeiras expressões: o doutor, ou porque fingisse não perceber a significação do gesto, ou porque o tomasse por manifestação diversa, solemnisou os seus dizeres.

-- Palavra de honra! -- exclamou elle.

Um candidato parlamentar é sempre assim agradavel, effusivo, grave, emquanto não é eleito. Tudo promette, tudo offerece, por tudo jura em qualquer lance: ninguem o excede em primores de cortezia, ninguem se lhe compara em affabilidade de trato. Amigo de velhos e creanças, não ha segundo: reconhecido e generoso, vae alem de toda a espectativa: serviçal, até ali. Se fôr preciso ajuda a carregar o jumentinho do moleiro, pega d'um sacho para dar uma demão n'um nabal, racha lenha ao vizinho, vae á fonte ao valetudinario.

-- Palavra de honra! -- exclamou elle.

E abonou-se por cima de tudo com um testemunho importante.

-- Digo-lhe isto com a mesma franqueza com que ha pouco disse a meu cunhado que não confiava nada no apoio d'elle. E não! Não confio. E sabe pelo que? Porque meu cunhado se fez um bicho, um commodista de primeira ordem. Não vê a vida d'elle? Sempre em casa! Não sae, não conversa. não quer saber de nada: ninguem o conhece, ninguem sabe que elle existe. Diz elle que é por doença: eu digo que é por egoismo. Gostumou-se áquella vidinha, e passe por lá muito bem. Ora posso eu confiar n'um homem d'estes? Não. E não porque é incapaz de se dar o trabalho d'escrever umas cartas, de mandar chamar uns rendeiros, de os levar diante de si á urnal Pois crê que muitos eleitores sahem de casa se sabem que não são vigiados? Isso sahem elles! Ou eu não os conhecer como os conheço! Querem-se apertados, vigiados de perto.

-- Para isso o sr. D. Luiz.

-- Pff! O Luiz não me inspira mais confiança que o pae. Olha quem! Esse, se sahir de casa para ir apalavrar um rendeiro, e topar no caminho uma rapariga, esquece logo o que ia fazer e vae atraz da rapariga. Se elle se não interessa pelas suas coisas, como se ha de interessar pelas minhas?!

-- Quem sabe!

-- Ora adeus, adeus. Se o eu não conhecesse! Aquillo é outro avô paterno. Ah! e você ha-de-o saber. Que tem elle feito por cá?

-- Que me conste, tem-se portado muito bem.

-- Não me diga isso, amigo Gil, que o não posso acreditar. Então elle... an?...

-- Não me consta.

-- Mas isso é espantoso! Só se elle mudou.

-- E' o mais certo; mudou.

-- Tá, tá, tá, tá... Ahi ha obra! -- disse com grande expressão de gestos o doutor Gaspar.

-- Hun!

João Gil não acreditava que houvesse «obra».

-- Tão certo!... E' o que eu lhe digo: o Luiz tem por cá o seu ourello. Decididamente o amigo Gil é curto de vista.

-- Olhe... talvez! -- disse João Gil sorrindo-se -- Rapazes são o demonio.

-- Salvo... salvo se elle está conquistando pela penitencia as boas graças de meu irmão. Que agora me lembra que meu irmão disse-me outro dia que elle ia lá muito por casa.

-- Por via da sr.ª D. Alexandrina?...

-- Sim.

-- Ah! pois lembra bem, lembra. Ha-de ser isso. Por amor dos santos beijam-se as pedras.

-- Ein?...

-- Não é outra coisa. Eu tambem já tinha as minhas desconfianças... Elle, uma volta duas, deita até Nespereira. Estas viagens levam agua no bico. O comportamento d'elle, e tal...

-- Sabe o amigo Gil?... -- interrompeu o doutor Gaspar -- Vou falar com o Luiz, e já. Se elle quizer as minhas boas graças, ha-de se mexer, ha-de substituir o pae. Até logo.

E sahiu, dirigiu-se a casa de D. Duarte.

-- Despresar elementos de força!?... Nada! -- dizia elle falando de si comsigo -- Não aproveitar todos os elementos!?... Nada!

Chegado ao palacio perguntou pelo rapaz.

Ia esbaforido, coberto de suor. Não sabia andar de vagar. Era apressado em tudo: no comer, no falar no andar,... em tudo!

-- Luiz não estava. Foi D. Leonor que lh'o disse, a primeira pessoa que se lhe deparou de portas a dentro.

-- E onde foi elle?... onde está?... Demora-se?... Preciso muito de conversar com elle.

-- Que pressas! que urgencias! E' grave o assumpto, mano?

D. Leonor tratava-o por mano.

Confessou-lhe o dr. Gaspar á puridade o que acabava de passar com João Gil, e o motivo que ali o tinha reconduzido.

D. Leonor sorriu-se, e, confidencia por confidencia, contou-lhe o que havia de verdade.

Merecia-lhe o cunhado um muito lisongeiro conceito, e portanto não hesitou em o desilludir e pôr ao corrente da situação de Luiz, mesmo para evitar que elle com nova tagarallice desfizesse o que a Providencia tinha feito.

O homem ouviu a narração dos factos enfiado. Estava vendo que por um triz não tinha armado uma tempestade infernal, que até por fatalidade o podia fulminar a si proprio.

-- Oh! com trinta mil macacos! -- não se poude elle furtar de bradar -- O que eu ia fazendo!... o que eu ia tramando!... E se o homem tem tido suspeitas do namoro da filha?!...

Aqui expressou as sua ideas por gestos. Pelos modos, na opinião d'elle, o pae de Thereza era capaz de perder a cabeça e pol-o na rua. Não tomaria o namoro a serio; antes o imaginaria um laço á sua honra, e então tomaria a desforra de cortar relações com toda a familia de D. Duarte. Logo, é logico, elle seria uma victima das loucuras de Luiz.

Quando lhe passou o espanto, e retomou posse do seu bom juizo, dirigiu o doutor Gaspar a palavra a D. Leonor em termos formaes.

Diga-se o ponto da verdade; independentemente de tudo, o dr. Gaspar era amigo de João Gil, amigo verdadeiro, e por isso enchera-se de dignidade para lhe advogar os seus direitos.

-- Mana! o João Gil é um cavalheiro, e tem como cavalheiro direito assignalado á estima de todos, e muito particularmente á d'aquelles a quem elle trata por amigos. A filha d'elle é uma innocente, e o nosso sobrinho um valdevinos. Diga-me, pois: seja franca, sincera...: a mim tanto se me dá que o Luiz case com a Alexandrina, como com a Thereza: o que eu não posso consentir é que elle se divirta á custa d'uma ou d'outra, que cave o abysmo d'algumas d'ellas: diga-me; o Luiz namora a Thereza a sério, ou por passatempo? Tenciona de facto casar com ella, ou anda-se a divertir? Eu preciso sabel-o, tenho o dever de informar o João Gil do que occorre, sob pena de ser indigno de lhe apertar a mão. Mesmo á custa do sacrificio da minha candidatura!

A resposta de D. Leonor foi cathegorica e tranquilisadora: e os seus commentarios a essa mesma resposta, sensatos e profundos.

Luiz, disse ella, amava Thereza muito d'alma e coração. Não andava a disfructar a rapariga, não a namorava por passatempo: e as provas, muito claras e positivas, eram os factos; o seu comportamento, as suas lagrimas, a sua reserva. Ella conhecia perfeitamente o sobrinho, para não estar illudida com respeito á qualidade dos seus sentimentos, das suas tenções. E se tivesse sombra de duvida quanto á dignidade d'ellas, seria a primeira a fazer com que Thereza lhe não acceitasse a côrte. Tambem julgava do seu dever esta protecção á rapariga, este acto de lealdade para com João Gil e Amalia. Porem, não lhe parecia conforme com a boa razão precipitar os acontecimentos. Por modo algum! Já tinha pensado muito no assumpto, e chegado a estas conclusões: primeiro, convinha que o namoro continuasse envolvido no seu veu de segredo: segundo, era util ir dispondo o animo de D. Duarte para n'um dado momento o submetter. João Gil devia, em summa, ignorar até á ultima hora as relações da filha com Luiz. Aliás podiam-se levantar difficuldades enormes: se D. Duarte offendesse João Gil, este nunca mais poderia consentir na união da filha com Luiz: era um homem brioso, e uma vez dado um «não», sustentai-o-ia fosse á custa de que pezares fosse.

Depois, não se tratava simplesmente do casamento de Luiz. A historia era complicada, e sob este aspecto melindrosa. Tratava-se tambem do casamento de Izabel: e na opinião de D. Leonor, este era o mais difficil de realisar, e só poderia effectuar-se depois d'aquelle. Era necessario, pois, muita discrição, muita diplomacia, para chegar a um resultado satisfatorio. Que diria D. Duarte se de subito o informassem de que Izabel estava apaixonada por um filho d'uma antiga creada da casa? Dizer-lhe que ella estava apaixonada por um primo da nóra, era, nos termos, coisa muito differente.

Emfim, havia tudo isto a considerar.

O dr. Gaspar ouviu, ouviu, ouviu, e por fim tomou a palavra.

-- Grandes novidades, sim sr.! -- exclamou elle de mãos nos bolsos do collete -- Dois casamentos d'uma assentada!

-- Em perspectiva -- emendou D. Leonor.

O dr. Gaspar não sabia bem o que havia de dizer. A longa narrativa da cunhada tinha-o deixado como que aturdido. Mas a pouco e pouco foi coordenando as ideas, refazendo-se do choque da surpreza.

-- De modo que -- principiou elle -- a Izabel está apaixonada pelo Pedro, e o Luiz pela Thereza?...

E largou a passear.

-- Muito bem!

Falava comsigo, monologava.

-- E então que se lhe ha de fazer?... casal-os!...

D. Leonor não despregava olhos d'elle.

-- Sim, que se lhe ha-de fazer senão casal-os?...

De repente parou e dirigiu-se a D. Leonor.

-- Já sondou o Duarte?

-- Ha meia duzia de dias.

-- E d'ahi?

A esta pergunta respondeu D. Leonor com outra pergunta.

-- O mano não o conhece?

-- Mas muito perro? -- insistiu o dr. Gaspar.

-- O costume.

Tornou o homem a dar umas voltas na sala, e foi de novo postar-se junto de D. Leonor.

Não tinha preconceitos de raças, filaucias aristocraticas. Fora sempre impiedoso contra as praxes antigas sobre allianças; motivo porque D. Leonor se abrira com elle. As noticias que a cunhada lhe déra tinham-lhe causado surpresa, não desgosto.

-- Conheço o Duarte como conheço a mana: -- disse elle -- e conheço a mana como me conheço a mim proprio. Tem razão a mana em dizer que é necessaria toda a discrição, toda a diplomacia, n'este negocio. Tem tambem razão em querer que se guarde o maior segredo. Agora um pedido... Auctorisa-me a tratar eu com meu cunhado o casamento dos filhos?

-- Mas já?... Seria uma imprudencia!

-- Já, não. Quando a mana o julgar conveniente. Auctorisa-me?

-- Mas com todo o gosto. Até eu estimo immenso que o mano queira ajudar-me n'esta empresa.

-- Bem. N'esse caso vá a D. Leonor fazendo o que poder no intuito de o abrandar, e depois eu virei dar-lhe o ataque. Elle ha de gritar, barafustar, mas ha de ceder. Comprometto-me a isso. E entretanto, faça porque o Luiz continue a portar-se com juizo. Que o João Gil o não surprehenda em declarações! Convem que elle vá vivendo na maior ignorancia do namoro da filha. Mas se houver novidade, passe-me logo aviso. Combinado?

-- Fica combinado.

LIII

Actos do tio João Gil

-- Pr'aqui, Cesar, pr'aqui -- dizia João Gil a um homem que o vinha acompanhando da rua -- P'r'aqui p'ra esta sala. Entra e senta-te, que eu já venho.

Entrou o homem, de chapeo na mão, no escriptorio de João Gil, e saudou Thereza, que lá estava costurando.

-- Tenha a sr.ª Therezinha muito boa tarde!

-- Viva, tio Cesar, muito boa tarde. Então como está o seu pequenito?

-- P'ra que digamos que peor, louvado Deus, não: mas tamem melhor, n'o se pode dizer. Assim-assim; tem-te n'o caias.

-- Coitadinho! ha tanto tempo a soffrer!

-- Fortunas de pobre, sr.ª Therezinha. Aquella creança tem-me custado os olhos da cara: tenho gasto mais c'o ella, do que com todos os irmãos. E ha-de a sr.ª Therezinha vêr que aquillo n'o arriba! Está p'r'ali, com'o outro que diz, a cumprir os seus dias. Que s'ella arribasse, emfim... aldemenos tudo eu dava por bem empregado.

-- Mas o sr padre David ainda não desesperou de o salvar; portanto...

-- Ah, sr.ª Therezinha! milagres ninguem d'este mundo os faz.

-- A febre continua-lhe?

-- Pois a febre é que o mata: assa-o, coitadinho.

-- Pobre innocente!

-- N'o tem senão pelle e osso estreme. E' uma dor d'alma ouvil-o uma pessoa gemer.

-- Ora bem, sr. Cesar -- disse João Gil reentrando -- Vamos a essas contas.

-- Sente-se, tio Cesar -- disse-lhe Thereza.

Tio é uma formula de tratamento dado por todos na Beira aos homens de certa idade: assim como os diminutivos são uma especie de titulo conferido pelo povo áquelles que são distinctos pelo seu nascimento e educação, velhos ou novos.

E' vulgar ouvir-se chamar sr. Antoninho, sr. Thomazinho, a um ancião.

Thereza ia com o costume, que faz lei. Gesar não gostaria que ella eliminasse aquelle «tio» que pelos seus annos e estado lhe pertencia.

Abancou João á secretaria, tirou da gaveta um livro de apontamentos, e abriu-o.

-- Este é que tira as teimas. O que fôr, ha-de aqui constar.

-- Cá p'las minhas contas...

-- Ora bem: temos nós a um lado... Ah! isto não é comtigo. Ha mais Marias na terra. Tu deves estar por aqui perto. João... Joaquim.. outro Joaquim... Cá está! Cesar Mendes... Ora vamos a vêr... Tens, a uma banda, dez alqueires...

-- Sim sr.; foi a semeadura p'r'a Lameira: foi em dia de Santo Estevam.

-- Justo. Por outra vez... cinco alqueires e meio.

-- Vae bem: faz amanhã cinco mezes.

-- Por outra vez... por outra vez...

-- Hão-de ser agora dois almudes de vinho, se está tudo assente por ordem -- observou o homem.

-- Exacto: dois almudes de vinho.

-- Que foi p'r'a malha; lembra-se?

-- Isso. Por outra vez... mais oito alqueires.

-- Confere. Que até eu queria levar só sete, e vossemecê disse-me que levasse mais p'r'as falhas. Depois...

-- Lembro me. Depois... Sim sr., tens razão. Depois quatro alqueires e meio.

-- Ah! vê?... vê?... Se eu tinha a certeza! E haja vossemece de perdoar eu desmentir a sua palavra honrada.

-- Ora essa! Onde ha duvidas, desfazem-se.

-- E agora o resto?...

-- O resto está bem: tres libras em dinheiro...

-- ...Que foi p'ra pagar a contribuição e telhar a casa.

-- Sim. E cinco alqueires de feijão e tres de trigo. Mais nada. E agora... P. G; pago e satisfeito, Quando precisares, cá estamos.

-- Muito obrigado. Tantas vezes encommodarei, qu'enfadarei.

-- E não ponhas em pouco o que eu te disse lá em baixo, homem! Trabalha aquella terra: mette-lhe estrume e enxada, senão não te dá coisa que valha. E quanto ás fragas, torno-te a dizer; dois tiros! Aquelles demonios estão alli a metter medo á semente.

-- Eu já disse á minha mulher que logo que haja modo...

-- Quanto pensas tu que te é preciso para fazeres os tiros e remover a pedra? Aposto que não gastas entre tudo cinco moedas! Será o mais.

-- Algum geito se lhe ha-de dar, se Deus for servido.

-- Lembra-te de que quem não semeia não colhe, e de que a pedra que quebras te faz arranjo para subir o paredão, que não véda a passagem do gado. Anda, vae-te. Adeus.

-- Viva, sr.ª D. Therezinha. Adeus, tio João. Fiquem-se com Deus, e muito obrigado por tudo.

Ainda o homem não linha sahido a porta da sala, assomava a ella um rapagão dos seus quinze annos, gordo, córado, valente.

-- O tio Miguel que já vem; que é só enfiar a vestia e marchar -- disse elle para o amo.

E ia a voltar costas.

-- Olha lá, ó figurão! -- berrou-lhe João Gil -- Ouve...

O rapaz voltou-se. Era moço de lavoira da casa.

-- Olha que me constou que tu hontem te foste pôr na taberna do Feliciano. Se te torna a acontecer, racho-te!... ponho-te a mão e a bôa vontade. Grande tratante!... N'o te envergonhas, um rapaz, de ires fazer sucia p'ra taberna?... Marcha! Vae ao teu serviço e não te esqueças do meu aviso. Grande patife!...

Sahiu o rapaz corrido da sarabanda, e sahiu tambem João apoz elle.

Desceu ao pateo.

-- Fortunato?...

-- Tio João.

-- Eu já disse que não queria estas vides aqui. Porque é que ellas ainda aqui estão?

-- N'o tem havido tempo p'r'as mudar. Fazia tenção d'acarretar c'o ellas amanhã.

-- E estas ferramentas, não se arrumam?...

Pegou o Fortunato das ferramentas, sachos e enxadões que estavam para ali abandonados, e foi pol-as no seu logar.

-- E' preciso que eu veja tudo! -- disse João Gil -- O' Ricardo, anda cá.

Era o principiante das sessões tabernaes. Accudiu presto ao chamamento.

-- Que vaes tu fazer?

-- la deitar feno aos bois.

-- Pois vae e volta. Ligeiro! Peza-te muito a gordura; custa-te a mexer-te.

-- Anda cá, Fortunato.

-- Senhor?...

- Aquelle malho tambem está fóra do seu logar.

-- N'o tinha visto.

-- Isso sei eu! Pois vós nunca vêdes nada: eu e que tenho de vêr tudo. E ahi estava elle entre a palha, e logo, amanhã, quando fosse preciso, procurava-se e não se encontrava.

-- A palha vae já d'aqui sahir.

-- Graças a Deus!

-- Em arrumando estas coisas, já a tiro.

-- Prompto! -- disse Ricardo apresentando-se.

-- Salta n'um instante a casa do Miquelino, e diz'-lhe que logo que possa que chegue cá para vêr se concerta o eixo da vára do lagar De caminho fala ao tio Antonio da Violante, e pergunta-lhe se elle e os filhos podem amanhã vir trabalhar cá para a quinta.

-- Sim, sr.

-- Ligeiro, ouviste? E olha!... avisa o mestre ferrador que tenha cannellos em ordem para amanhã de manhã cedo calçar a junta nova. O Moirisco precisa ferrado de mãos e pés, e o Pimpão cannellos novos nas unhas das mãos. Mexe-te!

Partiu de foguete o rapaz, e João começou de dar uma vista de olhos a todos os recantos do pateo.

-- Como estes diabos deixam cada coisa por seu lado! Ora vejam onde vieram deitar este razoilo?!... Que gente tão desleixada! Amanhã era uma hora para o encontrarem.

-- A's suas ordens, tio João -- disse o homem que João Gil tinha mandado chamar pelo moço, e que acabava de chegar.

-- Cobre-te; põe a carapuça... Então que raio de meada é aquella de que para ahi se fala, comtigo e com o Pimenta? Põe-me lá isso em pratos limpos, que eu gosto de saber...

O homem fez-se da côr dos pimentões. Não sabia o que havia de dizer, como principiar. Achava-se muito perturbado.

-- Conta lá! -- tornou João Gil escarranchando-se com toda a sua pachorra no cabeçalho d'um carro que jazia sob o telheiro.

-- E' que o tio Pimenta queria á fina força que eu lhe pozesse logo p'r'ali cinco pintos que m'emprestou faz na terça qu' ha-de vir, n'o é n'esta d'amanhã,... dois mezes: e eu, sim... vossemecê bem sabe; um pobre n'o tem pé de meia: e eu... disse-lhe que não: 'ó depois, palavra pucha palavra, elle disse-me que me partia as costellas, e d'ahi... um homem no é de cêra...

-- ...Não lhe deste os pintos, mas déste-lhe o troco? - adiantou João Gil -- foste-lhe á suã?

-- Só lhe dei um empurrão -- tartamudeou o homem, curvando a cabeça, pelos modos envergonhado d'esta sua acção de mau pagadôr.

-- E depois?... Até ahi é metade da historia. E depois?...

-- Depois... parece que elle tomou testemunhas p'ra me metter n'uma policia: e diz que tamem p'ra me fazer uma penhora: e eu...

-- Vá! desembuxa, homem. E tu, quê?...

-- Hontem topei a mulher d'elle, e disse-lhe que s'elle me fizesse passar trabalhos... sim, metti-lhe mêdo.

-- ...Que o havias de matar, ein?!

-- Foi p'ra lhe metter medo, tio João.

João Gil fitou olhos dominadores no rosto d'aquelle alarve que ali estava diante de si todo encolhido, e sahiu então da sua habitual pacatez.

-- Grande burro!-- exclamou elle. -- Mau pagador e mau vizinho: ingrato e insolente. Tinhas ou não tinhas tu promettido ao Pimenta pagar-lhe os cinco pintos no fim do mez? Fala!

-- Tinha, sim sr.: mas é que contava vender o bacorito, com sua licença; e no fim de contas não o vendi, ninguem me chegou ao preço.

-- E disseste isso ao Pimenta?

-- Disse, sim sr.

-- Mentes! O que tu lhe disseste foi que lhe havias de pagar em dinheiro ou em genero. Porque lhe não pagaste tu em centeio?... Ah! calaste! E que lhe disseste quando elle no fim do mez te procurou?... E que fizeste ao centeio?

O homem chorou: estava apanhado. Elle tinha posto o centeio fóra de casa de noite.

-- Paguei com elle a renda do alqueive ao sr. Amarante -- respondeu o homem com a voz muito embargada pela commoção.

-- Bem sei. Enão era, não foi sempre essa a tenção que tiveste? Para que enganaste o homem, pois? Não te era melhor falar-lhe a verdade?

-- Foi p'r'o n'o ouvir.

-- E ante-hontem, quando elle te tornou a procurar, porque lhe não respondeste com humildade? porque o insultaste?

-- Escandalisou-me.

-- Mentes! Tu é que o escandalisaste: em vez de lhe falares com modo, respondeste-lhe com duas pedras em cada mão. Depois... grande miseravel! como elle te replicasse, esbofeteaste-o. Já tinhas essa idéa? Já contavas com a tua superioridade de força para no momento dado liquidares a tua conta?... Fazem assim os miseraveis: pedem de joelhos, e agradecem de chapéo na cabeça. E tu és um miseravel. Porque não bateste a qualquer porta a pedir que te soccorressem, para pagares ao Pimenta? Não sabes que elle pouco mais tem do que tu? Que se te fez o emprestimo foi por sêr muito bom homem?

-- Envergonhei-me...

-- De pedir?... -- accrescentou João Gil -- Mas não te envergonhaste de praticar a negra acção que praticaste. Extraordinario sentimento o teu!

-- Tudo me tem corrido mal: parece que até Deus me voltou a face -- murmurou plangentemente o homem -- Quando os outros teem bôas colheitas, eu pouco mais recolho que a semente que deitei á terra. Estou cheio de dividas, arrasado.

-- Ah! mas fazes bem oor te livrares de difficuldades, que é consolação a tamanha desventura. Quem seja mais amigo da taberna, consta-me que não ha cá na nossa terra.

-- Ha mais de tres mezes que n'o bebo vinho, tio João. Juro'lh'o pela minha saudei N'o tornei a pôr pé na taberna: se alguem provar o contrario, que Deus me tolha já aqui de braços e pernas.

-- Naturalmente porque lá se te acabou o credito -- disse João Gil.

-- N'o devo lá nada -- retorquiu humildemente o homem -- Paguei e fiz uma cruz á porta.

-- Hão de te durar muito esses sentimentos!

-- Vossemecê n'o m'acredita, e tem razão. Eu tenho sido um desgraçado -- murmurou com voz estrangulada o infeliz.

E sem arremessos, sem maus modos, humilde, abatido, profundamente emmocionado, dispunha-se a partir.

-- Ouve... -- disse então João Gil com mais moderada maneira -- Quero experimentar-te a alma... Se d'esta vez me enganas, por minha fé que és um homem perdido! Aqui tens cinco pintos. Empresto-t'os: dar-m'os-has quando poderes. Vae a casa do sr. padre David, pede-lhe que te acompanhe á presença do Pimenta, paga-lhe e diz'-lhe que te perdôe as offensas que lhe fizeste. A todo o tempo é tempo de um homem se regenerar. Mais vale tarde, que nunca. Se d'ora avante te portares bem, eu te protegerei sempre que precises: se te continuares a portar mal, sae e não voltes; não quero mais ver-te. Segue...

O homem, agora completamente confundido pela generosidade de João Gil, muito contente pelas promessas d'elle, e ao mesmo tempo muito arrependido pelo que tinha feito, voltou-se, pretendendo occultar as lagrimas de gratidão e pesar que lhe avincavam as faces, e sahiu sem dizer palavra.

Uma hora depois estava sanada a questão do Pimenta.

O Pimenta era bom homem, e o sr. padre David grande patrono. Como não havia de ser assim?

LIV

Aggravos

Soffreu D. Duarte grandissima decepção quando, no intuito de auxiliar a candidatura do cunhado, chamou o seu antigo procurador para n'esse sentido lhe dar ordens.

Não imaginava que elle estivesse tão descahido. Havia mais de quatro annos que nem o via. Elle fôra, é certo, cumprimental-o, por occasião da sua chegada ao solar, mas D. Duarte nem para elle volvera os olhos. Voltára, ainda, mas o fidalgo não o recebera. De muito mau humor, então, mandou-lhe dizer que lhe apparecesse só quando elle o mandasse chamar.

Ora o homem achava-se n'um estado de enfraquecimento geral verdadeiramente deploravel. Estava gasto, incapaz de continuar á testa da administração da casa. A sua honestidade passára de titulo de recommendacão a titulo de veneração: era preciso tomar-lhe sem demora um substituto, aposental-o.

Mas onde estava quem o substituisse?... o individuo digno, honrado, que lhe succedesse?... a creatura apta, entendida em administração, ás mãos da qual elle confiasse o cargo?...

Não conhecia o fidalgo ninguem, absolutamente ninguem, nos casos. E no emtanto era urgente resolver, providenciar. Se até ali os negocios da sua casa tinham andado mal dirigidos e mal fiscalisados, o que era mais que provavel, attenta a pouca intelligencia do homem que superintendia n'elles, de certo que d'ora avante peor correriam, agora que esse homem estava decrépito, meio surdo, qua si cego, falto de memoria, inválido.

Debatendo-se n'esta ordem de idéas lembrou-se D. Duarte de consultar sobre o assumpto João Gil, e sem mais reflexões mandou-lhe pedir que em podendo lhe fosse falar.

O alto conceito em que elle tinha o honrado lavrador, assegurava-lhe que esta era a pessoa mais idonea á qual podia recorrer para se tirar de cuidados.

-- Que não é de urgencia o que eu lhe quero, diga-lhe -- advirtiu o fidalgo ao emmissario -- Mas que me faz favor se logo que poder me vier falar.

Foi e voltou acto continuo o portador acompanhado de João Gil, que no momento em que o recado lhe chegou a casa estava descançando a sésta.

D. Duarte ia-se irritando com tão subita apparição. Affigurou-se-lhe que o criado não tinha dado o recado como elle lh'o recommendára. Qualquer pequena contrariedade bolia com os nervos de sua excellencia. Mas João Gil prompto o acalmou.

-- Mandou-me vossa excellencia dizer que viesse eu em podendo -- disse elle para D. Duarte cumprimentando-o; -- e como eu agora podia, aqui estou ás suas ordens. Desculpará se não venho na mais opportuna occasião.

-- Ah! vem -- respondeu já d'outro semblante e agradecido o fidalgo á sollicitude e attenções do seu interlocutor -- Vem! O que eu não queria era que o sr. transtornasse as suas vidas. Já bastava o encommodo; seria de mais o prejuizo.

-- Prejuizo nenhum, sr. D. Duarte: e muito menos encommodo. Pelo contrario: vossa excellencia nunca me encommoda com as suas ordens; dá-me sempre grande prazer e honra com ellas.

-- Obrigado, obrigado -- disse-lhe D. Duarte.

E convidou-o a sentar-se.

Tomou João Gil a cadeira que o illustre ancião lhe indicava, e esperou que elle falasse.

Não se fez tardar a voz do fidalgo.

-- Resolvi aposentar o meu mordomo -- disse elle, indo assim direito ao seu fim -- Porque afinal eu creio que elle nada tem de seu, que precisa...?

-- Absolutamente sr. D. Duarte -- affirmou João Gil -- Não se dá com elle o que geralmente se dá com os homens do seu officio. Não tem nada! Tem sido um homem honrado ás direitas. E' pobre hoje, como pobre era quando entrou para o serviço d'esta casa.

-- Pois resolvi aposental-o -- tornou D. Duarte -- Chamei-o ha pouco para tratar com elle assumpto das suas especiaes attribuições, e reconheci que é muito precário o seu estado de saúde; que não póde continuar a servir-me.

-- Coitado! Os muitos annos! -- commentou João Gil -- Está gasto.

-- E' verdade; está gasto -- condisse D. Duarte.

E proseguiu.

-- Ora eu, sobre estar tambem pouco menos de gasto, não tenho, nunca tive aptidões nem conhecimentos para administrar as minhas propriedades: e, portanto, preciso d'um procurador ou mordomo, homem capaz, que me não defraude nem se deixe explorar, como naturalmente estava acontecendo a esse pobre velho, porque todos se iriam aproveitando da inepcia d'elle, e da minha ignorancia.

Na physionomia de João Gil esboçou-se um ligeiro sorriso amargo, que o fidalgo comprehendeu e nobremente apagou.

Evidentemente a generalidade da asserção não fôra bem recebida pelo honrado lavrador. Aquelle «todos» soara-lhe mal. Não o comprehendia a elle, estava de ver. Seria imperdoavel affronta. Mas alcançava muita gente que João Gil sabia sêr da mais impeccavel honestidade. Englobava, emfim, todos os individuos que transaccionavam com a casa do fidalgo.

-- Todos... é um modo de dizer -- acautellou, pois, sollicitamente D. Duarte -- A gente sem escrupulos! Longe de mim querer desfazer na probidade de muitos dos meus rendeiros.

Gostou João Gil da dignissima emenda do fidalgo á sua primeira maneira de falar.

-- Sim, sr., sim; comprehendo...

A fronte desavincou-se lhe. Homem de bem, não lhe soffria o animo ver injustiças. A honra não é apanagio exclusivo dos abastados.

-- Pois está muito bem! -- continuou elle -- Resolveu então vossa excellencia aposentar o seu mordomo, e deseja...?

-- ... que o sr. me inculque um homem de confiança, capaz, que o substitua -- concluiu D. Duarte -- N'uma palavra; que o sr. me aconselhe o que devo fazer na situação em que me encontro.

-- Homem de confiança, capaz.. -- começou de meditar alto João Gil -- Não é facil achal-o!

-- Ao menos um homem activo, honesto, em quem eu possa confiar -- dizia o fidalgo.

-- Percebo. Esse homem, embora pouco soubesse por agora do officio,... applicando-se... tendo bôa vontade...

-- Justamente; viria a dar um bom administrador.

-- Claro!

E tudo era João Gil matutar, scismar, para sêr agradavel ao fidalgo. Occorriam-lhe nomes sobre nomes, mas sem resultado satisfatorio. Nenhuma das pessoas que os usavam lhe enchia as medidas.

De subito a physionomia illuminou-se-lhe á luz d'uma idea intima.

-- Ah! occorreu-me um! -- exclamou elle radiante -- Um que está mesmo ao pintar. O ponto é elle querer. Esse é que é o grande homem!

O fidalgo exultou de contentamento.

Os enthusiasmos de João Gil tinham-lhe alegrado a alma. Ainda bem que elle o mandára chamar! Feliz idea: tirara-se de canceiras.

-- E' o sr. D. Luiz... o filho de vossa exeellencia -- disse ingenuamente João Gil, respondendo assim ao olhar interrogador de D. Duarte.

O rosto do fidalgo cobriu-se instantaneamente d'uma nuvem de desapontamento.

-- Ah! o meu filho!?... -- murmurou elle em tom entre magoado e despeitado -- Sim... sim...

E mais prompto do que parecia podel-o fazer, ergueu-se.

Tinha-o tomado um accésso de cólera que elle a custo podia reprimir. Os seus olhos, antes tão calmos, agora despediam relampagos crueis.

-- Sim sr., sim... o meu filho... o Luiz! João Gil, que esperava applausos pela sua idea, emittida á melhor boa fé, ficou profundamente atordoado com a attitude de D. Duarte. Nem sabia se estava accordado, se a sonhar. Olhava para o fidalgo n'uma inconsciencia dolorosa: como que estava chumbado á cadeira, a assistir a um espectaculo estranho, superior a toda a sua previsão.

-- O sr. Gil está-se divertindo commigo! -- exclamou emfim o fidalgo dissimulando n'um sorriso amarello a tormenta que lhe ia no intimo.

E depois, n'um tom grave, de sevéra compostura, tornou-lhe, do alto dos seus pergaminhos:

-- Meu filho não sabe de lavoura, nem nasceu para a lavoura, meu cáro sr. Gil. Ha-de querer melhor destino, outra carreira.

Reparou n'este instante João Gil que o fidalgo estava de pé, e elle sentado, e ergue-se como se poderosa mola o chocasse.

As fontes latejavam-lhe: as faces tinham-se-lhe purpureado.

-- Ah! sim, melhor destino... outra carreira... -- poude elle emfim murmurar.

Dominava-o uma grande confusão: sentia-se transtornado das ideas. Nem atinava que dissesse, que replicar, áquelle dito de D. Duarte!

-- Acredito -- continuou elle -- Ha-de querer outro destino, melhor carreira...

Entretanto ia-se-lhe aclarando a intelligencia, voltava-lhe o sangue-frio, a calma do espirito.

D. Duarte tocava tambor com os dedos nos vidros da janella, para a qual se retirára amuado.

-- Mas mais lucrativa, mais honrosa, mais independente... isso é que eu duvido! -- disse João Gil já quasi bem refeito d'animo -- Duvido, sr. D. Duarte! -- tornou elle com desassombro.

Já era outro homem. O abalo da surpreza tinha-lhe passado. Mostrava-se agora em toda a sua estatura moral.

-- Pois sim, talvez -- dignou-se responder-lhe como por obsequio D. Duarte -- Talvez. Mas não questionemos: não podemos questionar, sr. Gil -- concluiu elle dando ás palavras um peso muito especial.

Esta replica, nos termos e no modo, causou grande desgosto ao bom do Gil.

-- Essa agora! -- exclamou elle sem se exaltar, benevolo, delicadissimo -- Não podemos questionar!... Então sirvo para conselheiro, e não posso advogar as minhas ideas?... E' bôa!

D. Duarte não lhe replicou. Estava cahido n'um laço muito apertado. Effectivamente, se elle entendia, como acabava de declarar, que não podia ou não devia questionar com João Gil, então para que o tinha chamado, para que lhe tinha pedido que o aconselhasse?...

-- Pois não é certo que vossa excellencia me mandou chamar para me pedir que o aconselhasse?... que lhe indicasse um homem honesto, digno, diligente, a quem podesse confiar a administração da sua casa?... -- tornou João Gil.

O fidalgo ia ouvindo na mais absoluta impassibilidade, sem olhar, sempre amuado.

-- Acaso faltei eu ao muito respeito devido a vossa excellencia, apontando-lhe como homem a todos os titulos digno da sua confiança o sr. D. Luiz?... Creio que não. Mas, emfim,... se por grande desfortuna minha assim foi,... mil perdões, sr. D. Duarte!

E sempre cortez, mas como homem de brios, cortejou e sahiu.

-- Recebo as ordens de vossa excellencia!

D. Duarte fez a João Gil uma mesura palaciana.

Estava corrido d'aquella tunda que por meios habeis o bom do homem lhe tinha dado. Estava, mesmo, arrependido da sua leviandade, de mal com o seu genio. A voz da razão suffocava-lhe a voz do orgulho. Mais um momento de palestra, menos um boccadinho de altivez de João Gil, e o nosso homem não sahiria d'ali sem que elle lhe apresentasse desculpas pelo seu procedimento.

D. Duarte era no fundo um bonissimo homem, um homem justo. O seu mau humor é que ás vezes o não deixava brilhar.

Afinal, era certo, João Gil nem por sombras o tinha offendido. Elle tinha talvez carradas de razão: Luiz, na ociosidade, perdia-se: o trabalho podia muito bem amparal-o.

Porque não havia de elle commetter ao filho o encargo de superintender na administração da casa?... D'este modo il-o-ia enveredando no caminho porque a si nunca o conduziram, Deus sabe á custa de quantos prejuizos. Vigiaria pelo que era seu, tomaria conhecimentos com que no futuro tudo teria a lucrar.

N'isto meditava D. Duarte.

Entretanto, corredores do palacio adiante, a caminho da rua, ia João Gil monologando.

-- Não podemos questionar!...

Levava-o aos ares este remoque do fidalgo.

-- Mas então eu sou algum vilão ruim a quem se fale d'esta maneira?!...

Não podia levar á paciencia o dito de D. Duarte.

-- Não podemos questionar, é muito bôa!... Que o dedica a outra carreira... Que não nasceu para a lavoura...

De repente parou, voltou-se para traz, e como se ainda falasse a D. Duarte, como se elle estivesse ali a escutal-o, atirou este formidavel protesto:

-- Dê-lhe com essas, sr. D. Duarte! Anime-o, incite-o á vida airada que elle leva: deixe-o empolgar pelo vicio da ociosidade. Mais tarde o senhor se arrependerá. Mais tarde cahirão sobre a sua memoria os anathemas d'elle.

LV

Desaggravos

Vizitava o sr. padre David muito a miudo o fidalgo. Tomara a seu especial cuidado a saude do venerando ancião. Quasi todos os dias, de tarde ou á noite, elle o ia vêr, distrahil-o, ajudar-lhe a passar o tempo. Jogava com elle o gamão, ás vezes o xadrez, em que D. Duarte era parceiro eximio.

Indo, pois, n'aquella tarde, como de seu costume, a dirigir-se para os aposentos de sua excellencia, ouviu o bom do parocho, com dolorosa surpreza, as palavras que João Gil vinha proferindo ao sahir de lá.

O coração deu-lhe um baque. Teve a repentina intuição do conflicto. João não era homem para ensaiar discursos.

Avançou inquieto para elle.

-- Que foi?... Que foi?... Que é isso? Que vens tu a bramar, João?... -- perguntou-lhe sua reverendissima n'um arranco de insoffrida curiosidade.

João estacou.

-- Ah! -- exclamou elle na mais dorida expressão da sua voz -- Devia ter chegado ha cinco minutos, para vêr a soberba de pé e encarnada. E' pena que venha agora, sr. prior!

Havia na voz de João Gil muita tristeza, e essa tristeza mais affligiu, mais anceou, o coração magnanimo do bom padre.

-- O que me dizes tu, João!... que foi?... Acalma-te, fala...

N'isto vinha entrando o doutor Gaspar com os seus costumados e espalhafatosos cumprimentos. O sr. padre David e João Gil fizeram ponto na sua conversa.

-- Ora vivam! vivam!... Então como vae o amigo Gil?... E o nosso prior?... Rijo como as armas, bem se vê!

-- Isso sim! Estou como as peras servadas, sr. doutor: pareço o que não sou.

-- Ora adeus, adeus... Diz-se que o mal e o bem á face vem. E você, amigo Gil?... e os seus, como vão?... E a respeito de votos?... A minha eleição dá commigo em doido! Aqui onde me veem já venho de Villa Nova. O cavallo tem visto uma bruxa.

-- Acredito.

-- E' cada pilota por esses caminhos fóra!...

- A' caça de votos?...

-- Isso! Eu e elle, agora, -- o cavallo! -- não tratamos d'outra coisa: caça aos votos!... E a proposito, meu caro prior... D'esta feita posso contar comsigo?

O sr. padre David fez se desentendido.

-- A respeito?...

-- Da minha eleição... Nem se pergunta!

-- Oh! -- exclamou sorridente o sr. padre David -- Um pobre padre não se deve metter em politica. A religião não tem politica.

O doutor Gaspar atirou ás faces do sacerdote uma gargalhada ironica.

-- Por isso os seus coUegas se cohibem de arengas ás turbas!

-- Infelizmente. Mas os maus exemplos...

-- Ora adeus, adeus, amigo meu! Os maus exemplos!?... Palavras! -- replicou o candidato -- Tudo palavrorio.

O sr. padre David, benevolo, sorriu-se. O seu. interlocutor tentou amacial-o com as suas habilidades de occasião.

-- Se todos os padres fossem como o meu amigo... -- exclamou elle batendo-lhe amigamente no hombro -- digo-lhe que o mundo era um Paraiso. Mas então?... Todos uns damnados por eleições! Mettem-se a ellas que nem ratos a queijo.

-- Palavra!... -- accrescentou elle dirigindo-se a João Gil, que se rira do simile.

-- Pois eu nunca me metti n'ellas, nem já agora metterei -- disse lisamente o sr. padre David -- Quando se chega á minha idade,... quando se está com um pé na cóva,... deve-se desaggravar a consciencia, nunca sobrecarregal-a.

-- Então olhe lá! -- sobreveio por espirito de investigação o doutor Gaspar -- Se o seu arcipreste, ou o bispo, lhe pedissem que trabalhasse a favor d'este ou d'aquelle?... An?... Que me diz?...

O seu gesto completára a phrase.

-- Perdiam o tempo.

-- O quê?! Então se elles por bons modos o intimassem...?

-- Menos! Uma intimação d'essa natureza, seria um desaforo que eu repeliria indignado. Ordens com respeito ao serviço da Egreja, recebo-as e acato-as: fóra d'ahi não conheço os meus superiores.

-- Nem com a ameaça d'uma suspensão?

-- Nem com a ameaça d'uma suspensão!

-- Havemos de experimentar -- disse o doutor Gaspar de gracejo, piscando o olho a João Gil, que era todo olhos e ouvidos á palestra.

-- Quando queira -- respondeu-lhe á boa paz, mas firme, o sr. padre David.

Tornou o doutor Gaspar a tentar o sacerdote pelas melhores maneiras. Convinha-lhe immenso o apoio d'elle: sabia que todos os seus parochianos, todos, sem excepção d'um, o seguiriam ao menor acêno.

-- Sério-sério: muito francamente -- disse elle: -- então se eu lhe pedisse com instancia o seu auxilio...

-- ... ecclesiastico?...

-- Não, padre, amigo; o outro, o eleitoral.

-- Sinto: não o poderia servir.

-- Ora se podia!... Era caso d'um boccadinho de vontade.

O sr. padre David abanou negativameete a cabeça.

-- Olhe que não ia para o inferno por isso! -- garantiu-lhe o dr. Gaspar.

-- Talvez. Deus é misericordioso.

-- Ora então... eu fio que o meu amigo não ha de ser tão mau como se quer inculcar. Diga-me...

Adoçou mais o doutor Gaspar a voz, e chegou-se mais para o padre.

João Gil, áquelle momento, conversava com D. Leonor, que viera de dentro açudada, manifestamente á procura d'elle.

-- Diga-me... Mas não se ha de zangar, hein?

-- Não zango. Decerto não haverá motivo.

-- Isto aqui muito para nós, em segredo... Nunca pensou n'uma parochia mais rendosa?

A sua voz, agora, era d'uma doçura, d'uma affabilidade sem igual.

-- Não -- respondeu o sr. padre David afinando a sua voz pelo tom da pergunta, baixinho -- Nunca!

Este facto animou o tentador. O sr. padre David estava maravilhado, sorridente, mas não de cubiça pela promessa de mudança de parochia, diga-se a verdade: de admiração pelo genio d'aquelle demonio que ali lhe apparecia em figura de homem, e contra os artificios do qual elle estava bem precavido.

-- Pois prometto eu fazel-o transferir para melhor parochia! -- exclamou o doutor Gaspar -- Parochia de mais rendimento, de maior importancia.

-- Ah! obrigado: não se encommode, não acceito.

-- Está-se a rir!...

-- Creia, não acceito. Peço a Deus que me deixe morrer aqui. Tenho aqui em cada parochiano um irmão, um amigo: vi medrar as arvores que povoam estas granjas, edificar as cabanas que animam esta paizagem,... tenho aqui riscada a minha sepultura.

Pensou o doutor Gaspar que esta recusa do sr. padre David era fundada em razões de maior interesse, e então logo elle accudiu com nova e mais seductora proposta.

Valia muito a influencia do bom do padre. Tudo tem seu preço.

-- E' verdade! -- exclamou elle como se esta lembrança não fosse calculada, premeditada, mas occasional -- Quer o sr. ser conego?... Ha duas vagas de conego na sé da Guarda. Quer?...

-- Oh! São logares optimos para sacerdotes em quem concorram merecimentos que eu não tenho.

-- Tomaras tu um! -- disse comsigo o dr. Gaspar.

-- Ah! como é ruim de contentar!... -- exclamou elle alto -- Bom: havemos de falar n'isso com mais vagar. Deixe-me agora falar com o amigo Gil sobre uma coisa que me lembrou de repente. Amigo Gil...?

Não desesperava de obter o que queria com o engodo do canonicato, mas não achava prudente apertar as negociações já. Foi pois furtar João Gil á sua animada palestra com D. Leonor.

-- Amigo Gil! antes que me esqueça... Saberá que o morgado não vota commigo, porque está compromettido. Falei-lhe ha pouco. Topei-o á entrada cá da terra.

-- N'esse caso... se elle está compromettido...

-- Está: jurou-m'o. Mas deixe-o! Eu cá estou para a desforra. Pensa que elle não ha de precisar muito cedo de mim?... que este governo se aguenta dez mezes?... Deixe o! Eu já sei o costume. E depois, francamente, não estou por ahi além apoquentado com a votação d'elle. Tudo se arranjará.

-- Deus queira.

-- Com a sua votação posso eu contar de certeza, não é verdade?

-- Tenho uma só palavra, sr. doutor -- respondeu-lhe João Gil.

-- Bello! Bello! Grande homem! Está ouvindo sr. padre David?... Veja como fazem os amigos.

-- Estou vendo.

-- E hei de fazel-o barão! -- exclamou todo inchado de embofia o doutor Gaspar batendo no hombro de João Gil.

João Gil recuou um passo, como assustado, como incredulo da fidelidade do seu ouvido.

-- A mim?!... -- exclamou elle.

-- Pois então?! Hei-de-o fazer barão!

-- Faça! faça-o barão! -- pediu sua reverendissima.

João Gil desfechou nas bochechas do offerente a mais ruidosa das gargalhadas que ha muitos annos tinha ejaculado.

Esta gargalhada soou mal aos ouvidos do doutor Gaspar.

-- Foge, cão, que te fazem barão! -- dizia por entre espirros de rizo João Gil -- P'ra onde, se me fazem conde?... Ah! ah! ah!...

O dr. Gaspar ia embatucando.

-- Homem! você fala como quem diz que os titulos... Veja lá se eu vou offerecer um ao morgado, por exemplo!

-- Não quer votar com elle! -- commentou entre si o sr. padre David.

-- Mas talvez lh'o offereça, talvez, mesmo, lh'o venha a dar o candidato com quem elle vota. Porque não? -- observou João Gil ainda em convulsões de rizo.

-- Ah! descance! Socegue o meu amigo! - retrocou-lhe o dr. Gaspar -- Quando elle fôr titular... chame-me o meu amigo o que lhe vier á cabeça, que eu tudo lhe perdôo!

-- Mas o sr. doutor...

-- E note o amigo que eu não falo assim por despeito. Mesmo porque tenho ainda um meio de virar o morgado. E se não... Eu já volto. Deixe-me saber se meu cunhado está disposto a um pequeno sacrificio. Já falâmos...

As suas ultimas palavras já vagamente se perceberam. O doutor Gaspar enfiára como uma séta para os aposentos de D. Duarte.

-- Parece-lhe?!... -- ficou dizendo João Gil para o sr. padre David -- Barão, eu!... Barão!...

E largou a rir a bom rir.

-- Então e que tinha? -- disse-lhe o sr. padre David -- Era alguma coisa do outro mundo que elle te fizesse barão?... O homem nasce, depois faz-se.

-- Por amor de Deus! -- exclamou João Gil -- A carta do titulo era o mais formal attestado de loucura que me podiam passar... Barão!... Ora esta!... Barão!... Sume-te, diabo!

-- Barão!?... Mas que é isso de barão? -- perguntou muito curioso Luiz, que acabava de entrar na sala.

-- Foi seu tio que prometteu fazel-o barão -- esclareceu o sr. padre David apontando para João Gil.

O rapaz pareceu ficar encantado.

-- Serio?!

-- Serio; é certo -- attestou João Gil.

-- Oh! isso é uma belleza! -- exclamou enthusiasmado o filho do fidalgo.

Interessava-lhe vivamente que o pae de Thereza fosse agraciado com o baronato. Já assim, parecia-lhe, se lhe facilitaria o seu projecto de casamento pelo que tocava a D. Duarte, seu pae.

-- Acceite, sr. Gil -- pedia lhe elle então -- Acceite!

-- Está caçoando, sr. D.Luiz?!... -- replicou-lhe o nosso homem -- Nunca! -- disse elle com firmeza.

E como n'um furtivo relancear d'olhos visse D. Duarte, que n'aquelle momento apontára á porta da sala acompanhado do cunhado, fez pelo alvejar em pleno peito com as razoes da sua recusa.

-- Nunca! -- repetiu elle em tom formal -- O meu nome nem faz lembrar acções que me deslustrem, nem factos que me envergonhem: renegal-o, mascarando-me com o titulo de barão de qualquer coisa, seria um attentado contra o meu mais legitimo orgulho. Não tenho direito á consideração dos homens illustres porque me chamo simplesmente João Gil? Paciencia. A felicidade de cada um depende principalmente do seu modo de pensar, da força que a sua consciencia lhe dá. Que fosse a rir, que fosse a sério, a promessa do titulo, juro-lhe, sr. D. Luiz, que a rejeito, e que por ser digno aos meus proprios olhos serei sempre o tio João Gil.

Ao proferir as ultimas palavras d'este seu protesto, que era um formal desaggravo da affronta que pouco antes lhe fôra feita pelo fidalgo, voltou-se João Gil, como casualmente, para o logar onde estava D. Duarte, e fingiu que só agora dava pela presença d'elle.

-- Oh! perdão! -- murmurou elle -- Não sabia que vossa excellencia estava ahi.

-- E' um homem de tino, um homem de bem -- disse-lhe o fidalgo caminhando para elle de mão estendida -- Aperte!... Creia na minha admiração pela sua nobreza de caracter.

Que ventos tinham desvirado sua excellencia? Como é que D. Duarte, ainda ha pouco tão altivo, agora se mostrava tão humilde, tão affectuoso?

Percebe-se: D. Leonôr tinha lhe feito um dos seus costumados sermões.

LVI

Murmurios do coração

Quem vive em aldeias da Beira, ouve a miudo estas vozes atiradas do meio da rua para o interior das casas:

-- Tia Fulana?... amasse!

-- Tia Cicrana?... tenda!

E' a ajudante da forneira, ás vezes a propria forneira, que passa avisando as freguezas de que são horas de cuidarem das suas taleigas.

Porque, por lá, são publicos os fórnos: quasi todas as familias cozem cada qual o seu pão: de milho, umas, de centeio, outras, poucas, de trigo: ás vezes de milho e centeio, que então toma o nome de meado; ou de milho, centeio e trigo, tambem em partes iguaes, e que toma o nome de terçado.

Ora, uma tarde, estavam a tia Ricardina, Thereza e Amalia na varanda espreitando o sol, que já appetecia, ouviu-se bradar do portão do pateo:

-- Victoria?... tende!

Amalia, que despreoccupadamente se entretinha a dar passagens na roupa vinda da lavadeira, trabalho em que a filha a ajudava, atirou logo fóra, n'um movimento desesperado, o lençol que tinha entre mãos.

Ella, n'aquelle dia, é que tinha tomado á sua conta a manipulação da taleiga. Na ultima cozedura, a Victoria deixara o pão mal obrado. Queria dar uma lição á creada.

-- Ai, meu Deus, meus Deus!... Que tenda, e parece-me que ainda n'o tenho a massa levedada!...

E correu prestes á masseira.

A tia Ricardina, que não percebera de que se tratava, e que tinha ficado intrigada com o ar ralado da nora, inquiriu da neta o que havia.

-- Que foi, filhinha? Que tem tua mãe?...

-- Que ha-de sêr?!... Trabalhos que ella arranja. A forneira manda tender, e parece que a massa ainda não está capaz d'isso.

Os ladridos da canzoada, em baixo, não deixaram que a velhinha comprehendesse a neta.

-- Valha-me Deus! N'o t'entendi p'r'amôr dos cães, filha -- disse ella apurando com boa antecipação o ouvido á resposta de Thereza.

-- Que a mandaram tender...

-- Sim...

-- Mas que não tem o pão levedado.

-- Ah! coitada! -- exclamou com ar contristado a velhinha -- Ella quer fazer tudo!...

-- Mas a avósinha deve-lhe ralhar. Minha mãe tem creadas, precisa de se poupar mais -- disse Thereza.

-- Tens razão, menina, tens. O seu genio...

E ao passo que falava, ia-se pondo em pé.

-- Vou ralhar-lhe... -- dizia ella.

As pernas tremiam-lhe como juncos. De ter estado sentada no chão, tinha-as adormentadas.

Thereza ergueu-se a amparal-a pelo braço. O sol na varanda era fraco, e a briza da tarde um tanto agreste. Ia tambem para dentro de casa.

Ao pé da sala de jantar, separaram-se: a tia Ricardina foi ter com a nóra, ao quarto da masseira, e Thereza tomou para a saleta de costura, onde d'ahi a pouco estava com as suas rendas a tombos.

-- Bonito!-- ia ella exclamando...

O gato tinha andado com os novellos a contas. Estava tudo n'um riçol medonho.

-- Em nome do Padre, do Filho e do Espirito Santo! -- murmurava ella benzendo-se -- Anda, Thereza, desenreda esta meada!... Não tinhas com que te entreter!... Ai, credo, credo!...

-- Mas que é isto?... Que ha hoje n'esta casa?... -- disse Pedro da porta da saleta, ouvindo os queixumes da prima -- Tua mãe lá para dentro a lamentar-se, tu para aqui a choramingar... Que foi, que aconteceu?...

-- Repara! Vê! -- disse Thereza mostrando ao rapaz todo o seu trabalho na mais desordenada confusão.

-- Quem diacho fez essa trapalhada?

-- O sr. Carocho.

-- Boas chibatadas!

-- Em eu me esquecendo, que deixe a porta aberta,... o açafate da costura onde aquelle demonico lhe possa chegar,... linhas, rendas, novellos, tudo! põe tudo n'este bonito arranjo que vês. Só a minha paciencia!

Pedro sentou-se. Tambem vinha com cara de caso, pelos modos encommodado.

-- Fosse o bichano meu, que eu lhe contara uma historia! Garanto-te que lhe havia de ficar pouca vontade de tornar a pôr pés aqui na sala.

-- Em todo o caso -- proseguiu elle apoz uma breve pausa -- estou em te dizer que tenho por menos perigoso n'uma casa o teu gato, do que a Miquelina.

Miquelina vinha a sêr a mulher, sua parente em grao afastado, que vivia em casa d'elle, e lhe cuidava dos seus aposentos, da sua roupa. Era a mãe dos pequerruchos com os quaes Pedro passava tardes inteiras brincando como qualquer creança.

Thereza volveu para o primo um olhar interrogador.

-- Lembras-te d'aquellas notas que te mostrei aqui ha dias?...

-- Das notas do banco?...

-- Sim.

-- Lembro. E então?...

-- Vae ouvindo. Peguei d'ellas, quando d'aqui fui de t'as mostrar, e metti-as dentro da gaveta da minha meza, crendo que ali estariam muito seguras. Pois quem me havia de ir bolir na gaveta?... para quê?...

-- Mas não a fechaste?...

-- Não. A chave ha muito tempo que levou descaminho. Pul-as para ali entre uns livros. Tinha simplesmente fechada a porta do quarto, por causa dos pequenos. Ora, ha boccado, por acaso, abro a gaveta, procuro, torno a procurar... Notas, viste-las!... Onde vão, onde não vão ellas, quem as tiraria, que lhe fariam,... e que apuro eu?!

-- Sumiram-n'as os pequenos?

-- Não: a mãe d'elles, a Miquelina!

Thereza inquietou-se. O seu olhar formulou uma interrogação em que havia tanto de incredulidade como de pavôr.

Chegou a passar-lhe pela idea que ella as tivesse tirado por criminosa tentação. E Pedro assim o percebeu.

-- Não! não! -- assegurou-lhe o rapaz. -- Destruiu-as com a mesma inconsciencia com que o Carocho te destruiu a renda: retalhou-as em tirinhas para fiar maçarocas.

Thereza ficou passada; benzeu se.

-- E agora? -- perguntou ella.

-- Agora... eram uma vez quarenta mil réis! -- respondeu serenamente Pedro.

-- Como!? Está o dinheiro perdido?

Mostrava Thereza sua duvida em crêr similhante coisa. Por outra; não queria crêr.

-- O' Pedro, tu estás a brincar?... -- exclamou ella.

-- Palavra, que não. Seria de mau gosto brincar com coisas sérias.

-- Ai, santo Deus!... Pois assim se perderam quarenta mil réis?!

-- Quarenta mil réis... e mais uns pós -- observou Pedro -- Imagina que n'aquelle momento de desespero me fui a quantas maçarocas encontrei... uma canastra d'ellas!... e zas! zas! zas!... em procura dos retalhos das notas... dei cabo de tudo quanto a Miquelina tem fiado de ha um anno para cá!

Ouvindo isto, Thereza teve vontade de chorar, ficou sensivelmente commovida.

-- A teia d'aquella pobre, coitadinha! -- murmurou ella transida de dó.

Evidentemente ella tomava o acto do primo como acção vingativa. O rapaz assim o entendeu, e tratou de se justificar.

-- Mas que querias tu que eu fizesse?... Eu havia de procurar as notas, os boccados d'ellas. Penso que a teia valeria bem menos que quarenta mil réis.

-- Pois sim; mas se o mal estava feito, que lucravas tu em destruir o trabalho da pobre mulher?

-- Valha-me Deus! Eu não destrui as maçarocas por accinte, por vingança, como tu estás imaginando. Isso, sim, que seria uma acção indigna.

Thereza duvidava.

-- Palavra de honra! -- exclamou Pedro -- E' que se eu achasse todos os retalhos das notas, collava-os, remettia-os assim remendados ao banco, e lá davam por elles o dinheiro, outras notas.

-- Haviam de dar boas coisas! Fizeste-o por arrebatamento, foi de mau.

-- Não foi, juro-te: foi pelo motivo que acabo de te dizer, que eu dei cabo da teia. A grande infelicidade foi apparecerem só uns miseros restos d'aquelles ricos farrapos.

Com estas razões, que eram manisfestamente sinceras, começou Thereza a sentir-se mais acalmada por um lado, e mais impressionada por outro.

O acto de Miquelina indignava-a. Custava-lhe a comprehendel-o.

-- Mas como foi?... Gomo foi aquella mulher tirar-te as notas da gaveta?...

-- Diz que as não tirou: que as achou no chão, por baixo da meza. O que afinal bem póde ser verdade. Podiam ter corrido adiante, d'alguma vez que eu fechasse a gaveta, e cahirem ao chão. Depois, como ella precisava papel para o fuso, e achou aquelles pedaços d'elle encebados, rotos, foi-se a elles e rasgou-os em tiras. Ignorancia!

-- E deve estar afflictissima, por certo?... -- inquiriu Thereza.

Alma bem formada, todos os infortunios a commoviam.

-- Eu te digo -- respondeu-lhe Pedro; -- não está muito. Ou melhor dizendo; não está tanto quanto poderia estar: chora apenas o prejuizo das maçarocas, que lá está endireitando como pode... Eu, quando a vi como doida, de olhar espantado, n'um choro afflicto, remediei quanto possivel o mal fingindo que tinha achado, pedaço por pedaço, as notas completas. O que não é exacto, como já te disse. A parte mais importante d'ellas, os seus numeros, desappareceu. E não te conto nada!... O meu maior susto, foi que tivessem tido identica sórte uns documentos d'um meu constituinte... Felizmente que esses escaparam ao malbarato. Depois de muito procurar, lá fui dar com elles mettidos entre as folhas d'um livro.

Thereza deixára de ouvir o primo. O seu espirito estava totalmente absorto n'este ponto interessante:

-- Que diria o pae d'ella quando tivesse conhecimento do que Miquelina fizera?

-- Ouve -- sobreveiu ella de subito -- Tu ainda não contaste nada d'isso a ninguem?

-- Não.

-- Então, peço-te, nem contes. A Miquelina teria que ouvir a meu pae um sermão terrivel, se elle viesse a ter conhecimento do que ella fez. O dinheiro ha-de te fazer falta, mas essa falta posso-a eu supprir. Promettes-me não dizer nada?... Coitada da Miquelina!

Pedro não a percebeu.

Abruptamente Thereza saiu da sala e logo voltou trazendo na mão um pequeno cofre antigo no qual costumava guardar as suas joias, o seu ouro.

Vinha sorridente, feliz.

Pedro, ainda na ignorancia dos planos de Thereza, simplesmente absorto na contemplação das maneiras e desembaraço d'ella, na sua gentilleza e graças naturaes, coisas em que, parece incrivel, nunca senão agora reparára bem, nem com um monosyllabo a interrompeu. Examinava-a, admirava-a.

-- Queres vêr? -- disse-lhe ella -- Tenho aqui muito dinheiro. O que meu pae, minha mãe e a avosinha me costumam dar quando faço annos, pelas festas, está quasi todo aqui.

E patenteou aos olhos ávidos do rapaz o seu thesouro: entre avultado numero de joias e dobrões de formosissima apparencia, um bom punhado de libras á mistura com diversas moedas de prata.

-- Eia! tanta bagalhoça!... -- ia exclamando Pedro de brincadeira -- Que dinheirama ahi vae!...

-- Vês?... Vês?... -- dizia-lhe Thereza muito contente, a revolver, a patentear bem o seu thezouro -- Escusas de dizer nada a meu pae. Eu tenho muito com que accudir-te a ti e á Miquelina. Alem de que meu pae não sabe o que eu tenho, elle não se importa com o que eu faço ao que me dá. Tudo isto são presentes d'elle, D'elle e da avó. Estes dobrões tem-m'os dado todos a avó nos dias dos meus annos.

-- Bem -- proseguiu ella -- Quarenta mil réis são nove libras menos cinco tostões... Toma!

E estendeu ao primo a mão com aquella quantia.

Pedro retirou a sua mão n'um movimento brusco.

-- Obrigado, Thereza: não acceito -- disse elle em bem. -- Seria roubar os teus pobres. Eu bem sei a que esse dinheiro é destinado.

-- E's tolo. Para elles tenho eu bastante. Acceita -- insistia Thereza -- E de mais a mais isto é um emprestimo: mais tarde, quando poderes, restituir-m'o-has.

Pedro insistia na reccusa, mas Thereza tanto fez, tanto teimou, que emfim Pedro consentiu que ella lhe mettesse os quarenta mil réis no bolso.

Ah! Mas então a sua commoção, o seu aturdimento, ao sentir-se agarrado, seguro, pelas mãos delicadas da prima, arrazou-o.

Que cegueira a sua em se dedicar d'alma e coração a Izabel!... Que louco que elle fôra não consagrando á prima as suas mais caras affeições!

Nunca Thereza lhe parecera tão adoravel como agora: e se bem a contemplava, se via quantos favores devia ao tio, e que tempestade revolta podia provocar no animo d'elle, e talvez tambem no de D. Duarte, a sua paixão por Izabel, o coração cobria-se-lhe de tristeza.

Porque não havia de elle suffocar essa paixão? Seria para todos um bem o sacrificio do seu amor.

LVII

Dois homens

O receio de perder a sua eleição trazia o doutor Gaspar em bolandas, d'uma freguezia para outra, da porta d'um eleitor para a porta d'outro eleitor, da moradia d'um influente para a moradia d'outro influente, na mais febril actividade. Se lhe diziam que sim, tudo eram contumelias, vizitas, a fazer-se lembrado, a prevenir as manobras do candidato rival: se lhe diziam que não, tudo eram insistencias, tudo eram tentações no proposito de vencer a resistencia achada.

João Gil tinha-se compromettido a dar-lhe todo o seu apoio; mas que importava?! Coração que não vê, não sente. Era preciso mostrar-se-lhe, fazer-se lembrado, obrigal-o a trabalhar diligentemente, varejar bem os fructos d'aquella grande arvore.

Eis por que elle de novo o procurava hoje.

-- Collega?!... -- gritou elle lá de largo para Pedro, que lobrigou á janella da casado tio -- O tio está lá?...

-- Sim, senhôr.

João Gil, com effeito, esperava em casa o doutor Gaspar. Tinha na ante-vespera aprazado uma entrevista com elle áquella hora.

O homem aproximou-se, desmontou, entregou o cavallo ao primeiro creado que lhe appareceu, e subiu lesto a escada.

Tinha umas pernas de ferro!

-- Eia! como vem suado!

-- ... E morto de sêde, amigo Gil. Mande-me por favôr dar já um copazio d'agua com um tudonada de aguardente e uma pitada de assucar, para a acalmar.

João Gil foi mandar preparar o refresco para o seu amigo, e voltou logo.

-- E então o padre?... Que pena o sr. não o resolver a trabalhar por mim!...

-- Sobre esse ponto já eu disse a vossa excellencia quanto podia: nem lhe falo, nem approvaria que elle se demovesse a empenhos. Um padre deve sêr neutral em actos d'esta natureza. A religião tem tudo a perder coma acção dos seus ministros n'estas escaramuças. E' necessario que entre o padre e os seus parochianos haja bem firme e nunca perturbada estima. Approvaria eu que os padres se mettessem á politica, se as instituições lhe affrontassem o ministerio: dando-lhe, porem, ellas, como lhe dão, garantias e protecção, cuido que até seria um bem castigal-os por se entregarem a ella de corpo e alma. Assim se cohibiria muita desordem, talvez o prejuizo da propria Egreja.

Este arrazoado não foi nada do gosto do doutor Gaspar. Felizmente que a scena occorria em familia! Mais que um sacerdote andava galopinando por sua conta, e podiam acaso esses perder enthusiasmo ouvindo taes theorias.

-- Bom, bom -- accudiu elle solicito a ter mão no inccidente -- Respeito ás convicções de cada um! Não pode ser, não pode ser; acabou-se. Ora vamos lá ao que interessa... Falou com os homens?

-- Com dois. Falta-me falar com um... que elle ahi vem... -- disse João Gil olhando para o pateo -- Tinha-o mandado chamar depois...

Com effeito ia subindo o balcão da casa de João Gil um individuo pobremente vestido, roto, sujo, que era o tal a quem o nosso homem ainda não tinha falado.

-- Dá licença, sr. compadre? -- disse a creatura surdindo á porta da sala.

-- Entra, Manuel.

-- Tenham todos muito felizes tardes...

-- E' este o tio Manuel das Mercês? -- perguntou o doutor Gaspar a João Gil.

-- Um creado de vossa senhoria, meu senhor -- respondeu o recem-vindo.

-- Muito gosto em conhecel-o!... -- disse o doutor Gaspar estendendo a sua mão avelludada á mão calosa, informe, do pobre abegão.

-- Muito obrigado a vossa senhoria.

-- Compadre! -- começou João Gil -- tu já comprometteste o teu voto com o sr. morgado?...

O homem fez uns tregeitos complicados, que ia esclarecendo por vozes egualmente complicadas.

-- Eu... sim, eu... o sr. compadre... quero dizer...

-- Não tenhas acanhamento em dizer se sim, se não -- observou-lhe João Gil pondo-o d'este modo á vontade -- Não havemos de ficar mal por isso.

-- Elle já me falou. Foi tresant'hontem -- começou o trabalhador.

-- E depois?... que te disse?...

João Gil ia-o ajudando. Homens de campo sentem-se pouco á vontade entre o scenario de salas. Cada palavra que proferia, era outra volta que dava ao chapéo, no qual tinha o olhar pregado.

-- Que te disse elle?... Fez-te comprometter, é o caso?

-- Sim, e não. Quero dizer: disse m'assim: «O' Manel! olha que conto com o teu voto e o dos rapazes. Se n'o votas commigo, tenho quem queira o lameiro e as hortas». E vae eu...

-- Disseste-lhe que sim?

-- Sim sr. -- disse o Manuel das Mercês afinal.

-- Ouviu? -- exclamou João Gil voltando-se para o doutor Gaspar, que estava sobre um vulcão.

-- Mas essa ameaça, esse modo de luctar... -- rugiu elle -- Aquelle cão faz-me perder a cabeça. E quantos votos dá o sr. Manuel?

-- Cinco, creio eu -- disse João Gil.

-- Saberá voss'inhoria que são cinco -- confirmou o lavrador: -- que é o meu, o do meu genro Bernardo, o dos dois meus filhos mais velhos, e o do meu enteado.

-- Cinco votos!... Ah! aquelle patife!... E não haverá meio de evitar essa violencia?

-- Não o vejo -- respondeu João Gil.

-- E meu cunhado não terá um lameiro, alguma horta, que arrende a este homem?...

-- Não tem, meu senhor -- esclareceu o camponio Não tem. -- Tudo são fazendas de milho e vinha, propriedades grandes.

-- Grande tratante!... E pretextar doença?... não ir á urna?... trocar as listas?... -- alvitrou o dr. Gaspar.

Consigam-se os fins, não importam os meios -- era a divisa do candidato n'estes pleitos.

-- Impossivel, sr. doutor -- disse João Gil -- Nem bom é pensar n'isso. Se não prevalecia a ameaça, e por consequencia ficaria sem pão elle, o enteado, os filhos e os netos. Impossivel!

-- Tem uma familia numerosa este pobre homem -- disse Pedro.

O velho estava ali como indifferente a tudo, a ouvir, á espera do que lhe ordenasse o compadre, no qual elle ás vezes fitava olhos perscrutadores.

-- Não póde votar comnosco -- disse emfim João Gil sahindo das cogitações em que o caso o envolvera -- Não póde. Se eu o podesse indemnisar, pôr a coberto da ameaça do morgado, bem era: assim, nada feito. Vae-te embora, compadre: adeus.

-- Com licença de todos... Até sempre -- disse, cortejando e sahindo o camponio.

O doutor Gaspar media a passos tragicos o ambito da sala. Estava fulo com o que ia vendo. De repente parára.

-- Ameaça então a torto e a direito aquelle cavalheiro... de córte... para me guerrear? -- bramiu elle estacando em frente de João Gil.

-- Faz a vossa excellencia pouco mais ou menos o que vossa excellencia lhe faz a elle -- retorquiu-lhe á bôa paz João Gil.

Aqui ia-se ensuberbecendo o candidato.

-- Eu?! -- gritou elle affrontado da comparação -- Eu ainda não fiz uma parcella do que o morgado me tem feito a mim. Tenho sido razoavel, um pateta das luminarias -- disse com altivo entono.

-- Todos fazem o que podem -- amollou João Gil -- Todos n'estas occasiÕes se servem das suas armas e da sua força. E' o que eu de sempre tenho presenceado!

-- Lembra-me uma coisa, amigo Gil -- interveio o doutor Gaspar, que lá tinha a sua idéa a luzir-lhe agora -- Diz você muito bem: n'estas occasiões todos se servem das suas armas e da sua força... Olho por olho, dente por dente! Ora diga-me cá...? Preciso de contrabanlançar a influencia do meu amigo morgado... O Jeronymo, afinal quantos votos dá?... seis?... oito?...

-- Mais.

-- Quantos, então?

-- Deixe-me ver... Elle, um; o irmão Miguel, outro, dois; o cunhado por si e pelos filhos... ponha lá seis. Portanto temos oito. Com o do Saturnino e o do Ambrozio... dez! Dá dez votos.

-- Dez votos! -- exclamou deslumbrado o doutor Gaspar.

-- Sim, dez. Mas olhe que elle, disseram-me -- advertiu João Gil -- está compromettido.

O doutor Gaspar soltou uma gargalhada escarninha, satanica.

-- Compromettido!... Isso está elle! N'esse ponto estou eu mais bem informado que o amigo Gil. O Jeronymo só se compromette com quem lhe salvar o filho da vida militar.

-- N'esse caso, se o pode servir... olhe, ahi tem uma bella acquisição. São dez votos!

Exultou o doutor Gaspar.

-- Ora se posso! -- exclamou elle -- Vae vêr. Quantos votos me dá esse diabo... como o chamam?... o caseiro de meu cunhado, o vesgo?

-- O Lucas?

-- O mestre Lucas; esse mesmo. Quantos votos me dá elle?

-- Que eu saiba, dois: o d'elle e o do genro.

-- Ora dois votos!... -- exclamou com a mais desdenhosa enphase o doutor Gaspar, disposto a sahir -- Eu te arranjo, mestre Lucas!... Está feita a combinação: vou immediatamente realisal-a.

João Gil ficára a adivinhar.

-- Como?! Que combinação?...

O doutor Gaspar explicou-se.

-- O filho d'elle é numero dois, e o do Jeronymo numero tres, não é verdade? Ora muito bem; salvo o filho do Lucas, ficaria entalado o filho do Jeronymo. E era isso o que eu tinha promettido. Mas agora o dito por não dito! O rapaz do Lucas póde muito bem com as correias: portanto, livro o do Jeronymo, e assim ganho oito votos.

João Gil ficou como se lhe tivessem dado com uma marreta na cabeça. Até zoeiras d'ouvidos sentiu! Quando se recobrou d'esta estranha surpreza, já o seu amigo doutor ia descendo para o pateo.

Correu á janella a chamal-o.

-- Faz favor, sr. doutor?...

-- Que é?...

-- Suba; já vae. E' só um instante. Ou eu ahi vou -- disse João Gil.

E desceu rapido a encontrar-se com o dr. Gaspar.

-- Reconsidere -- pediu-lhe elle -- Prometteu ao Lucas que lhe livrava o filho?

-- Prometti. Mas que tem isso?! Tambem a mim me teem promettido muita coisa!

João Gil ficou desgostosissimo, triste.

-- Deshonrar a sua palavra!... Não lhe parece que esse passo é compromettedor para o seu bom nome?... -- perguntou-lhe elle.

Eram calmas as suas palavras: mas na sua alma agitava-se uma tempestade formidavel, que o doutor Gaspar não presentiu.

-- Ora essa! -- exclamou elle desaforadamente -- Que me disse ha pouco o meu amigo?... N'estas occasiões...

-- ... como em todas, sr. doutor!... quem é nobre não desce á infamia -- disse João Gil arrebatando-lhe a palavra.

O doutor Gaspar sorriu-se da candura do seu amigo.

-- Ora adeus, adeus. Palavras! Porque é que o Lucas me dá o voto d'elle e o do genro?.. Não é por interesse proprio?... Pois todos nós andamos ao nosso interesse. E' no meu interesse que eu vou annullar o tratado. Até logo!

E acabou de descer resoluto os degraus do balcão deixando ali João Gil arrazado de dôr.

Invadira-o um desanimo, uma descrença, infernal.

De subito, porem, recobrando consciencia de si proprio, decidido, rapido, saltou de dois pulos ao pateo, correu ao portão por onde o doutor Gaspar acabava de escoar-se, e fel-o voltar atraz.

-- Faça favor! -- gritou elle.

Era agora severissima a sua attitude.

-- Já volto.

-- Faça favor, tenha paciencia. Já vae; é coisa de poucos minutos -- insistiu João Gil -- Não o demoro nada...

-- Diga... -- disse o doutor retrogradando.

Em cima, no patamar, Pedro assistia mudo e quêdo a esta scena extraordinaria.

-- Por quem é!... não dê esse passo! -- disse-lhe João Gil, ainda supplicante -- Veja que o rapaz é o amparo d'uma ninhada de pobres creancinhas que o braço do pobre velho é impotente para por si só sustentar. Peco-lh'o!

-- Essa é boa! Hei-de sacrificar a minha candidatura ao interesse d'aquella familia?!

-- Não! Não ha-de sacrificar a sua dignidade ao interesse da sua candidatura -- corrigiu prompto João Gil.

-- Nada! -- redarguiu-lhe o doutor Gaspar em preparo de abalada -- Em tempo de guerra todos os expedientes são licitos.

E ia a voltar costas.

-- Pois está dito! -- disse-lhe então João Gil com singular desgarro -- Vá! Vá dizer ao Jeronymo que lhe livra o filho, e livre esse rapaz, que é robusto, e mau, e rico, para comprometter o outro, que é fraco, e bom, e pobre. Vá, sr. doutor. Mas já que vossa excellencia não tem coração nem brios, irei eu offerecer os meus votos a quem salve o infeliz fazendo justiça. Pode ir.

E voltou costas ao homem.

Ficou o doutor Gaspar quebrado de braços e pernas ouvindo tão formal ameaça. A resolução de João Gil apavorára-o, deixara-o como idiota.

-- Se o sr. doutor quebra o seu compromisso praticando um acto indigno, que muito é que eu quebre o meu por praticar um acto digno?! -- disselhe ainda João Gil parando, austéro, severissimo.

As palavras de João Gil, agora, eram frias, pautadas, mas naturalissimas. Sublinhava-as um sorriso altivo, que fazia calafrios ao seu interlocutor.

-- O' homem de Deus!... -- exclamou este, pois, lançando ambas as mãos aos hombros de João Gil, a querel-o congraçar, a pedir-lhe pazes -- Mas porque não me tinha você dito que se empenhava pelo filho do Lucas?... Pois não somos nós amigos? Não tenho eu obrigação de o servir?... Ora, ora... Não senhôr, não ha-de ser soldado o rapaz! E palavra de honra, creia; agora, depois d'isto, aindo fico sendo mais seu amigo... Venha um abraço!... Gosto de homens assim. Venham esses ossos!

LIVII

Alegria e vinho

Tinha anoitecido.

Anoitece cedo, no inverno.

João Gil passeava d'um para outro lado, na sala de jantar, onde ardia uma bella brazeira: a mãe d'elle, sentada ao pé d'essa brazeira, e bem embrulhada n'um chale, ia fiando e rezando: Amalia, occupada nas suas vidas de dona de casa, ora entrava, ora sahia: lá fóra, no pateo, ladrava furioso um cão.

-- Fortunato! -- berrou João Gil da janella -- Não ouves esse cão?... Já te disse que quero hoje todos esses animaes fechados na loja até tarde.

-- Sim, sr., tio João. E' o sr. prior: já o prendo.

Cegou João Gil de riso com tão estapafurdia resposta.

-- Forte estupido! Ladra o cão, digo-lhe que o prenda na loja, e responde-me que é o sr. prior, que já o prende!?... E' mesmo tapado, este Fortunato!

E indo á porta que communicava com a cozinha, bradou para dentro:

-- Depressa!... alumiem ao balcão, que diz que vem ahi o sr. prior.

A tia Ricardina, que não percebera nem patavina do que o filho tinha dito, pretendeu saber d'um modo especioso o que havia; porque é que o cão ladrava, quem vinha lá, o que dissera João, porque se rira elle com tanta gana.

- E a pequena sem vir! -- murmurou ella então.

A pequena era Thereza, a neta, que tinha ido depois do meio dia com D. Leonor e Izabel para Nespereira, d'onde ainda não regressara: o que a tinha em certo cuidado, porque o ar frio da noite annunciava a queda para breve de um grande nevão.

João Gil não deu pelo intento da mãe, que então inquiriu directamente o que havia.

-- E' ella que ahi vem, a Thereza?... -- perguntou.

-- Não sr.ª; é o sr. prior.

-- Ah! Pensei que fosse ella. E porque te riste tanto, filho?... Que foi?...

-- E' que o Fortunato, quando eu lhe disse que prendesse o cão que ladrava, disse-me que era o sr. prior,... que já o prendia.

E desatou com nova gargalhada, á qual, d'esta vez, a tia Ricardina fez côro.

N'este momento cruzava o limiar da porta da sala sua reverendissima.

-- Então que canceiras são essas?... a fiar! -- exclamou elle saudando a mãe de João.

- A teia, á candeia... Estou a espiar a roca. Já a largo, e vou-me ás contas -- disse a tia Ricardina com o seu mais prazenteiro modo.

Sua reverendissima vinha tiritando de frio. Amalia aconselhava-o a que se aproximasse da brazeira.

-- Chegue-se para a brazeira -- dizia-lhe ella -- Aqueça-se, sr. prior.

-- Então que ventos o trouxeram por cá? -- perguntou-lhe João Gil.

-- A curiosidade, que é mal de que todos enfermam. Então?.. Quem venceu?... Aqui tens o que me cá trouxe a tua casa a estas horas.

Tinha se n'aquelle dia realisado a eleição que durante tanto tempo trouxera em grelhas o doutor Gaspar. O sr. padre David vinha saber noticias do acto. No palacio, d'onde elle momentos antes sahira, constava que a opposição, e portanto o doutor Gaspar, tinha alcançado um verdadeiro triumpho: no emtanto, desejava ouvir João sobre o caso.

-- Conta-me lá o que se passou na assembléa, que foi ao que eu vim. Entre a gente cá da nossa aldeia deu-se algum conflicto?

-- Felizmente, nenhum. Reinou sempre a melhor ordem.

-- Bom, estimo. E venceu afinal o doutor Gaspar?

-- Creio que por grande maioria. O governo não poude ter mão na derrota.

-- Bravo!

-- Houve freguezias inteiras á carga serrada contra elle.

-- Então está contentissimo o nosso homem?...

-- Não cabe na pelle! Quando eu retirei da villa, havia foguetorio e musica, que era um desaforo. Mas que de escandalos!... que de scenas revoltantes á meza eleitoral!... que ignobil farçada são umas eleições!

-- Conta lá, homem!...

-- Nome de morto não era appellado em vão. «Fulano!» gritava o escrutinador. Era o nome d'um morto, «Presente!» dizia de lá um quidam. E depois, já se vê, grande berrata, muitos protestos... mas o morto votava.

-- Pode lá ser!?

-- Acredite!... Agora aleijados, cegos, doentes a votarem... Imagine! appareceu lá a votar um desgraçado que duas horas depois morria no adro.

-- Santo nome! Santo nome de Deus, que monstruosidade!... Não me contes mais nada, João. Não quero ouvir mais: cala-te... Santo nome de Deus!...

A breve narrativa de João tinha enchido d'angustia o coração do sacerdote.

-- Que monstruosidade! Que monstruosidade! -- exclamava elle.

A voz d'Amalia, n'este momento, veiu providencialmente abafar a triste conversa.

-- Ora graças a Deus! -- entrou dizendo a consorte de João -- Parece-me que ellas ahi veem.

Referia-se ás fidalgas e á filha.

Ouvia-se, com effeito, na rua, um alegre ruido de vozes, vindo de perto.

João accudira apressado a uma janella, a escutar, a vêr se por entre a escuridão divisava alguem.

-- São ellas, são -- disse elle -- Vem um rapaz adiante a allumiar-lhes... Ha-de ser o Ricardo... Fortunato!... abre depressa o portão...

-- Como hão-de vir enregeladinhas! -- exclamou Amalia mexendo a brazeira, a aquecer o ambiente.

-- E' a Thereza? -- perguntou a tia Ricardina.

A velhinha estava n'um grande desasocego por causa da demora da neta. O intenso frio que ella apanharia na rua, como que lhe fazia doer o seu proprio coração.

Ficou, pois, a tia Ricardina muito contente com a resposta affirmativa da nóra. Tanto mais que já estava nevando. No espaço fluctuavam os primeiros flocos do nevão que a baixa de temperatura estava prenunciando.

Houve um momento de incerteza. Pareceu a João e Amalia que se tinham enganado. A luz do lampião que João Gil tinha divisado, extinguira-se. As vozes do rancho cessaram de se ouvir. Mas de subito estrondeou no pateo um bulicio enorme.

-- Ah! então não me enganei! -- exclamou João Gil -- Ahi estão ellas.

-- A que horas!... A que horas!... -- dizia em cima no patamar Amalia.

-- Foi o mais cedo que podemos vir -- explicava Izabel.

E entraram de roldão todos os recemchegados: D. Leonor, Izabel, Thereza, Luiz e Pedro.

-- Ora santas noites!

-- A sua benção, meu pae; a sua benção, avósinha...

-- O sr. prior aqui?!...

-- Ah! que se lhes sahisse ao caminho uma alcateia de lobos, ou uma quadrilha de ladrões!...

-- Não havia perigo, sr. Gil -- retorquiu D. Leonor achegando-se do lume -- Vinhamos muito bem guardadas.

Alludia a Luiz e Pedro.

-- São dois homens para a guerra -- accrescentou ella ironicamente -- Um, a fugir d'um cão que nos sahiu ao caminho, estendeu se.

Grande gargalhada.

-- E quem foi?... Qual foi esse? -- perguntou curioso João Gil.

-- E' segredo -- respondeu apressada D. Isabel.

-- Basta: segredos... são segredos.

-- O outro -- continuou D. Leonor -- a querer saltar um regato,... estendeu-se tambem.

-- Porque escorregou nos caramellos! -- accudiu Thereza.

Nova gargalhada.

-- E qual foi esse? -- inquiriu o sr. padre David.

-- E' segredo, sr. prior -- respondeu-lhe Thereza, parodiando Isabel.

João Gil ria-se alegremente, despreoccupado.

-- Grandes homens para a guerra!...

-- Mas onde estão elles?... Que é feito d'elles?...

Amalia, que voltava á sala seguindo a creada com um enorme alguidar de brazas expressamente feitas na cosinha para reforço da brazeira, foi quem respondeu á pergunta do marido.

-- Olha... vae á cosinha, que já sabes onde elles estão. Foram-se sentar lá ao fogo. Diz que a brazeira não chega para tanta gente. Estão no meio dos creados. Parece-lhe, sr.ª D. Leonor?!

-- Deixa-os... São rapazes... Não te encommodes com isso -- disse D. Leonor.

João Gil fôra observar o espectaculo de dois rapazes educados mettidos fraternalmente entre humildes serviçaes.

Estavam abancados, sem ceremonias, juntos, a um lado, no degrau da lareira, de mãos estendidas para o fogareo da lenha.

-- Olhem que não tarda que estejam todos pingados das gorduras do fumeiro -- advirtiu elle -- Fujam d'ahi.

Pedro levantou-se. As grandes varas de chouriços e farinhotes que estavam por cima do lume, a curar, e em que elle não tinha reparado, eram um ameaço á decencia do seu fato. Luiz, porém, mais rico, mais creança, não se importou com o aviso.

-- Não faz mal -- disse elle -- Vale mais um regalo na vida, que cem moedas na algibeira.

-- Pois, então, fique -- disse-lhe João Gil -- A' vontade!

E voltou para a sala acompanhado de Pedro.

Isabel tinha sahido com Thereza para os aposentos d'esta. Amalia conversava com D. Leonor sobre coisas sem interesse. O sr. padre David tomára á sua conta a pá da brazeira; mexia constantemente o lume.

-- Mas que demora foi esta vossa? -- perguntára João Gil ao sobrinho.

-- Quizeram que jantassemos. Ora o jantar acabou tarde. Depois appareceram a sr.ª D. Bernardina e as filhas, e então não houve meio de sahirmos de lá com dia.

-- E ainda agora lá estariamos, se não fosse eu valer-me do argumento de que o sr. estaria cá em cuidados pela sua filha! -- disse D. Leonor -- Sahimos quasi á força. A prima Bernardina já ha muito tempo me não via, e não queria deixar-me vir embora.

-- Em cuidados estavamos, sim... mas não só pela Thereza; por todos,... por causa do mau tempo.

-- Sentae-vos -- dizia Amalia para o marido e para o sobrinho.

Achavam-se ambos de pé: tomaram logar á volta da brazeira.

-- E então o sr. D. Luiz?

-- Não quiz vir.

-- Na cosinha!... -- exclamou Amalia -- Até parece mal. Vou tiral-o de lá.

Foi e voltou a boa da mulher só. Luiz nem á mão de Deus Padre queria sahir d'ali. Não lhe importava com a pingadeira gordurosa do fumeiro. O fato, dizia elle, já estava perdido.

-- E' mesmo uma creança!-- commentava João -- Um bonissimo rapaz! Se os primos seriam capazes de se ir sentar entre creadagem?!

-- E como vae elle no seu novo cargo? -- inquiriu D. Leonor.

Afinal D. Duarte tomára o alvitre de João Gil, confiara-lhe a administração da casa. Elle era muito novo, é certo, mas tinha a capacidade precisa para bem se desempenhar das funcções que n'este cargo lhe incumbiam. Consultando com um e outro, ouvindo sobretudo João Gil, devia vir a fazer muito.

-- Vae bem -- disse lisamente João Gil -- Faz por ir bem. Não exhorbita, não resolve levianamente, não tem pressas... e é assim que váe direito. Do que eu ainda não estou bem voltado a mim, é do pasmo que me causou a resolução do sr. D. Duarte. Quem o ouvisse, como eu o ouvi, meia duzia de dias antes!... Lembra-se, sr. padre David?...

O sr. padre David respondeu com um breve meneio de cabeça á pergunta de João Gil. Lembravase muito bem. Tinha ainda muito viva na idea a scena de que o bom do homem lhe deu conta n'aquella memoravel tarde em que o encontrou no palacio a monologar.

-- Devia ter vindo cinco minutos antes, sr. padre David, para vêr a soberba de pé e encarnada! -- dissera-lhe por preambulo da narrativa o seu amigo João Gil.

Se elle se lembrava!

-- Mas é que o sr. Gil conhece mal meu irmão -- observou D. Leonor -- Se o conhecesse melhor, havia de sêr mais indulgente para com elle Creia! Meu irmão é um homem de repentes, mas um excellente caracter. A doença, sobretudo, fal-o mau, inconsiderado. O sr. sahiu, e elle ficou, acredite, repezo d'algum mau modo que teve. Disse-me a mim que o seu conselho era de amigo, antes que tudo de homem pratico. O que a elle lhe parecia, era que o Luiz, por creança, ainda não tinha prestimo para o encargo para que o sr. Gil o indicava. E já que n'isto falámos, deixe-me-lhe dizer com sinceridade que elle se tem encommodado muito por o sr. d'então para cá não tornar a vizital-o, como anteriormente fazia, e pelo que elle lhe era gratissimo, e continua a sêr. Não é verdade, sr. padre David?

-- E' certo, minha senhora. Assim o tenho eu dito ao João. Mas elle...

-- Ha-de lá ir! Ha-de lá ir mesmo amanhã -- disse Amalia -- Não vaes, João?...

Ella pedia. João ficára molestado dos modos e palavras de D. Duarte, mas não lhe queria mal. Um boccadito de orgulho é que o prendia. No emtanto, chegadas as coisas a este ponto, emfim, cedia. Lá iria sem reservas, como se nada tivesse havido, fazer a D. Duarte uma vizita no dia seguinte.

Esta sua resolução causou a todos viva alegria. Thereza, que regressara á sala, e tantas vezes fôra portadora de cumprimentos, que eram satisfações, do fidalgo para o pae; Izabel, que estimava João Gil do coração, e lamentava de toda a sua alma o inccidente que o afastára do seu solar paterno; o sr. padre David, que era a paz e a bondade em pessôa; D. Leonor e Amalia que estimavam vêr contente o desditoso velho; Luiz e Pedro, cada qual no seu proprio interesse e no interesse da concordia de todos, saudaram com explosões de alegria este vencimento de batalha com que sem desaire, antes com muita honra, vencido e vencedor se reconciliavam.

Luiz quiz abraçal-o. Quando lhe chegou aos ouvidos lá na cozinha, o echo da promessa, veio por cima de creados e de tudo o que lhe empecilhava o caminho expressamente abraçar o seu amigo.

-- Viva o pai Gil! -- bradava elle -- Viva!

-- Viva! -- gritou de lá de dentro atroadoramente a creadagem, que parecia falada para o caso.

-- Viva tambem a mãe Amalia! -- tornou elle.

-- Viva! -- repetiu voz em grita a creadagem agora toda apinhada á porta da sala.

-- Mas que é isto?. .. que doidice vae n'esta casa?... -- dizia João Gil atrapalhado.

-- Viva tambem o sr. D. Luiz! -- berrou com o seu vozeirão de baixo profundo um dos moços reunidos á porta

-- Viva! -- repetiram todos os camaradas do trabalhador.

-- Estão doidos! Esta gente está doida! -- dizia João Gil para a mulher, muito alegre, muito commovido -- Obrigado, rapazes: obrigado cachopas. Ora, ora, ora... Já me parece que sou eu o deputado ás côrtes. Depois, na villa, tambem assim havia vivorio. Mas é verdade que tambem havia vinho. Era para quem o queria!

-- E tambem agora o ha-de haver!... -- disse Amalia -- Victoria!... toma lá a chave... Váe á adega e traz a quarta cheia de vinho. Mexe-te. E' p'r'a ceia de todos vocês. O Bonifacio que o reparta.

Esta liberalidade de Amalia provocou novo vivorio. Os quatorze ou quinze serviçaes da casa desataram n'um berreiro ensurdecedor.

-- Viva a nossa ama!

-- Viva!

-- Viva a senhora Therezinha!

-- Viva!

-- Viva o sr. padre David! Vivam todos!

-- Vivam!... Vivam!...

LIX

O imprevisto

Mercê da bondade de D. Leonor, Pedro não era unti estranho, uma simples vizita, em casa de D. Duarte. Era mais: era como uma pessoa de familia: contava-se com elle para todas as festas intimas, para todos os divertimentos, para todos os actos solemnes. O seu logar á mesa e nas salas era junto dos filhos do fidalgo. E foi assim, á força de o ver e tratar, que o illustre ancião acabou por dedicar-lhe uma estima verdadeiramente paterna.

Primava o rapaz em ser merecedor d'este assignalado obsequio, e era-o. Humilde, respeitador, docil, a sua conducta nada deixava a desejar. Uma breve indicação, uma ligeira advertencia, brioso e fino como elle era, bastava para chamal-o á ordem, se por acaso impulsos proprios de seus verdes annos o queriam arredar do caminho por que fazia carreira.

Era, não obstante, Pedro, um genio folgazão, uma alma alegre. Sério quando se tratava de assumpto sério, em caso de folia ninguem lhe levava a palma. Ninguem melhor que elle fazia a damnaçao d'um caloiro ou as delicias d'um condiscipulo. Tudo levava a rir, e de tudo tirava partido: circumstancia, esta, que lhe valeu o cognome typico de Faz-farinha.

Havia de estar toda a rapaziada sorumbatica, morta de aborrecimento: em o Faz-farinha apparecendo, tudo se transfigurava, tudo se punha alegre. Não alegre d'essa alegria feita de palavrões e momices, em que muitos rapazes são ferteis: mas da alegria innocente, sem refolhos, sem maldade, que certas almas teem o condão de possuir e communicar a flux ás creaturas que as cercam: almas privilegiadas, a modo que feitas de sorrisos e graça, ao pé das quaes não ha tristeza que resista, gravidade que se aguente.

Quasi de repente, porém, Pedro mudára. De despreoccupado, que era, tornou-se apprehensivo: a sua encantadora jovialidade cedeu logar á mais recolhida tristeza: quando sorria, o seu sorriso não era aberto, franco, como outr'ora: era contrafeito, como sol por entre nuvens, a modo que coado por entre lagrimas.

Notou este facto João Gil.

-- Que diacho tens tu?... -- perguntou-lhe elle então um dia -- Andas doente?... Tens alguma coisa que te dê cuidado?...

-- Não, senhor: pelo quê?

-- Déste em te não rir, em não falar!...

Pedro fez por disfarçar o seu estado d'alma tomando ares folgados.

-- Ora essa! Então é força que eu me ande sempre a rir?... E porque me não rio, segue-se que ando doente?...

-- Eu sei lá! Por não teres que comer é que certamente não é. Louvado Deus a minha casa não é das mais pequenas, e sêr ella minha, e ser tua, tudo é um.

Esta nova allusão, muito clara, muito directa, do nosso homem aos seus velhos planos de casamento de Thereza com Pedro, fez com que o rapaz, por ter mão no assumpto, se désse pressa em atalhar á conversa procurando fuga.

-- Felizmente nada tenho que me dê cuidado. O que sinto é frio. Vae um tempo desabrido. Meu tio não sente frio?

-- Algum. Mas ha-de vir mais.

-- E chuva?... Teremos chuva ámanhã?...

João Gil examinou os astros.

-- Não me parece. Porquê?

-- E' que queria ir a Cellorico, se não chovesse. Precisará do cavallo?

-- Não: em querendo, manda-o sellar.

-- Bem. N'esse caso vou tratar de pôr em ordem uma papellada que tenho de levar. Até logo.

E sahiu. Poz-se na rua promptamente a prevenir que não viesse o tio, d'esta feita, com a muito expressa declaração de que o queria ver sem demora casado com Thereza.

Que o receio d'esse inccidente andava elle de ha muito a temer e a evitar! Como o rapaz se não dava por entendido a respeito das intenções do tio, tantas vezes implicitamente manifestadas, de prever era que o tio uma bella hora explicita e cathegoricamente lh'as expozesse: conjunctura que havia de o pôr em graves embaraços.

Que diria elle então ao bom do tio?... Que não podia casar com Thereza?... Que amava outra mulher, á qual o seu coração pertencia inteiro?...

Era positivamente dar a beber ao excellente homem um veneno mortal.

Via-se, estava averiguado: o ideal de João Gil era casar Thereza com Pedro. Elle vinha afagando esse sonho desde tempos antigos. O golpe do desengano, a desillusão da sua querida phantasia, havia de ser-lhe doloroso em extremo.

Como acalmar a mais que provavel mágoa, o desespero de João Gil?... informando-o de que Thereza amava Luiz?...

Seria lançar polvora ao lume, complicar, tornar excessivamente cruel a situação de todos. Não faltariam então recriminações, desesperos, lagrimas. João Gil não tomaria a sério o namoro de Luiz. Entre as duas familias havia de dar-se forçosamente um conflicto de consequencias que Pedro nem ao de leve queria entrevêr. O orgulho d'uns e o brio d'outros havia de chocar-se, e d'esse choque surdiriam Deus sabe que fatalidades.

Ora a previsão d'estes successos é que trazia Pedro demudado, triste, apprehensivo.

Nunca! Nunca elle entrevira a borrasca que ora via prestes a desencadear-se. Fôra o tio que lh'a mostrára apoz o inccidenie occorrido entre elle e o fidalgo no palacio. E então, encarando-a, o coração se lhe ennevoára d'uma tristeza tal, que nada era capaz de a desvanecer.

-- E' um homem orgulhoso, que pensa que os outros homens não são feitos da mesma materia que elle -- dissera então João Gil -- O espirito da epocha modificou-o, mas não lhe estirpou do sêr o que eu chamarei... instincto de raça. Tem garras como o gato! Assanhando-se, as garras sahem-lhe fóra das luvas, Agatanhou-me: fiquei-lhe com medo, não quero nada com elle. Homens como eu, homens vindos ao mundo como cogumellos, nascidos do pó, embora por titulos proprios muito dignos, não teem direitos eguaes aos homens, como elle, creados debaixo de tectos blazonados. Nós somos a ralé, elles a fina flor da sociedade. Estimam-nos, quando nos estimam, por complacencia, por favor ou por hypocrisia: no fundo detestam-nos. Não podem questionar comnosco!

Este arrazoado, em parte injusto, filho do despeito, e em parte critico, filho da razão, chamára Pedro ao mundo das realidades. Até ali elle andára pelas regiões do ideal.

Quem era Pedro? Que titulos possuia elle para pretender uma alliança com Izabel?

D. Duarte, inquestionavelmente, estimava-o, dispensava-lhe uma consideração notavel. Mas poderia o rapaz contar com a acquiescencia d'elle aos seus desejos?... Não se revoltaria o fidalgo, não o mandaria pôr fôra da porta pelo ultimo dos seus lacaios, ao surprehender-lhe os planos?...

Que fatalidade a d'este seu amor! Como Pedro podia ser feliz se tivesse dedicado o coração á prima! Quantas victimas não ia fazer o seu tresloucado devaneio!...

E era Thereza tão gentil, tão adorável!...

Agora é que elle bem tinha reparado n'ella. Que perfume de graças, que mimo de physionomia, que porte senhoril o seu!... E se elle a podesse amar?!

Mas não; impossivel. Sondou-se, poz-se á prova. Amava-a, sim, mas como se ama uma irmã, não como se ama uma noiva. Izabel possuia todo o seu coração: Izabel é que era o sol da sua existencia, o idolo da sua alma. Foram para ella os seus primeiros sorrisos, seria para ella o seu derradeiro suspiro.

E que importava que Pedro a podesse amar? O coração de Thereza pertencia a Luiz, conquistara-lh'o o filho de D. Duarte. Pedro bem o via: ella não podia encarar com Luiz sem manifesta perturbação de jubilo: os seus olhos illuminavam-se de luz sobrenatural quando os olhos de Luiz a fitavam.

Em taes circumstancias, pois, tomára Pedro a resolução de fazer quanto possivel por se retrahir. Que a marcha dos acontecimentos se não precipitasse por culpa sua! Parava pouco na aldeia, ia raramente ao palacio, evitava a todo o transe encontrar se a sós com o tio.

Izabel, porém, não se conformava com taes auzencias, com o retrahimento de Pedro. Andava desasocegadissima, n'uma inquietação dolorosa. Rebates de ciume, suspeitas de abandono, fundas preoccupações de muito vagos presentimentos, lhe torturavam o coração. Anciava ter uma breve entrevista com elle para o forçar a explicar a sua extraordinaria attitude.

Foi portanto com infinita alegria sua que ella uma tarde, ao entrar com a tia em casa de Thereza, soube d'esta que o rapaz estava sósinho no escriptorio do tio a trabalhar. Dirigiu-se logo para ali.

-- Ditosos os olhos que o vêem, meu senhor! -- disse-lhe ella mal o avistou.

O rapaz alvoroçou-se todo com a surpreza.

-- Oh! pois és tu?!...

-- Vim encommodar-te?... Queres que me retire?...

Izabel ia alegre, muitissimo alegre: mas de subito atacou-a uma commoção violenta, que lhe deu para chorar.

Pedro correu para ella, afflicto. Acabrunharam-o pensamentos crueis: quiz ver nas lagrimas da sua amada a denuncia d'algum triste acontecimento...

-- Porque choras?... Oh! fala!...

Soluçante, oppressa por dôr intensa, então, a rapariga rompeu em murmurosos queixumes.

-- D'antes... eras como a minha propria sombra; apparecias me em toda a parte; tinhas sempre um sorriso para os meus olhos, uma palavra terna para o meu coração: agora... que differença, que contraste!... Já não sou eu o teu amor, a tua adorada noiva, como tu d'antes me chamavas?... Foram jura fallaz os teus protestos d'amor?... Amas outra?... queres esquecer-me?... E' por isso que me evitas, que me não appareces?...

Pedro fitava-a com infinita ternura, n'um silencio religioso. Dir-se-ia que tinha medo de perturbar o rhythmo da musica que a voz de Izabel lhe cantava ao coração.

-- Oh! sim, quizera esquecer-te... -- disse elle emfim com profundo sentimento de amargura -- Mas tranquilisa-te: arranca da alma o espinho da duvida. Amo-te! Nenhuma mulher poderá arrebatar-te o meu coração. E's tu, e só tu, o sol da minha vida, o meu querido e unico amor, a minha adorada noiva!

E tomando-lhe aos labios a mão pequenina, depoz n'ella um beijo ardente.

Izabel fixára em Pedro um olhar profundo. Parecia querer-lhe lêr no fundo da alma. As palavras d'elle, repassadas de infinito carinho e de infinita amargura, tinham-n'a galvanisado.

-- Quizeras esquecer-me... pelo quê?! -- perguntou ella.

-- Porque d'ahi resultaria um grande bem, talvez... -- respondeu Pedro abatido.

No olhar espantado de Izabel esboçou-se nova pergunta, que os seus labios tiveram medo de proferir.

-- Oh! sim, sim... -- disse-lhe arrebatadamente o rapaz -- E' que a minha paixão céga por ti está desafiando um acervo de provações inauditas. Conheces o genio de teu pae, e has de ter comprehendido o de meu tio, e as intenções d'elle... Vês?... Ahi está o abysmo que nos rodeia... a ti, a mim, a teu irmão, á Thereza... a todos!

Izabel sentiu-se desanimar: sentou-se de novo, e occultou nas mãos o rosto. As lagrimas, agora, corriam-lhe a quatro e quatro pelas faces mimosas. Ora se lhe affiguravam desculpas especiosas as razões de Pedro, Dra. essas razões se revestiam da mais poderosa verosimilhança.

Houve um momento penoso de silencio.

-- Izabel!... -- disse emfim Pedro -- E' forca resignar'mo-nos a esperar que venha uma aberta de fortuna bafejar-nos. Uma indiscripção, qualquer acto irreflectido, pode trazer-nos amarguras sem fim. O feitio de teu pae, e o genio de meu tio, difficilmente poderão conciliar-se. Podes?... Esquece-me, despresa-me... Não te ficarei odiando por isso, Izabel!... Não queres?... não podes?... Então resigna-te, espera...

N'este momento Izabel ergueu-se de chofre. Transfigurára se. As lagrimas seccaram-se-lhe.

-- Ah! entendo!... -- esclamou ella desvairada pelo ciume -- Perjuraste!

Pedro ficou allucinado.

-- Oh! não!... juro!... é falso. Amo-te apaixonadamente, perdidamente, como se não pode amar mais -- exclamou elle com toda a vehemencia da sua alma -- E agora -- disse recahindo na maior prostração -- vae, segue...

E franqueou-lhe então o caminho que acabava de lhe embaraçar.

Izabel, repentinamente espezinhada de remorso, lançou-se nos braços de Pedro.

-- Perdão!... perdoa-me!... -- supplicou ella.

Pedro enterneceu-se, acariciou-a.

-- Que desgraça, este nosso amôr, Izabel!... Que tristeza!... Quem poderá convencer teu pae de que eu mereço o teu affecto?...

-- Eu! -- respondeu a ponto uma voz.

Era D. Leonor, que da porta da sala ouvira e vira tudo o que acabava de se passar ali, e que emfim intervinha.

O rapaz recuou, como aterrado da imprevista apparição. Izabel correu doida de alegria a beijar a tia.

-- Oh! a minha querida tia!...

-- Deixa-me, louquinha... -- disse-lhe D. Leonor com infinita meiguice.

E dirigindo-se a Pedro, que muito longe estava de a considerar assim bondosa, disse-lhe:

-- Eu é que hei de convencer meu irmão de que tu és digno do affecto d'esta creança. Comprometto-me a isso, Pedro. Izabel sebrá tua esposa.

LX

Uma tempestade

A's ultimas palavras de D. Leonor succedeu uma voz que foi como grito de phantasma, ou grasno de ave agoureira, em meio de pacifico rebanho.

-- Bravo! Parabens aos noivos!...

Era João Gil, que vindo muito naturalmente ao escriptorio, sem querer ouvira D. Leonor garantir a Pedro a mão de Izabel.

Sorria-se, mas era triste o seu sorriso, repassado de amargura o metal da sua voz, á qual elle pretendia dar um colorido alegre, que por forçado mais plangente soava.

A extraordinaria surpreza deixara-o na mais lastimosa prostração.

-- Estava ahi?... -- poude a custo murmurar D. Leonor.

-- Noivos?!... Que é isso de noivos? -- perguntaram a um tempo Amalia e o sr. padre David, que vinham tambem entrando na sala, seguidos de Thereza.

-- Olha!... -- limitou-se a dizer João Gil apontando para Izabel e Pedro -- Está resolvido o casamento d'elles. Foi agora mesmo aqui resolvido!

Os olhos de Amalia procuraram inquietos os olhos de D. Leonor.

-- E' verdade, Amalia, é -- respondeu áquelle mudo interrogatorio a excellente senhora, que principiava a retomar posse da sua abalada coragem.

-- Ora essa!... -- exclamou Amalia.

E como se receasse cahir sob o dominio d'uma vertigem, sentou-se.

-- O que tem mais graça -- observou João Gil com suspeito ar de riso -- é resolver-se o casamento em minha casa!... Por esta é que eu não esperava!

Pedro refugiara-se na penumbra da sala, a um canto: e Izabel a outro canto, amparada em Thereza, chorava.

O sr. padre David olhava para uns e outros, via-os a todos afflictos, compromettidos, e não sabia o que havia de dizer.

-- Ora essa! -- exclamou de novo Amalia.

-- Desagradou-lhes a novidade, pelo que vejo? -- aventurou D. Leonor.

-- Essa é bôa!... De modo algum -- apressou-se a responder João Gil-- E nem havia de quê! Pelo contrario.

Fazia-se valentão, fingia-se homem satisfeito.

E como a querer provar que realmente dizia o que sentia, começou a dar voltas pela sala e a falar sem tom nem som.

Falou do tempo, queixou-se das geadas, dirigia a palavra ora á mulher, ora ao bom do padre, ás vezes a D. Leonor.

-- Que tal está a tua alminha!... -- dizia comsigo Amalia, observando-o.

João Gil, quanto mais se esforçava por compôr a situação, por disfarçar o seu pezar enorme, mais a complicava, mais se denunciava.

-- Já sete hora?! -- exclamou elle d'improviso reparando no relogio -- Como o tempo foge!... Parece que ainda agora anoiteceu.

E logo, voltando-se para a mulher...

-- Vê se dás ordem á ceia! Olha que se faz tarde! Querem vossas excellencias fazer-nos a honra de cearem comnosco? -- disse elle para D. Leonor e Izabel -- Sem ceremonia!... ceiem!... Ou tu, Amalia, não tens coisa que se offereça?... Filha!... ajuda tua mãe... As senhoras dão licença... Vae vêr se está posta a mesa...

D. Leonor via distinctamente que João Gil estava magoadissimo, em lucta com um despeito cruel. Resolvera deixal-o.

Havia de lhe passar aquella agitação. Por agora convinha poupal-o a qualquer inconveniencia filha do seu estado febril.

Tratou, pois, de pôr os seus abafos para sahir.

-- Então não ceia comnosco, sr.ª D. Leonor?... Não nos quer dar essa honra?... -- instou João Gil por méra formalidade.

-- Hoje, não -- disse-lhe D. Leonor -- Mas hei-de cá vir um dia, e breve, cear comsigo, descance. Havemos de vir todos; inclusivé meu irmão. Ou não nos quer cá?...

-- Oh! minha senhora!...

João Gil cahira um pouco em si. Afinal D. Leonor não tinha culpa do occorrido: do sobrinho é que elle tinha que se queixar.

Passou, pois, a emendar a mão; a tratar D. Leonor primorosamente. Até ali pouca cára lhe déra.

-- Não os quero cá!?... -- exclamou elle com sincera amabilidade -- Sempre, sr.ª D. Leonor! Vossas excellencias são sempre bemvindas a esta casa.

D. Leonor apertou-lhe effusivamente a mão.

-- Muito obrigado: sei isso... Tambem vem, sr. padre David?...

-- Eu fico, sr.ª D. Leonor -- respondeu o sacerdote, que percebera que D. Leonor tinha empenho em que elle ficasse -- Fico para cear. O João, a mim, não me offereceu a ceia, mas emfim...

-- Vem, Izabel, despede-te -- disse D. Leonor para a sobrinha, que falava com Thereza.

Izabel começou as suas despedidas.

-- Boa noite, sr. padre David: boa noite, sr. João...

João Gil como que despertou d'um sonho em que se deixára mergulhar.

-- Ah! boa noite, sr.ª D. Izabel. Desejo-lhe mil venturas, um noivado felicissimo!...

-- E o Luiz?... o mano?... -- perguntou Izabel.

-- Ahi vem elle -- disse Amalia -- Tem estado á lareira, na cozinha.

-- Na cozinha, a ouvir contos -- accrescentou o rapaz apparecendo.

Vinha alegrissimo. Ignorava absolutamente o que acabava de occorrer ali na sala.

-- Oh!... Que bicho te mordeu? -- perguntou elle reparando na cara contristada de Pedro.

-- Menino!... estamos á tua espera! -- dizia-lhe lá do corredor a tia.

-- Lá vou, lá vou já... Que tem o Pedro, sr. Gil?...

-- Eu não sei.

-- Menino?...

-- Lá vou, minha tia; lá vou. Adeus, sr. prior: adeus, sr. João... Boa noite.

E sahiu, emfim.

João Gil, agora, passeava, cabisbaixo, mãos atraz das costas: o sr. padre David entretinha-se a examinar uma velha miniatura que estava sobre o bufete que lhe ficava proximo: Pedro continuava mirrado no refugio do canto a que se acolhera.

Reinava um silencio sepulchral: ninguem ousava falar.

-- Então sénte-se com appettite á ceia, sr. padre David? -- perguntou João Gil.

-- Assim, assim...

- E tu?... -- perguntou elle dirigindo-se a Pedro.

Era a provocar conversa. Arrebentava se não falasse, se não desabafasse...

-- Não tenho vontade nenhuma -- disse lisamente o rapaz.

-- E' da alegria, que tambem enche a barriga -- advirtiu João Gil em ar galhofeiro.

E indo á porta, disse para dentro:

-- Amalia! olha que o sr. prior ceia comnosco. Manda augmentar a panella, bem sabes...

Depois, voltando costas á porta, proseguiu:

-- A mim é que a alegria me não tira o appettite. Genios! Estou com uma vontade de comer que nem vejo.

Deu João Gil meia duzia de voltas pela sala, ao acaso, como quem anda a aquecer os pés, e parando em frente de Pedro atirou lhe a sua primeira granada.

Estoirava se não desabafasse. O que elle queria era desabafar. A paixão que lhe invadira o animo tinha-o em torturas.

-- Não sei mas é como não foste cear a casa do fidalgo, de teu sogro!... Elle sempre por lá havia de ter mais appettitosa pitança que nós. Casa fidalga, cozinheiro de primeira ordem... E' que provavelmente esqueceram-se de te convidar, e tu por acanhamento... Mas é fazeres-te corrente!

Pedro mordeu os labios.

-- Diga alguma coisa, sr. prior!

-- Que hei-de eu dizer, homem?... Que Deus Nosso Senhor nos dê paciencia.

-- Meu tio tem uma alma tão generosa, e tem sido sempre tão bom para mim,... sempre! em tudo! que realmente estranho agora as suas ironias -- disse Pedro placidamente.

-- Ironias?!... -- repizou João Gil -- Ora passa bem! Vamos nós á ceia, sr. prior?...

-- Vamos, vamos... -- disse prompto o sr. padre David, que anciava suffocar o conflicto que se lhe ante'olhava imminente.

-- Ainda não está na meza -- disse Amalia, que passava perto.

-- Que demora! E eu com uma fome!... Até já nem vejo, de fraqueza!

-- De tua mãe, tens tido noticias, Pedro? -- perguntou sua reverendissima.

O intuito do bom do padre era abrir conversa que distrahisse: mas, por fatalidade, fizera uma pergunta que levantára a labareda do conflicto.

-- Ah! a proposito -- exclamou João Gil presto. Chegára emfim a opportunidade d'elle cravar na alma do sobrinho as garras do seu despeito. Fervia em anceios de o tundir, de o humilhar, de o fazer passar tão mau boccado, como elle o estava fazendo passar a si, Allucinara-o, tornara o mau, inclemente, a dôr que o attingira em pleno coração.

-- E' sempre bom prevenir! -- disse elle -- Quando escreveres a tua mãe participando-lhe o teu casamento, dir-lhe-has, a essa pobresinha de Christo, que até á morte tem logar á minha meza. E' de presumir que o fidalgo não goste de sentar á sua meza quem ha vinte e dois annos tinha logar á meza dos seus creados, e então manda-m'a para cá, que tu nem precisas do meu caldo, nem da minha companhia, mas bem póde sêr que ella venha a precisar do meu amparo e da nossa amizade. E' pobresinha, não admira.

Pedro sentiu-se profundamente aggravado. As lagrimas espirraram-lhe dos olhos a quatro e quatro, grandes como avelãs; as faces tingiram-se-lhe de purpura. Desatou n'uma convulsão de choro e soluços que fazia dó ouvir-se.

-- Ah! E' de mais! E' de mais! -- exclamava elle no auge da sua amargura. -- E' de mais!...

E preza de dôr incomparavel, sahiu porta fóra rapido como uma flexa.

João Gil, então, como que accordando d'um sonho mau, espavorido da sua conducta, aterrado como se os gritos do rapaz fossem um anathema do ceu, deixou-se cahir abandonado sobre uma cadeira, o rosto occulto entre as mãos.

-- Ah! fui um scelarado, um mau honaem, um homem abominavel! -- murmurou elle.

N'este instante entrava Amalia sincera e profundamente afflicta.

-- O' homem! -- que disseste tu ao pobre rapaz, que elle vae como se o matassem?... Pois então porque elle não casa com a tua filha... Valha-te Deus, João! O coração não quer peias, sr. prior.

-- Com mil raios! -- gritou João erguendo-se enfurecido contra si proprio.

E correu á janella.

-- Pedro!... Pedro!... -- clamava elle -- Pedro!...

Respondeu ás suas vozes o soturno soliloquio dos ventos. Pedro ia longe.

-- Pedro!... Pedro!...

Nem uma voz a responder-lhe.

-- Ah! fui um scelerado! -- gritou elle sahindo nas pégadas de Pedro -- Fui cruel... um scelerado!

Então, Amalia, fixava olhos lastimosos na filha, que chorava em silencio, e a quem o sr. padre David dizia com a sua voz de homem que não é cá d'este mundo:

-- Não chores, minha filha. Ha no ceu perdão para todos os arrependimentos sinceros, premio para todas as virtudes, remedio para todas as amarguras. Não chores.

LXI

Compromisso do João Gil

As boas relações entre João Gil e o fidalgo estavam reatadas. O illustre velho recebera o honrado lavrador do modo mais captivante. Levára a sua amabilidade ao ponto de dar-lhe satisfações do seu procedimento, que desculpou como poude.

Houvera, emfim, um mal entendido, asseverou D. Duarte. Se as suas palavras não tinham sido fieis á expressão das suas ideas, ou se, em summa, o seu mau humor as tinha desvirtuado, d'esse facto não era elle justamente responsavel. Impressionara-o mal a indicação de Luiz para a direcção dos negocios da sua casa, porque elle julgava o filho menos competente que ninguem para taes funcções. Conhecera-o até ali como um estouvado, um inutil, incapaz de trabalhos sérios. E d'ali o elle dizer a João Gil que não podiam questionar: porque effectivamente convicções não se discutem, e a sua convicção era aquella. Mas a prova provada de que o seu alvitre o não molestou, lhe não repugnou, é que, a titulo de experiencia, é certo, mas sem constrangimento das suas opiniões, entregára a administração da casa ao filho, ao qual por fim, como João Gil havia de saber, definitivamente investira no cargo, porque com grande surpreza e maior contentamento o viu regenerado nos seus costumes e habitos de vida.

De maneira que João Gil ia todos os domingos e dias sanctificados ao palacio, como d'antes, cumprimentar D. Duarte, e ainda lá tinha estado na vespera do triste incidente, com Pedro: mas por causa d'esse incidente, que o tinha feito ser menos delicado para com D. Leonor, o que elle muitissimo sentia, resolveu lá voltar, como em acto de satisfação, na quinta feira que se succedeu ao desacato. E foi, declarando logo que era á sr.ª D. Leonor que ia cumprimentar.

Conduzido para a sala, ahi lhe appareceu quasi acto continuo a excellente senhora, que o recebeu com a maior e mais lisa affabilidade.

-- Uma vizita hoje do sr. Gil?!... Bello! Então como vae?... que ventos o trouxeram por cá?... -- exclamou ella.

-- Os meus peccados, senhora: o pezar de não ter ante-hontem tido a precisa serenidade para ser justamente correcto. Vim pedir a vossa excellencia que perdoasse as minhas faltas.

D. Leonor tranquilisou-o. Os seus modos, o seu sorriso de santa, as suas palavras, deram-lhe alma.

-- Ora, ora... Mas em nada foi incorrecto! Não me lembro! Estimou-me sempre tanto!... Em todo o caso devo dizer-lhe que folgo com a sua imaginaria culpa, porque me é sempre muito grato vel-o n'esta casa. A mim e ao mano; a todos! E olhe que eu já o esperava.

-- Sim?...

-- Esperava, creia.

-- Então...

-- Não, senhor! Não, senhor! Não tenha apprehensões. Não era porque eu estivesse muito ou pouco melindrada, e fiasse dos seus sentimentos que viria dar-me uma satisfação. Repito que não tinha de que a esperar. E' simplesmente imaginaria a sua culpa, torno a dizer-lhe. Esperava-o porque me disseram que o sr. vinha cá.

-- Sério?!

-- Acredite. Disse-m'o uma pessoa.

-- Tem graça! Mas eu não o disse a ninguem.

-- Veja lá?!

-- Quero dizer; ha um instante...

-- ...Disse-o a meu sobrinho?

-- Justamente.

-- Pois ahi tem quem me disse que o sr. vinha cá hoje: foi o Luiz, agora mesmo.

João Gil não poude conter uma exclamação extraordinaria.

-- Ai, o grande velhaco!... Prometteu-me segredo!... Foi em segredo que eu lhe disse que vinha cá!

-- Veja o sr. que homem para segredos!

-- Ora o sr. D. Luiz, o sr. D. Luiz!... Fico sabendo que elle não é homem para segredos.

-- Conforme... Interessando-lhe guardal-os...

-- Nada. Isso sim!... Não é homem para segredos -- contrariou João Gil -- Aquillo é uma alma sem malicia: o que tem no coração, tem-o nos labios. Não tem mesmo malicia nenhuma!

-- Mas que grande conceito em que o sr. o tem!

-- Tenho, não ha duvida. E' um bello caracter, uma alma simples, boa.

-- E quanto a trabalho?... elle vae bem?... Não virá a cançar?

-- Hum! Não me parece. Antes creio que elle está cada vez mais influido n'elle. Gosta evidentemente de andar por um lado e outro a dar ordens, a fiscalisar. E' um genero de vida, este, que a meu vêr elle muito aprecia. Distrahe-se, recreia-se, gyrando pelo campo. Inda eu um dia d'estes disse a minha mulher: «Está-me desforrando completamente do mau boccado que o pae me fez passar; está-me justificando do juizo que eu fiz d'elle.» E ainda bem! Ainda bem, porque a vida que elle levava... sempre de passeio... não é vida que convenha a ninguem. Um homem deve ter em que se occupar para sêr feliz. A completa ausencia de cuidados, deve tornar aborrecida a existencia. Depois, esta é a verdade, a ociosidade é inimiga da virtude.

-- Sim, senhor!... Pois bem folgo eu em saber que o Luiz merece assim os seus elogios.

-- Merece. E' um excellente rapaz. A ociosidade podia perdel-o: o trabalho ha de amparal-o.

-- Sabe o que lhe digo, sr. João?... Foi um milagre elle dedicar-se ao trabalho!

-- Milagre, não direi; mas fortuna, foi. Ninguem cuida como nós proprios d'aquillo que nos interessa.

-- Ah! Foi milagre, foi -- insistiu intencionalmente D. Leonor -- Ali houve intervenção de santa. Oh, se houve milagre!

-- Talvez, sim -- disse João Gil como quem percebia onde queria chegar o dito de D. Leonor -- Talvez... E agora, para assentar, o que elle deve fazer é casar-se, que foi o que eu ha dias lhe aconselhei.

-- Ah, sim?!...

-- Em tendo familia propria ha-de perseverar melhor. E está uma linda senhora, a prima Alexandrina! Uma linda senhora!

-- Quando a viu?

-- Vae para oito dias. Vi-a, falei-lhe, e falei igualmente ao pae, ao sr. D. Antonio, que me esteve pedindo informações do sr. D. Luiz. Eu lá lhe disse: «Agora, sim, não tem vossa excellencia tempo a perder, visto o intento. E' casal-os, que hão-de vir a sêr muito felizes ambos; a sr.ª D. Alexandrina porque terá por marido um homem de bem, sério, capaz de augmentar, que não de reduzir, as rendas do casal; e o sr. D. Luiz porque leva uma senhora a todos os respeitos digna». E é a verdade!

Este falar estava interessando ao vivo D. Leonor.

-- Pois sim. Mas quem sabe!... Quem sabe as tenções do Luiz! -- exclamou ella a palpitar, a provocar conversa.

Tudo quanto João Gil dissesse agora, lhe convinha tomar a rol para considerações ulteriores.

-- Ora essa! -- exclamou João Gil -- melhor casamento, nem tão bom, não tem elle por estas redondezas onde o faça. Ha muita igualdade, muitas vantagens de parte a parte.

-- Contou isso a meu sobrinho?... E elle que lhe respondeu, que disse?... -- inquiriu D. Leonor com mais vivo interesse.

João Gil fez tregeitos de quem não sabe muito bem o que ha de dizer.

-- Elle... ficou a modo que embaçado, como se fosse uma menina. Córou todo! As orelhas pozeram-se-lhe da côr do pimentão: mas...

-- Ah, sim?

-- Puzeram... Mas lá por dentro... Nós sabemos o que são estas coisas!

-- De certo; de certo -- concordou por conveniencia D. Leonor -- E elle não disse nada?...

-- Nem palavra!... Perguntou-me não me lembra o quê, e mudou d'assumpto. Mas nós percebemos!

-- Sim, percebemos -- tornou-lhe D. Leonor.

A provada ignorancia de João Gil a respeito das relações de Luiz com Thereza, foi-lhe muito grata.

-- E d'ahi -- proseguiu ella -- cêdo se aclararão as tenções d'elle. Eu terei, talvez, que me auzentar por algum tempo, e desejo antes de partir deixar-lhe resolvida a situação... mesmo para melhor resolver definitivamente a da Izabel... Quero casar primeiro o Luiz.

João Gil fez-se desentendido. A allusão ao casamento de Pedro alvorocou-lhe o coração. A ferida estava muito recente.

-- Então vossa excellencia deixa a nossa aldeia?

-- Ainda não é certo: mas se fôr, é por pouco tempo. Seria uma crueldade abandonar aqui meu irmão. Elle está cada vez mais rabujento.

-- Effeitos da doença!

-- Da doença, e do seu genio. Seguisse elle os meus conselhos!... Deixasse-se elle guiar por mim!...

-- Acredito que viveria mais satisfeito.

-- Mas então que quer o sr. Gil?... E' a fatalidade da nossa condicção! As mulheres são consideradas pelos homens umas cabeças ôcas.

-- Nem tudo se mede pela mesma raza -- objectou deferentemente João Gil.

-- Ora adeus! Até o sr., que pelos modos me quer fazer o favôr de me graduar em melhor conta que meu irmão... quem sabe?!... quem sabe se no logar d'elle não pensaria igualmente?!

Julgou-se João Gil constituido no dever de cortezia de não acolher bem a duvida que D. Leonor acabava de apresentar, e que era, sem elle o presumir, d'um grandissimo alcance.

-- Perdão! -- atalhou elle, pois -- Conhecendo eu vossa excellencia como a conheço, e pensando como penso...

-- Assim mesmo! -- interrompeu D. Leonor.

-- Não, minha senhora; não! -- affirmou João Gil com toda a sua ingenua sinceridade -- O que vossa excellencia dissesse, era o que se havia de fazer: o que vossa excellencia resolvesse, estava resolvido. Dou a minha palavra de honra!

D. Leonor sorriu-se.

-- Não me diga isso! Olhe que eu...

João Gil agastou-se. Elle era homem de caracter. D. Leonor, mostrando estar em duvida ácerca da sua affirmativa, magoava-lhe o brio.

-- Juro o, sr:ª D. Leonor!

D. Leonor, parecendo gracejar, tratou de lhe exigir a consideração e renovação de seu protesto.

-- Então se eu hoje lhe resolvesse qualquer causa propriamente do seu arbitrio...

-- ...Estava resolvida!

-- Veja lá o que diz?!

-- Dei a minha palavra de honra, senhora D. Leonôr! -- disse solemnentemente João Gil.

-- Ouviu, sr. prior? -- disse D. Leonor para o sr. padre David, que vinha acabando de entrar -- Ouviu o sr. Gil dar a sua palavra de honra de que se eu resolvesse qualquer negocio das suas attribuições estava resolvido?...

-- Muito distinctamente. Pelo quê?...

-- Ah! é curioso?... -- disse-lhe D. Leonor muito jovialmente, muito satisfeita -- Pois não ha-de saber!...

E com uma finura propria de senhora altamente intelligente e profundamente sagaz, fez com que João Gil e sua reverendissima fossem para os aposentos de D. Duarte recrear o velho e distrahir-se a si proprios de quaesquer preoccupações a respeito do lance que ella acabava de ganhar, e que queria fosse segredo seu.

Minutos depois, com effeito, já nem um nem outro pensavam em tal. O fidalgo, muito amavel, muito gratamente impressionado pela apparição d'aquelles homens, a ambos dirigia perguntas várias, com ambos estabelecia animado cavaco.

-- E a Thereza? -- perguntou elle a certa altura da palestra a João Gil -- Porque a não deixa o sr. vir para cá todos os dias?... Olhe que lh'a estimamos cá muito!

-- Bem sei, sr. D. Duarte. Sei que ella é cá estimadissima por vossa excellencia e por todos os seus. O que é favôr que nem eu nem minha mulher sabemos como agradecer. Mas para a mãe, coitada, não estar sempre só... Por isso é que ella mais vezes não vem.

-- E' a alegria d'esta casa! -- disse D. Duarte para o sr. padre David -- A Izabel, em a cá tendo, canta, toca, brinca,... uma loucura! Em a cá não tendo, ninguem a ouve. Até nem eu a vejo!

-- E' muitissimo boa rapariga -- disse elle voltando-se para João Gil -- E' uma creança adoravel. Eu estou em dizer-lhe que entre ella e a minha filha, hoje, já não distingo. Quero-lhe como se fosse minha filha. Que alegre, que bondosa que ella é!

João Gil sentia-se abafar de contentamento. Se elle era pae! E commoveu-se, os olhos toldaram-se-lhe de lagrimas.

-- E' verdade, sr. D. Duarte; é verdade -- murmurava elle -- E' uma joia. E' preciso que Deus me queira muito bem, para me ter dado tal filha! Tem um coração!... Nem vossa excellencia faz uma idea, sr. D. Duarte. Olhe, aquillo é um anjo, não é uma rapariga!

E, por aqui fóra, sem commedimentos hypocritas, n'um arroubamento delicioso, pae amantissimo, fez João Gil da filha um elogio que foi o regalo do velho fidalgo.

D. Duarte, porque era pae, comprehendia muito bem aquellas enternecedoras expansões do nosso homem.

LXII

Duas confissões

Reservas não teem quartel em almas generosas A reconciliação de Pedro com o tio foi prompta e completa. Era sincera a contrição da culpa, sincero e pleno devia sêr o perdão d'ella. O que se diz ou faz sob o dominio d'uma paixão irresistivel, não tem valor effectivo.

Foi, portanto, como simples sonho, como simples pezadello, a occorrencia entre João Gil e Pedro. Ao raiar da aurora do dia seguinte já nem um nem outro se sentiam oppressos pela influencia d'elle. Dir-se-ia que a luz solar tinha apagado as sombras maleficas que pela tréva da noite lhes avassalaram o espirito.

Mas, como do sonho, afinal, alguma coisa fica, assim do triste inccidente alguma coisa restava: e era, na idea de Pedro, a maravilhosa essencia dos factos; isto é, que o lio o amava ao ponto de lhe querer entregar tudo o que possuia, a filha e os bens. Porque n'isto veio a parar a sua meditação calma. E na memoria de João Gil a dolorosa certeza de que perdera para a sua filha adorada o mais estimavel dos maridos.

De sorte que, ao passo que Pedro, completamente tranquillo, de certo modo contente, confiava do tempo a cura do golpe dado no coração do tio, este, n'uma inquietação medonha, n'um desasocego que mal podia dissimular, era todo preoccupações pelo destino de Thereza.

Com quem casaria elle agora a filha?

-- Não penses n'isso, homem -- dizia-lhe a mulher -- Ha-de haver muito quem a pretenda e a mereça. Nem só o teu sobrinho é bom rapaz. E' que puzeste o sentido n'elle!... E afinal nem elle tinha inclinação por ella, nem ella por elle. Eu bem t'o dizia!

-- Mas sabias que elle namorava a filha do D. Duarte?

-- Não. Quero dizer: tinha cá minhas desconfianças de que a Izabelinha andava com o olho n'elle.

-- Nunca me disseste nada!

-- Nem era preciso. Para quê? Podia enganar-me. E que remediavas tu em o saber?... O coração n'o quer peias, João. Não te lembras de eu uma vez dizer que me parecia que o Pedro n'o queria saber da prima?... diante da sr. D. Leonor...?... lá baixo na quinta?...

-- Tenho uma ideia.

-- Pois o modo como então a sr. D. Leonor fitou os olhos em ti, quando tu disseste que eu era uma parva, é que me fez desconfiar que alguma coisa havia com a menina, e que a tia sabia do que havia. Então é que eu cahi em mim. Mas, verdade verdade, nunca mais percebi nada que me voltasse a fazer pensar em tal. Só hontem é que tudo se me representou na idea. Tanto que para mim como que não foi novidade o que aconteceu. Lembras-te?...

-- E, de mais, -- proseguiu Amalia -- a Thereza está uma creança. Dezesete annos não é edade que requeira estado. Não te encommodes, por ora, com o futuro d'ella. Está uma creanca. E nem deixes de querer bem a teu sobrinho porque elle se inclinou para outro lado! Olha que o que tem de ser, tem muita força. O casamento e a mortalha no ceu se talha. Homem! distrahe-te -- concluiu Amalia.

E João Gil queria, fazia por se distrahir; mas em vão. Não podia sêr superior ao desgosto que lhe trouxera a desillusão das suas esperanças acariciadas durante vinte annos. A couraça de que elle pretendia revestir-se para encarar sem amarguras a situação, queimava-lh'a implacavelmente o fogo da febre que lhe ardia no peito.

A phylosophia é boa para medicação alheia: para remedio de males proprios, é fraco unguento.

Com quem ia agora o bom do João Gil casar a filha?...

Este é que era o ponto fatal em que disparavam todos os raciocinios, todas as divagações phylosophicas do nosso homem.

Sim; com quem ia elle casar a filha?

Não faltam maridos, é certo: e raparigas desenxovalhadas, mesmo bonitas, e ricas, como Thereza, não apparecem aos pontapés. Raream, até. No emtanto, um rapaz illustrado, digno, de boa familia, em bonita carreira, como Pedro... onde o tinha João Gil para genro?

A paixão cegava-o.

Entretanto, muito em segredo e muito á pressa, cuidava D. Leonor em alliviar o bom homem do pezo de taes locubrações.

-- Preciso que tu me fales com o coração nas mãos -- dizia ella para Luiz -- Já te consultaste bem?... Amas realmente a Thereza?... Quer-la effectivamente para tua esposa?... Espera! não me respondas no ar. Dou-te para pensar vinte e quatro horas.

-- Já tenho pensado, minha tia -- replicou Luiz com firmeza -- Amo-a perdidamente! E' ella o meu ideal, a minha felicidade.

D. Leonor sorriu-se.

-- Mas então em cinco mezes assim te deixaste seduzir irresistivelmente?!... Vê bem no que te mettes, filho. Tu és uma creança... Olha que é um passo muito sério o que te propões dar; vae n'elle todo o teu futuro, e o futuro da pobre rapariga.

-- Bem sei. Eu não sou tão creanca como a minha tia me imagina! Tenho pensado muito, creia... Gosto da Thereza. Gosto loucamente d'ella. Havia de ser um grande desgraçado se ella me não amasse. Que mais quer minha tia que eu lhe diga?

-- E virás a ser um bom marido? Virás a portar-te como homem de bem?... Vê lá!

-- Juro que sim!

-- E já pensaste que o Gil e a Amalia, os pães da Thereza, os teus futuros sogros, não são fidalgos, nao é gente da roda em que tu tens vivido?... que é uma gente boa, mas simples?...

-- Em tudo! Em tudo tenho pensado minha querida tia. Creia! tenho pelo João Gil e pela Amalia a mais funda estima. Não os considero menos do que considero quaesquer fidalgos. Não me envergonho de os ter por sogros.

-- Em summa -- disse D. Leonor -- queres casar. Estás real e positivamente disposto a desposar a Thereza... Já encaraste todos os prós e contras d'esse acto?... Posso pedir a teu pae licença para te casares? Queres o assumpto resolvido já, ou quando?

-- Já, minha tia. Quanto antes, melhor.

-- Bem. Tratarei d'isso -- concluiu D. Leonor.

E deixando o rapaz entregue aos arroubos proprios da conjunctura, dirigiu-se á sua secretária e escreveu ao dr. Gaspar pedindo-lhe que viesse no domingo falar-lhe.

Os successos da vespera determinavam n'a a proceder sem delongas. Não era crivel que os echos do que se passára em casa de João Gil atravessassem as muralhas do palacio e fossem ter aos ouvidos de D. Duarte. Com o fidalgo pouca gente communicava, e essa era toda de confiança, discreta. Mas era natural que João Gil e Pedro, não obstante haverem-se reconciliado, andassem um tanto ou quanto desconfiados um do outro, e convinha pol'os á vontade. Era naturalissimo que João Gil, tão bom homem como era, estivesse descontente comsigo do modo porque se houvera para com D. Leonor, e convinha socegal-o. Emfim, era mais que provavel que o marido d'Amalia, e a propria Amalia, ficassem tristes e amargurados pelo annuncio do projecto de casamento de Pedro com Izabel, e convinha alegral-os. Tanto mais que a tristeza não é grande conselheira!

D. Leonor previa tudo, pensava em tudo com uma lucidez extraordinaaia. A situação era insustentavel: aclaral-a, desanuveal-a, seria para todos um bem.

Já ouvira Luiz. Restava-lhe ouvir Thereza. Ella appareceria n'aquelle dia, como de costume?... Deveria mandal-a buscar?... vêr o que fazia João Gil?...

Resolveu esperar.

As precipitações são sempre más.

Esperar, em certas circumstancias, é vencer.

N'aquelle dia Thereza não appareceu. Mas, tambem, é certo, o vento e a chuva não deixavam pôr pés na rua a quem se estimasse. O arvoredo tremia em convulcões medonhas: a chuva era a cantaros. Viria, talvez, no dia seguinte; não?...

Respondeu que sim, o tempo. Amalia, não obstante o mau aspecto do dia, quizera que ella n'uma aberta fosse ao palacio como em acto de satisfação ao modo como na ante-vespera D. Leonor fôra tratada em sua casa. O marido d'Amalia estivera pelo plano. A vontade d'um era sempre a vontade do outro.

D. Leonor recebeu-a com a sua costumada e muito intima saudação festiva, porque lhe queria bem a valer, e lancando-lhe affectuosamente o braço pelo pescoço, levou-a comsigo para o seu quarto.

Bem que sempre muitissimo acariciada pela excellente senhora, então Thereza teve como o presentimento de que alguma coisa extraordinaria se ia passar. Occorrendo-lhe, porem, que D. Leonor ia interrogal-a sobre o que succedera depois de ella se retirar de casa do pae, na vespera, entre Pedro e o tio, n'isto se repousou e creou animo.

Fechada a porta, Thereza reconheceu sem demora que o seu primeiro rebate fôra mais exacto do que no fim de contas viera a cuidar.

-- Tu sabes que eu sou muito tua amiguinha; que te quero como se tu fosses minha filha, pois não sabes?... -- começou D. Leonor.

Era affabilissimo o seu modo.

Thereza córou intensamente.

-- Diz'... Não córes. Sabes?...

Um breve murmurio foi a resposta da rapariga.

-- Bem: sabes... -- proseguiu D. Leonor -- Fala-me, pois, com confiança. Amas o Luiz?...

Lagrimas em fio, como perolas, correram pelas faces ruborisadas de Thereza.

-- Ora valha-me Deus! -- exclamou contristada D. Leonor -- Então estou-te falando tão amigamente, tão a bem... como se falasse a uma filha... e choras? Porquê? E' algum crime amar-se? Filha!...

Thereza parecia a estatua da dôr. Os seus lindos olhos afoguedos em pranto, os labios levemente tremidos por uma sentida convulção nervosa, a vista baixa, davam-lhe um aspecto adoravel, ideal.

-- Filha!... pois não me crês tua amiga?... muito amiga?...

E beijava-a, humedecia os seus labios de santa n'aquelle pranto calmo, silencioso.

-- Ora valha me Deus! Então duvidas da minha amizade?... Crês, acaso, que eu te quero mal porque amas?... Não, minha filha! Assim Deus me queira bem, como eu bem te quero a ti. Vamos!... deixa de chorar, fala...

E apertava-a ao coração, prodigalisava-lhe caricias sem fim.

Era tão amiga d'ella! Amiga como se fosse mãe!

-- Vamos!... juizinho. Eu não te chamei aqui para te ver chorar: foi para ouvir dos teus labios uma resposta. O Luiz, sei eu, está apaixonado por ti. Foi elle que m'o disse. Tu tambem gostas d'elle?...

Um olhar muito terno, muito perturbado de commoção intima, foi a unica resposta que D. Leonor obteve.

-- Eu sei tudo, minha filha -- disse então D. Leonor, que o que queria era ver a rapariga tranquilla, contente -- Sei tudo! Sei que tu estás namorada do Luiz, e o Luiz apaixonado por ti. Sei, emfim, que vos amaes,... e creio que sois muito dignos um do outro. Mas quizera que me dissesses com a tua propria voz, como se falasses á tua melhor amiga, que realmente queres o Luiz para marido: que o tens estudado, que lhe conheceste os defeitos e as virtudes, que estás, emfim, terminantemente disposta a sacrificar a elle a tua liberdade. Porque, minha querida filha, o casamento é a renuncia da mulher a todas as suas vontades, o sacrificio de toda a sua vida.

Thereza, já mais calma, quasi confiada, mas em todo o caso dominada por uma forte commoção, timida, voltou para D. Leonor um olhar cheio de ternura, e sorriu-se.

Estava prompta ao sacrificio, se sacrificio era amar, diziam os seus olhos. Agradeceria do fundo da sua alma a bondosa intercessão de D. Leonor, se D. Leonor quizesse valer-lhe, ser propicia aos seus amores, dizia o seu sorriso. Mas nem meia palavra, nem um breve monosyllabo, a deslisar-lhe dos labios!

-- Então... isso é a valer? -- insistiu a bondosa senhora -- E' firme, meditada, a tua resolução? Crês nas promessas d'amor do Luiz? Parece-te que elle fará a tua felicidade?... E se por má sina tua viesses a ser infeliz, queixar-te-ias de mim?

-- Elle é tão meu amigo!... -- limitou-se Thereza a murmurar.

-- E tu muito amiga d'elle?... muito?...

Agora D. Leonor levava-a como se levam as creanças; a rir-se, a brincar, sem o ar solemne com que principiára a entrevista.

Thereza enleou-a nos seus braços carinhosos, repousou no seio d'ella a cabeça com a meiguice dos anjos, e vencendo o pejo que a tolhia disse emfim que muito amava o rapaz.

-- E teu pae, tua mãe... o mundo, minha filha! que dirá o mundo d'eu me metter por casamenteira?...

Um forte abraço da rapariga parecia querer dizer a D. Leonor que se não importasse com o mundo.

-- Pois muito bem. Farei porque Luiz seja teu marido.

Muitos beijos de Thereza, que parecia ter perdido a voz, cobriram as faces de D. Leonor.

-- Mas nem uma palavra, Thereza! Não contes a ninguem o que entre nós acaba de se passar! -- recommendou D. Leonor -- Nem ao Luiz!

-- Porquê? -- perguntou precipitadamente a rapariga!

-- Porque é um indiscreto -- respondeu D. Leonor.

Thereza prometteu guardar segredo, e quando bem refeita das commoções por que passára, rizonha, feliz, foi acompanhada de D. Leonor cumprimentar D. Duarte.

O velho pleiteava então com o sr. padre David uma partida de xadrez: preparava um cheque e mate ao parceiro: mas por causa da apparição de Thereza perdeu o fio ao lance, errou-o.

-- A nossa Therezinha!?... -- exclamou elle satisfeitissimo.

Foi de muito excellente agouro para D. Leonor esta saudação á rapariga.

D. Leonor era um tanto supersticiosa. Se o irmão em vez de soltar aquella exclamação amistosa, que dava a medida da sua grande sympathia pela filha de João Gil, tivesse apenas feito qualquer tregeito cortezão, dito qualquer coisa preceituada pelo ritual da fidalguia, sem o carinho, a côr, que o metal da sua voz dera á palavra, então, provavelmente, ella ficaria menos bem impressionada.

-- E teu pae?... tua mãe?... -- perguntou ainda por excepcional attenção D. Duarte.

-- Estão bons, muito obrigada. Recommendam-se muito a vossa excellencia.

-- Então vens para cá passar o dia, vens?...

-- Querem-me cá!

-- A Isabel? -- perguntou D. Duarte á irmã, surprehendido de não vêr ali a filha ao pé da sua amiga.

-- Ainda não viu a Thereza. Não sabe que ella está cá.

-- Ah! então vae, filha, vae ter com a tua amiga.

Thereza sahiu sem mais rogos.

Estava excepcionalmente formosa n'aquelle dia. O abafos em que vinha envolvida punham-lhe em flagrante relevo a graciosa correção do rosto, ao qual a immensa alegria que lhe transbordava do peito dava singular realce.

D. Duarte ficcu-se a seguil'a com a vista n'uma especie de extase idolatrico.

-- Chego a ter pena de que esta rapariga não seja minha filha, padre! -- disse elle, emfim, para sua reverendissima -- E' uma creança adoravel!

D. Leonor trocou com o sr. padre David um fugidio olhar de muito extraordinaria eloquencia.

Que tentação de aproveitar esta aberta para falar ao irmão no casamento de Thereza com Luiz! Que dizia o sr. padre David?...

Sua reverendissima, lendo no fundo da alma da bondosa senhora como em livro aberto, sorriu-se, e n'um breve movimento de hombros e labios fel-a sciente de que nem dizia que sim, nem que não.

-- Pois ha-de sêr agora mesmo! -- disse comsigo D. Leonor.

Palpitou-lhe que tarde ou nunca teria ensejo como agora para tratar o assumpto.

LXIII

Complicações graves

Não ha dias, não ha horas, para certos assumptos: ha simplesmente momentos, fugidios momentos, que são, afinal, a alma de todos os triumphos.

A opportunidade é tudo. O bem e o mal, a fortuna e a desgraça, estão sempre na contingencia do instante em que se procede. Uma breve hesitação póde occasionar uma derrota, como um acto temerario póde dar uma victoria.

D. Leonor esperava, é certo, o doutor Gaspar, cunhado de D. Duarte, ao qual escrevera, para de concerto com elle tratar da situação dos sobrinhos. E o doutor Gaspar viria sem falta d'ali a trez dias, para o effeito. Viria, porque assim o promettera, e elle era comsigo n'este negocio. Mas affigurando-se-lhe por excellencia bôa a occasião que o acaso acabava de lhe propiciar, resolveu D. Leonor dispensar a collaboração do doutor Gaspar, e sem mais delongas metter mãos á obra.

Foi, pois, prestamente fechar no trinco a porta por onde Thereza sahira, e com modos entre rizonhos e solemnes, que despertaram em D. Duarte certa curiosidade, sentou-se junto do irmão e principiou o seu discurso.

-- Disse o mano que chegava a ter pena de que a Thereza não fosse sua filha -- começou ella -- E certamente disse o que sente, porque nem o mano é capaz de dizer uma coisa por outra, nem aqui, tão pouco, estava ninguem a quem o dito podesse ser endereçado por lisonja. Não é certo?

-- Positivamente -- respondeu o sr. padre David, ao qual a pergunta era endereçada.

A peroração de D. Leonor logo poz o bom do sacerdote no claro entendimento dos fins a que a excellente senhora queria chegar: e bem que sempre o valimento d'elle estivesse pelo lado dos bons, a favor de tudo quanto fosse nobre e elevado, no caso sujeito era de sua particularissima devoção a sua ingerencia na causa.

-- Ora eu no caso do mano diria differentemente -- proseguiu D. Leonôr - E dizia-o do coração, sem hesitações, porque tambem eu reconheço que a Thereza é uma creança adoravel. Eu, no caso do mano, diria que a queria para filha. E havia de fazel-a minha filha! As suas primorosas qualidades não valem menos que uns bons pergaminhos.

-- Pois não valem, não! --condisse o sr. padre David.

-- Além de que a Thereza tem um lindo dote! -- ponderou D. Leonor -- O que é ouro sobre azul: porque se em todos os tempos o dinheiro teve muita importancia, na actualidade ainda mais a tem.

D. Duarte não sabia se se havia de rir, se zangar, pelo que ia vendo e ouvindo. Felizmente que estava n'uma das suas mais felizes horas de bom humor! Olhava para a irmã, olhava para o sr. padre David, e tinha cócegas de riso. A compostura, a seriedade, as palavras e os modos de ambos estavam-n'o divertindo.

-- Quer então a mana que eu roube a filha ao João Gil? -- perguntou elle afinal com o seu mais benevolo assomo -- Que a inculque por noiva ao Luiz?... que lh'a imponha?... Diga!... fale!...

Falando, o fidalgo demonstrava estar muitissimo bem disposto. O seu habitual modo secco e frio, modo que elle não podia contrafazer, agora nem ao de leve transparecia. Pelo contrario; pairava-lhe nos labios um sorriso acariciador.

-- Santo Deus! Nem uma coisa, nem outra. Apenas que seja indulgente, que não prive o Luiz de a pretender para esposa.

D. Duarte transferiu o seu olhar da physionomia da irmã para a do sr. padre David, que n'aquelle instante supremo era realmente comica por muito espantada e anciada, e desatou a rir: mas a rir sem constrangimento, muito d'alma, sem o menor indicio revelador de tempestade intima: a rir como riem os innocentes, a rir como riem os felizes. Riso que, diga-se a verdade, fez grande bem ao sr. padre David.

Sua reverendissima, á maneira que D. Leonor ia adiantando o ataque, sentia-se progressivamente falto d'ar.

-- Ainda bem que o padre é homem discreto! -- poude emfim exclamar o fidalgo. -- Ainda bem!... Que se o não fosse, se lá fóra constasse o que aqui se está passando, que se cuidaria?... Que estávamos machinando o rapto da pequena! Talvez que estavamos concertando o modo de nos apoderarmos da fortuna do João Gil!... Que diz, padre?

-- Não me parece, sr. D. Duarte. Não creio que ninguem ousasse fazer tão temerario juizo.

-- Talvez -- concordou complacente o fidalgo -- Talvez. Em todo o caso... mana...! não lembremos coisas.

Agora era outro o aspecto do fidalgo. Apagara-se-lhe da physionomia o ar alegre e divertido de ha pouco. Puzera-se no seu sério.

-- Não lembremos coisas! -- tornou elle.

-- Não lembro nada, mano -- retorquiu D. Leonor Não lembro nada; -- previno. Falei como ouviu, porque sei que o Luiz anda apaixonado pela Thereza. Sei que elle não vê outra coisa no mundo, que não pensa senão n'ella, e que por ella será capaz de tudo.

O rosto do velho tornou-se sombrio. Momentaneamente os olhos afoguearam-se-lhe de cólera, as feições transfiguraram-se-lhe.

-- O quê?!... que diz a mana?!... Acaso...

Inconscientemente soerguera-se. A sua voz, agora, era como um surdo rugir de tempestade.

-- Onde está esse homem?... -- bradou elle voz em grita -- Onde está esse libertino, que se atreve a querer arrastar no lodo das suas paixões a honra d'uma familia?... Faça vir adiante de mim esse mizeravel!

D. Leonor affligiu-se vivamente com esta exaltação do irmão; mas nem perdeu a serenidade, nem tão pouco trepidou em proseguir na sua empreza. Fez pelo dominar.

-- Jesus! -- exclamou ella -- Jezus! valha-nos Deus! Que injusto que o mano está sendo... até para commigo! Pois pensa que se eu tivesse presentido o mais ligeiro ameaço para a felicidade de Thereza, não teria inclusivé recorrido á sua auctoridade para obstar qualquer occorrencia desagradavel?... Socegue, mano; tranquilise-se. O Luiz, juro-lh'o, tem pela Thereza a mais profunda consideração. Ama-a, mas respeita-a. A sua conducta tem sido irreprehensivel: as suas intenções são honestissimas. Acredite! Juro-lh'o com a mão na consciencia. O Luiz já não é o estroina, o leviano, o inconsiderado rapaz d'outro tempo: mudou; merece a sua confiança, a sua affectuosa estima.

As palavras de D. Leonor, calmas, convictas, soffrearam os impetos do genio de D. Duarte.

-- E a prova da lisura, do cavalheirismo, com que o Luiz procede -- adduziu D. Leonor -- está em que é elle proprio que me tem ao corrente dos seus amores. Ora claro é que se não fosse perfeitamente honesto o seu proposito, bôas as suas intenções, elle me não tomaria a mim para confidente. O mano bem o comprehende.

Novo aspecto tomou a physionomia do fidalgo. Agora era significativo da mais espantosa surpreza o seu gesto.

-- Ah! Elle é que tem dito á mana que está apaixonado?... -- inquiriu elle com certo interesse.

Acalmára se. Aquella furia temerosa que por momentos o dominára, tinha-lhe passado.

-- Elle proprio.

D. Duarte ficou-se a scismar. Houve uns breves minutos de silencio.

-- E... o João Gil, sabe d'isso?... d'essa paixão?... -- perguntou elle de surpreza.

Apprehendêra, emfim, a idea que havia minutos lhe estava fazendo negaças ao espirito. Occorrera-lhe que João Gil, afinal, é que andava influindo o namoro de Luiz com a filha. Teve a suspeição d'uma tramoia ignobil á sua prosapia aristocratica. E d'ahi aquella sua pergunta.

N'um momento representara-se-lhe adiante de si João Gil aconselhando a investidura de Luiz em funcções de lavradôr: viu-o depois voltando ao palacio a falar-lhe com tamanha auzencia de reservas, que o surprehendeu; viu-o, ainda, a mostrar-lhe com certo envaidecimento, com certa ostentação, a sua casa, a sua quinta: ouviu-o gabar-lhe ali mesmo, na vespera, a filha, do mais encarecido modo: emfim, viu-o machinando na sombra um laço á ingenuidade de Luiz.

-- Nem a suspeita, sequer -- respondeu D. Leonor.

-- Nem a sonha, sr. D. Duarte! -- testemunhou o sr. padre David.

D. Duarte carregou o sobr'olho. A intervenção solicita do sr. padre David, despertára-lhe um pensamento terrivel; que talvez o rapaz tivesse commettido algum desacato para remedio do qual o casamento se impozesse á dignidade de todos.

-- A mana tem absoluta certeza de que o Luiz se tem portado com a filha do João Gil como um cavalheiro? -- interrogou então D. Duarte dando ás suas palavras um accento que bem revelava as suas apprehensões, a duvida que o esmagava.

-- Absoluta. Juro-o pela minha honra -- respondeu D. Leonor com a maior decisão.

-- Basta! -- disse convencido e desannuveado D. Duarte.

Elle bem sabia que a irmã era verdadeira! Elle bem via pelo modo como ella lhe falava que nos seus labios estava toda a sua alma!

Voltou, pois, a entregar-se ao primeiro pensamento: isto é, que Luiz andava nas mãos de João Gil como menino Jesus em mãos de bruxas. E então teve um sorriso amarello.

-- De modo que... o João Gil é cego, não sabe de nada... -- disse elle com ar escarninho -- Está muito bem!... E a Thereza?... dá attenção ao Luiz?... A mana deve saber.

Hesitou D. Leonor um momento em responder: mas logo decidiu ser sincera.

-- Para que hei-de eu dizer ao mano que não?... Para que hei-de por falta de confiança na sua bondade, estar a disfarçar, a compôr, talvez a comprometter?... Sim, mano: a Thereza dá attenção ao Luiz, acceitou-lhe a corte. A Thereza e o Luiz carteiam-se

-- Ah! -- exclamou então radiante D. Duarte -- Carteiam-se... Agora percebo! Percebi o enredo da peça. A mana é uma simples, e o Luiz... um simples tambem. A Thereza, coitada, é uma creança: faço-lhe inteira justiça; não creio que ella esteja no segredo do enredo da peça. Adivinhei tudo! Padre!... o meu amigo não é cá d'este mundo.

-- Juro que o mano Duarte está elaborando n'um grande erro! -- protestou logo D. Leonor.

-- Também eu o juro, sr. D. Duarte!

A suspeita do fidalgo era transparente. Ambos a tinham já presentido.

-- Não jure, padre, que jura em vão! -- disse-lhe D. Duarte.

A convicção do fidalgo de que João Gil e Amalia lhe andavam armando uma ratoeira ao filho, creava poderosas raizes.

-- Juro pela minha fé, sr. D. Duarte! -- insistiu sua reverendissima.

-- Acredite, mano: a sua supposição é uma infernal injuria á dignidade de João Gil!... -- garantiu D. Leonor.

-- Provas! Venham provas!... -- clamava ensoberbecido o velho -- Juras, é pouco. As juras simplesmente me garantem que a mana e o padre não são creaturas d'este mundo. Provas!... Provas!...

O sr. padre David succumbiu: D. Leonor em vão tentava vencer o irmão. D. Duarte parecia um genio mau triumphante.

-- Ah! eu sei!... Eu sei o que póde o genio d'esta gente que se nos affigura simples, innocente, toda candura, toda ingenuidade!.. -- ia elle exclamando -- Ah! mas enganaram-se, os farçantes! Hei-de-lhes demonstrar que se enganaram.

-- Provas! Venham provas! -- replicava elle a todos os protestos da irmã e de sua reverendissima.

LXIV

A prova real

Revoltada contra a teimosia do irmão, que era de instante para instante mais audaciosa, mais temeraria, mais de molde a determinar um rompimento de muito difficil concerto; quasi desvairada, quasi esquecida do valor das conveniencias e dos perigos d'uma revelação completa de tudo quanto até ali ella tão cautellosamente occultára do irmão com respeito aos filhos; levada, emfim, tambem, do nobre desejo de conservar intacta a reputação, que ella infelizmente por suas proprias mãos acabava de fazer estremecer, do bom nome de João Gil, D. Leonor ergueu-se, seguiu arrebatadamente para a porta da sala, e d'ali, sem hesitações, terminante, em voz bem audivel e bem firme, deu ordem para que sem perda de tempo fossem chamar o pae de Thereza.

-- Que eu lhe peço o favor de vir cá para um caso muito urgente -- disse ella.

Mas tudo isto em gestos tão saccudidos, tão insolitos, que o irmão, muito costumado a branduras, a maneiras sempre respeitosas, ao mais carinhoso modo, logo deu mostras de que ficára profundamente escandalisado.

-- Bem -- disse elle erguendo-se succumbido -- Adeus, padre.

Ia retirar-se.

D. Leonor, ainda e cada vez mais sob a influencia do despeito que lhe determinára a acção, embaraçou a retirada de D. Duarte, sobre o qual assestou um olhar dominador.

-- Como?!... Pois o mano pede provas de que está em erro, de que se está deixando suggestionar por uma falsa idea, por uma suspeita absolutamente calumniosa... e exactamente quando eu pretendo dar-lhe essas provas, quer retirar-se?!...

D. Duarte hesitou.

-- Se a mana ordena... -- murmurou elle, parando.

Fazia dó, agora, o aspeco do illustre ancião. Via-se que elle tinha vontade de chorar.

D. Leonor abrandou um pouco.

-- Não ordeno, mano; peço, sente-se... São poucos minutos de espera. Peço...

O fidalgo deixou-se recahir na poltrona. Parecia não ter acção propria, estar sujeito ao influxo das vontades de D. Leonor.

-- Ha-de-lhe ser grato reconhecer que foi injusto concebendo a idéa de que João Gil não é absolutamente um cavalheiro, incapaz de machinações ardilosas. Porque o mano é um bom, um justo: a sua consciencia é recta: o que tem é um genio exaltado, que não poucas vezes o leva á pratica de acções que ao depois vem a lamentar. Serene... Tenha um boccadinho de paciencia... Ha-de vêr que nem eu nem o sr. padre David jurámos em vão. Hão de lh'o provar os factos, por muito extraordinarios que elles lhe pareçam!

D. Duarte estava com o rosto pendido para o peito, n'uma tão abatida prostração d'alma, que nem ás palavras da irmã dava sentido. Invadira-o uma tristeza enorme. Estimaria ter lagrimas para allivio do seu mal.

O sr. padre David meditava. A sua tristeza não era menor. Vira tudo côr de rosa, havia momentos: agora via tudo côr da noite.

Emfim, a porta abriu-se e tornou-se a fechar sobre o pae de Thereza.

João Gil, como o emissario de D. Leonor lhe dissera que a senhora o chamava com urgencia, accudira presto ao palacio. Vinha offegante. E Amalia, sem saber pelo quê, muito sobresaltada, ficára a preparar-se para vir nas pégádas do marido.

-- Que é muito urgente o que a senhora lhe deseja -- dissera o portador.

Estas palavras tinham-n'a posto em grelhas.

-- Que occorreria no palacio para mandarem chamar lá João tanto á pressa? algum desastre?...

Não sabia o que conjecturar. Se ella tivesse podido interrogar o homem!... Se elle não dcsapparecesse como o fumo!...

D. Leonor estendeu affectuosamente a mão a João Gil, e dirigiu-lhe sem rodeios a palavra.

-- Meu irmão havia de duvidar da exactidão dos acontecimentos que na terça feira se deram em sua casa, se eu lh'os contasse -- disse D. Leonor -- Mandei-lhe por isso pedir que viesse cá, para o sr. lh'os referir. Fale, sr. Gil: conte o que se passou...

João Gil, que n'um relance d'olhos tinha percebido que havia qualquer novidade triste, suppoz por estas palavras ter comprehendido a expressão amargurada do rosto do fidalgo, que mal erguera para elle a vista, e não deixava de vigiar os gestos da irmã, talvez a vêr se lhe surpreherdia algum gesto de intelligencia.

-- Fale!... -- instou D. Leonor -- Diga tudo, absolutamente tudo o que se passou em sua casa... Peco lh'o!

-- O sr. Dom Duarte já o sabe, por certo, e então...

Faltava lhe coragem para expôr os acontecimentos.

O acabrunhamento do fidalgo não lhe deixava a menór duvida de que as suas previsões em relação ao enlace de Pedro com Izabel se tinham emfim realisado: isto é, que o illustre ancião não queria para genro o filho de Ermelinda. E se por um lado tal acontecimento lhe era grato, porque lhe restituia com vida uma esperança morta, por outro lado lhe fazia tristeza.

Homem bom, a situação dolorosa do sobrinho não podia deixar de o commover. Thereza, emfim, não sentia inclinação pelo rapaz, havia de ter outro noivo.

D. Leonor percebeu que João Gil estava receoso de falar. Presumindo, pelo visto, que D. Duare já estava inteirado da occorrencia, provavelmente lhe repugnava estar a esgaravatar na chaga aberta.

Tomou ella então o partido de falar. Era por demais insupportavel a situação de todos; urgia modifical-a.

-- Meu irmão não sabe de nada, sr. Gil -- começou ella então -- E francamente que eu preferia que fosse outra pessôa, que não eu, que o pozese ao corrente do que ha. No emtanto serei eu que lhe revele os factos. O mano quer ouvir?...

Neste momento D, Duarte estava manifestamente contrafeito de impaciencia.

-- Porque não?... Ouvirei... -- murmurou elle.

-- O sr. Gil - começou então D. Leonor -- viveu sempre na mais convicta esperança de que o sobrinho viria a sêr o esposo de Thereza. E nem será phantasia suppor que com melhor vontade elle occorreu á educação de Pedro n'esse sentido: porque todos nós temos certos interesses por movel dos nossos actos. Não é assim, sr. Gil?

João Gil fez um gesto de conformidade. D. Leonor proseguiu.

-- Ora o Pedro não tinha, nunca teve, inclinação pela prima. Queria-lhe como se quer a uma irmã, não como se quer a uma noiva: e o que o sr. Gil attribuia a respeito, sabia eu que era auzencia de affecto. Pedro tinha-se deixado namorar d'outra rapariga, que ardia em paixão por elle.

D. Duarte ia-se mostrando interessado pela narrativa. D. Leonor, apoz uma breve pausa, continuou:

-- Eu sabia perfeitamente da situação do Pedro. Os amores d'elle eram do meu inteiro conhecimento. A sua namorada não occultava de mim um unico pormenor da phase por que elles iam passando. E sempre que eu ouvia o sr. Gil alludir ao casamento planeado da filha com o sobrinho, e notava a maneira como o rapaz evitava a conversa n'esse campo, francamente, affligia-me. Tinha a intuição do que succederia. O sr. Gil amava o sobrinho como filho proprio: a desillusão do seu sonho havia de lhe sêr muito cruel: não se renuncia sem grande dôr áquillo que se amou com infinito carinho.

Os olhos de João Gil arrazaram-se de lagrimas, á vista das quaes D. Duarte se deixou commover, porque tambem era pae.

-- Ultimamente a situação aggravou-se -- proseguiu D. Leonor -- Pedro, talvez porque refletisse na fatalidade dos seus amores, certamente para evitar um conflicto, principiava a apparecer pouco em casa do tio e a dar á sua namorada menos attencão que d'antes: do que resultou a pobre rapariga affligir-se e recriminal-o. Recriminal-o, porque se costumára a consideral'o seu noivo. E o mano bem sabe que uma grande affeição, uma paixão verdadeira, domina, não é dominavel. Emfim, eu julguei por bem intervir, compromettendo-me a que Pedro seria o marido da sua amada: e então, ouvida pelo sr. Gil a minha declaração, rompeu entre elle e o sobrinho uma scena deploravel. Digo a verdade?...

-- Completa, minha senhora. Uma scena verdadeiramente deploravel. Com effeito, eu destinava a minha filha para noiva do primo. Era um sonho meu antigo. E para esse effeito cuidei de o educar, de o fazer homem. De fórma que a combinação do casamento d'elle com a sr.ª D. Izabel, allucinou-me.

-- Com quem?!... Com quem?!... -- perguntou arrebatadamente o fidalgo.

D. Duarte, até ali muito calmo, soffrera enorme commoção com a revelação de João Gil. O seu olhar espantado, erratico, bem attestava que sua excellencia estava longe, muito longe, de imaginar que a namorada de Pedro era sua filha. Déra-se a phantasia de suppôr que a eleita d'elle era uma rapariga qualquer. A surpreza impressionára-o ao vivo.

João Gil, percebendo que tinha adeantado mais do que o espirito das reservas com que D. Leonor falava aconselhava, ficou apavorado, pequenino.

-- Ouviu bem, mano -- respondeu serenamente D. Leonor -- Com a Izabel, sua filha... Que foi ella que roubou Pedro á prima.

D. Duarte, em face da attitude da irmã, ficou como coacto. O accesso de cólera que o ia a tomar, não poude explodir. Deu-lhe para desabafar d'outro modo.

-- Muito bem!... Bonita escolha, não ha duvida!... Interessante alliança!... E então... é casamento decidido?... A mana já decidiu?... Eu não tenho direitos alguns sobre os meus filhos?...

-- Eu decidi... confiada na bondade e espirito de justiça do mano. No lance em que intervim, pareceu-me que esse era o meu dever. No emtanto... o mano sancciona, ou não sancciona.

O fidalgo esteve por um triz a disparatar.

-- Eu?! -- exclamou elle n'um intraduzivel assomo de suffocado orgulho.

-- De certo.

-- Pois eu posso lá contrariar tão auspicioso enlace?!... a honra de tão auspiciosa alliança?!...

Ruido de vozes alegres na sala contigua, veio perturbar o silencio que se ia a fazer na sala onde o fidalgo assim começava a dar largas ao seu despeito.

Eram Izabel e Thereza correndo, brincando, pairando, na mais absolucta ignorancia do que á volta d'ellas e por causa d'ellas se estava passando.

João Gil, que principiava a sentir-se mal com os epigrammaticos arrufos de sua excellencia, e já se pozera em pé, disposto a sahir, abriu a porta e disse para a filha que viesse despedir-se, para ir comsigo.

Izabel protestou.

-- Ainda agora chegou!.. Não póde sêr: vae mais logo.

Um breve gesto de João Gil advirtiu a filha da conveniencia do cumprimento das suas ordens.

Thereza foi então direita a D. Leonor, que estava com o coração replecto d'amargura, mas de semblante sorridente, e beijou-a. Depois dirigiu-se para D. Duarte, que estava de cabeça curvada para o peito, e tomou-lhe a mão.

Sem saber pelo quê, a rapariga sentia-se muito triste. A atmosphera d'aquella sala tinha-a entristecido.

-- Adeus, senhor D. Duarte: muito boa tarde.

O velho, como se aquelle adeus fosse fazer-lhe vibrar corda intima, como se o despertasse d'um pezadello, segurou a mão de Thereza.

-- Então, vaes-te?...

-- Meu pae quer que eu o acompanhe...

-- Pois vae, vae... -- disse o fidalgo.

E affastou de si a rapariga. Mas, logo, n'um impulso arrebatado, que, via-se, era o reflexo do seu estado d'alma, segurou-a.

-- Não, não vaes... João!... porque leva a sua filha?...

João Gil amaneirou o gesto para responder.

-- São horas de ella ir para casa, sr. D. Duarte. A Amalia, coitada, ha-de precisar que ella a ajude.

-- E se eu a não deixasse ir?!... -- disse com infantil candura o velho.

João Gil fez tregeitos de quem não sabe o que responderia então.

-- E se eu lhe pedir que a não leve?... -- tornou o fidalgo.

-- Sentiria ter que sêr desagradavel a vossa excellencia -- respondeu de muito bom agrado João Gil -- Vem ahi a noite, não tarda.

D. Duarte largou a mão de Thereza, que segurava convulsamente, e recahiu n'uma prostação enorme.

-- Oh! o meu genio!... o meu genio!... -- murmurou elle.

Thereza, commovida, quiz valer á sua dor.

-- Que tem, sr. D. Duarte?... Porque chora?...

As lagrimas tinham espirrado dos olhos do velho fidalgo, aljofaravam-lhe a barba...

-- Vae te... Segue teu pae, filha. Elle tem razão...

- Mas meu Deus!... o que tem? ...

João Gil, apoz a sua negativa, e depois d'um abaixamento cortez de cabeça, sahira. Detinha-o na sala contigua D. Leonor, que pretendia humanisal-o, e D. Izabel, que ainda sem saber do que se tratava, punha todo o seu empenho em o fazer acceder aos rogos da tia.

D. Leonor bem vira quanto o excellente homem ficára offendido com o achincalhamento do sobrinho pelo fidalgo.

Thereza continuava a acariciar o triste D. Duarte.

-- Diz'-me... -- murmurou elle ao ouvido de Thereza -- Tu amas o Luiz?...

A rapariga ficou confundidissima. D. Duarte puxou-a a si, e com uma simplicidade, com uma ternura que contrastava abertamente com os seus costumes, osculou-a na fronte.

-- Padre!... -- disse elle em seguida para sua reverendissima -- chame cá o pae d'esta pequena, o Gil...

Sua reverendissima, que assistia estupefacto a esta scena toda, apressou-se em chamar João Gil. Nascera-lhe uma alma nova; ficára radiante.

-- Sente-se... -- disse o fidalgo affectuosamente para João Gil -- Espere um momento... Mana, mande-me chamar o Pedro... Quero sêr uma vez justo, amigo Gil: quero dar-lhe uma satisfação... Vem cá, Izabel... Sei que desejas casar com o Pedro. Approvo a escolha do teu coração.

E voltando-se para João Gil, proseguiu:

-- Nem sempre os labios dizem o que o coração sente, meu amigo. Tive sempre o seu sobrinho no melhor conceito. Creio que a minha filha, escolhendo-o para marido, escolheu bem.

Commovido, João Gil estendeu a mão ao fidalgo.

-- Obrigado a vossa excellencia pela parte que me toca na sua resolução, sr. D. Duarte. Vou, creia, penhoradissimo com a sua delicadissima attenção para commigo. Agradecido!...

E ia para se retirar.

-- Espere... -- disse-lhe D. Duarte -- Ainda tenho que lhe dizer.

João Gil retomou a cadeira.

-- O sr. destinava a mão de sua filha ao Pedro: e pelo que eu concluo, o casamento d'elle com a minha filha causou-lhe profundo abalo. Onde irá encontrar tão estimavel noivo para a sua filha?...

-- Então?... Paciencia... Tudo n'este mundo tem remedio. Deus é grande.

Mas, assim falando, João Gil não podia dissimular que uma fortissima commoção o dominava. Não tinha a sua voz aquella firmeza de outras horas: era conturbada, dolorida.

-- O que eu cordealmente estimo, sr. D. Duarte, é que vossa excellencia nunca tenha que arrepender-se da sua benevolencia.

-- Assim o creio, e espero em Deus que succederá. Mas sr. Gil!... se o meu filho Luiz póde d'algum modo reparar a perda do noivo que destinava a Thereza, grande gosto tenho eu em lhe offerecer para ella a mão d'elle. Que diz?...

D. Leonor e o sr. padre David estavam attonitos. O contentamento d'ambos era sem medida.

João Gil, primeiro embatucado, arrebatado de contentamento, e depois sereno e reflectido, animado d'uma gravidade que destoava da impressão recebida, e que se lhe lia nos olhos, assombrou o fidalgo, todos.

-- Impossivel tal alliança, sr. D. Duarte! Alem de que,... penso eu!... nem a minha filha a sonhou sequer algum dia.

D. Leonor enterveio.

-- Pois pensa erradamente, sr. Gil. A Thereza ama o Luiz, como o Luiz ama a Thereza. E é sem duvida pelo saber, por ter a certeza d'isso, que o Duarte lhe pede para meu sobrinho a mão de sua filha.

João Gil cahiu das nuvens.

-- Como?! Pode lá ser!!

Duvidava.

-- Fala a verdade, Therezinha -- pedia D. Leonor -- E' ou não exacto o que eu disse?...

A rapariga, de confundida, nem voz nem gesto teve que testemunhassem. Mas a sua mesma confusão era eloquente. João Gil tomou-a em sentido affirmativo.

-- Em todo o caso! -- disse então elle -- E' que ella é uma creança, não viu, não mediu o alcance do que fazia, se com effeito amou. Como o sr. D. Luiz, por certo, esqueceu tambem, por creança, o que deve á sua nobreza. Minha filha, sr. D. Duarte, teve um berço muito humilde. O meu desejo é casal-a com rapaz de nascimento igual ao d'ella.

Via-se, era manifesto: a satisfação do fidalgo não desvanecêra completamente o resentimento de João Gil.

-- E' pensado o que diz, João?... -- interrogou solemnemente o fidalgo.

João Gil ia a responder. D. Leonor poz-lhe apressadamente a mão na bocca.

-- Espere! Não responda, que eu já respondi por si, com o direito que o sr. ante-hontem me conferiu... Abafe o seu despeito: tome por completa a satisfação que o mano lhe deu, e, vá! diga que sim; não seja de reservas.

O sr. padre David accudiu em soccorro de D. Leonor.

-- E' verdade, João! tens a tua palavra compromettida. Diz que sim, honra a tua palavra. Peço eu!

Izabel tambem supplicava.

-- Não seja mau!... Pedimos todos.

João sentia-se fraco para luctar. D. Izabel, D. Leonor e o sr. padre David, todos agarrados a elle, nem o deixavam respirar.

-- Ha-de dizer que sim! -- clamava uma.

-- Não pode deixar de dizer que sim -- accudia outra.

-- Todos pedimos! Todos pedimos! -- instava o sr. padre David.

-- Mas a Amalia?... o voto da Amalia?... -- disse João Gil n'um ultimo e supremo recurso.

No momento surdia Amalia no limiar da porta. Vestira-se á pressa, e vinha saber porque era que o marido fôra chamado ao palacio com tamanha urgencia.

-- O quê?... O meu voto para quê?... -- perguntou ella.

Aquella apparição causou borborinho. D. Leonor dirigiu-se resolutamente á sua amiga.

-- Ainda bem que vieste! Diz', Amalia: consentes no casamento da tua Thereza com o Luiz?...

O espanto d'Amalia foi culminante.

- Pois então elle... Pois quem diz que não?!... Mas então de que se trata?...

Posta ao corrente de tudo em breves palavras, Amalia, com o seu desembaraço de mulher feliz, atalhou de vez ás opposições do marido.

-- Deixem-n'o falar, que o meu João n'o sabe o que diz. Elle quer, sim. Ai! se eu n'o sei o amôr que elle tem á filha e o bem que quer ao sr. D. Luiz!... Está a fingir!

Luiz vinha entrando, em companhia de Pedro.

-- Dê cá um abraço, sr. D. Luiz. Então quer casar com a Thereza, quer?... Dê cá um abraço! Leva uma rapariga que nem que corresse todo o mundo a topava melhor. E então a sr.ª D. Izabelinha?... tambem se casa, tambem?... Dê cá tambem um abraço, minha filha. Agora... palavra!... já lhe n'o tenho inveja do Pedro. Onde está elle?... Onde está esse grande maroto?... Toma!.. Toma lá a tua noiva... Filha!... dá tu tambem um abraço ao sr. D. Luiz...

E n'aquella sua alegria doida, mulher simples levou a filha aos braços do Luiz, imprimia á scena estranho realce.

-- Abracem-se, abracem-se... Estão no seu tempo. Que dizes, homem?... Em que estás tu agora a matutar?... O que tem de sêr tem muita, muita força! N'o é assim, sr. D. Duarte?... Eu nem sei se já cumprimentei vossa excellencia! Olhe, desculpará!... Dê cá tambem um abraço em paga!

D. Duarte deixou-se abraçar por Amalia sem a menór reluctancia, antes com muito prazer.

-- O sr. D. Luiz... n'o é por vossa excellencia sêr o pae d'elle... é muito bom rapaz, uma joia, mesmo. Mas olhe que a Thereza, a minha filha... é um amôr, um anjo.

E extenuada, vencida da immensa alegria que lhe transbordava do peito, sentou se e exclamou:

-- Mas como foi isto?... Contem lá!... Como foi isto?...

CONCLUSÃO

Tomado de surpresa pela decisão de Amalia o ultimo entrincheiramento em que João Gil por impertinente capricho se refugiára, as pazes d'esta memoravel batalha ganha por D. Leonor foram solemnemente celebradas coisa de mez e meio depois na parochial egreja da freguezia, que para o effeito estava toda resplandecente de lumes e liiteralmente coberta de sedas e flores, como ninho d'anjos, como ante-camara de paraiso.

Assistiram ao acto a mãe de Pedro, que então muito melhorada de saude poude fazer a viagem da sua terra ali, d'onde passado algum tempo seguiu para a Suissa a completar o tratamento do seu mal; a tia Ricardina, que não obstante a sua grande debilidade de forças não quiz deixar de sêr presente ao consorcio da neta com o filho do fidalgo, que ella muito amava só pelo muito amor que elle tinha a Thereza; D. Leonor e o doutor Gaspar, que foram os padrinhos d'ambos os casaes; Amalia e João Gil, que de tão contentes, de tão felizes que se sentiam, até mal podiam respirar; D. Duarte, que n'aquelle dia foi da mais confundivel amabilidade para toda a gente; e, emfim, grande numero de amigos das duas familias vindos de toda a parte, e o povo inteiro da freguezia, que muito voluntariamente se associou áquella festa intima, enfeitando com arcos de verdura, flores e bandeiras, os caminhos por onde deviam passar os dois cortejos, que sabidos um do palacio e outro da casa de João Gil se fundiram á entrada do adro, onde os esperava a surpreza de muzica e foguetorio, e á noite se realisou bailarico, para luzimento do qual os paes dos noivos mandaram fornecer vinho em abundancia e comida á farta.

As noivas trajavam iguaes vestidos e levavam iguaes veus e iguaes joias, formosas joias com que D. Leonor as presenteára, mas em que ninguem fez reparo, porque joias eram de mais surprehendente brilho seus olhos n'aquella hora fugidia da sua vida a caminho do altar. Entraram na egreja pelo braço dos paes, tão commovidas, tão impressionadas ambas, que a custo reprimiam as lagrimas e a custo podiam sorrir agradecendo as saudações de que eram alvo: saudações que se repetiam á passagem de Pedro e Luiz, que se não mostravam menos co rbados que Thereza e Isabel.

Finda a ceremonia, que o bom do sr. padre David terminou por uma breve e terna allocução a que as saudades da sua alma deram uma nota impressiva que fez brilhar lagrimas nos olhos de todos os assistentes, retiraram os dois cortejos, agora fundidos n'um só, para o palacio, onde houve banquete ao qual D. Duarte fez assistir Ermelinda e a tia Ricardina, que a pretexto de doentes tentaram esquivar-se a assistir a elle: facto que muito encantou João Gil, que emfim comprehendera a alma do fidalgo, e se lhe affeiçoára d'um modo notavel.

A' noite deram os noivos um passeio pelo arraial, onde foram enthusiasticamente acclamados, e depois separaram-se, indo Luiz habitar para casa do sogro, como com boa antecedencia havia sido ajustado, e Pedro para o palacio, no qual hoje reina a mais viva alegria, mercê da petizada que lá se junta, filhos de Luiz e filhos de Izabel, que são os feiticeiros amores de D. Duarte, a sua alma, o seu coração, a sua vida.

João Gil e o fidalgo, desde que se abraçaram na egreja, depois do casamento dos filhos, nunca mais tiveram razão de queixa um do outro: estimam-se cordealmente, o que traz contentissimas as famolias d'um e d'outro, das quaes parece fazer parte integrante o sr. padre David, que continua a sêr a providencia dos desvalidos.

D. Leonor e elle, o bom do padre, não sabem para onde se hão-de (?) : Amalia e o marido, Thereza e Luiz, Isabel e Pedro, inclusivé o proprio D. Duarte, adoram-os, confundem-os com caricias E bem merecem, realmente, tanta estima, aquelles desvelados amigos do bem do proximo!