A senhora duquesa: Edição para o ELTeC Cordeiro, Luciano (1844-1900) Criação do HTML original Madalena Rato Codificação segundo as normas do ELTeC Diana Santos 134088

Adicionado à coleção ELTeC 14 de maio de 2020.

Luciano Cordeiro A senhora duqueza A senhora duqueza Luciano Cordeiro Livraria Ferin 1889 Lisboa

português de Portugal Adicionado à coleção ELTeC

SERÕES MANUELINOS -- I

A SENHORA DUQUEZA

POR

LUCIANO CORDEIRO

LISBOA

LIVRARIA FERIN

70, Rua Nova do Almada, 71

A SUAS ALTEZAS REAES

O PRINCIPE D. CARLOS E A PRIMA D. AMELIA

DUQUES DE BRAGANÇA

E por ser historia de gosto e sabor

Ordena o author de a representar,

Porque vejaes

Que cousas passaram na serra onde estaes.

Feitas em comedia mui chan e moral

E os mesmos da historia polo natural

E quanto falláram, nem menos, nem mais.

Gil Vicente.

Não faço um romance.

Procuro instruir um processo sobre o qual pesa, ha tres seculos, uma lenda incongruente e truncada.

Das folhas d'esse processo perderam-se umas na destruição dos Archivos, obliteraram-se outras no attrito da Imaginação, não poucas nas preoccupações da Mentira cortesã.

A unica que resistiu ao Tempo e á Lenda, ficou quasi inteiramente esquecida e inedita, em parte por ignorancia, em parte por acintosa reserva.

E, comtudo, essa folha amarellecida, cheia de gavinhas tortuosas e de frias solemnidades tabellioas, era um drama fortemente naturalista, vibrando ainda os terrores da catastrophe.

Como um phonographo de hoje, guardava-nos no grito extremo de Leonor de Mendonça, não só uma preciosa nota da vida real e intima do século XVI, mas uma lição, tambem, de como a Natureza despedaça implacavelmente n'um minuto os calculos e os interesses de annos que não quizeram contar com ella.

Porque não interrogar a Sphinge?

Porque fugir á reconstrucção da verdade positiva e necessaria?

Porque é inutil?

Porque é impossivel?

Porque é indiscreto?

Inutil é só a Ignorancia e o Erro.

O impossivel, quando não seja o que lhe chamou rudemente Napoleão, ou alguém por elle: -- la logique des anes, -- ha de ser o melhor estimulo, o mais fino contraste da Intelligencia e da Vontade que vão levando adiante de si, fazendo recuar incessantemente, através do Tempo, como através do Espaço, a tyrannia do Desconhecido.

Indiscrição?

Mais do que indiscreto, e sobre injusto, impertinente e ridiculo, fora o retrahimento e o receio.

Que ha de affrontoso para a mais gloriosa e legitima prosapia, -- que póde haver de extraordinario e deprimente para a mais illustre geneologia, em se lhe ter emmaranhado um dia na historica ramagem, um d'esses dramas sombrios, um desses episodios sangrentos vindos nas evoluções da moral, dos costumes, da politica dos tempos?

Qual a arvore, por mais viçosa e sã, que não deixou cahir no chão ou na Historia um fructo abortado nas multiplas perturbações da Natureza, ou ferido de morte pelas correntes atmosphericas que ora a acariciam e alentam, ora a sacodem, ferozes, ou lhe trazem perfidamente o microbio funesto?

E quantas rehabilitações, tambem, não temos todos os dias de arrancar á Lenda que se fechou como o zinco d'um esquife mortuario, soldado pela paixão ou pela indifferença das gerações sobre um facto mal julgado, sobre uma existencia mal comprehendida?

Seria realmente monstruoso que ao cabo do seculo XIX, o historiador, o critico, o estudioso, encontrando no caminho um problema ou um assumpto, um berço ou uma sepultura, um coração ou um craneo do século XVI, impozesse á curiosidade propria ou ao interesse da verdade historica a abstenção e o silencio d'um respeito de convenção ou d'uma sentimentalidade de preconceito.

Além de que essa abstenção e de que esse silencio poderiam resolver-se n'uma cumplicidade com a Injustiça e n'uma cobardia perante o Erro.

E porque a comedia vai já declarada

E tão raso o estylo, -- não serve de nada

O mais argumento: e cerro a ementa.

I

PARTE I

BRAGANÇA E SIDONIA

Casos succedem no mundo que parece se descuida Deus do governo d'elle...

A. Vieira. - Or. fun. nas exeq. de D. Maria de Athayde

O caso, -- como nol-o transmittiu a Historia, -- meio perdido por anecdota banal nos ruidos espantosos de uma época em que germinava um mundo; -- como o tem querido devassar e reconstruir a Arte nos estos insaciaveis da sua inspiração creadora, -- o caso foi este: -- simples e nitido.

Ás duas horas, -- «ante-manhã,» -- de 2 de novembro de 1512, -- dia de Finados, -- entravam açodadamente nas casas que o Duque de Bragança fizera construir no reguengo de Villa Viçosa, e onde habitava com a esposa, os filhos e a famulagem domestica, -- o bacharel Gaspar Lopes, ouvidor de Sua Senhoria, João Alvares Mouro, juiz ordinario da Villa, e Álvaro Pacheco, tabellião, acordados, no melhor do seu somno, por um recado terminante do Duque, para que fossem ali.

Seguia-os de perto o escrivão Diogo de Negreiros.

Aquellas casas foram o inicio do grandioso Paço actual, e uma parte d'ellas conserva-se com a sua feição, até com a sua traça primitiva, facilmente destrinçavel, no meio das largas e sobrepostas construcções posteriores.

Procurando maiores commodidades e larguezas á sua prosapia solarenga, fugindo talvez, tambem, ás sombrias recordações da infância, o Duque abandonara o velho -- «Castello da Menagem,» -- estreito e arruinado, onde mal poderia expandir-se a rejuvenescida grandeza da sua Casa ao sopro estimulante da Renascença.

Sem, naturalmente, dar tempo ás salemas da etiqueta, D. Jayme disse ás estremunhadas justiças que matara sua mulher, a Duqueza D. Leonor, e Antonio Alcoforado, seu pagem, -- «por os achar ambos e entender que dormiam juntos e lhe commettiam adulterio.»

Que entrassem elles na camara onde -- «a dita senhora Duqueza soia a dormir,» -- e fizessem sua obrigação, que por então consistiu n'um auto.

N'essa camara estavam estendidos no chão os dois cadaveres -- «um junto do outro.»

Não fôra assim que o Duque -- «achara ambos,» -- mas essa circumstancia não pareceu necessario averiguar por então.

A Duqueza tinha um grande golpe no pescoço, que quasi lhe separava a cabeça, e n'esta, quatro largas feridas, por uma das quaes, na parte posterior, irrompia a massa encephalica -- «os miolos,» -- diz singelamente o Pacheco, tabellião.

Vestia o trajo caseiro habitual: -- uma cota de velludo negro barrado de setim preto com perfiles, -- como quem dissera hoje: avivado, -- de tafetá amarello; um sainho de velludo negro; uma cinta de setim raso aleonado.

Fôra assim que a surprehendera o terçado assassino: -- n'uma simplicidade magestosa e elegante.

Não é difficil, e pôde não ser indifferente, verter esta velha terminologia de toilette, como diriamos hoje, ou de guarnimento de mulher, como diria Fernão Lopes, na geringonça phantastica do figurino moderno.

A cota, por exemplo, não era, como poderá suppôr-se, o corpo cingido, ou o corpete, mas uma especie de gibão de mangas compridas, cahindo sobre o vestido redondo. Este, era o sainho.

No século XIV, uma Gusmão, como D. Leonor, -- D. Beatriz de Gusmão, mulher de Affonso III, -- introduzira em Portugal as cotas posteriormente alongadas, -- caudatas, -- e d'ahi parece que lhe viera a alcunha e a lenda picaresca de Rainha rabuda, que fez matutar laboriosamente muita cabeça douta.

O cadáver de António Alcoforado tinha o pescoço cortado cerce.

Adivinhava-se um braço que continuara apenas um instrumento: -- passivo, escravo.

Fôra mais expedito e caridoso o processo.

O pobre moço trajava gibão de fustão prateado com meias mangas, collar e pontas de velludo roxo; calças vermelhas, -- calças, no significado antigo, entende-se, -- saio preto, cinto de couro preto cem guarnições de prata, borzeguins pretos e sapatos.

Garrido e cortezão viera desposar a Morte!...

Sobre a cama da Duqueza, -- fria e ordenada, tal qual a deixara a moça da camara, o que não registra a penna discreta do Pacheco, e se deve deprehender das revelações posteriores, -- estava um barrete de volta, preto, -- «que diziam esses que hi estavam que era» -- do Alcoforado.

E devia ser; mas pelo que disseram depois não fora provavelmente o moço que o pozera lá, o que, de resto, o grave ouvidor não esteve para averiguar na occasião.

Seriamente embaraçado deveria elle sahir d'ali, e certo que no resto da madrugada não poderam as justiças de Villa Viçosa conciliar o somno tão extraordinariamente interrompido.

Não era para menos o caso.

A nova andaria já acordando, apavorado, o pequeno soalheiro, que por largo tempo apertado no recinto castellão se estendera, acompanhando o so lar ducal, nos longos arruamentos da Corredoura, dos Cavalleiros, dos Gentis, este continuação da rua da Freira, por dizer assim prolongando-a até ao desapparecido Charqueirão.

Ao fundo d'essa estreita rua da Freira, - que, como quasi todas as de Villa Viçosa, conserva ainda hoje o nome que tinha n'aquelle tempo, e que mal esconde, até, na implacavel caiadura alemtejana, a sua senilidade quinhentista, -- uma pobre mãe, a familia d'um velho servidor e amigo dos Duques, contorcia-se nos desesperos lancinantes da fulminante desgraça que lhe arrebatára o filho, menino e donzel, horas antes tão descuidado e alegre á ceia domestica.

O pae não estava, muito provavelmente, no burgo.

Mas á nota sinistra e inopinada do acontecimento sobrepunha-se naturalmente, na commoção geral, atrapalhando angustiosamente os pobres magistrados da terra, o singular relevo social dos dois personagens: -- a Duqueza morta e o Duque homicida.

A lei era clara, e o caso além de não parecer extremamente obscuro, não havia de produzir os mesmos calafrios e assombros que a sua desluzida narrativa nos causa hoje, na sentimentidade do tempo frequentemente estremecida por estas scenas de sangue.

Se era clara a lei!

Ruy Boto, o -- «Chançaller moor destes Regnos» -- que acabára no anno anterior a famosa Ordenação Geral, previra prudentemente a especie, com uma grande minudencia de preceituação pratica, como quem excellentemente sabia que nada havia de mais fraco do que a carne, -- sem exclusão da mais finamente depurada no chrysol das gerações heraldicas, -- nem mais variavel e caprichoso do que os temperamentos maritaes, -- um tanto primitivos, -- do seu seculo.

Ruy Boto não deixara ficar no tinteiro a hypothese:

-- «E nõ soomente poderá o marido matar sua molher: e o adultero q achar cõ ella é o dito adulterio: mas ainda os poderá licitamete matar se entender provar q lhe cometá adulterio: e prouãdo depois p proua licita e abastãte segudo o direito quer; e nõ per soo fama: deue seer auido por sem culpa e liure sem pena algua.»

O caso embaraçoso e grave era precisamente este; esta era a causa porque o bacharel Gaspar Lopes e o juiz João Mouro, cem os seus notários e escrivães haviam de voltar, já -- «dia claro,» -- ao theatro da tragedia.

Com uma fria e reflectida ostentação de rasão e de direito, n'uma expontanea subordinação ao juizo do Mundo e do Rei, -- o que contraria a idéa ensaiada mais tarde de uma allucinação, de uma alienação nevrotica, -- o Duque chamava a Justiça a devassar do seu procedimento, propondo-se a justifical-o pela fórma ordinaria porque teria de fazel-o o ultimo dos seus villões, -- acto continuo á catastrophe, manchado ainda, talvez, pelo sangue quente da esposa, sem hesitação no seu orgulho de marido e de senhor, -- elle que podera dizer simplesmente: -- «Matei-os porque os encontrei adulteros,» - sem que voz alguma ousasse contraria l-o!..

Esta resolução cobria uma hypocrisia ou ia traduzir-se n'um embuste?

Independentemente, porém, da deliberação immediata e peremptoria do Duque, e apesar de que a situação singular d'elle parecesse collocal-o fóra dos termos ordinarios do Direito, -- pois que até das restricções postas na Ordenação nova ás jurisdicções das Rainhas e dos Infantes, fora privilegiadamente isempto o senhorio bragantino, -- os pobres magistrados, embora, a bem dizer, o fossem do egrégio homicida, -- sabiam perfeitamente que a Auctoridade Real, identificada, na tradicção e na doutrina, com o proprio principio da Justiça e da Lei, era extremamente susceptivel e ciosa d'esta investidura superna.

Não tinham elles visto, annos antes, cahir, uma madrugada, na praça de Evora, a cabeça de um Duque de Bragança, o pae d'este mesmo, o irmão da velha Rainha, ao pregão solemne e largo: -- « Justiça que manda fazer Nosso Senhor El-Rei» -- ?...

-- «Os Reis são a Justiça,» -- dissera um dia, fazendo rolar no patibulo a cabeça de um irmão, outro grande Rei portuguez, -- e mais os tempos eram bem menos desimpedidos e seguros para a Auctoridade Soberana.

Não era decerto sob o sceptro diamantino de D. Manuel que o secular principio, tantas vezes reimpresso e avivado a sangue na consciencia e na memoria das gerações, havia de andar mais esquecido e desacatado.

Conta Damião de Goes, parece até que insidiosamente, uma anedocta succedida então, -- suppomos até que no mesmo anno, -- em que a phrase de Affonso IV como que freme, viva e nitida, nos labios do Rei Venturoso.

D. Alvaro de Castro, fidalgo altamente collocado e aparentado, -- governador da Casa do Civil, -- «muito cortesam, grande motejador, & mui eloquéte no fallar,» -- casado com uma dama illustre, D. Leonor de Noronha, relacionada com as proprias senhoras da Familia Real, soube que um creado da sua Casa andava de amores com uma -- «escrava branca» -- que havia n'esta, e expulsou-o.

Constou-lhe, porém, que esses amores continuavam, e que o rapaz não só lhe rondava a porta, mas achava meio de se approximar da amante.

Fel-o vigiar, e surprehendendo-o, uma noite, mandou-o açoutar cruelmente pelos -- «mouros da estrebaria».

O corpo em sangue, o moço cobriu-se com uma capa, foi esperar o Rei, quando este se dirigia á Capella Real a ouvir a missa quotidiana, e descobrindo-se deante d'elle pediu-lhe justiça contra o seu alto magistrado, por assim dizer o seu logar tenente na Casa do Civil, o illustre senhor D. Alvaro.

D. Manuel carregou o sobr'olho, despediu o moço, dizendo-lhe que -- «justiça lhe seria feita,» -- ouviu tranquilamente a missa, e reentrando no Paço mandou suspender o governador, prendel-o em casa e intimar-lhe que desaggravasse e indemnisasse o rapaz.

Debalde os cortesãos mais graúdos, a numerosa parentella do Castro, a mulher, as influencias mais poderosas, se agitaram, importunando insistentemente a magnanimidade do Rei, reagindo, até um pouco atrevidamente, contra o que as prosapias fidalgas julgavam ser uma affronta propria, um exemplo deprimente, uma justiça exaggerada e cruel

-- «...aho que lhe respondeo -- diz o Goes,

-- «que ainda que dom Aluaro fora Rei, que lhe nam convinha fazer justiça em sua casa se não per via ordinaria.»

A situação prolongou-se, até que um dia a afflicta esposa, por um conluio affectuoso com a Rainha Viuva, podendo em casa d'esta, -- então junto da egreja de S. Bartholomeu, -- lançar-se aos pés de D. Manuel, conseguiu, á força de lagrimas, amaciar a inflexibilidade real.

D. Alvaro foi chamado ao Paço, e diz o grande chronista que de seu próprio irmão, Fructos de Goes, que assistira á scena, soube que o Rei dissera ao atrapalhado governador:

-- «aho qual has palauras pontuaes que El-Rei dixe foram q Deos pusera hos Reis na terra pera faserem justiça, per forma ordinaria, & ná volutaria, & que per isso punha officiaes a que comettião hos taes negoçios com ha mesma obrigaçam pelo q elle caira em grande erro, por mãdar faser justiça daquelle home em sua casa.»

Maus tempos e bons reis, aquelles!...

Os officiaes de Villa Viçosa conheciam excelentemente a distancia que separava um governador do Civil, por mais fidalgamente relacionado e estimado, d'um duque de Bragança, e muito especialmente d'este Duque, que fizera e mandára «fazer justiça em sua casa».

Além de que a fizera «por entender» que lhe commettiam adulterio. A lei era terminante.

Mas, também, que enorme distancia na gravidade dos casos!

Se o matador era o primeiro Senhor do Reino, erguido pela mão generosissima do monarcha ás ultimas culminações de poderio e de prestigio, -- ella, a Morta, era uma das primeiras damas de Portugal e Castella, -- filha d'uma das mais poderosas e opulentas familias da Peninsula, cuja prosapia hombreava com a de todas as Coroas d'esta, e mais de uma vez fizera frente á de algumas; -- cujo senhorio entestava no Guadiana com o territorio portuguez, e do lado do mar, e além d'elle, era auxilio e poderia ser padrasto ás nossas emprezas africanas.

Fôra o Rei D. Manuel, quem laboriosamente, com um grande cuidado de Pae e com um grande tino de Politico, escolhera esta Duqueza para que por ella continuasse e se consolidasse, junto da Coroa nacional, a forte e poderosa Casa que restaurara em D. Jayme.

É possivel que nem todas estas apprehensões, ou que muitas outras, atormentassem os cerebros mal dormidos das justiças de Villa Viçosa, mas é muito presumivel que ao abrirem a sua -- «inquirição devassa» n'uma das salas do Paço ducal, ellas se apercebessem que um outro juiz assistia, invisivel e sereno, á grave ceremonia, ou sentissem que alguma cousa insolita e superior penetrava através das paredes e das consciencias: -- ou fosse o olhar de Deus, ou fosse a magestade do Rei, ou fosse um raio da Historia... ou fosse simplesmente a curiosidade indiscreta, malevola, irreductivel de Toda-a-Gente.

II Estavas linda Ignez posta em socego Do teus annos gosando o doce fruito...

Camões. - Lusiadas.

Menor de doze annos e maior de sete, »-- que é quanto dizem os velhos papeis, e com que se teem contentado os modernos e pouco teimosos investigadores, -- Leonor de Mendonça soubera um dia, por fins de setembro de 1500, em S. Lucar de Barrameda, que se achava casada em Lisboa com o -- «mui illustre e excellente senhor Dom James, Duque de Bragança e de Guimarães.»

Como a fidalguinha andaluza receberia, entre alegre e amuada, as graves cortezias da nobreza da Villa, os graciosos cumprimentos dos irmãosinhos, as felicitações aguadas pela idéa d'uma proxima ausencia, -- que devia ser eterna, -- dos velhos companheiros e capitães do pae, os rudes soldados de Granada e Melilla, costumados a vel-a folgar e correr, menina e moça, por aquellas veigas do Guadalquibir!...

Ouvira já fallar n'isto.

Mezes antes, muito provavelmente, começariam as donas e a gleba da casa a chamar-lhe, n'um grande respeito amoravel, -- «a senhora duqueza,» -- como alguns annos depois os escribas de Villa Viçosa quando lhe «devassavam» a honra de mulher e de esposa sobre o mal arrefecido cadaver, com todas as reverencias do estylo.

Tinha de ser.

Aos sete annos, -- pois que nascera em 1489, -- morrera-lhe a mãe, a duqueza D. Isabel de Velasco, filha do condestavel D. Pero Fernandes de Velasco e de D. Mencia -- Mecia, -- de Velasco.

Dois annos depois fôra-se a avó paterna, a santa velhinha de quem recebera o nome e que a creára desde o berço : a Duqueza D. Leonor de Mendonça.

Das irmãs, -- uma, a D. Mecia, tinha um anno menos do que ella, -- a outra, D. Isabel. -- a mais bem fadada, talvez, porque havia de morrer freira no mosteiro de la Reina, de Burgos, -- viera depois.

O irmão, -- o mallogrado Duque e successor da Casa, o D. Henrique, -- era mais pequeno ainda.

Aquelle solar parecia um ninho devastado.

O pae, um grande senhor, a cada momento chamado a Guerra ou á Corte, moço, ambicioso, irrequieto, não havia de prender-se n'aquella orphandade obscura.

Tomára novos amores.

Terceiro duque de Medina Sidonia, quinto conde de Niebla, mais tarde primeiro marquez de Caçaça; oitavo morgado de S. Lucar, Bejel e Almadrava, senhor de Gibraltar, Ximena, Chinclana, Gausin, -- con su serrania (a Ronda), Huelva, Montecorto, Conil, Zahara, etc. -- fronteiro-mór da Andaluzia, -- Adelantado mayor de la frontera: -- D. João de Gusmão, ou mais propriamente D. Juan de Guzman, era um dos mais levantados e prestigiosos fidalgos de Castella, não só pela prosapia herdada, como pela desempenada grandeza de seu animo e de seu trato que lh'a fortalecia e augmentava em toda a Andaluzia e na Côrte.

Essa prosápia tinha ramificações numerosas e brilhantes na heraldica peninsular que subiam orgulhosamente a enroscar-se nos mais gloriosos thronos.

Só á sua parte, uma formosa Gusmão, -- la mas apuesta muger que avia en el regno, -- no tempo de Affonso XI, seu insaciavel amante, o marido da nossa infanta D. Maria, a ... carissima (?) consorte Mulher de quem a manda e filha amada D'aquelle a cujo reino foi mandada, -- só essa Gusmão, acerescentára consideravelmente na sua «prodigiosa fecundidade,» como diz um grave historiador, a nobreza da Península.

Outra Gusmão, tambem, a bastarda de Affonso X, fôra desde os oito ou nove annos, rainha de Portugal, -- e uma boa e santa rainha a quem o pae dera os senhorios de Niebla e de Elche.

Dos antepassados varões bastava a memoria de Affonso Peres de Gusmão el Bueno, o verdadeiro fundador da Casa, para lhe sobredourar o nome no respeito das gerações.

El Bueno, um aventureiro intrepido e um notavel capitão, estivera ao serviço do Rei de Marrocos n'uma d'aquellas treguas entre christãos e mouros aproveitadas, por uns e por outros, para se dilacerarem intestinamente. Ali começára a amontoar o grande thesouro tão cubiçado e disputado depois.

Um sinistro episodio, principalmente, o tornara celebre.

Senhor de Niebla e de Nebriga, herdeiro de S. Lucar, foi collocando os ganhos das campanhas marroquinas no arredondamento do seu território andaluz. Quando o Rei de Casíella precisou um governador para Tarifa, posto avançado e extremamente arriscado, da reconquista christã, offerecera-se elle por 600 mil maravedis annuaes, somma enorme, mas que cedo havia de mostrar-se como bem empregada foi.

O irmão do Rei, o infante rebelde D. João, repelido de Portugal, offerecera-se a Marrocos para lhe reconquistar Tarifa. Um patife.

Entre os instrumentos de guerra para vencer Gusmão, levou o refalsado infante um filho, creança ainda, do valente capitão.

Como este ultimo resistisse rijamente, D. João mandou levar o menino junto das muralhas e declarar a Gusmão que se não lhe entregasse Tarifa lhe mataria o filho.

O mesmo episodio do nosso Castello de Faria!

El Bueno, -- que de então se ficou appellidando assim, -- respondeu firme:

-- «Antes quero que me mates esse filho e outros cinco se os tivera, do que entregar-te uma terra que tenho por El-Rei.»

E atirando do adarve ao campo, o próprio cuchillo voltou as costas á renegada canalha.

Com essa mesma adaga, o bestial Infante fez degolar a creança, mandando arrojar-lhe a cabeça por uma catapulta aos pés do heroico soldado.

O nosso D. João de Gusmão era filho unico do Duque D. Henrique e de sua mulher D. Leonor de Mendonça.

Casára, em vida do pae ainda, aos 21 annos, com D. Isabel de Velasco, uma grande senhora que lhe trouxera um miseravel dote: apenas 4 contos de maravedis. Os Gusmões não precisavam riquezas, só estimavam virtudes, -- observa emphaticamente um seu historiographo.

Parece ter sido feliz mas foi pouco duradouro, este consorcio. Em 1496 D. João enviuvára, ficando, como vimos, com quatro filhos creanças.

Fòra somente quatro annos antes que suecedera a D. Henrique, por morte d'este, quando voltava com elle da conquista de Granada .

O pae fora um verdadeiro Gusmão: audaz, ostentoso, aventureiro, servindo dedicadadamente a Coroa e defrontando altivamente com ella. Parece que a Rainha Catholica, que o temia, por o haverem intrigado de pensar em passar-se para o serviço de Portugal, quizera fazer matal-o á traição.

Era um processo corrente, muitas vezes indeclinavel, dos tempos: -- o mais expedito, e geralmente o menos cruel.

O Duque mandou-lhe um fidalgo da sua Casa reprehendel-a asperamente da ingrata aleivosia, e sahiu ao campo, desarmado e em festa, como quem não se arreceava mais dos mandatarios regios do que das bestas feras dos seus matagaes andaluzes.

Usava por timbre duas enxós de tanoeiro e por lemma: -- Las cosas mas peligrosas, comigo aseguran su peligro. Bonito, mas comprido.

D. João sahira ao pae.

A reconquista christã da Peninsula estava feita, e fora sempre na vanguarda d'ella a signa e o braço dos de Niebla.

Chegára o tempo de passar o mar e de levar a terras d'Africa a Cruz vingadora e triumphante.

Era mais do que uma questão de segurança ou de ambição politica: -- era uma questão de economia, de equilibrio, de fatalidade social.

Ha hoje, ainda, «velhos de aspecto venerando,» como o de Restello, que não querem perceber isto.

Era necessario lançar no continente fronteiro uma linha de fortes sentinellas que guardassem e contivessem o Mouro.

E a onda aventurosa, que viera rolando das montanhas do Norte até á beira extrema da Peninsula, tinha de ir espraiar alem as ultimas curvas torvas e insubmissas, -- talvez melhor: -- o excedente da sua força equilibrante.

Fôramos nós, os portuguezes, os que avançáramos primeiro, por um grande numero de rasões, entre as quaes não foram das somenas o havermos tido um João I, um Infante D. Henrique, sobre todos, um João II, e antes d'elles e entre elles, uns poucos de homens, ou uns poucos de reis, ou uns poucos de governos consideravelmente mais intelligentes do que teve Castella.

Com poucas falhas, -- a maior das quaes, um D. Fernando, na primeira dynastia, e um Cardeal Rei, na segunda, -- a politica portugueza, n'aquella metade da nossa existencia nacional, é, no seu conjuncto, na sua grande mancha historica, até sob um ponto de vista artistico, um trabalho primoroso de harmonia e de logica.

Providencial? -- como quizeram alguns.

Simplesmente fatal? -- como pensaram outros.

Os termos valem-se e não se explicam.

Mas foi naturalmente assim, ou por isso, que podemos ser aquella -- ...gente ousada mais que quantas No mundo commetteram grandes cousas

Graças ao facto de não terem sido tomadas a sério as lamurias do Velho e as matutações estadisticas, tão lendárias como ellas, do infante D. Pedro.

Do lado de Castella os Gusmões fizeram a avançada.

Naturalmente, não podendo já alargar o seu senhorio em Hespanha senão por compras onerosas ou por concessões regias, mais onerosas ainda, lançavam de ha muito as vistas para além do Estreito.

Os Reis Catholicos tinham enviado um Martin Galindo, homem que fôra da Casa de Niebla e que se bandeara -- «por enojo» -- para a sua rival e inimiga de Marchena ou de Cadiz, a estudar a conquista de Melilla, em Africa, caminho de Fez, e o estabelecimento, ali, de uma sentinella perdida do imperio castelhano.

Voltára o sujeito com desanimador conselho.

Soube-o D. João de Gusmão, e enviando á descoberta Pedro de Estopinhão, -- Pero de Estopiñan, -- com quem logo nos encontraremos, -- seu fidalgo e contador maior, -- onbre bien entendido é deligente en toda cosa, -- entregou-lhe, em seguida, uma forte expedição de 5:000 homens de pé, muitos cavalleiros e varias naves e petrechos, que sahia de S. Lucar, em setembro de 1497.

Melilla foi tomada, reedificada e guarnecida, gastando o Duque, só na muralha, cava e barreira, o melhor de doze contos de maravedis.

Jubilaram os Reis Catholicos e deram a D. João tres contos de renda para ajuda do custeio da praça, além de -- «dos mil hanegas de pão,» -- e de reforços de soldados para a conservação d'ella.

Logo no anno seguinte nova expedição maritima e terreste sob o mando do Estopinhão e de outro capitão do Duque, -- Garcia Léon, -- avançou pelo territorio de Oran, arrazando Bucifar e trazendo, a S. Lucar de Barrameda, 260 mouros captivos: -- homens e mulheres.

Em seguida, as vistas de Gusmão voltavam-se para Caçaça, outra pequena praça africana, mas emquanto não conquistava o marquezado d'aquelle nome, -- que os marquezados, então, faziam-se esperar e custavam caro, -- foi por este tempo que indo á côrte, a Toledo, recebeu, provavelmente pelos primeiros feitos, Gausin -- é sus aldeas, -- uma boa enfiada d'ellas.

Não era sómente n'estas emprezas bellicas que o Duque distrahia a sua opulência e a prematura viuvez.

D. João passava a maior parte do tempo em Sevilha que era uma especie de capital accessoria para o sul da Hespanha, n'aquelles tempos em que o poder central jornadeava com a Côrte por diversas terras conforme as conveniencias, as necessidades, muitas vezes os caprichos da sua ostentação realenga.

Exactamente no anno em que se fechava em Lisboa a negociação do casamento da filha de D. João de Gusmão com o Duque de Bragança, vinham os Reis Catholicos a Sevilha, e por elles fazia as honras da cidade o Medina Sidónia ao Rei de Navarra que os viera visitar ali, exhibindo uma faustosa galhardia em banquetes, justas, jogos de canas e touros, festas que foram memoradas.

Tambem então iam adeantados os novos amores do moço viuvo com uma sua prima-irmã, D. Leonor de Gusmão e de Çuniga, irmã do Duque de Bejar, D. Alvaro de Çuniga.

Vivia esta formosa dama em Sevilha, em casa da mãe, D. Thereza de Gusmão, filha bastarda de outro Duque de Medina Sidonia, e mulher que fora de D. Pero de Estuniga.

O proximo parentesco exigia dispensa da Egreja, mas Roma ficava longe e os namorados encontravam-se todos os dias.

D'ahi proveiu que um filho, D. Alonso Peres de Gusmão, precedeu o breve pontificio, ficando comtudo perfeitamente sanadas as coisas logo no anno seguinte, em 1501, com as bodas publicas, muito solemnes e festivas, por signal, coroadas pouco depois pelo nascimento de outro filho mais geitoso do que o primeiro que sahira mentecapto, naturalmente por não ter aguardado a dispensa do papa Borgia.

Vem isto a proposito para se entender que pelo mesmo tempo em que obtinha esposo para a filha, D. João lhe arranjava madrasta.

Teria D. Leonor, a filha, sete annos, talvez ainda em vida da avó, quando D. João começara a negociar-lhe este marido através das mais complicadas preoccupações diplomaticas e da mais temerosa e brilhante concorrencia.

Fôra uma longa e difficil campanha, e fôra ainda o habil Pero de Estopinhão, -- tão diplomata como guerreiro, -- que lh'a vencera.

Haviam entrado no certamen quantas grandes familias de Castella tinham filhas no berço ou a collocar na politica das prosapias e das conveniencias solarengas.

Duarte Brandão, um previdente conselheiro educado naturalmente na escola de D. João II, que achava avisado procurar enxertia principesca além dos Pyrineus, lembrava que conviria a D. Jayme... ou ao Rei, a filha do monarcha francez. Esta filha não podia ser outra, porque a não havia, senão a infeliz e coxa princezasinha Claudia, que acabára de nascer, e que, desposada aos sete annos com o futuro Francisco I, havia de merecer do povo e da historia o nome de «Boa Rainha» como premio da sua desolada existencia.

O celebre imperador Maximiliano, -- o neto do nosso D. Duarte, -- que bem sentia como a politica castelhana procurava arredal-o dos negocios peninsulares, fôra uma noite ceiar com o nosso Thomé Lopes, para dizer-lhe muito á puridade que estimava casar o Duque portuguez com sua filha dilecta, «Madama Margarida,» a noivasinha de quatro annos, de Carlos viu de França, brutalmente repudiada por este, e viuva, bem pouco havia, de D. João, o malogrado herdeiro de Castella. Uma bella viuva de dezesete annos.

Chegára tarde a carta do Lopes, e como o casamento de D. Jayme era negocio feito, a intelligentissima e futura auctora da liga e da paz das damas, desposava em 1501 o Duque de Saboya.

Mas a competencia que maiores embaraços pozera ao empenho e diligencias do pae de D. Leonor, fora a de Joanna de Aragão, filha natural do Rei Catholico, cujo casamento, parece que patrocinado pela irmã, futura Rainha de Portugal, D. Manuel mandara definitivamente negociar por Lopo de Sousa, em 1497, tornando por base a verba dotal promettida a D. Leonor pelo pae!

Muito provavelmente fôra a unica das noivas do Duque de Bragança que elle tivera occasião de conhecer. E não era creança, esta.

Mas n'aquelle anno realisava-se o casamento de D. Manuel com a filha primogenita dos Reis castelhanos, a viuva do malogrado filho de D. João II, e pouco depois, morto o herdeiro d'aquelles, o Rei portuguez era açodadamente chamado a receber, por sua mulher, a investidura de presumptivo successor dos sogros, assustados com as pretensões denunciadas pela Casa de Austria.

Passando a fronteira, D. Manuel encontrava á frente da brilhante comitiva castelhana que o aguardava ali, D. João de Gusmão, cujas boas disposições não eram para desdenhar n'aquellas circumstancias e alturas.

Outras preoccupações ainda favoreciam o intento de D. João.

Por um lado, a politica castelhana vigiava ciosamente esta questão do casamento de D. Jayme, receiando competencias novas á successão eventual da Corôa portugueza, ou novas allianças d'esta que viessem ameaçar a tranquillidade e as pretensões dos Reis Catholicos.

Do nosso lado, independentemente do valor que a adhesão de D. João de Gusmão, ou o bom accordo com elle, poderia ter na crise que se annunciava, -- que se abrira já, -- nos destinos da monarchia visinha: -- D. Manuel, propondo-se a proseguir e consolidar as conquistas d'Africa, pensando mesmo em passar a ellas, naturalmente via no Duque andaluz um auxiliar excellente, um conveniente amigo.

-- «Muy magnifico señor, y gran gastador,» -- como o pinta o nobliarchisca Alonso Lopez de Haro, -- e posto que, como os seus antecessores, muito dedicado á Corôa, D. João de Gusmão era bastante intelligente e sagaz, era, além d'isso, bastante homem do seu tempo para que deixasse de perceber que a sua riqueza, o seu enorme prestigio, a bella situação dos seus dominios, a sua «nobre cidade de Gibraltar,» os seus estrategicos postos de S. Lucar e de Huelva, haviam de fazer uma certa apprehensão oppressiva na politica dos seus augustos suzeranos.

Sabia-o excellentemente.

Já do pae houvera indicios soffrivelmente seguros, como vimos, de que se quizera livrar a Rainha Isabel.

Uma das preoccupações d'aquella politica, que ella propria não calava, que até com impertinente insistencia fazia sentir aos Gusmões, era a posse de Gibraltar.

Gibraltar custara muito sangue e muita fazenda aos de Niebla. Tinham-n'a conquistado elles. Os Reis Catholicos haviam-lhes proposto por varias vezes a troca de Gibraltar por outros senhorios mais productivos, talvez, -- mais internados, -- principalmente, mais faceis de vigiar...

Mas Gibraltar era um brasão de familia.

Quando D. João suecedera ao pae, a Rainha Izabel suppondo-o na dependencia das confirmações regias da successão, prometteu-lh'as logo, se lhe cedesse Gibraltar.

D. João respondera-lhe altivamente que a sua Casa pouco tinha que houvesse recebido da Corôa e que por isso precisasse da confirmação d'ella: -- apenas a terra de São Lucar, que lhe fôra dada deserta e baldia para que os Gusmões a povoassem.

Tudo o mais custára-lhes o seu dinheiro ou o seu sangue, e que por isso: -- fuesen sus altesas servidos de no les pedir Gibraltar pues no se la dieron.

Mas, com toda esta arrogancia, D. João não se illudia, e acautelava-se.

Conhecia o latente e fatal antagonismo de Castella e Portugal, -- muito melhor e muito mais de perto do que o nosso illustre contemporaneo, o sr. Canovas; -- convinha-lhe d'este lado um amigo que poderia n'um dado momento ter um grande interesse em ser um alliado.

E vendo o empenho politico dos Reis Catholicos em consolidar as boas disposições da Corôa portugueza por um segundo casamento de D. Manuel com uma filha d'elles e a dilecção singular do monarcha portuguez por D. Jayme, seu possivel herdeiro, fazia conta, -- é o proprio D. Jayme quem o diz, -- que comprava ou salvava Gibraltar no casamento de D. Leonor com o Duque de Bragança.

Havia de mallograr-se-lhe o calculo, mas eram dois espertos e praticos negociantes: -- o Rei e o Gusmão!

Acabaram por entender-se,... enganando-se.

O objecto da operação, sabe-se já qual era.

III

Mas façamse todos os casamentos liuremente per vontade verdadeira d'aqlles q ouuerê de casar segundo manda a santa madre ygreja.

Ord. de D. Man., Liv. 4º tit. VII

2.ª ed. 1514

O cabo de tres ou quatro annos de negociação e de intriga, pôde, em 15 de junho de 1500, o Affonso Paes, -- «escrivão publico» -- de S. Lucar e redondezas, espanejar gloriosamente a sua sabença tabellioa na procuração esponsalicia da pequena fidalga andaluza. Por esse curioso documento, D. Leonor de Mendonça, -- «menor de doze annos e maior de sete» -- vimos já que teria onze, -- declarava que lhe -- «prasia» -- e -- «era contente» -- do -- «esposorio e casamento» -- d'ella com D. Jayme, contractado entre seu pae e -- «o mui alto e mui poderoso serenissimo senhor D. Manuel, Rei dos Reinos de Portugal, -- e a mui alta e mui poderosa serenissima senhora rainha D. Leonor, mulher do mui alto e mui poderoso serenissimo senhor D. João Rei que foi dos ditos Reinos, -- e a mui illustrissima senhora Infante D. Beatriz de Portugal, -- e a mui illustre senhora Duqueza D. Isabel, madre» -- de D. Jayme.

E, como era assim -- «contente» -- do caso, dava -- «todo o seu livre, valledoiro e comprido poder» -- ao commendador Pero de Estopinhão, o de Melilla, -- uma especie de ministro da fazenda do pae, contador da sua fazenda, -- para que -- «tomasse as mãos» -- com o Duque e -- «se desposasse» -- com elle em seu nome e como se ella pessoalmente o fizesse, porque -- «desdagora por entonces e de entonces por agora se outorgava por sua esposa e mulher segundo ordem da Santa Madre Egreja de Roma».

Tudo fôra prevenido e previsto: -- aquella Santa Madre Egreja de Roma, então supremamente timonada por Alexandre VI, que pouco havia fizera contracto analogo para a filha, Lucrecia Borgia, da mesma edade, e que passados dois annos, -- aos treze, -- a mettera no leito de outro marido, -- solemnemente auctorisava a pobre creança a esta complicada delegação, por Carta de D. Diogo Furtado de Mendonça, Patriarcha de Alexandria e Arcebispo de Sevilha, de 12 d'aquelle mez e anno, que o Affonso Paes não se esquecera de incluir no arrasoado.

Um habil e meticuloso notario, o Paes, que não dispensava formulas, nem poupava cautelas, e que ainda depois de ligar muito bem e enfadonhamente ligada a palavra da sua illustre constituinte, com todas as -- «incidencias, dependencias e connexidades,» -- da technica tabellioa, não se esquecia de pôr-lhe na bocca, -- importando-se muito pouco que não lhe coubesse na gentil cabecinha, -- esta grave e prudente advertencia:

-- «E renuncio as leis dos Emperadores Justiniano e Valiano que são em favor e ajuda das mulheres, que me não valha nesta rezão.»

E não havia de valer-lhe, realmente!... O menos com que haviam de contar os que a casavam era que ella fosse um dia mulher.

Disseram-lhe que assignasse, e por testemunhas de como -- «era contente» -- certamente de se ver livre da fatigante e incomprehensivel leitura, -- lá ficavam tambem as garatujas respeitaveis do capitão do pae, Bartholomeu de Estopião, e do Capellão do irmãosinho D. Henrique, o reverendo Gonçalo Carrilho.

A este documento juntava-se outro, passado em Sevilha, a 13 de junho, pelo escrivão Bartholomeu Sanches, na presença de dois collegas, o João de Murgua e o Affonso de Fumuzello, pelo qual D. João de Gusmão, que o firmava, como -- «padre legitimo amenistrador que era de foro e de direito e sob cujo poderio paternal» -- D. Leonor se achava, pelo mesmo commendador -- «a outhorgava por esposa e mulher do dito senhor D. James bem assy e compridamente como se ella pessoalmente com elle tomasse as mãos e o desposasse.»

Mas uma questão capital, -- a do dote, -- demorara em Lisboa a negociação e estivera á beira de mallogral-a.

Os negociadores de D. João de Gusmão não promettiam mais de 40:000 cruzados, -- uns oitenta contos de hoje.

D. Manuel, porém, era homem sagaz e pratico, embora uma historia mal feita, não lhe perdoando que fosse extraordinariamente feliz, lhe conceda apenas, em guisa de remoque depressivo, o epitheto de venturoso.

O dote da noiva de D. Jayme, convertido pela finança realenga em titulo de renda perpetua, deveria fornecer um subsidio importante aos gastos das emprezas d' Africa.

Nada menos moderno do que a Finança, ao contrario do que julgam os emproados agiotistas de hoje.

O Rei portuguez comprehendia, decerto, as rasões de interesse, não simplesmente heraldico, mas immediatamente politico, que moviam o Duque de Medina Sidonia a diligenciar aquelle casamento para a filha.

Era conhecida, -- lendaria, até, -- a riqueza numeraria, o thesouro, como então se dizia, de D. João de Gusmão, e a situação singular de D. Jayme, não sómente pela grandiosa restauração da Casa de Bragança, mas pelo extraordinario valimento que D. Manuel lhe concedia e pelo logar que occupava na escala dos herdeiros eventuaes da Corôa, exercia manifestamente, como dissemos já, uma forte seducção nas justas prosapias e apprehensões da grande Casa andaluza.

Além de que D. Manuel tinha verdadeira affeição por D. Jayme.

Como que o adoptára por filho, e até, quando nenhum tinha, ensaiára indigital-o por herdeiro, posto que com mais manha do que sinceridade.

Enviando Lopo de Sousa a tratar do casamento d'elle com D. Isabel de Aragão, recommendára ao enviado que fizesse insidiosamente sentir aos Reis Catholicos que Gusmão offerecia de dote á rilha, no caso de a desposar D. Jayme, dezoito contos, e -- «lhe daria mais e não deve ser menos que por rasão de seu estado o custo hade ser maior,» -- tendo além disso de -- «correger e reformar sua casa.» Muito previdente e pratico.

A morte do pequenino principe D. Miguel, unico filho de D. Manuel e da sua primeira e mallograda mulher, em 22 de julho de 1500, pareceu valorisar extraordinariamente a situação do Duque de Bragança.

O Rei mandára então chamar os mensageiros castelhanos, -- entre os quaes, naturalmente, o nosso conhecido commendador Pero, -- e observára-lhes que -- «bem viam que elle não tinha outro filho,» -- e que por isso, se queriam que consentisse no casamento, arredondassem em trinta contos o dote que o Gusmão poderia -- «levemente dar.»

Regatearam um pouco e fechou-se o negocio em vinte e seis contos, -- uma enormidade, ainda assim -- o duplo approximadamente da proposta primeira: -- como quem dissera hoje cento e trinta contos de réis.

Provavelmente, D. Jayme tivera de vir para Lisboa aguardar o termo da negociação, abandonando o seu castello solarengo, -- o Castello Velho, -- de Villa Viçosa, e os planos da edificação do Palacio em que teria de alojar a esposa que o Rei lhe impozesse.

O que é certo é que pousava então nas -- «casas de Pero Vaz que estam cerca da cidade, junto de Santos o novo,» -- o mosteiro em que penitenciava as suas saudades mundanas a formosa amante de D. João II, D. Anna de Mendonça.

Foi ali que, em 3 de setembro, mandou chamar Pero Vieira, -- «notario publico geral,» -- e que este lhe fez a procuração pela qual -- «confiando da bondade e discrição de Lopo de Sousa» -- seu aio, governador de sua fazenda, e do Conselho do Rei, o -- «constituia e ordenava por seu abondoso procurador sufficiente para contractar e afirmar o dito casamento,» -- com o Pero de Estopinhão.

Serviram de testemunhas Henrique de Figueiredo, fidalgo e veador da casa de D. Jayme, e Duarte de Goes, escudeiro n'ella, um parente, talvez, de Damião de Goes.

Onze dias depois, a 11 de setembro, realisam-se as duas ceremonias finaes, a do contracto de dote e arras, e a de -- «tomar as mãos» -- e -- «receber por palavras de presente,» -- sendo curioso que é a primeira, -- a do contracto, -- que se realisa na Egreja, -- na de S. Christovão, -- e a segunda, -- a do «esposorio,» que se faz em casa, -- nas da Rainha D. Leonor, viuva de D. João II e tia de D. Jayme, -- «que estam junto com Santo Eloy,» -- onde então se dizia que pousava o Duque.

E' prolixo, mas interessante o contracto.

Apresentados os poderes pelos respectivos procuradores, Lopo de Sousa e Pero de Estopinhão, e accordado -- «que D. Jayme e D. Leonor hajam de casar e casem por palavras de presente fazendo matrimonio, como manda a Santa Madre Igreja,» -- fixam-se, minuciosa e cautelosamente, as clausulas.

O Duque de Medina Sidonia daria -- «em dote e casamento, com a dita senhora D. Leonor, sua filha,» -- ao Duque portuguez, vinte e tres contos de maravedis -- «em dinheiro contado,» -- um conto em prata branca de serviço e dois contos em enxoval.

Rigorosamente, D. João de Gusmão, dava só dezoito contos do seu «thesouro,» porque, como explicava, oito eram já da filha, que lh'os deixara em testamento a Duqueza sua avó paterna, e que agora lhe «prazia» pagar.

Este dote seria entregue por partes: -- quinze contos a D. Jayme, dentro de quinze dias depois de os mandar receber de D. João, -- cinco ao Rei D. Manuel, mediante recibo d'este, e a prata e o enxoval -- «quando a dita senhora se entregar.»

Os cinco contos que se concertára pagar a D. Manuel entravam claramente na conta de vinte e um que havia de receber d'este dote por troca de uma renda de -- «conto e meio» -- em que esse capital teria de converter-se.

Para illucidação de uma referencia que atraz fizemos a esta operação financeira, como hoje diriamos, observaremos que encontrámos registo de uma escriptura feita, no mesmo dia d'este contracto, entre D. Manuel, a Rainha D. Leonor e a Duqueza mãe de D. Jayme, de uma parte, e o Duque de Medina Sidonia, da outra , pela qual este ultimo se obrigava a pôr nos logares d'Africa que o Rei portuguez determinasse -- «6:400 carizes de pão» -- por conta d'este dote, devendo os primeiros entregar a D. Jayme o correspondente valor.

É uma nota interessante.

Ao pagamento integral do dote, acautelado por uma longa enfiada de formulas e hypotheses peritas contra as contigencias do futuro, obrigava D. João o -- «terço e quinto» -- de seus bens, e por maior segurança dos vinte e um contos que entravam no thesouro regio, -- «se porventura El-Rei os desquitasse ou se gastassem em maneira que se não podessem haver pelos bens patrimoniaes» -- ficavam a elles caucionadas as villas de Portel e Borba, para que D. Leonor recebesse as suas rendas -- «sem descontar até que seja paga d'elles.»

Pelo seu lado, o Duque de Bragança, -- «por honra da pessoa da dita senhora D. Leonor» -- dava-lhe de arras, -- «cinco milhões» -- ou contos de maravedis, -- «os quaes ella hade ganhar e ganhe segundo forma e maneira que per direito commum está determinado,» -- ficando de penhor a estas arras -- «as villas de Souzel e de Alter com suas rendas e jurisdições.»

Parecerá enfadonho, mas offerece, sob mais de um aspecto, um particular interesse este summario de uma convenção esposalicia do século XVI.

Servira mal o Romance, até porque desencanta e desmente muita phantasia rendilhada ainda, á custa e por conta das boas noções da Historia.

Depois, através das velhas folhas e da linguagem morta d'estes documentos juridicos, vê-se palpitar e revolver, nas suas paixões, nos seus interesses, no seu modo peculiar de sentir, de pensar, de ser, como que uma humanidade estranha.

E é absolutamente necessario vêl-a tal qual era, para julgal-a e comprehendel-a tal qual tinha de ser nas varias manifestações da sua vida: -- no Individuo e no Facto, nos grandes movimentos e nos mais pequenos episodios.

Pondo, porém, de parte as condições financeiras do contracto, notemos duas de bem diversa natureza.

Entre elle e a consumação do consorcio que se procurava garantir, tinha de mediar um espaço relativamente longo.

Lembremos uma vez mais que D. Leonor era -- «maior de sete annos e menor de doze.» --

A Natureza sempre conseguia impôr-se ao respeito d'estas combinações artificiosas.

Não podia passar despercebida, e não passou, aquella circumstancia aos praticos e prudentes negociadores, por egual empenhados já, em assegurar o pleno exito do tratado.

Preceituou-se, então, naturalmente por iniciativa do negociador portuguez, que o Duque castelhano entregasse a filha até ao rim de março do anno seguinte, á mãe de D. Jayme para que ella -- «a tenha e crie até ser em idade pera com graça de nosso Senhor haja de casar.»

O pae havia de envial-a á fronteira, e D. Jayme e a mãe fazel-a receber ali, com as honras e seguranças devidas, -- «como a semelhantes pessoas convém.»

Por outro lado, e provavelmente por exigencia do negociador de D. João de Gusmão, obrigava-se o Duque de Bragança, no caso da pequena noiva morrer primeiro que elle e antes que -- «se confirmasse o dito matrimonio,» -- a casar com a irmã d'ella e rilha segunda de D. João, -- D. Mecia, então de dez annos, -- subsistindo integralmente o contracto, se esta ao tempo estivesse por casar.

Não esquecia também a hypothese de fallecer o irmão de D. Leonor, ou de cahir n'esta, por falta de successão varonil, a herança da Casa de Medina Sidonia.

Se dois filhos houvessem de D. Leonor e D. Jayme, as duas Casas continuariam apartadas, pertencendo a cada um a sua. Se porém quizessem os pães que em um só se reunissem, esse residiria na de Medina Sidonia, se o Rei de Portugal nisso consentisse, o que não seria provavel. Quando existisse um só filho, os pães resolveriam o que por melhor tivessem.

É curioso isto.

Póde bem imaginar-se o que teria sido a fusão das duas Casas, como quem diz dos dois potentados ducaes!...

Convém notar que por aquelle tempo deviam andar já muito adeantados os amores de D. João de Gusmão com a prima-irmã, a futura Duqueza de Medina Sidonia.

Não viera ainda a dispensa de Roma, mas podia contar-se já com um novo pimpolho dos Gusmões.

Por natural discrição, D. João não figurava de viuvo nem de casado n'estes documentos.

Terminava o accordo por todas as prolixas e complicadas formulas e precauções de segurança, obrigando as duas partes ao exacto cumprimento d'elle, todos os seus bens, independentemente de uma multa de dez mil cruzados -- «apertente e guardante a qual pena, pagada ou não pagada toda a via este contracto seja firme e em todo o seu vigor.»

Firmado o documento pelos procuradores e pelas testemunhas, bacharel Fernão de Moraes, ouvidor de D. Jayme, Diogo Pires, contador das suas terras e Diogo de Moraes, capellão d'elle, passouse, acto continuo, á segunda ceremonia, como já dissémos, nas Casas da Rainha D. Leonor.

Estavam ali D. Jayme, D. Diogo Pinheiro, «vigario de Thomar,» D. João, conde de Penella, Pero de Castro, Henrique de Figueiredo, fidalgos da Casa do Duque de Bragança, -- «e outros» -- accrescenta o termo. Não o diria assim se assistisse o Rei, a Rainha viuva, a propria Duqueza Mãe.

A formalidade foi simples e rapida.

O celebre Vigario da Ordem de Christo -- «tomou as mãos» -- ao Pero de Estopinhão que figurava a noiva, fez o mesmo ao Duque, e -- «recebeo a senhora D. Leonor de Mendonça per palavras de presente, segundo forma da Santa Madre Igreja de Roma, com Dom James.»

O tabellião encerrou o termo, e duas existencias que se não conheciam, e duas almas que nunca se haviam encontrado, -- uma creança de onze annos que talvez áquella hora brincava alegremente nos jardins solarengos do Guadalquibir, e um rapaz de vinte e dois, cheio de intelligencia e de ambição, que -- «desejava pouco de casar e muito de folgar,» -- como elle havia de dizer mais tarde no crú remordimento de tantas recordações implacaveis, -- estavam, -- ella, sem consciencia, -- elle, «muito contra sua vontade,» -- -indissoluvelmente, fatalmente, ligadas na vida, jungidas ao mesmo destino, fundidas no mesmo nome.

IV

Depois de vós...

Lemma da Casa de Bragança, restaurada em D. Jayme.

D. Jayme era o segundo filho do terceiro Duque de Bragança, D. Fernando II, o das pernas gordas, e da Duqueza D. Isabel, filha do Infante D. Fernando, Duque de Vizeu.

Nascera aos 22 de julho de 1478: -- tinha pois cinco annos, apenas, quando uma tempestade de sangue e de terror o atirou, e aos pequenos irmãos, -- orphãos e desvalidos, -- para o exilio.

O pae era decapitado em Evora, em 1483; -- um tio apunhalado em Setubal, pelo proprio Rei; -- outro executado em estatua, -- as Casas de Bragança e de Vizeu sequestradas e dispersas.

Na torva intriga das pretensões senhoriaes e da politica castelhana, a fraqueza dos desventurados chefes das duas poderosas Familias, trahira-lhes desalmadamente a tradição nacional e popular da dynastia de João I, que era a d'ellas, e que só a de Bragança havia de saber resgatar nobremente na restauração da Independencia portugueza, quasi dois seculos depois.

Sob a terrivel apprehensão de que a mão de ferro de João II não poupasse as pobres creanças, -- talvez também por uma suggestão perfida d'aquella mesma politica que tanto acariciára a conjuração fidalga, -- D. Filippe, D. Jayme e D. Diniz, os filhos do Duque D. Fernando, -- foram levados a Castella e acolhidos pelos Reis Catholicos.

Lá mesmo, porém, havia de continuar a sombrear-lhes a infancia, o espectro da perseguição e da morte.

D. Filippe, o mais velho, não voltou a Portugal.

Morreu moço, e a suspeita d'um envenenamento veiu accrescentar-se á lenda sombria do Rei portuguez.

O proprio D. Jayme parece ter difficilmente escapado a uma grave enfermidade sobre a qual se fez incidir a mesma suspeita, e á qual tinham de ser averbados depois os terriveis accessos de «humor melancholico» que o atormentaram toda a vida.

A unica irmã, mais nova que todos elles, ficou com a mãe em Portugal e veiu egualmente a morrer menina.

Digâmos, de passagem, que sobre aquella suspeita póde tambem incidir outra, melhor fundada: -- a de que a suggerisse o terror e o odio, explorando-a a intriga politica.

O proceder de D. João II para com alguns dos conjurados, e muito particularmente para com D. Manuel, o irmão do Duque de Vizeu D. Diogo, contrariam seriamente a odiosa supposição.

Oito annos depois da grande tragedia de 1483, morria desastrosamente o unico herdeiro directo de D. João II, o principe D. Affonso, casado com a Princesa D. Izabel, -- duas creanças feitas garantes da paz e dos destinos dos dois Estados, -- ella, a filha dos Reis castelhanos que assim bruscamente arredada da Corôa, havia de compartilhal-a, um dia, precisamente com o novo successor, juntar-lhe as dos pães, e como que viver Rainha, apenas o tempo que vivem as rosas: -- l'espace d'un matin!

Em 1495 desapparecia no tumulo D. João II.

-- «Morrera o homem,» -- como exclamara na expansão sincera de quem accorda de um pesadello sinistro, a Rainha Catholica.

Envenenado, ou não, -- novo e forte, ainda, -- João II, póde dizer-se que morrera a tempo.

Alguns annos mais, e a expansiva vitalidade das duas unicas monarchias peninsulares que haviam de chegar, -- e eram chegadas já, -- á consolidação definitiva, primeiro do que tantas outras, pela necessaria crystalisação nacional, iria talvez gastar-se e dilacerasse tristemente n'uma d'aquellas longas luctas em que se contorcia a Europa christã, face a face do mussulmanismo recrudescente.

Que opulenta e pouco menos que inexplorada mina de estudo e de inspiração, a que este momento historico offerece ao critico, ao politico, até ao artista e ao poeta!..

Apparentemente, a obra de João II, -- ainda hoje enovelada na Lenda, em sombras que confrangem e em clarões que cegam, -- não só ia interromper-se e truncar-se, mas retrogradar e perder-se, ingratamente engeitada pelo suecessor do grande Rei.

Logo os primeiros actos d'esse suecessor parecem confirmar irresistivelmente tal idéa que não é, aliás, senão uma especie de illusão optica.

Um d'esses actos foi precisamente a franca e ostentosa restauração da Casa de Bragança.

Mas não foram, certamente, apenas as rasões de sentimento e de consciencia choradas junto de João II por D. Leonor, a attribulada esposa, e no coração desopprimido e moço de D. Manuel, pela infanta D. Beatriz e pela Duqueza D. Isabel, as desoladas mães, que moveram o primeiro a nomear seu herdeiro o segundo, -- o irmão do Apunhalado de Setubal, -- e esse, subindo com passo apressado e seguro ao throno portuguez, a chamar do exilio os filhos do Degolado de Evora.

João II, o Principe Perfeito, que Machievel teria naturalmente preferido, se de perto o conhecera, áquelle Cesar Borgia que acertou ao seu ideal, havia de perceber, nitidamente, agitando-se e medindo-se na funesta solidão em que a morte o envolvera a elle e á Corôa de Portugal, as pretensões e cubiças da politica imperial e da politica castelhana, esta, a velha e necessaria inimiga.

Maximiliano I era neto do nosso D. Duarte, por sua mãe, a formosa e amoravel Infanta D. Leonor, Imperatriz e Rainha, que descera ao tumulo em Neustat em 1467.

Isabel a Catholica, Rainha de Castella e Aragão, tinha a referver-lhe nas veias, sobre o dessorado sangue do pae, o do ousado e ambicioso avô, o Infante D. João, um dos filhos do nosso D. João I.

Não podendo legar, tranquilla e firme, a Corôa, ao bastardo amantissimo, D. Jorge, -- D. João II punha áquellas pretensões e cubicas uma previdente objecção chamando a assegurar a successão directa da grande dynastia nacional, um neto de D. Duarte e d'aquelle mesmo Infante, -- homem moço, sadio, ambicioso, -- capaz, como pareceu empenhado em provar, de abastecer largamente a reduzida Casa de Portugal com numerosos esteios de reproducção biologica e de alliança politica.

D. Manuel, Rei por acaso, sentiria certo, rumorejar-lhe em volta, as saudades populares por D. João II, podendo fixar-se um dia no moço bastardo que feito Duque de Coimbra, mais tarde, como que avivava no titulo e nas doações a mal apagada memoria do celebre Infante D. Pedro.

Por outro lado, via nas mãos dos Reis Catholicos, podendo tornar-se n'ellas em arma de revindicta e de intriga, entregues, em summa, inteiramente á influencia e ao arbitrio da politica castelhana, os filhos do Duque D. Fernando II, seus sobrinhos, feitos inconscientes depositarios da recalcada reacção feudal, e ultimos representantes de uma grande familia e de uma prestigiosa tradição, intima e necessariamente enlaçadas, nas origens e nos destinos, á Corôa portugueza.

Chamando para junto de si, adoptando como filhos, engrandecendo como Rei magnanimo o bastardo de D. João II e os orphãos do Duque de Bragança, -- D. Manuel assegurava-se ao mesmo tempo da sympathia popular e da confiança fidalga, firmando suavemente nos alivios e alegrias de uma reconciliação generosa o-- «o motu-proprio, sciencia certa e poder absoluto» -- da sua auctoridade real, e desanuviando o começo do seu governo de fermentações perturbadoras da paz intestina.

Não temos de nos occupar do bastardo.

D. Manuel acolheu-o paternalmente, illudiu os ciumes e os partidos que as questões de precedencia e de favoritismo cortezão não tardaram em suggerir entre elle e o filho do Duque de Bragança, fel-o Duque tambem, e casando-o com D. Brites de Vilhena, filha de D. Alvaro, -- o irrequieto tio de D. Jayme, -- afastou d'este um partidario e conlheiro perigoso, que junto do genro teria de abrandar os rancores e impetos de revindicta contra a memoria e os partidarios de João II.

D. Alvaro e os mais foragidos haviam sido chamados a Portugal, com os filhos do Degolado de Evora, -- os que existiam ainda: -- D. Jayme e D. Diniz.

Atravessando Castella, no meio de singulares distincções em que desabafava o recalcado odio de Rainha Catholica por João II, -- D. Jayme entrava no primeiro de maio de 1496, em Elvas, e vinha apresentar-se em Setubal, a D. Manuel que o fazia receber com ruidosas festas, e que entregando-o nos braços saudosos das tres senhoras que tanto haviam implorado por elle: -- a infante avó, a Rainha tia, e a mãe, a boa e infeliz Duqueza D. Isabel, -- reconstituia no desvalido moço a forte e opulenta fundação de João I e do grande Condestavel, não só com a mais ostentosa, mas com a mais escrupulosa munificencia.

Durante todo o anno, e parte ainda dos seguintes, a chancellaria real trabalhou quasi ininterruptamente em juntar os titulos, os privilegios, as riquezas dispersas e truncadas do collossal senhorio: -- as villas, os castellos, as quintas, as herdades, os padroados, os reguengos, as rendas, os tributos, as jurisdicções de mero e mixto imperio, -- procurando habilmente evitar as resistencias dos direitos adquiridos ou as queixas dos damnos e restituições injustas, negociando compensações e trocas, -- escambos, -- como se dizia então, cobrindo e supprindo generosamente com dadivas avultadas as reversões demoradas e difficeis.

Pelo condado de Ourem em posse do 2.º Marquez de Villa Real, recebe este o de Alcoutim para que volva aquelle á Casa de Bragança.

Diogo Lopes de Lima frue em Guimarães certas rendas que devem ser d'ella; succede o mesmo em Portel com a Condessa de Faro e com outros: -- D. Manuel compensa em dinheiro ao novo Duque a delonga d'estas reversões.

Em auxilio da magnanimidade regia acode até, algumas vezes, naturalmente suggerida por ella, a deliberação popular.

Os moradores da Honra de Amarante e os da Honra de Ovelha tomam respectivamente por senhores os Duques de Bragança, varões ou femeas que sejam.

Seguem-lhes o exemplo os das Honras de Britiando, Varzea da Serra, Omisio e Campo Bem Feito.

O proprio D. Jayme não se conserva indifferente n'esta chuva acariciadora e estimulante da fortuna.

Pouco depois de entrado em Portugal compra a Gonçalo Pereira e D. Beatriz, sua mulher, as terras de «Penella de contra o levante, villa Chan, Larim, Couto de Penagante e todos os casaes, herdamentos e direitos.»

Passados dias, adquire egualmente as terras, casaes e rendas que haviam sido de Tareja Novaes, na freguezia de Brito Figueiredo, S. Martinho de Leitões, e «a quinta chamada de Santo Tisso de Riba Dave com sua torre, vinhas, jurisdicções,» etc.

Em 20 de junho é-lhe definitivamente confirmado e doado o titulo de Duque de Bragança e Conde de Barcellos, -- «de juro e herdade para elle e todos seus herdeiros e descendentes em tal fórma que por morte de qualquer Duque, o filho que ficar se chame logo pelos seus titulos sem ser preciso mais alguma ceremonia.»

No mesmo dia são-lhe consignadas as rendas, foros, direitos, tributos, reguengos, casas e herdades de Guimarães que -- «por qualquer modo pertencessem á Corôa, excepto as sizas,» -- e quatro dias depois é-lhe entregue a villa e ducado d'aquelle nome -- «de juro e herdade para sempre com todos os privilegios e liberdades.»

Em 18 do mesmo mez haviam-lhe sido doados a villa e castello de Chaves e seus termos, a terra e julgado de Montenegro, o castello de Montalegre e uma infinidade de quintas, casaes e padroados no norte do paiz.

Em 21 , é feito fronteiro de todas as suas terras, como o haviam sido os seus antepassados; -- no dia seguinte é-lhe aclarada e aditada a Lei Mental por segurança e proveito da successão da Casa.

Dois mezes depois, em 16 de agosto, é nomeado fronteiro-mór d'Entre Douro e Minho e Traz-os-Montes, como fora o pae, e no mesmo dia é-lhe restituido o condado de Arrayolos.

Damião de Goes, no seu respeitoso affecto por João II havia de resmungar um pouco quando escrevesse a sua bella Chronica manuelina.

Caetano de Sousa, geneologista cortesão, mais cortesão, até, do que geneologista, e muitas vezes cortesão desastrado, reprehende duramente, a murmuração que pressente nas entrelinhas do grande historiador.

Mas deve fazer-se justiça a D. Manuel, até porque não tem sido o Rei portuguez mais favorecido por ella.

Esta restituição de D. Jayme aos titulos e estados do Duque de Bragança não teve realmente o caracter, que a tornariam odiosa, de uma exauctoração insolita e brutal da justiça ou da politica de D. João II, como phantasiou Caetano de Sousa.

Muito intencionalmente, decerto, e muito habilmente tambem, não se enleou e apoucou nos artificios e delongas de uma revisão, sobre suspeita, inutil, -- «n'outra alguma prova de Direito,» -- como diz pomposamente o geneologista illustre.

Foi uma deliberação expontanea, uma affirmação positiva e plena do Poder Real, exercendo-se -- «absoluto, por motu proprio, livre vontade e sciencia certa,» -- precisamente na suspensão, na remoção generosissima de um Direito absurdo que dava ao cutello do algoz a forca exterminadora que recusava ao dedo de Deus, na successão das honras e das fortunas, segundo as idéas do tempo.

Seja qual fôr o grau de ostensiva ou real contradição d'esse acto, fossem quaes fossem as intenções e a inspiração que nem sempre é facil, e póde ás vezes ser injusto, attribuir a estes movimentos de uma politica que mal podemos já conhecer em todo o seu obscuro e perdido trama, -- o que é certo é que ha n'aquelle proceder de D. Manuel, na sua propria affirmação documental, como que o relampear de um grande principio que só bem tarde, quasi á beira da nossa geração, apenas, logrou vingar e impôr-se á moral e á politica dos Estados.

Que espirito e que coração de hoje, por mais cerrado n'uma intransigente e rigida imparcialidade critica, poderá incriminar o Rei Venturoso, por ter, uma vez na vida, -- como diz na sua pittoresca linguagem: -- «quitado, removido e tolhido» -- nos filhos a culpa do pae, e affirmado, consciente ou inconscientemente, que a sentença dos homens que abre um tumulo não tem o direito de afundar n'elle um berço?

Além de que as circumstancias de algum modo faziam d'esse berço uma garantia de paz e de segurança nacional, e se fôra pueril pretender negar a parte que o coração, as affeiçoes intimas, as proprias paixões indeclinaveis e mal contidas de casta, havia de ter no procedimento do Duque de Vizeu e de Beja, feito Rei e successor de João II, não seria menos racional deixar de reconhecer como esses impulsos e influencias se equilibram e conformam, como chegam, até, a subordinar-se ás necessidades e inspirações da politica e da rasão de Estado, nos actos de D. Manuel, exactamente como nos do seu antecessor.

Antes que D. Manuel case, antes que esse casamento se torne productivo, quando mesmo, nascido d'elle um herdeiro presumptivo da Corôa portugueza, a pobre creança segue de perto ao tumulo e mallograda Rainha, -- todas as vistas e não poucas apprehensões hostis e cortezãs, naturalmente, se lixam no moço Duque, ha pouco desvalido e exilado, como n'um successor regio.

D. Manuel, se por um lado parece empenhado em assegurar uma successão directa, por outro, longe de desilludir, corrobora e confirma essas presumpções.

Chega mesmo, não póde duvidar-se, e dissémol-o já, á indigitação formal de D. Jayme como seu herdeiro.

Se o não faz publicamente jurar como tal, auctorisa-o a que como tal se trate, adoptando os signaes convencionaes da heraldica e da etiqueta tradicional.

A sua munificencia para com elle não afrouxa, e sente-se que, pelo contrario, aos impulsos generosos se accrescenta rapidamente uma confiança e uma affeição especial nas aptidões e qualidades do sobrinho, que será, até á morte, o seu dilecto conselheiro e amigo.

Accrescenta-lhe a reconstituição da Casa com cessões e doações da sua propria. Em 1496, ainda, dá D. Manuel ao Duque a terça parte dos bens que ficaram do Duque D. Affonso e do Marquez de Valença, e que ao Rei pertenciam por herança de D. Filippa, sua tia.

Em fevereiro de 1497, estando em Estremoz, D. Manuel cede no Duque a herança que por morte da tia, D. Filippa, lhe competia. No anno seguinte junta-lhe ás propriedades d'Entre Douro e Minho os bens de Jeronymo Rodrigues -- «que em quanto judeu se chamava Abram Catel» -- e os perdera por infidelidade.

Um anno depois entrega-lhe os paços da cidade de Lisboa e reguengos do termo d'ella que foram do Condestavel D. Nuno Alvares Pereira, e mais as rendas de Rio Maior, villa de Porto de Moz, e reguengo de Alviella.

Como haviam sido extinctas as judiarias de Lisboa -- deixemos agora em paz o espantoso e tão fallado, -- tão mal fallado -- episodio, -- «dá-lhe em escambo e troca» -- das respectivas rendas, as dizimas novas e velhas do pescado da cidade, recommendando mais tarde á Camara d'esta que, por isso, nada altere n'essas rendas.

Vimos já com quanto zelo lhe cuidou do casamento, -- zelo exaggerado, por signal, que nem contava com a vontade e com o coração do pobre rapaz.

Quando a noivasinha de D. Jayme devia transpôr a fronteira, segundo a clausula do contracto, offerecia-lhe ainda D. Manuel, como brinde de desposorio, que não seria o ultimo, a villa de Monforte com o seu bello Castello, -- «rendas, direitos, jurisdicções e todas suas pertenças.»

Apparece-nos com esta doação, a revelação curiosa de um pequeno obice de que não encontrámos vestigio em outras.

E' a da existencia de uma bulla de 22 de junho de 1499, absolvendo D. Manuel do juramento que prestara de guardar as leis e privilegios do Reino, em attenção ás supplicas de D. Jayme, que por causa d'esse juramento não podia tomar posse plena da importante villa alemtejana.

Lembrar-se-hia Monforte de reagir contra a semceremonia real que ia refazendo o senhorio desfeito por João II?

Temos realmente um indicio n'uma concordata estabelecida mais tarde entre o Duque e os moradores da terra, de que esta sustentava de alguma fórma a justa prosapia do seu nome.

Por outro lado, em cartas de D. Jayme, no seu proprio testamento, sente-se um certo desvanecimento d'elle pela alcantilada villa.

O que parece certo é que foram estas duvidas e escrupulos legalistas, mais ponderosos então do que geralmente se pensa, -- que moveram D. Manuel a -- «dar a decreração» -- terminante, que Caetano de Sousa encontrou, e que -- «a nós só pertence dar,» -- diz saccudidamente o diploma regio, pela qual -- «remove, tolhe e quita» -- todo o impedimento moral e juridico que para D. Jayme seus irmãos e descendentes respectivos, se derivasse dos -- «processos e sentenças que foram dadas e feitas contra o Duque D. Fernando, seu pae, por que foi condemnado no caso maior.»

Os homens do Direito, -- e não só elles, que nada valeriam os seus escrupulos e veleidades, se a força lhes não viesse de outra parte: -- do Povo, da Nação, da tradição historica e juridica, d'ella, -- os homens do Direito não prescindiam de uma legalidade formalista, coherente, que arredasse a suspeita ou retrahisse o impeto, a extravagancia, do capricho, da paixão despotica.

Só assim, ab ovo, no seu principio, e por conseguinte na subsistencia da sua acção legitima, é que ficava correctamente removida a legalidade anterior, á voz do mesmo poder e do mesmo direito que a affirmára.

-- Justiça que manda fazer nosso Senhor ElRei! --

E era realmente, a mesma Justiça.

Estava definitivamente reconstituida a grandiosa Casa em que se fundira o sangue generoso e o espirito intrepido dos dois valentes que haviam salvo e firmado a Independencia Portugueza.

D. Jayme não era um fidalgo qualquer, exilado ha pouco, lançado agora por um simples acaso de fortuna no fastigio de uma riqueza e de um nome passageiro, que podesse esbanjar caprichosamente.

Era uma instituição da Corôa, -- como disseramos hoje, -- da Nação.

E quando, longos annos depois, elle se revoltava contra a inflexivel vontade de João III, que lhe prohibia casar os primeiros filhos em Castella: -- não era elle, era o Rei quem tinha por si a rasão e o direito...

Ah! rasão teem, -- posto não tenham com ella nem o Direito, nem a verdade serena e justa da Historia, em criminarem rudemente os Filippes por não terem exterminado a gloriosa Casa: -- aquelles dos nossos estimaveis visinhos que cultivam e acariciam ainda a phantasia iberica, -- a velha obsessão castelhana!...

PARTE II

EM VILLA VIÇOSA

V

Não se póde dar regra certa para todos.

M. Bern. Pão Part., 1.ª parte.

Quantas vezes, desde que repassára a fronteira. -- homem feito, restituido á grandeza, a familia, ao valimento regio, ao respeito popular, -- quantas vezes volveria elle os olhos, cheio de funda saudade, -- ao tempo em que, exilado, quasi sem nome, pobre de recursos, entre estranhos insolentes de poderio e de riqueza, escondido receiosamente na sombra d'uma protecção precaria, -- era livre, ao menos, bem mais livre, certamente, -- se alguma vez o fora, -- no coração, no pensamento, na vontade!...

Agora, a situação era outra : -- o coração, que lhe desabrochava em plena adolescencia, tinha de retrahir-se e conter-se nas conveniencias e nos interesses d'uma vontade alheia; -- a vontade que lhe saltitava, talvez, fremente e leviana, nas illusões e nos impetos da mocidade, -- como avesinha que ensaiava os primeiros voos, -- tinha de recolher-se, muda e inerte, no pensamento e nos calculos da politica real. E que politica, a d'aquelles tempos!...

A propria familia lhe era mais estranha do que os estranhos que deixára.

Como recordar na velha dama que lhe chamava filho, os beijos e as lagrimas d'aquella adoravel mãe, que dezesete annos antes, n'um dia de espanto e de terror, o escondera com os irmãosinhos nos braços do servidor fiel, que por envios atalhos e assustadas noites os levara ao exilio?

Filho lhe chamava tambem o Rei, mas Rei é que era esse pae de fortuna que, restituindo-lhe a grandeza, lhe tomava a liberdade, e erguendo-o, generosissimo, ao fastigio do poder lhe descontava logo os vinte annos por vinte e seis contos de maravedis.

Feiticeira seria já a côrte de D. Manuel, como não era mais, -- como não seria tanto, -- a que D. Jayme entrevira em Castella.

Respirava-se ali um ar estimulante de amor e de festa.

Era como o acordar de um pesadello torvo: -- rebentavam as esperanças, refloriam as ambições, desopprimiam-se alegremente as almas.

Moço era tambem o Rei Magnifico. A intelligencia, a mocidade, a formosura, a intrepidez volitavam-lhe em roda do throno simples e severo, no rumorejar capitoso de novos ideaes.

Aquelle mundo embarcava na grande aventura de uma nova Edade.

João II deixára apparelhadas as naus, e da Italia e do Norte ventavam refegas estranhas que revolviam os espiritos, as consciencias, os costumes.

Cortesãos e amigos, companheiros petulantes, adulações e afagos, devaneios e folgares, olhares brandos, sorrisos promettedores, enlevos de coração, desvanecimentos de orgulho, estímulos de novas grandezas, -- não faltariam ali, ao exilado de hontem, banhado n'um rocio perenne de honrarias e riquezas que o penetrava, que deveria lavarlhe a alma das sombras que lá tivesse deixado um passado de desgraça e de tristeza.

Do velho Castello de Villa Viçosa, d'onde partira foragido, infante, sahia elle agora á frente de uma cavalgada imponente, da flôr da Côrte Manuelina, feito loco-tenente do Rei, e como se fosse elle proprio, a encontrar-se com os que o haviam conhecido, sem nome, sem patria, sem fortuna, n'um desterro amigo, é certo, mas Deus sabe quantas vezes fustigado por insolentes desdens.

D'aquelle D. Diogo Furtado de Mendonça, Arcebispo de Sevilha, que poucos mezes antes auctorisára a procuração da pequena noiva de D. Jayme, ia elle receber uma mulher moça e formosa, que conhecera creança, para a conduzir reverenciosamente aos braços de outro homem.

Era a nova Rainha de Portugal, a segunda desposada de D. Manuel.

Podia desejar mais honraria e fortuna?

Pois no meio d'estes deslumbramentos, e apesar de que a situação se accrescentára em segurança e riqueza com a decraçam regia e com o contracto de dote, de 1500, -- o Duque de Bragança monta um dia a cavallo e acompanhado por um só servidor, vae-se delongada, caminho da fronteira, mandando dizer ao Rei que desse a Casa e o Titulo ao irmão, D. Diniz, e não quizesse saber mais d'elle, desgraçado! que não podia com a fortuna e com o casamento.

Não se póde precisar quando foi.

O mais antigo e seguro vestigio do extraordinario facto é apenas a referencia ligeira de Damião de Goes, segundo a qual succederia em 1502 depois da vinda para Portugal da pequena D. Leonor de Mendonça: -- «sem ainda ter idade pera se entrelles poder consumar ho matrimonio».

Quando veiu ella?

Pela lettra do contracto deveria ser entregue na fronteira até fins de março de 1501, mas Caetano de Sousa rebujando sempre com Damião de Goes, concorda com elle em que fora só em 1502 que D. Leonor viera.

Presume, comtudo, que n'esse anno a juvenil duqueza -- «cumpriria a idade competente» -- e que o matrimonio se consumára então.

Mas em junho d'este anno D. Jayme estava em Lisboa: -- levava á pia baptismal de S. Domingos o recemnascido infante que deveria ser D. João III. O proprio Sousa o diz.

Fugira antes? Fugiu depois?

Vamos ver que tivera tempo para alongar-se muito.

Podendo dar-se por definitivamente apurado, como damos, não só pelas informações accordes de Goes e de Caetano de Sousa, mas pelo testemunho do proprio chronista contemporaneo da Casa de Niebla, que D. Leonor viera em 1502, e não no anno anterior como preceituava o contracto, o que consideramos prejudicado não é a data da fuga do Duque, mas a affirmativa além de tudo perfeitamente arbitraria da consumação do casamento.

E liquidemos já este ponto.

Sousa não só desconhecia a data do nascimento de D. Leonor, como esqueceu, na sua contenda com o texto de Goes, de que nos fins de 1500, segundo os proprios documentos que publicava, era ella ainda «menor de doze annos.»

Teria onze. E nós sabemos já que somente em 1503 ou 1504 fazia os quatorze. Dizia pois a verdade Damião de Goes.

Ora uma bulla de 18 de junho de 1505, cujo registo Sousa poderia ter visto, como eu, na Casa de Bragança, responde a um pedido do Duque em termos que indicam claramente que esse pedido fora ao mesmo tempo a «participação do casamento» de D. Jayme, ao Pontifice, como diriamos hoje, -- a communicaçao de que fizera definitivamente sua mulher, -- vxorem dixisti, etc. -- D. Leonor de Gusmão.

É importante este documento, e, -- curiosa cousa! -- vem juntar a toda esta historia mais uma coincidencia sinistra.

O Duque pedira, e Julio II concedia, que qualquer sacerdote secular ou regular podesse absolvel-o plenamente, a elle, á duqueza e aos filhos que tivessem, em transe de morte, -- mortis articitlum, etc.

Sousa não pôde descobrir também a data do nascimento de D. Theodosio, o primeiro filho dos dois. Este documento parece affirmar que até 1505 ainda elle não era nascido.

Mas quando se foi D. Jayme?

Bem considerado, o texto de Goes não tem talvez o sentido absoluto que se lhe pudera attribuir, em relação á fuga do Duque.

Vimos já que pelo contracto nupcial o Duque ou a Duqueza Mãe teriam de mandar receber á fronteira D. Leonor de Mendonça, que ali deveria ser entregue até rins de março de 1501.

Em principios d'esse mez, D. Jayme recebia a doação de Monforte.

Approximava-se o cumprimento d'aquella clausula.

O silencio do Duque acerca da pequena noiva, ao annunciar ao Rei a sua partida, -- silencio revelado e notado por todos os commentadores, -- o pedido de que o Titulo e a Casa passassem ao irmão, o que implicaria a annulação completa dos esponsaes de 1500, finalmente o adiamento da vinda de D. Leonor, achando-se, aliás, D. João de Gusmão em Sevilha, e partindo então para a pequena campanha da Sierra Bermeja (Ronda) em vez de enviar a filha a Portugal, são rasoaveis indicios de que foi exactamente quando se approximava aquella vinda, quando o contracto ia tornar-se effectivo, talvez nesse mesmo mez de março de 1501, que D. Jayme resolvera desenlear-se d'elle, abandonando o Reino e devolvendo ao Rei quanto recebera d'este.

Em relação aos tempos, -- em que taes rupturas e renegações dos mais solemnes compromissos eram não só vulgares, sanecionadas, até, quando não exemplificadas, pelos mais altos e prestigiosos poderes da Terra, com bem poucos escrupulos de forma, -- a maneira de D. Jayme tem incontestavelmente uma certa grandeza de consciencia e de caracter.

Elle quebra a palavra dada por grata e dedicada obediencia, mas quebrando-a quando n'ella está apenas empenhada a honra propria, e não a da mulher que lhe impozeram por esposa, -- uma creança ainda, -- despoja-se, desapparece

Annula o vinculo, annulando-se elle.

Que destino levava?

O que o movera a ir-se?

Aqui vimos topar em duas tradições que, ampliadas na Lenda, lhe forneceram o argumento de uma justificação soffrivelmente duvidosa, visto que não se contenta com elle, da tragedia de 1512.

Uma suspeita occorre.

Teria o pobre Duque prendido os olhos e o coração n'alguma d'estas paixões que, quando mais resignadas parecem ao mallogro fatal, irrompem, vivas e doidas, da mais corajosa e demorada contenção?

Amava outra?

Seria um bello lance romanesco, e confessamos que a apprehensão d'elle nos fatigou nas mais pacientes buscas pelo lendario pó dos archivos e pelos textos das historias, geneologios e memorias mais suspeitas de guardarem o segredo do caso.

Sabe-se que mal D. Jayme regressara da primeira vez a Portugal, D. Manuel, como que dando aviamento e favor a desejos ou projectos antigos, mandara negociar o casamento d'elle com D. Joanna de Aragão, a bastarda do Rei Catholico, pouco mais velha que o Duque, e com quem este naturalmente convivera em Castella.

A propria irmã d'ella, a futura rainha de Portugal, D. Isabel, quando lá estava e era ainda Princeza, patrocinava aquelle projecto.

E D. Jayme, contando, muitos annos depois, a D. João III a sua indifferença ou o seu desdem pelos bellos casamentos fidalgos que lhe propunham, dizia, a respeito do que lhe fizeram com a Medina Sidonia, que tinha então «o ponto em mais alto logar.» Mais alto do que a primogenita de uma das primeiras, de uma das mais ricas Casas da Peninsula!...

Devia ser então muito alto.

Aquelle projecto mallogrou-se, não, talvez, porque não conviesse ao Rei Catholico, mas porque a D. Manuel conveiu mais o outro.

D. Fernando quiz casar a bastarda na Escocia, e acabou por dal-a ao gran-condestavel de Castella, D. Bernardino de Velasco. Não durou muito este consorcio, pois que em 1507 ou 1508, D. Bernardino estava já viuvo.

Mas além de que, o proprio D. Jayme diz tambem, que n'aquelle tempo, precisamente, em que o fizeram marido, -- desejava pouco de casar e muito de folgar,» -- os chronistas e geneologos mais auctorisados, severamente tolhem qualquer idéa de mundanas e romanescas paixões que quizesse ensaiar-se sobre a brusca resolução do moço, -- affirmando-nos, com positiva segurança, que elle, por então não pensava n'outra cousa que não fosse... em fazer-se frade.

Era essa a sua inclinação revelada e accrescida no convivio com os frades de S. Francisco da Observancia, «a que chamam da Piedade;» -- foram elles que lhe aconselharam e induziram -- «a vontade que trazia de seruir a Deos em religiam, mais do que no estado matrimonial.»

De um d'estes padres confiou a carta que escreveu ao Rei, despedindo-se.

Caminho de Roma se partia a pedir ao Papa a dispensa de noviciado para ir em Jerusalem, -- «tomar o habito e nelle passar todo ho discurso de sua vida.»

Contrariadissimo n'este ancear devoto, firmára o contracto esponsalicio, e com egual constrangimento, naturalmente, recebera as grandezas e honrarias mundanas que durante cinco annos lhe choveram, incessantes, sobre a adolescente cabeça, procurando mesmo accrescental-as por diligencias e iniciativa propria!...

Quando eminente o casamento, rompera-lhe n'um impeto irresistivel, a recalcada devoção, e essa fôra a causa da inopinada fuga.

Conta o Goes, exaltam-n'o Caetano de Sousa, e outros.

Goes, que era então muito rapaz e que só mais tarde havia de recolher a explicação na Côrte, vae deixando vêr nas entrelinhas, com uma certa malicia inconsciente de sabio, a despeitada semsaboria do moço que se acha casado com uma creança que não vira, que não amava, que não escolhera, que nem mulher era ainda: -- «sem ainda ter idade pera se entrelles poder consumar ho matrimonio.»

Insinúa mesmo na versão piedosa um elemento pathologico, a que logo nos havemos de referir, e não deixa de tocar com a ponta insidiosa da sua penna de critico, o «induzimento» dos frades da Ordem.

Mas a rasão mystica desdobra-se e floresce nos encomios e arrobamentos rhetoricos dos historiographos aduladores e beatos, diluindo, de mais em mais, a verdade historica da primeira parte da vida do Duque, -- da que termina e inclue a tragedia, -- sem dar-se muito ao incommodo de considerar que a Lenda bem pouco se ajusta á segunda metade d'esta extraordinaria existencia.

E consegue-o, em parte, que lhe é cumplice a ruina dos Archivos, a dispersão e a perda dos documentos sobre os quaes essa verdade havia de fazer-se segura e integra.

Fr. Manuel de Monforte não podia deixar de aproveitar, no século XVII, -- e aproveitou e explorou demoradamente, -- o thema e o personagem, para a glorificação, cheia de piedosas patranhas, da sua Provinda da Piedade.

Rude e dolorosa fôra a gestação d'essa espiritua provincia, que no moço e potente Duque lográra encontrar, no periodo mais proceloso, um singular favor, um prestigioso reclamo. D. Jayme recolhera os revolucionados frades, e a doutrina d'elles, -- mais propriamente, a sua pregação apaixonada e ardente das mysticas deleitações do deserto, da soledade ascetica, do desprendimento desilludido do Mundo tão enganoso no seu fastigio, -- offereceria talvez ao temperamento, á educação, á propria situação actual do rapaz estranhas e insinuantes seducções.

Por outro lado era uma conquista importante a d'aquella alma, ou antes a d'aquelle grande nome, para a nova seita seraphica em batalha accesa com os seus rivaes e competidores monasticos.

Na rhetorica pomposa de Fr. Manuel e dos seus congeneres, o moço Duque absorveu-se rapido n'uma vida toda de devoção e de penitencia, acompanhando os seus dilectos frades nos mais asperos exercicios e jejuns, escondendo-se com elles entre as selvas e fragas do seu senhorio alemtejano, no isolamento e na contemplação ascetica, mostrando, em summa, n'um antecipado noviciado, curtido de despresos pelo Mundo e de humilhações para a prosapia ducal, uma predestinação extraordinaria para o glorioso burel.

Sem nos emaranharmos agora n'estas historias e revindicações fradescas, não pensaremos em contestar uma cousa que não sómente a referencia de Goes, mas muitos factos e documentos, -- alguns d'estes, até, do próprio punho do Duque, -- attestam com irrecusavel segurança.

O Duque era profundamente devoto.

Aos nossos olhos de hoje é natural e facil tornar-se imperceptivel a distancia que poderia separal-o do fanatico ou do beato, posto que na continuação da sua vida, nas cartas que d'elle nos restam, na tradição meio obliterada, sobretudo mal meditada, do seu criterio e do seu caracter, essa separação se insinue e imponha, por vezes, irrefragavelmente.

O «indusimento» dos frades poderia tel-o dominado e movido, que encontraria, até, azado terreno para vingar, n'um dado momento; -- a ascese mystica tão especialmente favorecida pelas circumstancias do individuo e do tempo, talvez absorvesse o moço, e o impulsionasse um dia a procurar em novo e voluntario exilio, no fundo de sonhadas thebaidas, o esquecimento, o repouso, a liberdade que não encontrára nas riquezas e grandezas da vida real.

Se é que escondido em tudo isto não fermentava tambem um pouco aquelle espirito aventuroso, que levára o Infante D. Pedro a percorrer as partidas do Mundo, -- que havia de impellir-lhe o proprio filho, o Duque D. Theodosio, o que tinha «melancolias» como elle, a abandonar egualmente a Casa e o Rei, para seguir o Infante D. Luiz á aventura de Goleta...

Se é tambem que aquelles despeitados arrufos pela competencia do bastardo de D. João II, a que se refere Çurita, não sombreavam por esse tempo o animo altivo, a prosapia naturalmente feita tão mimosa nos favores realengos e nas tradições da familia...

Mas se realmente se deu com tal intensidade a crise devota, -- foi um incidente, apenas, n'aquella existencia ou n'aquelle espirito tão fortemente constituido, não para as abstracções e para os desvanecimentos mysticos, mas exactamente para a observação, as preoccupações, os interesses da vida pratica e da grandeza senhorial, como elle se revela depois, como se revelára antes, na propria reconstituição afanosa e ciosa da sua Casa.

Vimos já que muitos annos depois, alludindo exactamente ao seu constrangido casamento, nem ligeiramente se refere ao episodio seraphico, -- não accentúa e avoluma aquelle constrangimento pelo sacrificio da sua inclinação, da sua predestinação piedosa, -- e mais fallava a João III, e mais recordava-lhe altivamente os seus merecimentos e os seus sacrificios.

-- «Então -- diz-lhe -- «tinha eu o ponto em mais alto logar,»- -- mas esse calado objectivo não havia de ser o de -- «servir a Deos em religiam,» -- escondendo-se amortalhado no burel capucho d'alguma thebaida.

Não que elle prevenira logo que -- «era mancebo e desejava pouco de casar e muito de folgar,» -- o malaventurado!

Ah! pobre Fr. Manuel de Monforte, quanto dera a tua soprada rhetorica por ter feito desapparecer esta phrase diabolicamente naturalista, do teu predestinado!

Mas tambem, valha a verdade, não te déste a grandes incommodos por saber que indiscretos testemunhos elle teria deixado de si.

Desastrado Provincial que fôste!

Ao menos, o illustre Caetano de Sousa foi tão escrupuloso e severo que não hesitou em truncar, com mão firme e prudente, nas suas Provas da Historia! o testamento de D. Jayme para que não provasse... contra o historiador, embora provasse a favor do historiado.

E afinal, de contas, o sacrificado foi este em todo esse trama de falsa piedade e de inepta adulação.

-- «O que tomou Azamor,» -- consolidando as nossas conquistas d'Africa, o amigo de Vasco da Gama, o protector de Lopo Vaz de Sampaio, o conselheiro leal e intemerato de D. Manuel e de D. João III, o iniciador da tactica e da organisação militar moderna de Portugal,... imaginaveis vós como o apresentaveis á posteridade de tres seculos adiante?

Como uma «alma tisnada de fanático»!

Chãmente, como uma «devota besta fera»!

VI

A vaporibus prauis in ventriculo multiplicatis ascenditibus ad cerebrum, aegros in grauissima pericula, deprauatas imaginationes, et innumeras delirij fortes incidere, probat Aetius tetrab. 2 serm. in hypochondriaca melancholia firmant Gal. 3 de loco. cap. 7...

Zacvti Lusitani... Operum, etc. Lvgd. 1657.

D. Jayme era um melancholico.

É esta a indicação pathologica de Goes.

Exactamente quando o fizeram casar em Lisboa, andava elle -- «muito doente de humor melenconico,» -- diz o grande historiador.

E dil-o uma tradição constante, que perfeitamente se conforma, não só com alguns factos apurados e com o tom dominante dos documentos que nos restam do proprio punho do Duque, -- mas com as circumstancias e condições que deveriam formar-lhe o temperamento e o caracter, com certos indicios, até, da herança biologica que deveria ter recebido n'aquelles.

Os terriveis successos que lhe estremeceram, forte e sinistramente, a infancia; aquella fuga com os irmãos, sob o terror d'um perigo desconhecido; aquella orphandade violenta; aquelle prematuro e assustado exilio, -- a morte do irmão, a suspeita doença de que elle proprio difficilmente escapara, -- até aquella especie de resurreição insolita, inopinada, para um fastigio quasi real, e depois, e ainda, as invejas, os ciumes, as competencias e intrigas que logo n'essa resurreição o assaltaram: -- são circumstancias, influencias, estimulos que por si bastariam para explicar uma d'aquellas disposições ou affecções que os antigos ingenuamente attribuiam á acção exaggerada, desequilibrada da bilis, e ás quaes, como da hypocondria havia de dizer Mead, não ha que determinar outra séde senão todo o complicado trama individual.

Porque é claro que quando digo que D. Jayme era um melancholico, nenhuma duvida tenho em comprehender que era um doente.

Doente, de um d'aquelles estados obscuramente, complicadamente pathologicos, pelo estudo dos quaes esta sciencia nova, tão enriquecida de revelações antigas que poderemos chamar a hysterologia, vae dia a dia reconstituindo a unidade, a coherencia fatidica, integral do corpo e da alma humana, do orgão e da intelligencia, da faculdade e da funcção.

Era um nevrotico.

Tinha a mobilidade, a desegualdade, a trepidação mental, confusamente, extraordinariamente coexistente com um fundo de teimosia, de fixidez, de desdenhosa concentração, que define o caracter hysterico, se póde -- que julgo que póde,-- dizer-se assim.

Frequentemente, nas suas cartas, allude D. Jayme, a uma cephalalgia insistente, a insomnias terriveis, que elle procura vencer com fortes canceiras do corpo, fatigando-o em longas caçadas e passeios.

Falla do seu mal, como de cousa sabida e antiga.

O filho, o Duque D. Theodosio, soffre tambem de longas melancholias. Gasta as noites a ouvir as historias do seu guarda roupa.

Através de uma redundancia fastidiosa de indicações vagas, de allusões que se copiam e confundem, encontrei em um ou dois velhos geneologios uma anedocta curiosamente caracteristica.

Um dia, D. Jayme deixou de comer. Recusava intransigentemente toda a alimentação.

Comer para quê, se elle -- «tinha morrido» -- ?

Aquella intelligencia tão viva, tão pensadora, fechára-se n'esta idéa fixa: -- «morrera.»

Quando foi?

Não se sabe, e importaria pouco. Sobretudo, aos geneologistas, esta questão de datas parece ser uma questão perfeitamente indifferente.

O facto é que o duque estava n'um dos seus accessos de -- «humor melencolico,» -- e que esse accesso dera-lhe o que é perfeitamente symptomatico, para não comer.

A situação tornava-se grave, quando um dos medicos, -- oh desconhecido hypnotista do seculo XVI! -- teve esta idéa luminosa: -- arranjar uma -- «visão» -- pela qual fez saber ao Duque, -- sugeriu-lhe, -- que não morrera tal, e que por conseguinte, precisava comer, exactamente para que não morresse.

E a -- «visão» -- salvou-o.

O impeto que levou o Duque a sahir de Portugal, a fugir ás grandezas do mundo e aos enlevos do poderio e da Corte, em demanda da solitaria thebaida, seria pouco mais, ou, talvez, pouco menos, do que um d'estes accessos.

Melancholia, soledade, obsessão mystica, são cousas correlativas, muitas vezes.

Como ficaria desconsolado o nosso pobre Fr. Manuel de Monforte se lhe dissessem que afinal de contas os seus devotos e apaixonados pregadores do deserto não eram senão uns maniacos anthropophobos, segundo a terminalogia douta, uns nevroticos, uns hystericos, quando não fossem, -- que tambem aconteceria algumas vezes, -- outra cousa peior, de mais plebeu appellido!...

Mas deveria ser um nevrosismo natural, como diria Despine, esse do Duque D. Jayme, -- explosindo em accessos, -- «agora de subita colera, agora de indeterminable melencholia,» -- como diz D. Francisco Manuel, -- sem que, comtudo, fizesse transpôr áquella singular individualidade, quer nas manifestações pathologicas, quer no juizo e conceito dos contemporaneos, a distancia, certamente difficil de determinar, mas indeclinavelmente perceptivel, que vae d'um caracter excentrico, original, á vesania, á loucura definida, irreductivel, certa.

Como succede com as inclinações devotas do Duque, -- tão facilmente explicaveis até, sem o elemento critico do seu caracter hysterico, dos seus «humores melancolicos», mas perfeitamente illuminadas por elle, agora, -- é o proposito desastrada e imprudentemente cortezão que exaggera, n'uma falsa lenda, o elemento pathologico.

Nem vale dizer D. Francisco Manuel, apegando-se á suspeita de uma tentativa de envenenamento em creança, que -- «la reverencia dissimula en los grandes,» -- estas tristes contingencias do homem, porque exactamente é tão inepto aquelle proposito systematico, que exaggerando a supposta insania de D. Jayme para cobrir com ella um facto natural e documentalmente explicavel, lança a suspeita, a contradição ou a duvida na affirmação simultanea das qualidades mais exalçadas ou dos actos mais glorificados do Duque.

Goes, que o conheceu, Goes que não é um cortesão do século XVII, cheio de preconceitos e de susceptibilidades ridiculas, mas um homem do século XVI, mas um sabio, mas um critico, Goes refere a devoção do Duque, refere a sua «doença,» mas diz tambem que elle «foi homem muito prudente,» e cita-o como conselheiro recto, leal, auctorisado.

E mais Goes... não gostaria d'elle.

Singularmente prudente e valoroso, homem de correcta e levantada estatura, o pintam os seus contemporaneos, os que o conheceram de perto, os que com elle lidaram, e só de homem havido e conhecido por tal se confiára, -- mezes depois, precisamente, da tragedia de Villa Viçosa, -- a fina flôr da fidalguia portugueza, uma das mais numerosas e brilhantes expedições que de Portugal sahiu, expedição entregue discricionariamente, note-se isto, ao criterio e á auctoridade absoluta d'elle.

Bastavam porém os documentos que nos restam de D. Jayme, as suas cartas a D. Manuel e a D. João III, verdadeiros monumentos que são de energica hombridade, de espirito levantado e lucido, de pratico e sensato criterio, para se comprehender quanto se amplificou a tradição, no fundo exacta e comprovada, d'esse «humor melancholico» que affligiu e que, em grande parte, inutilisou, -- foi o mais que fez, -- aquella forte individualidade do nosso seculo XVI.

Certamente, D. Jayme era da massa de que se fazem os Hamlets.

Melhor lhe assentára esta litteraria etiqueta do que a de Othello que lhe teem dado, se bem lhe assentasse alguma.

Aquella extraordinaria incongruencia, aquella contradição flagrante do caracter do Duque, -- que justamente impressionou o sr. Fernando Palha, primeiro do que a nenhum outro escriptor, seja dito em honra do seu estudo e do seu senso critico, -- naturalmente nos suggere a apprehensão lisongeira para as nossas preoccupações litterarias de encontrarmos n'elle um bello exemplar portuguez da grande concepção shakspereana.

Mas além de que essa incongruencia provém, seguramente, em grande parte, das obscuridades historicas que aos nossos olhos isolam certos factos e situações mais salientes, -- logo occorre a objecção de que a D. Jayme faltou exactamente a força absorvente, contínua, logicamente, fatalmente tragica que contrahiu as mãos leaes do Mouro na loucura de um estrangulamento cobarde e vibrou o ferro do principe da Dinamarca ao peito do regio assassino.

Para Othello faltou-lhe a Desdemona.

Para Hamlet não encontrou sequer o matador do Pae.

Outro, porém, foi «o ponto», -- como elle dizia, -- em que se lhe fixou o destino da sua existencia, o leito que as circumstancias implacavelmente cavaram á corrente tumultuosa da sua individualidade moral.

Não foi o amor, -- e mais elle havia de alvorecer um dia, ardente e dominador, n'aquella alma regelada e sombria, como se fosse na alma selvagem e ingenua do Mouro.

Não foi a vingança, -- que a antecedera e desarmara a desolação e a morte.

Foi a grandeza, o orgulho, a honra do Nome substanciado, perpetuado na Casa,-- exactamente ao que elle fugia, o que elle abandonava bruscamente sob a suggestão mystica de se approximar de Deus.

Como não fazemos um romance, podemos antecipar as revelações.

Ha uma carta, -- um documento, sob todos os aspectos notabilissimo, de D. Jayme, -- em que elle proprio se quiz pintar, bem definido e certo, á prosapia real que suppunha impôr-se-lhe ou rendel-o pelo deslumbramento d'uma honraria singular.

-- «E este sou eu pintado pelo natural,» -- diz elle -- «e creio que achará vossa alteza em vosso reino poucas pinturas que se pareçam com esta.»

É na questão do dote d'uma filha, -- a d'elle e de D. Leonor, -- escolhida por D. João III para esposa de seu irmão, o Infante D. Duarte.

Entendia o Rei que o Duque, desvanecido com esta escolha, deveria cortar largo e fundo pelo proprio senhorio e fazenda, para na grandeza do dote corresponder á extraordinaria honraria da mercê.

D. Jayme defronta altivamente com a illusão real. Desfal-a prompto.

Lembra-lhe rudemente quem é, não o confunda ella com esses -- «villões ou christãos novos que por remir sua villania ou judearia quando querem haver pessoas de differente estado que são tão baixas que se querem vender por dinheiro esses taes os compram» -- ou com os -- «que veem da India ricos de roubar vossa alteza que assim como lhes custa pouco a ganhar, tem em pouca conta de o dar.»

Filha sua póde bem ser desposada de Principe, que tem sangue de Reis nas veias, e n'elle -- «não minguam merecimentos para isto que depois do conde Nuno Alvares a esta parte se o bem olhar vossa alteia ninguém os teve taes. »

Finalmente, e este é o «ponto» capital, decisivo, caracteristico: -- «bem devera de ver que eu não havia de dar a minha filha cousa que me houvesse de desfazer nem destruir porque eu lhe dice logo, que eu queria ainda mór bem a mim que a meus filhos, e após mim a minha casa mais que a elles, e por isso não havia de fazer cousa que desfizesse em meu filho herdeiro e na casa que lhe havia de ficar, e porque tinha esta tenção estava bem fóra de desejar para minha filha marido a que eu houvesse de beijar a mão, e que queria antes casal-a com homem que m'a beijasse a mim.»

Como isto é mais comprehensivel e nitido, mais natural e persuasivo, do que todas as phantasticas pinturas dos chronistas seraphicos e dos geneologistas cortesãos!

Como mais e melhor condiz com as circumstancias e as condições em que se formou e fez o nosso Hamlet, -- sem Clandius, -- o nosso Othello, -- sem Desdemona; -- ou que, em summa, lhe enquadraram fatalmente, a mentalidade, a vida, o destino!...

A influencia, os habitos do assustado exilio: -- a concentração, a contenção prolongada do pensamento, da vontade, da palavra, a provavel lição da velha parente, junto do qual se educára, de que só na Religião, -- em Deus, -- havia de pôr toda a esperança e segurança da vida, mais de uma vez haviam de produzir affrontamentos e trepidações violentas n'aquelle caracter em formação, no meio do inopinado fastigio.

Parece que assistimos á representação real do auto da alma que Gil Vicente, cinco ou seis annos depois da fuga do Duque, havia de exhibir nos paços da Ribeira deante d'aquelle mesmo Rei D. Manuel que no nosso caso faz inconscientemente o papel de Diabo, -- o que nada de injurioso tem quando o do Anjo da Guarda é desempenhado pelo fanatismo idiota dos frades do Deserto.

O Duque, -- a Alma, -- ...mui temerosa da contenda, debata-se incerta e fraca entre os dois rabulas.

Vence o Rei.

Alva pomba, pera onde is?

Gosae, gosae dos bens da terra,

Procurae por senhorios

E haveres.

Quem da vida vos desterra

A triste serra?

Quem vos falia em desvarios

Por prazeres?

Esta vida he descanco

Doce e manso,

Não cureis d'outro paraiso:

Quem vos põe em vosso siso

Outro remanso?

Vence o Rei: -- o Duque volta á grandeza, ao senhorio, ao fastigio do Mundo...

Que Gil Vicente nos perdôe a impiedosa apropriação.

VII

Menina e moça me levaram... Bern. Rib. -- Menina e Moça.

Boas centenas de leguas tiveram de andar aquelles dos enviados de D. Manuel que primeiro acertaram na pista do foragido Duque, até o encontrarem numa pousada de Calatayud, em pleno Aragão, nas margens do Xalon.

O Rei portuguez não se conformára com a isempção rebelde ou seraphica do moço, e parece até que carregara o sobr'olho, desconfiado e colerico, do zelo indiscreto dos novos frades que não tardariam em sentir o inconveniente d'aquella insolita pretensão de levarem para o seu ideado deserto as almas ducaes tão necessarias ao serviço de Deus... na Côrte.

Expedira ordens e mensageiros em diversos sentidos, -- por terra e por mar, dizem alguns, -- para que lhe trouxessem D. Jayme.

O escandalo feria simultaneamente o amor, a auctoridade, o bom senso do Rei, -- a sua honra e o seu interesse: -- o interesse do Estado.

Era uma aventura inadmissivel, uma rematada loucura.

D. Manuel era auctoritario, teimoso, pratico.

Nada mais inexacto do que suppôl-o um passivo, um mimoso da fortuna, e mais nada.

Exactamente por aquelle tempo, quando as suas esquadras cortavam já os mares, não só para a India, mas para o Brazil e para a America do Norte, quando negociava com os mais ricos negociantes e armadores de Lisboa a exploração do commercio oriental, teimava elle, contra a opinião do seu Conselho e contra as instancias da Rainha, em que havia de passar á Africa, a fechar d'aquelle lado o cerco á soberba mussulmana.

Tendo, porém, de dispôr de grande parte da expedição que reunia, em soccorro da christandade do outro extremo da Europa, enviava na esteira d'aquella uma expedição que varresse o caminho de Oran e occupasse Mazalquivir, o que o Rei Catholico, aconselhado por D. João de Gusmão, mais feliz, havia de conseguir pouco depois.

Annos mais tarde, quando Arzilla esteve a pique de perder-se, D. Manuel, recebendo a nova, em Evora, indo para uma festa n'aquella formosissima egreja de S. Francisco, que é ainda um dos nossos mais notaveis monumentos, -- e dos menos conhecidos, -- mandou prescindir do sermão, apressar o jantar, apparelhar a sua melhor egua andadeira, e sem mais ceremonias poz-se, a mata-cavallos, no caminho do Algarve, com sete ou oito servidores, na resolução de passar além.

Naturalmente com pressa egual, embora sob bem differente impulso, o nosso D. Jayme atravessára escondidamente a Estremadura e as Castellas, e chegara á tradicionaria Bilbilis, á pequena patria de Marcial, d'onde tanto podia fazer caminho para Barcelona e ir embarcar ali, como seguir para o norte a entrar em França.

Se realmente levava o fito em Roma e a cabeça exaltada nas glorias da religião, de bem cruel decepção o livraram os enviados de D. Manuel.

Em Roma tripudiava á solta o Boi Borgia, sanguinolento, impudico, garanhão, e o pobre Duque portuguez que alguns annos depois fallava das «embrulhadas» que iam por lá, n'uma especie de recatado assombro do seu caracter sinceramente devoto e austero, havia de sentir-se muito ridiculo e desastrado quando defrontasse com o glorioso collega, aquelle outro Duque, -- o de Valentinois, -- filho do Papa, -- «o que fazia tremera cidade,» -- ou quando depois de atravessar os opulentos oedes Borgia do Vaticano, cheios de mulheres e de cortesãos, para pedir ao glorioso Pontifice a graça do burel, elle o convidasse amistosamente para um «banquete de castanhas,» ou para um almoço de familia em casa da, bella Julia Farnesio, a Sposa del Cristo!

Ou porque visse que não havia meio de eximir-se ás ordens e exortações de D. Manuel, ou porque attenuado e espairecido na longa travessia o accesso misanthropico, a rasão lhe impozesse o regresso, D. Jayme voltou para Portugal.

Entre a partida e a volta deveriam medear longos mezes.

Como dissemos já, em meiado de 1502, -- antes até, -- estava o Duque em Lisboa, e apparecia em publico engrandecido por uma nova e singular demonstração do favor e da dilecção real.

Era elle que levava ao baptismo o herdeiro da Corôa.

Ou pouco antes, ou pouco depois, d'este ultimo facto, como nos inclinamos a crer, -- e em todo o caso n'aquelle anno, -- realisava-se a entrega de D. Leonor de Gusmão que ia de S. Lucar a Sevilha e depois de brilhantes festas, em ambos os pontos, era enviada á fronteira com principesca comitiva.

Em Sevilha reuniram-se os parentes e amigos mais qualificados da Casa de Niebla e a principal nobreza da Andaluzia.

Durante muitos dias succederam-se os torneios, as justas, os jogos de cannas, os touros, as «aventuras y todo genero de grandesas» com que o Duque, -- ou melhor os Duques, pois que D. João regularisára já o seu segundo casamento, -- opulentamente, -- um pouco politicamente, tambem, -- ostentavam a satisfação e as esperanças que punham na prestigiosa alliança.

D. Leonor foi recebida na fronteira e conduzida a Villa Viçosa pelo proprio D. Jayme com lustroso cortejo de parentes, amigos e vassallos, sendo entregue no Castello Velho aos cuidados da Duqueza Mãe, muito inclinada á educação das meninas da familia, segundo se vê do seu testamento.

D. Leonor atravessava então a edade menos seductora: em que as graças da puericia teem desapparecido e as fórmas e encantos da mulher não se definiram e bolearam ainda.

Teria treze annos.

Seria formosa?

Talvez não podesse dizer-se então.

Mesmo posteriormente, -- á parte as phantasias da invenção litteraria e a adjectivação banal, ainda assim bastante escassa, d'esta vez, da geneologia cortesã, -- não póde affirmar-se que o fosse, sobre testemunho algum auctorisado e claro.

Aos vinte e quatro annos, no meio de uma Côrte em que as mulheres formosas não escasseavam e o eterno thema do suspirar e cuidar renascia e se glossava alegremente em aventuras e ostentações de uma galanteria irresistivel, -- aquelle marido sem mulher, que não podia ser um namorado viavel e que seria um amante inseguro, -- «um servidor» suspeito, -- faria certamente uma estranha figura.

Restaria a D. Jayme o exemplo pratico de Affonso III, que formando e creando desde os oito annos a pequena e tambem um pouco obrigada noiva, -- uma Gusmão, tambem, fôra espairecendo publicamente nos braços de Aldonça Annes os enfados e delongas d'aquelle consorcio solteiro.

Mas os tempos e as circumstancias eram outras.

Que o Duque era um temperamento amoravel e vigoroso, apesar dos «humores melancholicos» que lhe opprimiram toda a vida o coração e o espirito, prova-o, pelo menos, a farta prole que deixou.

N'essa prole ha bastardos, mas estes, -- os que chegaram ao nosso conhecimento, -- vieram muito depois, precisamente na constancia do segundo e tranquillo matrimonio.

Tenham paciencia os romanticos.

A verdade é que desde que volta novamente á patria, resignado ou convencido, -- mais exactamente, desde que apparece levando o futuro Rei ao baptismo, em meiado de 1502, D. Jayme escondese-nos quasi inteiramente da vista, por mais que a fatiguemos a sondar o vacuo produzido pelo desbarato dos archivos.

Apenas uma ou outra vez o encontramos de passagem, ou o adivinhamos a lidar calladamente na consolidação e na administração da grande Casa, no exercicio e nas excursões do seu alto officio de Fronteiro, nas diversões peculiares a um grande senhor, intelligente, moço, opulento.

A mãe; a Duqueza D. Isabel, continuou vivendo no Castello Velho até juntar os dois desposados.

Ali se conservaria então a joven noiva, -- ou até que «se entrelles podesse consumar ho matrimonio»-- segundo a phrase pittoresca de Goes.

Da sua apparição em Lisboa ou na Côrte não encontramos vestigios.

No Castello Velho, que tantas transformações soffreu, e que seria, a bem dizer, o nucleo do Castello actual, já bastante truncado tambem, -- ha ainda casas, e sobretudo, ruinas d'aquelle tempo.

Estão de pé e excellentemente conservadas as formosas salas da Armaria começada por D. Jayme e largamente opulentada depois, que foi fallada, aqui e fóra, e desappareceu de todo nos varios torvelinhos e sorvedouros que teem devorado todas as riquezas artisticas do paiz.

Apresentam um aspecto imponente e formosissimo essas salas desertas, sustidas por elegantes columnadas e artesões. N'uma casa terrea, sob as camadas implacaveis da caiadura alemtejana que invade e esconde tudo, encontrou S. A. R. o actual Duque o resto de uma pintura a fresco extremamente curiosa: -- um grupo de rapazes a cavallo em cannas, certamente allusão ao episodio ou á lenda de umas creanças que nos seus brinquedos marciaes prognosticaram, segundo uns, a acclamação de João I, segundo outros, a de João IV.

Ainda sob o aspecto da historia militar, o Castello de Villa Viçosa, testemunha dos primeiros e faceis triumphos da invasão castelhana e da sua mais desastrosa derrota, é um monumento interessantissimo.

Nas melhores presumpções, em quanto a noiva completava sob a educação da Duqueza Mãe a sua educação de mulher, D. Jayme entregou-se á transformação da propriedade solarenga.

Muito dado aos prazeres da caça, é possivel que fosse então que traçasse a vasta tapada actual.

O que parece averiguado, é que foi n'estas vesperas longas do casamento definitivo que fez edificar á beira do reguengo a nova residencia ducal, que ampliada e enriquecida, pelos seus dois immediatos successores, havia de espantar a embaixada pontificia de 1571 como o palácio «mais aprasivel e comodo,» com a unica excepção do Paço Real de Madrid, de quantos encontrára através da Peninsula.

Continuada depois, ainda, essa collossal construcção é uma das raras residencias monumentaes e principescas do paiz.

A sua extensa fachada, simples e magestosa, um pouco, até, monotonamente magestosa, que faz lembrar o Palacio Farnesio, de Roma, lança nas nossas idéas e preconceitos artisticos, quando suppômos ir defrontar com uma construcção manuelina, a nota brusca d'uma invasão italiana.

Essa fachada não é certamente da vida de D. Jayme, mas a maior parte d'ella, pelo menos, estava feita no tempo de seu neto quando pousou ali a embaixada de Pio V.

Logo que entramos o singelo portal e subimos a larga escadaria de bello marmore da região, nos apparecem em face e dos dois lados as grandes pinturas muraes da tomada de Azamor por D. Jayme, de que falla Venturino, e que mandou fazer D. Theodosio I, o filho successor do Duque.

Os riquissimos pannos de Flandres é que se foram de ha muito.

Foi D. Theodosio, seguramente, que completando a consolidação e o engrandecimento da Casa de Bragança na sua ostentosa organisação interna, primeiro transformou e ampliou a edificação de D. Jayme.

A parte anterior e superior do palácio, sobretudo a enfiada longitudinal de vastos salões, as adaptações e accrescentamentos successivos, até uma época relativamente recente, absorveram, abafaram e esconderam, quasi inteiramente, a traça e a construcção primitiva.

Mas através d'esses lanços e adaptações posteriores encontram-se, ainda, muitos elementos nitidamente reveladores, -- excellentemente conservados até, -- das «casas» de D. Jayme, e póde mesmo atinar-se, talvez, -- pelo menos, julgo tel-o conseguido, -- com boa parte do restricto theatro em que se representou e desenvolveu a tragedia de 1512.

Quando os dois noivos poderam finalmente reunir-se sem escandalo maior da Natureza... ou dos canones, a Casa dos Duques passou para a parte já habitavel do Paço do Reguengo, e a Duqueza Mãe, abandonando o Castello Velho, veiu viver em Lisboa, com a irmã, a Rainha Viuva de João II.

Se não póde dizer-se com perfeita segurança que D. Leonor fosse ou não fosse formosa, menos póde surprehender-se a sua feição moral, definir o seu caracter, o seu temperamento, o seu genio, adivinhar-lhe o espirito, auscultar-lhe o pobre coração em plena florescencia bruscamente parado e emmudecido.

De D. Jayme restam-nos ainda testemunhos dispersos, revelações truncadas, mas nitidas, sufficientemente nitidas; -- os rastos de uma existencia de exterioridades ruidosas, diversas cartas mais ou menos denunciadoras, -- para quem saiba lêr o que ha sempre por traz ou entre as gavinhas que a mão traça ao movimento de uma intelligencia que se dissimula ou que se expande.

De D. Leonor, as referencias que poderiam ser mais seguras são vagas e insignificativas.

Fez-se em volta d'ella um grande silencio.

A curta existencia deslisou-lhe numa completa obscuridade.

Não atravessou a Côrte, -- aquella Côrte intelligente, luminosa, litterata, que deixou no Cancioneiro, nos Autos, nas Chronicas, o rasto indiscreto, umas vezes sinistro, tantas vezes brilhante; as notas, ora maliciosas, ora épicas, do seu original, do seu singular movimento.

Duqueza de Bragança, filha do primeiro Duque de Castella, a primeira dama da fidalguia portuueza, depois das que pisavam o estrado real, pôde dizer-se que é apenas... um nome.

Depois, -- a sombra do marido sobrevivente, -- uma grande figura prestigiosa e temida, adensou, mais ainda, a sombra do seu viver obscuro, afastado, a propria sombra em que a envolveu a morte prematura.

Um escriptor moderno suppoz ter-lhe encontrado o perfil nas velhas folhas de algum nobiliario desconhecido: -- uma especie de caricatura, por sigilai: -- uma «galantissima menina affeiçoada a bonecas e a borboletas, mui festeira de gatos e periquitos d'Africa.»

Compulsei uma infinidade de geneologios e cartapacios de memorias, e o que encontrei foi uma mudez absoluta, que, a fallar a verdade, não vale menos do que aquella revelação picaresca.

Conhecemos os pães, -- e podemos imaginar o meio, -- sabemos que D. Leonor era uma moça andaluza, nascida e creada n'uma raça forte e irrequieta, na opulencia, na ostentação, numa atmosphera viva e quente de grandes paixões; -- que a sua infancia se passára na contenção educativa de uma grande e velha fidalga, -- a avó; -- que esta e a mãe lhe haviam morrido quando menina; -- que depois se achou desposada d'um grande senhor, que não conhecia, um estrangeiro, austero e triste, que andava quasi sempre por fóra, -- e tutellada e educada, n'um velho castello estranho, bem menos ruidoso e alegre do que os seus Paços de S. Lucar, por uma dama que era quasi uma Rainha, muito carinhosa, certamente, mas cheia de recordações sombrias, que só teria uma preoccupação: -- fazer d'ella uma Duqueza digna do elevado estado e da grandiosa prosapia da Casa e do filho, -- do filho adoptivo do Grande Rei.

Mas tudo isto fornece-nos apenas indicações confusas, fugidias, inconsistentes; -- uma luz bruxeleante, indecisa, através da trevoa compacta e perfida, que a cada momento póde fazer-nos resvalar na Phantasia, ou nos suspende na Duvida.

D. Leonor, a Rainha Viuva, a irmã da Duqueza Mãe, não fizera traduzir e imprimir, ainda, o Espelho de Christina, aquelle interessante e minucioso codigo endereçado -- «aas Raynhas, Princesas, Duquesas e grandes Senhoras... como se ham de regir e gouernar no regimento de suas casas fazendas e honrras» -- mas pode bem imaginar-se com que cioso amor, com quanta escrupulosa e severa lição a nobre sogra de D. Leonor de Mendonça cuidaria de preparar e formar a joven andaluza, sofreando-lhe, ageitando-lhe, nos moldes necessarios da situação que lhe fôra destinada, a nascente adolescencia que ia breve sentir-se dominadora.

É ainda nas pallidas e inconscientes revelações recolhidas pelas justiças de Villa Viçosa, no dia da grande tragedia;-- é ainda n'aquellas amarellecidas e tortuosas gavinhas, e entre ellas, e através d'ellas, -- nesciamente votadas ao esquecimento e ao despreso pela Lenda e pela phantasia litterata, -- que se pódem surprehender e colher alguns traços seguros, -- truncados e incompletos, embora, -- d'aquelle espirito e d'aquelle coração juvenil.

É meditando essas folhas que mal se comprehende como poderam salvar-se e chegar até nós, -- e correlacionando-as com as escassas informações positivas que aqui ou ali conseguimos apurar, -- que n'esta obscuridade densa se nos desenha, n'uma especie de rasto phosphorescente, o esboço, o esquiço de uma mulher moça, de uma rapariga alegre, amoravel, ingenuamente expansiva e leviana, feita, sem consciencia e sem vontade, companheira material e ostensiva de um homem em quem havia de ver antes um senhor do que um consocio amante que lhe recebesse e retribuisse a exuberancia da adolescencia que se desopprimia após uma infancia obscura e triste: -- pobre planta passivamente destinada á enxertia e reproducção necessaria da Casta, em estufa solitaria e estreita, quando mais forte e capitosa lhe circulava a seiva, -- como diria Manuel Bernardes: - o licôr da vida...

Gostava de fallar e rir; tinha impetos e caprichos de creança; a criadagem respeitosa, -- modelada na contenção adorativa da grandeza, da magestade ducal, -- espantava-se das desenfadadas familiaridades em que se «desauthorisava uma tão grande Senhora!...»

Havemos de fixar mais de perlo este perfil tão natural e tão comprehensivel.

Em 1503 ou 1504 completava D. Leonor os seus quatorze annos.

Como vimos já, no anno seguinte o consorcio era facto consumado.

N'esse mesmo anno devia estar concluida a capella do novo Paço, não certamente como é hoje, mas como póde adivinhar-se ainda através das transformações e retoques successivos, pois que Julio II lhe concedia que os capellães d'ella podessem resar em côro e celebrar os officios divinos.

O claustro conserva-se approximadamente completo, com o cunho do tempo.

Certo, a devoção de D. Jayme não afrouxara, mas os impetos e aspirações asceticas tinham desapparecido, e o Duque, perfeitamente conformado com a situação e com «o estado matrimonial» para o qual tão erradamente imaginara não prestar, ensaiava briosamente servil-o e honral-o tornando-o productivo.

D. Leonor deu á luz um filho, não sabemos quando, que recebeu o nome de D. Theodosio, não sabemos porque, -- e mais tarde uma menina, a futura infanta D. Isabel.

Eram ambos muito creanças em 1512.

Queira perdoar a poesia da Lenda: -- poderia suppôr-se até que usassem ainda «coeiros,» da funcção de cuidar doestes consignada a certa mulhersinha que foi personagem importante na tragedia de então.

VIII Andei daquem para alem Terras vi, e vi lugares Tudo seus avessos tem.

Sá de Miranda. -- Ecl. v.

Tres ou quatro annos depois do consorcio definitivo, em pleno inverno de 1508, um extraordinario incidente veiu agitar a vida, pelo que póde entender-se monotonamente tranquilla, do Paço de Villa Viçosa.

Chegára ali o irmão mais novo de D. Leonor, D. Henrique de Gusmão, acompanhado, -- mais propriamente raptado, trazido, pelo cunhado D. Pedro de Girão ou Giron, terceiro conde de Urenha, que casára, dois annos antes, com D. Mecia, -- a que ficára de remissa no contracto de casamento de D. Jayme para o caso de D. Leonor fallecer menina.

Vinham litteralmente fugidos de Sevilha, a matacavallos.

Graves acontecimentos se haviam passado em

Castella e uma grande tempestade estalara sobre a Casa dos Medina Sidonia.

A Rainha Catholica morrera em 1504, e exactamente dois annos depois morrera o genro, Filippe I, o marido da pobre Joanna, a Louca, a herdeira real.

Fernando, o viuvo Rei, tivera, pois, de voltar apressadamente de Napoles, chegando a Hespanha em julho de 1507, para assumir pela segunda vez a regencia.

Mas n'estes intervallos torvas discordias e verdadeiras guerras traziam divididos e levantados os grandes senhores de Castella.

A intriga intestina soprada pela intriga exterior, alimentada pelas rivalidades e ambições desopprimidas dos fidalgos, ameaçava subverter a obra unitaria dos Reis Catholicos.

Fernando encontrava uma forte resistencia á restauração do seu poder, e de longe, o Imperador Maximiliano, pae de Filippe I e d'aquella «Madama Margarida,» viuva do suecessor immediato da Corôa, açulava essa resistencia e annunciava a sua vinda á Peninsula.

As esperanças politicas de D. João de Gusmão no casamento da filha com D. Jayme, haviam-se mallogrado cedo.

Os Reis Catholicos, não sabemos como, nem quando, tinham-se apoderado de Gibraltar, e este facto lançára naturalmente o Duque de Medina Sidonia no partido de Filippe I. Pelo menos, tel-o-hia indisposto com D. Fernando.

O que é certo é que em 1506, D. João fora a Valladolid prestar preito e homenagem ao marido de Joanna, a Louca, como a seu Rei natural, e por essa occasião reclamára e obtivera reparação do aggravo que lhe haviam feito os Reis Catholicos tirando-lhe Gibraltar.

Voltou com uma Cedula Real para que a cidade se lhe restituisse, ou para que elle a retomasse á força.

No caminho, porém, soube que o Rei fallecera, e a nova, espalhando-se rapidamente, chegou a Gibraltar antes d'elle.

Os que tinham a praça pela Corôa, recusaram-se a entregal-a, allegando que não havia de prevalecer a ordem do Rei morto sobre a que haviam recebido do Rei vivo. Era este D. Fernando, que aliás estava em Napoles, e não era ainda, pela segunda vez, Regente de Castella.

Organisou o Duque uma forte expedição, pôz-lhe á frente o proprio filho herdeiro, D. Henrique, uma creança, -- n'aquelle tempo os rapazes fidalgos tinham de ser homens, cedo, -- e fez cercar apertadamente a sua «nobre cidade.»

Gibraltar resistiu, e, ao cabo de dois mezes, o inverno e a fome, -- o anno de 1506 foi el año de la hambre, como o seguinte havia de ser o da peste, -- fizeram levantar o cerco.

Por este tempo negociava D. João, para a segunda filha, D. Mecia, -- já liberta da clausula do contracto esponsalicio da irmã, -- um casamento politicamente mais efficaz e seguro do que se mostrara o de D. Leonor.

Era o de D. Pedro de Girão, -- Giron, -- filho do segundo conde de Urenha.

Tinha D. Mecia dezeseis annos, e D. Pedro era já -- «onbre en edad e onbre en ser», -- audacioso, guerreiro, cheio de ambição.

D. Mecia recebeu de dote, apenas quatro contos de maravedis: -- a differença enorme para o dote da irmã, suppria-a certamente a superioridade heraldica que levava ao marido.

E para que fosse mais intima, ainda, a alliança das duas Familias, uma filha do Urenha, -- Dona Maria de Archidona, -- já mulher, desposava o futuro Duque D. Henrique, o irmão de D. Leonor e de D. Mecia, que tinha apenas onze annos. A noiva continuava a viver com os paes, aguardando que o pequeno podesse ser marido, -- e recebia d'elles um dote de sete contos.

Serão enfadonhos estes pormenores, mas são, sob mais de um aspecto, interessantes, andam desconhecidos, e importam ao criterio com que se ha de comprehender a época. Além de que já prevenimos: -- não fazemos romance.

No anno seguinte viera a peste.

Fugindo a ella, o Gusmão pôz-se a jornadear pelas terras do Axarafe. Por signal que o não quizeram receber em Xerez com medo do contagio.

Mas com elle jornadeava a paixão da perdida Gibraltar.

Passando a Medina e Bejar, o Duque foi juntando um verdadeiro exercito e voltou a cercar a sua «nobre cidade,» procurando intimidal-a com a assolação dos arredores, de que depois generosamente indemnisava os seus antigos subditos.

Resistiu, ainda, Gibraltar, e resistiu tambem o Duque ás instancias dos delegados regios de Granada, que lhe aconselhavam a derimir a contenda perante D. Fernando, o Catholico, que ia chegar.

Evidentemente a estrella dos Gusmões declinava.

Do lado de Portugal, não havia que esperar: -- ninguem se mechia.

A politica portugueza, além de que tinha muito em que se occupar, limitava-se a vigiar cautelosamente o que se passava em Castella.

D. Jayme tratava da sua Casa ou percorria as terras do seu fronteirado, fazendo reparar os castellos e fortalezas um pouco desleixadas pela paz da metropole e pelas preoccupações ultramarinas. Mas que D. Manuel não se desinteressava inteiramente dos movimentos do Duque de Medina Sidonia, parece mostral-o uma carta que em julho de 1507 o informava de que aquelle cercára, pela terceira vez, Gibraltar.

D. João tivera de levantar novamente o cerco, e disfarçando o seu despeito, fazia uma especie de entrada triumphal em Sevilha, em plena manhã de S. João, com grande arruido de trombetas e atabales, e a sua guarda ducal de duzentos alabardeiros garridamente vestidos á la moda de Italia.

Fôra o seu ultimo triumpho, porque dias depois, em 10 de julho de 1507, morria, no vigor da edade, ainda, deixando a esposa gravida, tendo devotamente recebido todos os Sacramentos e feito o seu testamento, em que instituia por suecessor o D. Henrique.

Constituindo-se em protector e tutor do pequeno Duque, o cunhado d'este, Pedro de Girão, apoderou-se logo, em nome d'elle, das fortalezas e terras do senhorio, não se esquecendo do famoso «thesouro» dos Gusmões, que não pensou em dividir com D. Jayme, segundo o incriminam asperamente os nossos chronistas. Diria a isso que a parte que poderia competir ao cunhado, a recebera antecipadamente no grosso dote de D. Leonor.

Voltando a Castella D. Fernando, o Catholico, D. Pedro de Girão apressou-se em ir com o pupillo prestar-lhe obediencia, sendo D. Henrique excelentemente acolhido e o primeiro fidalgo que beijou a mão do Regente, -- por ser su titulo de duque el primero de Hespaña, observa o historiador da Familia.

Mas D. Fernando foi informado d'aquella especie de usurpação exercida pelo Girão, recebeu queixas e denuncias contra este, e resolvera introduzir na Casa de Medina Sidonia, uma sua neta D. Anna de Aragão, casando-a com o Duque herdeiro, cujos esponsorios anteriores annullaria com o pretexto de não os ter precedido a licença real.

Vindo a Sevilha, no anno seguinte, o Rei mandou intimar D. Pedro a que largasse o governo do Ducado, entregasse as fortalezas de Bejar, S. Lucar e Huelva a um seu delegado D. Inigo de Velasco, e apresentasse D. Henrique na Côrte.

O Girão tomára apressadamente as suas precauções.

Recommendára aos alcaides que não entregassem os castellos e os defendessem, ainda que em nome e á ordem do proprio Duque lh'os exigissem, fez juntar o moço -- lo hizo velar, -- com a noiva, sua irmã, que se conservára em casa dos pães, em Ossuna, e respondeu que D. Henrique era senhor do seu estado e que a elle é que deviam pedir-lh'o.

D. Henrique além de ter apenas onze ou doze annos, era de compleição fraca e doente.

Depois de retardar quanto pôde, a apresentação d'elle, D. Pedro levou-o finalmente a Sevilha.

O Rei acariciou o joven Duque, quiz que ficasse com elle, e desterrou o Girão.

Este sahiu da cidade indo pernoitar ao convento de las Cuevas, a curta distancia, e D. Henrique dançou n'essa noite no sarau da Côrte, muito festejado pelas damas e pelos cortesãos.

Mas por horas mortas o Girão entrou em Sevilha escalando os muros; foi direito á camara em que haviam recolhido o pobre moço; acordou-o, e auxiliado por um pagem d'elle, companheiro dos seus brinquedos, um João Ortiz, -- convenceu-o de que o Rei o queria fazer degolar por ter ido sobre Gibraltar, e que urgia montar a cavallo e fugir, caminho de Portugal, para casa da irmã, a Duqueza de Bragança.

Imagine-se o furor do Rei quando na manhã seguinte soube do extraordinario lance.

A gente enviada logo em perseguição dos foragidos, não conseguiu alcancal-os.

Passava-se isto em novembro de 1508.

D. Fernando mandou que se apresentassem em Sevilha todos os alcaides do senhorio ducal, e nomeou governador d'este o arcebispo.

Faltou e resistiu o alcaide de Niebla, leal ao seu preito e ás ordens do Girão e do Duque, que haviam passado ali em fuga para a fronteira.

Niebla foi occupada e saqueada pela gente real, e o alcaide, e outro, e quatro regedores da terra foram enforcados.

Eis como e porque o pequeno irmão de D. Leonor, Duqueza de Bragança, que ella deixára menino, mimoso e cuidado, nos Paços de S. Lucar, lhe vinha cahir nos braços, cheio de cansaço e de terror, ao cabo d'uma fuga vertiginosa pelos campos alagados da Andaluzia.

D. Jayme não estava em Villa Viçosa. Andava para Entre Douro e Minho.

Avisado por uma carta da joven Duqueza veiu ao solar, passando naturalmente pela Côrte a conferenciar sobre a nova com o Rei.

Rasões teria para não gostar muito da visita, principalmente, se, como diz Caetano de Sousa, o rebellão cunhado não contára com elle na questão do «thesouro» dos Gusmões.

Parece, comtudo, certo que acolheu excelentemente os foragidos e que lidou, com D. Manuel, junto do Regente castelhano por diminuir-lhes o exilio.

Mas que vinham elles, -- ou mais exactamente, -- que vinha o Girão fazer a Villa Viçosa?

O Girão fora desterrado da Côrte castelhana, e se realmente eram fundadas as suspeitas de D. Fernando, das relações d'elle com o Marquez de Priego e os outros revoltosos andaluzes, bem fizera o Conde em pôr-se a salvo, passando a fronteira.

Mas o rapto do pequeno Duque e as ordens para a resistencia á auctoridade real denunciam mais alto pensamento.

Elle não ignorava, certamente, que, áparte as más vontades e reacções intestinas que Fernando ia abafando com mão de ferro, os estados visinhos, e entre elles Portugal, vigiavam com natural desconfiança, até com mal disfarçada hostilidade, a consolidação e engrandecimento da monarchia nova formada pela reunião das Corôas de Aragão e Castella.

Do lado de Portugal a decisiva expansão castelhana sobre a costa fronteira d'Africa, em concorrencia, um pouco tumultuaria, com a prioridade e com os propositos das occupações e conquistas portuguezas, viera accrescentar um fermento novo á desconfiança e desgosto latente, dando logar, n'aquelle mesmo anno, com a tomada de Peñon de la Gomera, por Pedro Navarro, a uma coalisão de mau agouro entre a politica dos dois Estados.

É provavel que Girão, e não só elle, mas os mais conjurados e conspiradores contra o poder de Fernando, pensassem encontrar cooperação e favor na politica portugueza, offerecendo-lhe o ensejo, realmente seductor, de crear á expansão triumphante de Castella, d'aquelle lado, uma objecção, por assim dizer uma barreira imponente, e ao mesmo tempo de alargarmos a influencia, talvez até que o dominio, sobre as terras andaluzas.

O Duque de Bragança seria realmente o melhor dos auxiliares.

Além da sua situação singularmente preponderante junto do Rei portuguez e da sua ligação com a Casa de Medina Sidonia, poderia levantar forças consideraveis, e começára talvez a manifestar já aquellas inclinações para a organisação e para o commando militar, que o tornaram tão notável depois.

Do pae, o Degolado de Evora, se contava que dos seus largos senhorios poderia levantar tres mil homens de cavallo e dez mil infantes.

E de quanto este enorme poder, reconstituido e accrescentado em D. Jayme, poderia pesar n'uma aventura bellica havia de ver-se, poucos annos passados, na conquista de Azamor.

A perspectiva não podia ser mais seductora, simultaneamente, para a revindicta andaluza e para a politica portugueza.

Mas é evidente que nem esta, nem D. Jayme, se deixaram seduzir por ella, e nem o alargamento do dominio castelhano em Africa, até Oran, Tunis e Tripoli, alterou a reserva ou a ostensiva cordealidade mantida com o Rei Catholico.

Se o Girão contára com a influencia que a cunhada, D. Leonor, poderia exercer no animo do marido para movel-o em favor dos seus planos rebeliões, absolutamente se illudira a respeito d'ella e d'elle, sobretudo a respeito da situação relativa dos dois.

E bem pouco via e sabia, tambem, do espirito e dos interesses que moviam e norteavam então a politica portugueza, o ousado e irrequieto aventureiro andaluz, suppondo prendel-a aos impetos e planos da sua retardataria insubordinação fidalga.

O tempo das prosapias autonomicas e dos impetos e aventuras do poderio senhorial eram idos.

Passava sobre elles a rasoura, -- que quando encontrava resistencia se fazia cutello, -- do Direito Real.

Anno e meio, ou pouco mais, se conservaram D. Henrique e D. Pedro em Portugal, na hospitalidade generosa do Duque de Bragança.

Caetano de Sousa diz que o Rei Catholico se doera d'esta hospitalidade, devendo-lhe o Duque tanto, pela que recebera d'elle, mas que exactamente D. Jayme se desculpava das queixas com o exemplo proprio.

Demais conhecemos já o criterio superficialissimo do famoso geneologista. Estas cousas não se determinavam, então, simplesmente, por impulsos sentimentaes.

A hospitalidade do Duque importava a do Rei, e natural é que á politica portugueza não deixasse de convir, precisamente, n'aquella occasião, ter á mão e sob a sua dependencia, aquelles emigrados politicos.

Não guardára ella com o mais cioso e habil cuidado a «Excellente Senhora»?

O facto parece, comtudo, ter passado geralmente desapercebido aos nossos chronistas, e é provavel que os exilados se mantivessem n'uma obscuridade discreta em Villa Viçosa.

Mais graves acontecimentos e mais altos personagens occupavam as attenções.

Finalmente, por intervenção e diligencias, decerto, de D. Manuel e de D. Jayme, junto da Corôa castelhana, o Gusmão e D. Pedro poderam voltar á Andaluzia, tomando aquelle, que teria então entre quatorze a quinze annos, conta da sua Casa e estados.

Debil ou doente, a fuga para Portugal abalára-o profundamente.

O consorcio prematuro acabou por matal-o, em Osuna.

Apenas dois mezes havia de sobreviver á irmã que o acolhera em Villa Viçosa.

PARTE III

ESTRELLA CADENTE

IX

... porq prudêcia lhe dyra q muyto repouso jeera pecado.

Esp. de Cristina, C. CX.

O paço do Reguengo recahira na sua monotonia habitual.

D. Jayme fazia continuar a ampliação d'elle, e quando estava em Villa Viçosa enchia o tempo com as suas occupações devotas e administrativas, ou nos longos passeios e caçadas.

O convento dos Agostinhos, logo ali em frente do solar, á beira do caminho de Borba, merecia-lhe já os extraordinarios cuidados que o levaram a substituir-se n'elle, ao Geral da Ordem, por uma licença ou delegação d'este, -- Fr. Egidio de Viterbo, -- em 1510.

Visitava-o frequentemente, provia ao sen engrandecimento, tratando já, talvez, de fazer ali o pantheon dos Duques, e ás vezes, exercendo a um tempo as suas inclinações disciplinadoras e religiosas, mandava tanger a capitulo e cathechisava os frades sobre o melhor regimento que haviam de ter no serviço de Deus.

Mas não o assoberbava nem lhe bastára a ascese mystica, fortemente combatida pela fatalidade da situação e pelas trepidações contraditorias d'aquella mal soffreada individualidade, altiva e dominadora.

A caça e a equitação, -- attribue-se-lhe, mesmo, na ultima, a introducção em Portugal, da brida, -- eram das suas diversões mais dilectas.

Nos exercicios -- «d'uma e d'outra sella,» -- da portugueza e da que aprendera em Castella, -- como nas longas correrias através dos campos, procurava naturalmente espairecer e illudir os affrontamentos melancholicos e vencer pela fadiga as insomnias impertinentes.

Era esmoler e caridoso, -- signal de que era bom, - e até n'isso era exaggerado, nervoso.

Um dia, voltando de caçar no campo de Veyros, encontrou um pobre, perdido e gemebundo. Deu-lhe uma esmola, e outra, e mais: -- despejou-lhe nas mãos a bolsa:

-- «Até que te fartei de dinheiro,» -- disse. E mandou-o caridosamente levar ao povoado.

Gostava muito da musica: -- encontraria n'ella um doce e mystico allivio.

A guerra, a milicia, a tactica, a bella e difficil arte de organisar, de mover, de dirigir, de arrojar as grandes massas humanas umas contra as outras, muito provavelmente o occuparia tambem.

Dentro em pouco o encontramos introduzindo as novas unidades tacticas dos regimentos, fazendo exercitar regularmente quatro, -- de mil homens cada um, -- sob o commando de velhos cabos experimentados nas campanhas da Italia, -- e logo dirigindo em pessoa, e por seu absoluto e seguro alvedrio, uma enorme expedição militar, simultaneamente maritima e terrestre, e corrigindo e acautelando e reprehendendo, com extraordinario senso pratico, a velha tactica desordenada e aventurosa.

Eram herança de sangue estas aptidões bellicas.

Vinham talvez do grande Condestavel e do grande Mestre, os dois fundadores da familia.

Um duque, o D. Affonso, o bastardo de João I, ensinára duramente ao Infante D. Pedro e ao seu soberbo capitão e amigo, o Vaz d' Almada, como sem correrem as partidas do mundo se creavam cá generaes excellentes.

O pae, o Degolado d'Evora, fôra um cabo de guerra, afamado, nas campanhas de Castella e da Africa.

Mas ao lado de D. Jayme, -- nem nas caçadas, nem nas excursões, nem quando jornadea, nem quando atravessa a Côrte, nem nas exterioridades ostentosas, nem no proprio convivio domestico, -- não se vê, não se sente, não se adivinha a esposa juvenil.

Essa vive nos seus aposentos solarengos, especie de gyneceu recatado, n'uma das extremidades do Paço, com as suas donas e pagens, com os seus dois filhos, meninos, que não lhe ficaria bem trazer muito achegados a si como qualquer femea dos seus burgos ou dos seus matagaes: -- passeiando, um ou outro dia, com o acompanhamento e com o ceremonial conveniente, pelas varandas e pelo reguengo; -- ouvindo diariamente da sua tribuna, a missa ducal; -- enchendo as horas, a vida, a mocidade com as historietas das velhas aias e com as frivolidades da sua phantasia ociosa; -- recebendo, de tempo em tempo, na camara solharia, o Duque «seu Senhor» quando a este aprazia -- «jajer com ella,» -- segundo a phrase crua e luminosa da Inquerição.

Ah! Balzac!...

Era o que convinha ao «seu estado.»

Áparte o isolamento e a monotonia provinciana, -- e accrescentada a indifferença affectiva do marido, esta era a vida a preceito -- «no estado matrimonial» -- de uma grande dama como a «Senhora Duqueza.»

Lá havia de dizer prudentemente o codigo auctorisado pela tia, a boa Rainha D. Leonor, o bello e santo formulario recolhido, como precioso talisman nas mundaneidades desfreadas da Renascença italiana.

-- «E porq he ordê do real estado q as molheres nõ estê sêpre acerca dos maridos, assy como as outras molheres, ella enquerera ameude dos camareyros e dos outros seruidores q sõ acerca delle como estaa. E ho veera o mais ameude que poder. E de o veer seraa muyto leda.»

Talvez, por isso, observava o malicioso Resende ao capitão da Mina:

As damas que cá ficaram

quando daqui vos partiste

algûas delias casaram

e vivem porisso tristes

e outras se contentaram...

Comprehende-se que n'esta existencia methodica de -- «dereyta honrra,» -- muitas vezes se introduziam perfidamente tentações e devaneios perturbadores.

Comprehendera-o e prevenira-o o meticuloso cathecismo, recommendando, em larga lição, ás donas mais especialmente guardadeiras das grandes senhoras, como haviam de atalhar o perigo, -- «ante que a sandice vaa mays auante.»

Mas onde elle imaginava que poderia preparar incendios a sandice dos corações e das cahecinhas mal enquadradas na theoria austera, era principalmente quando os olhos se embebiam, e se enlaçavam as mãos, e as conversações volitavam, desopprimidas, e roçavam as sedas e as carnes no turbilhão quente, desgelador do fausto, da galanteria, dos saraus e das diversões cortesãs.

Realmente, Villa Viçosa, n'aquelle tempo, não deveria offerecer uma atmosphera extremamente perigosa, povoada de terriveis microbios mundanos, a semelhantes desvios e fallencias da honestidade senhoril... da pragmatica.

Não era a pequena Côrte que veiu a ser depois.

Se alguma vez, já, se corriam cannas ou se faziam torneios no Terreiro, -- suppondo que existia este, que, em todo o caso, no tempo do neto de D. Jayme não era tão desafrontado e amplo como hoje, -- se acaso algum sarau festivo pozera a nota alegre dos galanteios e bailados n'aquelle meio um pouco frio e artificioso que o Amor, a Arte, o Luxo tanto haviam de opulentar depois: -- fôra incidente que nem pela singularidade parece ter deixado vestigios aos mais esmerilhadores chronistas das grandezas e ostentações do Duque.

Nem este permaneceria muito, no incompleto solar. A administração dos seus dispersos estados, a sua situação e valimento junto do Rei, provavelmente a construcção do seu Paço de Lisboa, traziam-n'o frequentemente por fóra.

O proprio pessoal caseiro e o serviço solarengo estava evidentemente muito longe de ser, em numero e em etiqueta, o que foi quando D. Theodosio I os pôz ao nivel de uma Côrte real.

Como dissemos, D. Leonor, moça e folgasã, abandonada á intimidade de um convivio muito restricto de simples famulagem, desenfastiava-se em conversar e rir com esta.

A Inquerição revela-nos com soffrivel nitidez aquella desolada monotonia do seu viver: -- os passeios restrictos, a mesa solitária, o jogo de cartas com a dona e com a moça da camara para «matar o tempo.»

Os servidores mais pundonorosos no servilismo cortesão, estranhavam, até, que ella se desauetorisasse um pouco em gracejar com os pagens, nos seus pequenos passeios exteriores ou nas distracções senhoris da sala, em que enchia os dias rodeada das suas donas, e com os mocinhos de joelhos deante d'ella ou ladeando-a e seguindo-a attentos aos menores movimentos da sua vontade e do seu capricho.

Unico elemento masculo que circulava livremente no gyneceu ducal, -- creanças que mal começavam o tirocinio dos respeitos e das distincções hierarchicas, -- eram naturalmente os pagens que com as suas petulancias e travessuras davam a nota alegre e desenfadada áquelle viver solitario e monotono.

Seria n'elles tambem, -- creados desde a infancia com a Duqueza, -- que ella encontraria uma affeição mais communicativa e facil, que menos sentiriam elles, na ingenua florescencia da vida, a influencia das sombras que pesavam sobre aquelle ninho artificiosamente formado, não pelo Amor, mas pelas conveniencias e pelos interesses da Politica e da Heraldica.

Certamente, D. Leonor tinha nos mais servidores, -- nos officiaes e donas da sua Casa, -- um respeito affectuoso, grato.

Ella era amoravel e simples; e quando, sobre o seu cadaver e deante do marido ultrajado e severo, esses servidores vão depor o testemunho do seu trato, sente-se, mais d'uma vez, vibrar a saudade e a dôr através da bruta e fria indifferença que a Convenção e a Tradição hierarchica cava fatalmente na solidariedade dos corações, -- das consciencias, até.

Mas o amor, o respeito, a dedicação de toda essa gente pela joven senhora era, naturalmente, uma sentimentalidade de reflexão, menos espontanea ou menos desopprimida, continuando, a bem dizer, a dedicação, o respeito, o amor pelo Senhor, pelo Amo natural, prestigioso, temido.

Os pobres rapazes, os pagens, os -- «meninos,» -- como ella lhes chamava na sua graciosa sensibilidade mulheril, esses queriam-lhe de bem differente maneira, porque era moça, porque era alegre, porque era boa e amiga.

Um d'estes pagens da Duqueza, -- que fôra posto ostensivamente ao serviço do filho, o pequenino D. Theodosio, -- era Antonio Alcoforado.

O pae, -- o Alcoforado, -- como lhe chamam alguns documentos, -- Affonso Pires Alcoforado, -- era moço fidalgo da Casa, antigo servidor,-- «amo» de D. Jayme.

Amo correspondia umas vezes a aio, mestre, director, -- como se diz hoje na technologia palaciana: governador de menino nobre, realengo, -- e este fôra o cargo d'aquelle Lopo de Sousa, alcaide-mór de Bragança, do Conselho do Rei, Governador da Fazenda do Duque, que figura nas negociações e contracto do seu casamento; -- outras vezes significava o marido da ama, da senhora que amamentára a fidalga creança, em summa, como diz o Elucidario, o homem que creava em sua casa ou ao peito de sua mulher os filhos dos grandes Senhores.

O termo «acostumado» d'estas creações era de tres annos.

N'outra occasião fallámos da linhagem nobiliaria dos Alcoforados.

É uma das geneologias mais complicadas da fidalguia portugueza. Pelo menos das mais atabalhoadamente tratadas pelos estudiosos da especie, alguns dos quaes parece que influenciados muito tolamente pela idéa de expurgir da prosapia gloriosa do appellido a memoria dos que melhor o ampararam e trouxeram pelos seculos adiante: -- a do pobre pagem de Villa Viçosa e a da freira apaixonada de Beja.

Tambem sobre a procedencia geneologica do rapaz se faz a confusão e a obscuridade, tentando-se, mesmo, arredal-o do vetusto tronco como excrecencia espuria.

É sabido que os Pires e os Alcoforados veem enlaçados desde a raiz da grande arvore, desde o pouco menos que lendario D. Gueda, o Velho.

Logo, o primogenito do primeiro Alcoforado foi um Affonso Pires, nada menos que Rico Homem de Sancho II, que como tal assigna a concordata do Rei com as tias e figura nas inquirições de D. Affonso III e de D. Diniz.

Evidentemente a casta multiplicou-se muito, mas decahiu um pouco.

Um dos mais antigos Alcoforados que encontramos á sombra amiga da Casa de Bragança, e que é até contemporaneo do Ducado, chama-se precisamente Antonio Alcoforado.

Foi escudeiro do primeiro Duque, e casou com D. Luiza Velloso Machado, Senhora do praso do Monte, junto a Barcellos.

A idéa corrente entre geneologistas modernos de que Barcellos foi o berço da estirpe, não é positivamente exacta, -- perdôe-se a um transmontano a revindicação, -- mas não importa apurar por agora.

Teve aquelle casal dois filhos e duas filhas.

Foram os primeiros: João Alcoforado, que teve o cuidado de deixar justificada a sua ascendencia nos archivos da Casa ducal, e que casou em 1443 com uma dama da Duqueza D. Constancia, uma filha do secretario do primeiro Duque D. Affonso, -- digamos-lhe sempre o nome: -- Salvador Velloso Machado; -- e o outro, Martim Alcoforado, que casou com Manuelina Pires, filha unica d'um fidalgo da Casa do Rei, secretario e escrivão da Puridade do Duque de Bragança, um Antonio Pires, cuja nobreza e fortuna o genro relacionou tambem, perante as justiças de Barcellos, em 1460.

Tem uma certa importancia para o nosso caso estas datas em assumptos d'ellas tão safaro geralmente.

Este Martim teve um filho, Affonso Pires Alcoforado, que serviu os Duques D. Fernando I e II, e casou e procreou no tempo do ultimo, não se sabe com quem, recebendo de D. Fernando II mil dobras de casamento.

Affonso Pires é até o unico varão, o Alcoforado por singularidade, na geração immediata dos filhos do velho escudeiro Antonio.

Mas, como dissemos, este teve também duas filhas, ambas, para os geneologistas, anonymas: -- uma que serviu uma Duqueza de Bragança, que elles não dizem qual fosse, mas que lhes consta lhe dera o bello dote de tres mil dobras quando casára com um sujeito, Diogo de Azevedo, -- e outra que foi dama da Duqueza D. Isabel, a mãe de D. Jayme, em casa da qual se namorou d'ella o pae d'este, o Duque D. Fernando II, e que por consequencia devia ser mulher feita ahi por 1472.

Começa agora a ser extremamente interessante e trapalhona a bisbilhotice geneologica.

Não foram perfeitamente platonicos aquelles amores porque d'elles resultou uma menina -- Genebra Alcoforado, -- que ficou desamparada pela morte do Duque, quando não deveria ter mais de dez ou onze annos, e casou com um fidalgo biscainho, especie que não era rara então, e do qual nem memoria do nome ficou, observam lamentosamente os geneologistas.

Mas se não ficou o nome, ficaram os filhos.

D'estes, dizem com muita segurança, foi um Antonio Alcoforado, não o nosso, é claro, pois que viveu em Besteiros e procreou lá, até, um novo ramo de Alcoforados, -- o dos Andrades, -- e outro: -- Affonso Pires Alcoforado -- que inopinadamente affirmam ter sido o pagem em questão.

Por maneira que seria de uma assentada, neto do pae de D. Jayme e sobrinho d'este!...

Felizmente para a memoria já soffrivelmente carregada do Duque passou até ha pouco esta extraordinaria nota despercebida á sentimentalidade revolta que o despachou «besta fera.»

Que bella e nova complicação romantica perdeu o pobre Luiz de Campos, o mallogrado poeta!

Não pomos duvidas á apparição irregular d'esta D. Genebra.

Além de que a irregularidade não foi a primeira nem havia de ser a ultima na estirpe ardente e prolifica dos Alcoforados, também nada teria de extraordinaria nos costumes do tempo, embora Caetano de Sousa guarde o mais discreto silencio ácerca das aventuras extra-matrimoniaes do Duque D. Fernando II.

Este mesmo nome de D. Genebra apparece mais vezes no recenseamento geneologico do appellido.

Mas os contemporaneos e companheiros do Pagem testemunham positivamente, sem sombras de romance ou de duvida, que elle se chamava Antonio Alcoforado e era filho de Affonso Pires Alcoforado, moço-fidalgo e «amo» do Duque D. Jayme, -- e sobejam ainda as indicações chronologicas para arredar definitivamente a versão d'aquella procedencia arrevesada da D. Genebra e do biscainho anonymo.

Que a guardem os Andrades Alcoforados de Besteiros, se lhes serve e se ainda por lá existem.

Temos pois de nos voltar para o outro filho do velho escudeiro Antonio Alcoforado, o Martim, que como dissemos produziu, mais regularmente do que a irmã, um Affonso Pires, e uma Anna Pires Alcoforado, que foi mulher de um criado allemão da Casa de Bragança, -- um fidalgo, -- dizem os geneologistas: -- Luiz Truchses.

Contámos tambem que este Affonso Pires casára no tempo e ao serviço do pae de D. Jayme. Não acertam os citados investigadores com o nome da esposa, posto alguns cheguem a denunciar-lhe o da amante, -- Vicencia Affonso, «mulher solteira,» -- que só nos permittimos offerecer á posteridade por ter sido mãe de Pedro Affonso Alcoforado, legitimado em 1473 e que dizem ter sido escudeiro do próprio D. Jayme.

Em vez, porém, de nos mettermos mais no labyrinto forcemos-lhe a sahida por este Affonso Pires, que presentimos ser muito provavelmente o nosso, o «amo» do Duque, posto os geneologios não lhe attribuam outro filho legitimo senão um Diogo, que põem ao serviço do Duque D. Fernando II e fazem pae de novo Affonso Pires.

Por signal que este ultimo Affonso Pires passa a chamar-se tambem singelamente -- o Alcoforado, -- no tempo de D. Theodosio e depois d'este, não podendo, porém, ser o nosso por se oppôr terminantemente a isso a chronologia.

O que é certo e claro é que uma familia de Alcoforados, tendo por chefe um Affonso Pires Alcoforado, moço-fldalgo e «amo» de D. Jayme, vivia em Villa Viçosa ao tempo da nossa historia, no fim da rua da Freira, que, como notámos já, existe ainda com o mesmo nome, e é hoje das mais escusas e pobres da villa. Começa junto das ruinas do Convento da Esperança.

Curiosa coincidencia! -- n'aquellas ruinas, no côro de baixo, hoje aberto e reunido á Egreja, jazem os ossos da Senhora Duqueza.

Para bem proximo da casa do pobre pagem foram elles morar eternamente!

Antonio Alcoforado tinha um irmão mais velho, -- Manuel, -- com o qual dormia no mesmo quarto, -- e uma irmã, -- Maria, -- que estava ou vivia para os lados de Arrayolos.

A mãe era viva e o pae pressente-se que o era tambem, e até que o era ainda quando D. Isabel, a mãe de D. Jayme, faz em 1521 o seu testamento.

O Pagem devia ser muito moço, não só porque era pagem, mas porque ainda não podia usar espada.

Comtudo entre 1511 e 1512 revelava já instinctos e basofias adolescentes: -- deitaria talvez aos quinze ou dezeseis annos.

Tinha a seu cargo acompanhar e servir D. Theodosio, que não teria mais de cinco ou seis.

Era petulante e sobejo no trato e no fallar.

Naturalmente, as confianças e familiaridades da joven Duqueza, com os moços, envaideciam-n'o um pouco, ferindo o amor proprio das donas, algumas das quaes, -- de uma, pelo menos, póde desconfiar-se, -- sentiriam o coração ou os sentidos alvoroçados por esta mocidade que se expandia e ensaiava entre ellas.

Aquelle desenfadamento incorrecto da magestade ducal suggeria reparo nos servidores respeitosos, -- dissemos.

Um D. João, -- que devia ser o importante D. João de Eça, alcaide-mór de Villa Viçosa, grande amigo e cortezão da Casa, fizera já advertencia do caso ao vedor da Duqueza, o Fernão Velho.

Outros e este se amofinavam tambem. Não ficava bem a uma grande Senhora aquelle «desauctorisar-se,» -- era a phrase, -- em palestras e gracejos com os mocinhos de tão inferior gerarchia.

O Vedor, com a auctoridade do officio e da edade, expozera francamente a inconveniencia a D. Leonor. Mas esta, nova e jovial, ria-se das impertinentes observações do Velho e continuava a conversar e a motejar com os rapazes, -- mais especialmente com Antonio Alcoforado, o companheiro e guarda do filho. -- talvez até porque seria o mais crescido, o mais intelligente, o mais petulante, o mais travesso.

Uma dona, -- a tal cuja isenção sentimental puzemos em suspeita e que encontraremos adiante, -- Anna Camella se chamava, -- é a que leva mais longe a lembrança reprehensiva das familiaridades concedidas pela Senhora ao Pagem.

Já «no anno passado,» -- diz ella, -- isto é, em 1511, -- se mostrava Antonio Alcoforado sobejo e descortez, e passavam os dois, em casa e em passeio, hora e mais a fallar alto ou baixo, -- «rijo ou passo,» -- como se dizia então. -- em cousas de riso, em palestra desenfadada e leda.

Não era por mal, certamente, nem tal suspeita poderia entrar no espirito rombamente respeitoso d'aquella e das mais criadas da grande Senhora.

Mas era esquisito, destoante, incorrecto.

Um dia o Velho topou com o Pagem á porta dos aposentos da Duqueza, fazendo declarações suspeitas a uma moçoila que ali fora levar fructa.

Surprehendera, até, um dialogo terrivel.

O Alcoforado desinquietava a rapariga, e esta observava-lhe, desdenhosamente, que elle era «menino.»

O Pagem, despeitado e soberbo, respondia:

-- «Menino, eu! sou homem e mais que homem!...

Não podia ser mais escandalosa a revelação.

Fernão Velho foi direito á Duqueza, repisou as suas admoestações anteriores, pediu-lhe por mercê que se -- «não desauctorisasse a fallar com moços, em especial com Antonio Alcoforado.»

D'esta vez o Velho tinha este argumento decisivo, terrivelmente convincente.

Ouvira com aquelles ouvidos que a terra havia de comer, sem ficar decerto muito satisfeita, dizer o Alcoforado á rapariga que -- «era homem e mais que homem.»

D. Leonor magoára-se: -- «ouvera desto merencoria.»

-- «Que quer isso dizer, Fernão Velho? Como vos atreveis a dizer isso por eu fallar com «um menino?»

E o Vedor zangára-se tambem; respondera -- «aspero»-- conta-o elle proprio.

-- «Ora vos digo que não é bem que vos desauctoriseis a fallar com elle.»

E contára o que vira e ouvira d'elle com a moça.

Que a Senhora Duqueza cuidava que elle era «menino» e que elle era «homem.»

Bom Vedor este Fernão Velho, mas um asno.

Foi talvez a sua sandice que lançou no convivio ingenuo d'aquellas duas mocidades, -- uma sedenta de amor, outra desabrochando para elle, -- a semente da perdição.

Quando tornaram a ver-se, quando a Duqueza reprehendeu o Pagem, -- que decerto o reprehendeu de estar á porta dos seus aposentos dando-se ares de homem, fallando de amor ás raparigas de serviço, fazendo d'aquellas scenas escandalosas, -- os dois seriam outros já.

Elle não era o «menino,» -- e ella, moça, amoravel, ciosa, talvez bonita, talvez plasticamente adoravel, não era a Ama, a Senhora, a Duqueza.

Elle era o Homem.

Ella era a Mulher.

A fria estupidez do Velho desencantára, talvez, aquella creancice; fizera um incendio.

Felizmente o Duque voltou de Lisboa, aborrecido e doente, como sempre.

Achou que Antonio Alcoforado era já -- «grande» -- para pagem, e tirou-o do serviço da esposa.

Fechou-lhe o gyneceu ducal.

Antes, porém, que lh'o fechasse, um dia, na sala, entre as donas, no meio das palestras e das frivolidades do costume, o Pagem, de joelhos, como era a praxe, diante da Duqueza, esta, fallando muito com elle, tira de um estojo uma tesoura, e, de subito, estende o braço e corta uma madeixa da cabelleira do moço.

-- «Sei que te amofina muito que te cortem os cabellos.»

E ria do espanto d'elle, e motejava-o e gracejava, a desgraçada!

Mas ainda d'esta vez, Anna Camella, -- fiel ao appellido, -- não sentiu o rebate d'uma suspeita má.

Podia lá ser!...

Passava-se isto nos ultimos mezes de 1512.

X

Amor, amor: principio mau e fim peior.

Padre Delgado. -- Adagios.

Fora tarde. Passados dias, D. Leonor, ficando a sós na tribuna da Capella com a Anna Camella, -- sempre ella! - sentou-se sobre uma arca e poz-se a entretecer amorosamente um cordão de cabellos e seda.

Não lhe agradou a obra, desfel-a, substituiu a seda por fio de ouro, e voltando-se para a dona:

-- Conheces? -- disse-lhe.

- São cabellos, -- retorquiu banalmente a Anna.

- Bem os conheces! -- observou-lhe a Duqueza.

E vae a Camella, -- segundo contou depois, -- lembrou-se da guedelha cortada ao Pagem, -- «e ficára morta e suspeitára então que se queriam bem um ao outro e tivera a mal todo o passado que lhes vira passar.»

A surpreza doera-lhe somente no respeito e na dedicação pela -- «grande Senhora,» -- ou estremecera-lhe tambem algum sentimento mais recalcado e intimo?

A observação da joven andaluza: -- «Conhecel-os bem!» -- parece conter uma intenção maliciosa; relampêa como um pequeno punhal de mulher.

Este ponto é importante.

N'uma das versões em que se decompoz a Lenda, -- talvez na mais antiga, na menos conhecida e repisada, decerto, -- na menos erudita, segundo a expressão consagrada, ou como melhor se dissera: na menos mentirosa, na mais naturalista,-- ha uma dama da Duqueza que se apaixona pelo Pagem e que se sente desdenhada e repellida por elle.

Seria Anna Camella essa dama?

Aquellas duas mulheres amariam o mesmo homem?

N'aquelle pequeno dialogo sacudido chocar-se-hiam a raiva sombria d'um coração despresado e o orgulho impudente d'um coração triumphante?

De que Anna Camella sentiria pelo moço petulante uma obsessão contrariada, póde ser luminoso indicio o -- «avorrecimento» -- que n'uma insistencia nervosa, n'uma miuda retrospecção odienta confessa ter por elle.

E comtudo, -- é curioso isto, -- em todas as hypotheses e rebates de intrigas e devaneios amorosos, que se dão no pequeno soalheiro domestico, entre a famulagem ducal, ninguem põe a bocca em Anna Camella, ninguem suspeita d'ella.

E mais é ella quem falla frequentemente com o Pagem, quem segreda com elle, quem o manda chamar, quem lhe entrega cartas ou as recebe d'elle.

João Gomes, o porteiro da Senhora Duqueza, vê Roseymo, um pequeno criado, estar fallando a sós com alguem, que percebe ser mulher, -- «ao pé da escada» -- que vae para os aposentos da Senhora.

Curioso, como qualquer porteiro, pergunta-lhe com quem falla.

Responde-lhe a Anna:

-- « Comigo fala.»

E Fernão Velho, o Vedor, que passava na occasião, observa sentenciosamente:

-- «Com Anna Camella é. Deixae-o.»

Pois João Gomes andava já desconfiado com tantas fallas.

Dissera até, d'outra vez, ao Vedor, -- «que não entendia o falar d'aquelle moço com a Senhora Duqueza.»

Roseymo servia-a, era certo; -- mas era sempre -- «metido a servil-a mais do que outro,» -- e particularmente, desde setembro, via-o -- «muito mais metido.»

Fallava á Senhora Duqueza muitas vezes, -- «á puridade;» -- ella dava-lhe recados; trazia-lh'os elle, e até, por signal, que de alguns sorria-se ella, -- «como que gostava,» -- de os ouvir.

Era um espanto, ao qual o Fernão Velho só tivera esta resposta asna:

-- «Que não podia também entender aquillo!»

Mas era com Anna Camella que fallava o Roseymo?

Estava bem: -- nem João Gomes, nem o Vedor tinham que dizer. Ninguem.

O que o porteiro -- «suspeitava em seu coração,» -- era que -- «aquellas graças e recados seriam com Beatriz Pinheira,» -- criada da Duqueza, e -- «que casára havia pouco»!...

Antes d'estes reparos, ahi por setembro, já Anna Ferreira, moça da camara de D. Leonor, fazendo-lhe a cama, encontrara sob a cabeceira, uma carta.

Anna Ferreira sabia ler e leu-a.

Era uma carta de amores, sem assignatura. A moça não teve a este respeito a menor duvida.

E tão pouco suspeitou, tambem, que rasgou a carta e contou o achado á Duqueza.

Esta sorrira-se; pedira-lhe o papel; perguntára-lhe se o lera; se lhe lembrava o que lera.

Receio ou curiosidade?...

Estranheza não parece que o caso a causasse grande, nas duas.

Esquisito, em relação a ambas.

Realmente, não era a cousa mais natural do mundo, -- e d'aquelle mundo, -- encontrar-se uma carta de amores sob a cabeceira da cama da Senhora Duqueza.

Mas se Anna Ferreira não suspeitára da carta, notára, como toda a gente, a inconveniencia das palestras.

-- «Parecia-lhe aquillo mal.»

Disse-o um dia a Cecilia Pereira, outra dona; esta, porém, mais matreira ou mais ingenua, ouvira e... calára-se.

Apesar do caso dos cabellos ou do cordão, que a joven Senhora costumava trazer comsigo, -- ás primeiras cartas que Anna Camella recebeu do Pagem para entregar á Duqueza, -- foi elle quem escreveu primeiro, -- ou d'ella para as dar ao Pagem, a sua idéa foi, senão mente, de que aquella correspondencia seria com a mãe do Alcoforado ou com a irmã d'elle, que estava em Arrayollos.

Era o que lhe diziam os dois.

Foi assim que se achou definitivamente investida em confidente de D. Leonor. Não que a joven Senhora realmente lhe confidenciasse cousa alguma. Apenas lhe mandava entregar cartas ao Roseymo, quando não as entregava ella propria, -- para as levar ao Alcoforado, ou a encarregava de dar e trazer recados d'elle.

A Anna não sabia ler.

Era uma qualidade excellente para aquellas funcções, -- mas os recados verbaes tornaram-se por tal forma transparentes que voltaram a dar-lhe angustioso rebate.

Ou então, em quanto não viu que as cousas passassem a mais, não lhe pareceu que viesse mal ao mundo d'aquelles desenfadamentos juvenis.

O que é facto é que uma vez que a Senhora lhe recommendou que desse uma carta -- «dissimuladamente, que não percebesse ninguem,» -- ao Roseymo para que a fosse levar ao Alcoforado, -- o espirito tornára-se-lhe a abrir, -- quem sabe se não lhe sangrou de novo o coração? -- e em summa, -- que é o mais seguro e simples, -- «acabou de conhecer que as cartas eram dantre-ambos e eram de mau titulo.»

Agoniou-se deveras a Anna e n'esta agonia resolveu-se a dizer, e disse, á Duqueza que francamente tudo aquillo lhe parecia mal e a assustava.

-- «Que Sua Senhoria houvesse medo do Senhor Duque; -- que o não conhecia; -- que ás vezes o pouco para elle era muito.»

D. Leonor procurou socegal-a.

-- «Que não houvesse medo; -- que não era nada, nem era o que ella cuidava.»

E mostrára-se até um pouco severa; reprehendera-a.

Na phrase sublinhada transluz uma indicação perfeitamente conforme com as deducções anteriores: -- a de quanto era realmente curto e superficial o convivio de D. Leonor com o marido.

Se Anna Camella inventa, -- e porque e para que inventaria ella estas cousas temerarias? -- que vejam os geneologistas e os dramaturgos modernos se inventam melhor, mais logicamente, mais naturalmente, sobretudo, do que a miseravel creatura.

Por ora... nenhum o conseguiu. Nenhum!

O Duque voltára, como dissémos, de Lisboa, e em setembro, cahira doente. Um dos seus accessos melancholicos, talvez.

Conservava-se recolhido nos seus aposentos que ficavam do lado contrario aos da Duqueza, intermediando a casa da comida, pelo menos, a sala onde D. Leonor descia para ceiar, e onde girava e, a bem dizer, residia João Gomes, o porteiro.

Era uma sala terrea, que julgo ser a famosa casa do poço de uma lenda phantastica e corrente a que terei de referir-me.

Existe ainda, com os seus bellos columnelos e com as suas baixas e fortes abobadas artesoadas, ligeiramente adaptada a arrumações e aposentos accessorios; -- sem poço, é claro, porque nunca o teve.

Era d'essa casa que se communicava por uma escada para os aposentos de D. Leonor, e percebe-se que não havia outra communicação d'elles com o resto do edificio.

Dias depois, Roseymo trouxe nova carta, entregando-a a Senhora Duqueza.

Esta foi lel-a, e, ou por alvoroçada precipitação ou porque não podesse de momento escrever, chamou a Anna e mandou-lhe dar -- «por palavras,» -- a resposta ao mocinho.

Longa e imprudentemente compromettedora foi ella.

-- « Que dicesse a Antonio Alcoforado que aquillo que elle escrevia o fisesse se quisesse, mas que visse bem o que fasia; -- que bem sabia quanto importava, e que mais por elle do que por ella o disia; -- que se o fisesse fosse bem feito, que ás suas costas o deixava, e que se o houvesse de fazer fosse ás doze horas da noite, ou á uma hora depois da meia noite: -- quanto mais tarde melhor.»

Muito obscura, a estranha mensagem?...

A dona transmittiu-a, e se acaso se agoniou de novo teve de calar a agonia e a curiosidade -- «n'aquelle serão,» -- recolhendo-se ao seu quarto -- «porque não dormia na camara nem no guarda roupa» -- da Duqueza, mas, -- como se deprehende depois, -- mais para o interior dos aposentos d'ella.

Quem lá dormia, -- na camara, -- era a Beatriz Annes.

Por signal, que em leito collocado atraz das cortinas do da Senhora.

São interessantes estes promenores, e para a nossa historia indeclinaveis.

No dia seguinte, Beatriz Annes queixou-se á Anna, talvez um pouco estimulada por esta, de que se deitára muito tarde.

A Senhora Duqueza fizera uma oração muito longa, á janella da camara, e só acabára tres horas passadas da meia noite.

Era em outubro.

A mais ingenua creatura, -- e positivamente Anna Camella, não era uma ingenua, -- não deixaria de sentir a fulguração irresistivel da coincidencia.

Mas a dona póde ter mentido miseravelmente; póde ter engenhado, n'uma phantasia monstruosamente infame, sob qualquer impulso tão obscuro como ella propria, este episodio... terrivelmente singelo.

A pobre Senhora já não estava ali, já não podia bradar-lhe: -- « Mentes, vibora! Mentes, lingua damnada pelo ciume, pelo rancor, pela sandice!»

Mas estava a Beatriz Annes.

Estava, ainda, a Anna Ferreira, a moça da camara, que emquanto a Senhora se não deitava sentava-se junto da cama da Beatriz, e encostava a cabeça para dormitar um pouco, indo depois, naturalmente, estender o almadraque e o corpo para o guarda roupa visinho.

Beatriz Annes era a dona da camara, a camarista, a aia intima, havia tres annos.

Parece mulher velha e sisuda: de poucas fallas e de animo repousado e discreto.

Essa não teve rebates antecipados de malicia ou de suspeita. Não se incommodára, até, com as palestras entre a Senhora e os moços. E mais, quando não gostava das cousas, ralhava.

Beatriz Annes não está a fatigar muito a memoria, a esmiuçar os precedentes.

Notava que haveria um mez a Senhora Duqueza escrevia mais que de costume, recebia frequentemente cartas das mãos de Anna Camella e fallava muito com esta.

Estranhava isto, mas não punha na estranheza suspeita.

Um dia, D. Leonor dissera-lhe -- «que havia de fazer uma devoção ao Céo com aquella janella da sua camara aberta, e que havia de ser á meia noite.»

Beatriz Annes riu-se do capricho, -- estaria costumada a muitos! -- e riu-se, não da devoção, -- «que lhe pareceu que a faria ella pelo Senhor Duque,» -- mas -- «por ser feita a taes horas.»

N'essa noite, pois, estando na camara com a Senhora e com a Anna Ferreira, como de costume, aquella foi pôr-se á janella, e a moça lançou-lhe um saio para que pozesse n'elle os pés, como poz, e se sentasse, se quizesse. Depois deixaram-n'a na devoção e foram encostar-se um pouco na cama da Beatriz, atraz das cortinas do leito ducal, -- «adormecendo ambas té que a Senhora Duqueza as acordou.»

O episodio repetiu-se n'outras noites, -- «duas ou tres,» -- sem alteração sensivel, -- «metendo-se entre uma vez e outra cinco ou seis dias,» -- diz a Beatriz, -- «e ás vezes hum dia e outro não,» -- accrescenta a Anna Ferreira.

Cansadas da lida domestica, as duas adormeciam, mas no pouco espaço que estavam acordadas ouviam resar a Senhora. Esta dissera mesmo á Anna Ferreira que -- «resava o salmo De profundis quinhentas vezes,» -- e a devoção começava invariavelmente á meia noite, -- «ao pé da janella da camara onde a dita Senhora dormia e com a dita janella aberta.»

O psalmo De Profundis!...

Mas a alvoroçada curiosidade de Anna Camella não foi sómente satisfeita com a despreoccupada revelação de Beatriz Annes no dia seguinte ao do extraordinario recado que a Duqueza lhe mandára dar ao Roseymo.

N'esse mesmo dia teve annuncio de que o Alcoforado tornara -- «a mandar requerer» -- despacho identico, porque a Senhora, chamando-a, -- «lhe disse que lhe rogava» -- que mandasse vir o atrevido e alestado Pagem -- «ali á porta e lhe dicesse que a ella dita Senhora parecia que era impossivel poder ser, porque estava ainda tão amedorentada do passado que não estava em si, e que estava ainda tremendo, e que aquelle dia nem podera jantar nem ceiar de medo.»

Juntára até uma indicação bruscamente realista, como se dissera hoje.

E as coincidencias, e os episodios, e as circumstancias, -- e as palavras e os incidentes mais banaes, até, -- succedem-se, enlaçam-se, completam-se, avolumam na successão dos testemunhos de toda aquella gente, -- na «devassa» fria, implacavel, impassivel das justiças ducaes, com uma nitidez, com uma inflexibilidade -- porque não dizer? -- com uma evidencia penetrante, despotica, irreductivel, fatal.

Mas insurjamos-nos ainda.

Mas insistamos, interroguemos mais, procuremos outros testemunhos, sondemos outras consciencias.

O Roseymo era quem levava e trazia os recados e as cartas?

O Roseymo era pouco menos do que uma creança. Creára-se á sombra boa e amiga da Senhora Duqueza.

Era atrevido, esperto, dedicado: -- sente-se a cada palavra d'elle.

Arriscava a cabeça, mentindo?

E não a arriscaria confessando que fôra conscientemente o intermediario d'aquella correspondencia criminosa?

De resto, a idéa de que o Duque ou as justiças de Villa Viçosa impozessem a mentira áquella gente toda, é perfeitamente, -- perdão! -- é desoladoramente absurda, estupida.

Conversaremos n'isto.

Roseymo, sem mais nada, não era um pagem, mas um moço da camara do Duque ao serviço da Casa da Senhora Duqueza.

Era realmente quem levava e trazia as cartas e os recados.

Com ligeiras hesitações, o praso d'esta correspondencia coincide em todos os testemunhos.

As cartas que o moço levou ao Alcoforado seriam dez ou doze, e de todas trouxera elle tambem a resposta.

Recebia-as, umas vezes, de D. Leonor, quando esta se achava em baixo, na sala terrea; outras, das mãos de Anna Camella.

Entregava-as ao Pagem, ora no Paço, ora em casa d'este.

Se, voltando, encontrava a Duqueza, em baixo, entregava-lhe as que trazia. Se não, dava-as a Anna.

O mesmo, com os recados verbaes.

Recordava-se de alguns. Exemplo: -- a Senhora Duqueza mandava dizer ao Alcoforado que perguntasse -- «áquella mulher que elle sabia como estava -- o menino.» -- E o Pagem respondia que -- «a mulher beijava as mãos de Sua Senhoria e dizia que o menino nunca mais perdera a dor de barriga e que a sua má disposição ia em crescimento. »

Oh! ingenua e chã sophistica amorosa do seculo XVI!

Uma vez o recado fôra: -- «que dicesse áquella mulher que para que queria o que não podia ser» -- e d'outra -- «que olhasse bem o que fazia que bem sabia o que importava.»

O Pagem supplicava, insistia: -- «que beijaria as mãos de Sua Senhoria mandando-lhe dizer se sim ou não.»

E n'uma graciosa esquivança, enviando-lhe uma carta mais, a joven Senhora recommendava ao Roseymo que lhe dissesse -- «que não.»

Brincava com o fogo, a desgraçada! Com o proprio fogo em que se incendiavam os dois.

Resistia, gracejando, e gracejava, cedendo, resvalando, deixando-se ir n'aquelle desenfadamento perfido de creança, -- ella, mulher já, e esposa e mãe e Duqueza!

Não tivera aurora aquella mocidade. Sentia agora, talvez, á hora do crepusculo, o arrebol deslumbrante das suas madrugadas andaluzas.

O licôr da vida inebriava, rapido, aquellas duas almas, uma que desabrochava, tersa, inexperiente, intrepida, -- outra que reagia, sedenta, no bruxolear de uma adolescencia recalcada, abandonada, perdida.

As cartas da Senhora iam ás vezes fechadas apenas com alfinetes, -- «levavam alfinetes por chancellas,» -- e ella, sorrindo para o Roseymo, dizia-lhe que não as abrisse.

Um dia perguntou-lhe que diria elle ao Duque se este a visse dar-lhe uma d'aquellas cartas, e o esperto moço, tranquillisando-a, respondeu-lhe que lhe diria -- «que era para Isabel Sacota.»

Percebia bem de que se tratava, o brejeiro!

D'outra vez, Anna Camella mandára chamar António Alcoforado para que viesse á porta da sala da Senhora Duqueza, que tinha um recado d'ella a dar-lhe. E que a esperasse, quer a porta estivesse aberta, quer cerrada.

A Anna tambem -- «neste tempo,» -- lhe mandara dizer ao Pagem, da parte da Senhora -- «que sim, que viesse, se quisesse, e que fisesse o que quisesse, que tanto lhe dava!»

E depois, ou D. Leonor ou a Anna, -- não se lembra qual, -- dera-lhe outro recado para o Alcoforado, que fôra -- «que elle estaria muito contente e ella muito descontente, -- que elle estaria ledo e ella triste, porque elle acabara, e fisera o que quisera. Que para que queria mais?»

-- «E que ella morrera» -- accrescenta a Anna, alludindo ao mesmo recado. Camella lembra-se mais: -- que a Senhora Duqueza lhe dera tambem uma pulseira, -- «uma manilha» -- de ouro, quebrada, para que a mostrasse ao Pagem e lhe dissesse: -- «que olhasse aquella manilha que tal ia, e que ella a não havia de mandar concertar senão quando visse o seu dia.»

E' esquisita, a phrase.

Atravessára, acaso, aquellas duas cabeças enebriadas a idéa de uma fuga?

Em relação ao ultimo recado de que falla o Roseymo, ha uma nota interessante.

Recebendo-o, o Pagem perguntára se a Senhora andava triste ou leda, e o moço, muito ingenuamente, respondera: -- «que leda andava.»

E viera contar o dialogo «a Sua Senhoria.»

A Duqueza zangára-se: -- «que para lhe que dicera elle aquillo; -- que melhor fora diser-lhe que andava muito triste.»

O Roseymo deve ter dito a verdade, e ella, coitada, n aquelle enlevo egoista, -- n'aquelle

...engano d'alma ledo e cego...

dos namorados, -- por uma especie de pudico instincto de «Grande Senhora» quereria disfarçar do amante a sua ledice indiscreta.

Mas o Roseymo póde ter sido maliciosamente industriado.

Porque, para que, por quem?

Não discutamos isso.

Pódem ter-lhe imposto ou podem ter-lhe arrancado aquellas revelações terriveis. Pódem ellas ser falsas; pode elle ter sido enredado, comprado, ameaçado, illudido...

Dissemos atraz que Antonio Alcoforado tinha um irmão, no mesmo quarto do qual dormia, -- um irmão já homem, que já usava espada, que substituia o pae na vigilancia ou no governo da Casa, -- em summa, o Manuel Alcoforado, pouco depois escudeiro da Casa do Rei.

E o Manuel tinha um criado velho, de confiança, o João Fernandes.

A este recommendára aquelle, ahi por principios de outubro ou fins de setembro, que visse se descobria onde ia o irmão, o Antonio, que -- «muitas noites havia,» -- sahia do quarto e da casa, fechando-lhe a porta e levando-lhe a espada.

Interrogára-o, mas elle negava; nada queria dizer-lhe.

João Fernandes começara a espreitar o rapaz.

Viu-o sahir uma noite, depois das onze horas, poz-se a seguil-o, e percebendo que elle levava o caminho do Mosteiro passou-lhe adiante, mettendo por outra rua, indo deitar-se, á espreita -- «debaixo do alpendre do dito Mosteiro de Santo Agostinho, que é junto do Reguengo e Paços onde o Duque pousa.»

D'ali a pouco passára o Pagem -- «pelo caminho que vae pela porta do Mosteiro para os Paços e tambem para Borba.»

O criado não quiz arrelial-o, descobrindo-se, e recolheu-se a sua casa, que ficava ali proxima da dos Alcoforados, na rua da Feira, a uma esquina.

Póde hoje, ainda, seguir-se exactamente o itinerario.

No dia seguinte o criado contou ao irmão do Antonio, que o moço fora caminho de Borba, -- «não sabia onde,» -- e, depois, quando se encontrou, a sós, com o Pagem, disse-lhe:

-- « Parece-vos bem irdes a taes horas caminho de Borba?»

E o Antonio, ouvindo isto, corara muito, -- «fizera-se muito ruivo,» -- e retorquira-lhe: -- «que por as chagas de Deus não dicesse nada a seu irmão nem a sua mãe,» -- e fizera-lhe jurar sobre os Evangelhos em como nada diria.

D'ali a cousa de quinze dias estando a familia ceiando, eram já onze horas, chegára o Roseymo á porta e mandára por uma negrinha chamar Antonio Alcoforado.

Este déra á Mãe uma rasão, -- muito realista, podéramos accrescentar, -- para se levantar da mesa e viera fóra fallar ao moço.

Foram-se todos deitar, mas Antonio Alcoforado ficára-se em calças e gibão, sobre a cama.

Manuel interpellára-o, e elle então dissera-lhe -- «que havia de ir fora e que lhe emprestasse a sua espada.»

Recusára-lh'a o irmão, e mandara, até ao criado, ao João Fernandes, que lh'a fechasse na arca e cerrasse a porta do quarto por fora.

Pouco depois, seria meia noite, estando já Fernandes recolhido na sua casa, appareceu-lhe Antonio Alcoforado, rogando-lhe que fôsse com elle, que levasse uma lança, e que lhe emprestasse a sua espada.

O criado contentou-se em levar tres pedras na mão e um punhal á cinta, e pozeram-se a caminho.

Chegados ao Charqueirão, -- «que está ao canto das taipas do Reguengo áquem do Mosteiro,» -- Antonio disse-lhe que o esperasse ali, e que se tardasse muito, se fosse embora.

Mas o Fernandes tinha aguçada a curiosidade.

Seguiu subrepticiamente o moço, viu-o -- «meter por dentro de umas obras que se fasem juncto da Camara da Senhora Duquesa,» -- e estando assim a espreital-o, -- «ouvira abrir a janella» -- d'essa camara.

Receioso de que o descobrissem, ou de ouvir mais, voltou ao seu posto, onde o encontrou o Pagem, hora e meia depois.

João Fernandes não se conteve que lhe não disesse brutalmente:

-- «Com quem podeis vós dormir no Reguengo que não seja com alguma negra que não viera cá por quanto ha no mundo.»

Dera-lhe naturalmente muito que matutar, ao velho servidor, aquella perigosa sandice do seu «menino».

E o petulante rapaz, respondera-lhe:

-- «Se soubesses com quem era, já me não poriaes culpa.»

E calára-se.

XI

Bem sabeis o que são e o que fazem rapazes appetitosos.

J. Ferr. -- Ulys.

Anna Camella, -- ella, sempre! -- viuse por dentro; percebeu que estava sendo uma grande desvergonhada em levar e trazer aquelles recados; considerou que não tinha cabeça para apagar o incendio que ajudára menos mal a accender, e resolveu, -- honrando primorosamente o appellido, -- tomar conselho com Francisca da Silva.

Francisca da Silva era -- «uma pessoa preta muito virtuosa,» -- que já encontrámos no caminho, tendo -- «carrego dos coeiros» -- dos filhos dos Senhores Duques.

Dormia no quarto dos meninos com as amas d'elles, quarto que dava para o guarda roupa da Senhora.

D. Leonor não só confiava da Anna os recados, mas confiava-lhe as cartas, quando as não rasgava.

Era ella que as guardava n'um cofresinho, -- «bueta,» -- que, de dias em dias, a Duqueza lhe pedia.

Eram puramente graciosos estes e os mais serviços de intermediação confidencial, de Anna, de Roseymo, etc?

Ou comprehendera D. Leonor que lhe não bastaria a auctoridade de Ama e Senhora, a simples familiaridade affectuosa do convivio intimo para vencer os escrupulos, conter as linguas, mover as dedicações?

Um meu companheiro de collegio, singularmente dotado de um grande espirito pratico que havia de servir-lhe depois na reconstituição de um velho morgadio herdado, tinha esta objecção picaresca para uns certos romances muito movimentados e absorventes.

-- «Todos estes personagens vivem e movem-se folgadamente, viajam, dão bailes e jantares, andam de trens... Mas nada disto se faz «de graça!» Nunca se fala... em pagar!»

Será muito grosseiro e chão o reparo, mas prende-se com um elemento importante de informação, n'este nosso assumpto, em que elles tão escassos e dispersos andam.

Muitos annos depois, fazendo o seu testamento, o Duque D. Jayme, allude a emprestimos de dinheiro feitos por D. Leonor, e a alvarás ou promessas de pagamentos que depois da morte d'ella lhe foram apresentados, e podem apparecer ainda, e que elle se recusou a satisfazer, e quer que se não satisfaçam, -- «porque as cousas feitas com intenção damnada não devem de haver effeito,» -- e até o descontentou muito -- «emprestarem dinheiro a minha mulher em segredo pois eu lhe dava o que lhe cumpria.»

E sóbe de importancia o facto quando se vê nitidamente formular, n'aquelle documento, a suspeita, que o Duque discute com lettrados, de que possa apparecer, até, algum testamento de D. Leonor!

É uma revelação, absolutamente inedita, que vem relampear estranhamente na historia do acontecimento. Mas não a interrompamos agora.

Anna Camella, pois, para se aconselhar, mostrou as cartas, -- umas sete ou oito. -- á Francisca da Silva, que apesar de preta sabia mais do que ella: -- sabia ler.

Anna diz que ella as leu; a preta, porém, -- pessoa muito virtuosa, como já se notou, -- não diz bem assim. Diz que vira a Anna muito triste e chorosa; interrogára-a com uma curiosidade amiga e, por engodo, fôra accrescentando, cheia de virtude sempre, que ella bem sabia porque era, -- «porque lho a dita Anna dicesse.»

De resto, nem por sombras suspeitara -- «tamanho mal nem em tal pessoa.»

A Anna então abrira-se: -- contára-lhe o pressentimento molesto que o ultimo recado da Duqueza lhe suggerira, e pedira-lhe conselho.

A preta observou-lhe que -- «para sua consciencia» -- precisava ver alguma cousa em que se affirmasse, e a Anna mostrára-lhe uma carta.

Quizera lêl-a, chegára mesmo a ler o começo, que dizia: -- «Senhora da minha vida» -- mas -- «vendo aquillo não tivera coração para mais ler,» -- e, restituindo o papel, concluira tambem -- «que havia mister conselho.»

A preta mente, evidentemente. Leu a carta e leu outras. Confessa que depois, quando resolveu que, para remediar o caso, o melhor que havia a fazer era contal-o ao Vedor, pedira outras cartas á Anna, e esta lhe trouxera a bueta, com seis ou sete, -- mas que sempre, depois de ler: -- «Senhora da minha vida,» -- que era como todas começavam, não tivera coração para mais.

Foram, pois, ter com o Fernão Velho, o Vedor.

Foi no dia -- «das onze mil virgens,» -- conta elle. Por conseguinte, em vinte e um de outubro.

Francisca da Silva dissera-lhe:

-- «Grande mal, grande mal!»

-- «Que mal?» -- interrogou.

-- «Homem em casa!» -- respondeu a «pessoa virtuosa.»

E elle, então, muito fino:

-- « Homem? Com quem? Com Magdalena Ferreira?

«Madanela,» é que elle disse, é claro. Era como diziam então os melhores puristas.

-- «Não.»

-- «Pois com quem?»

E ella, para encurtar rasões:

-- « Com vossa Ama!»

Muito torvado, o Velho perguntou ainda:

-- «Como sabeis isso?»

-- «Fallae vós com Anna Camella que ella vol-o dirá tudo como passa.»

O Velho então -- «buscou geito» -- de interrogar esta.

A Anna -- «com grande choro e paixão,» -- contou-lhe tudo.

-- «Que nunca Deus quizesse que a Duqueza Dona Isabel houvesse outros netos senão os filhos de seus filhos. E que pelo amor de Deus evitasse elle, Fernão Velho, aquelle mal por maneira que aquelle moço não fosse mais por aquillo adiante e o Senhor Duque não fosse sabedor.»

E com todos estes escrupulos e exortações devotas, foi-lhe -- «metendo na mão» -- quatro ou cinco cartas, das quaes o Velho escolheu duas: -- «uma da lettra da Senhora Duqueza e outra da lettra de Antonio Alcoforado, para as haver de mostrar ao Duque, sem a ella,» -- á Anna -- «nada dizer. »

Positivamente uma besta, este Vedor.

A Francisca da Silva ainda lhe faz o favor de contar -- «que elle ficara morto» -- e que depois, tornando a si, tivera este lampejo regularmente rasoavel:

-- «Hei de perder-me por este moço, que o hei de matar.»

Observa tambem que o Velho, recebendo e lendo depois uma carta, dissera -- «que não era lettra da Duquesa,» -- e que lhe trouxessem outra, ao que a Anna respondera: -- «que sim, que era por que a dita Senhora a escrevera,» -- e ella, a Francisca, muito esperta e virtuosa, observara: -- «que seria, mas mudaria a lettra ; pois que ella não se havia de fiar em tal caso de ninguém.»

Mas o Velho explica que fizera o reparo por finura; para obter mais cartas; nada mais.

E começaram, estas, então, a andar de mãos em mãos, nas da Camella, que continuava a guardal-as e a leval-as á Duqueza ou ao Roseymo, nas do Velho, nas da preta virtuosa, nas... de mais alguem, finalmente.

Um dia o Vedor quiz tornar a haver a collecção.

Mas a Anna não pôde satisfazel-o. A Senhora Duqueza pedira-lhe a bueta -- «e queimára e rompera todas as cartas que não deixara senão pedacinhos emborilhados n'um papel.»

A preta quiz então o papel para o dar ao Vedor, mas no intervallo a Anna foi apressadamente reclamal-o, porque a Senhora lhe pedira a bueta.

A este tempo, porém, não eram já necessarios novos exames.

Fernão Velho dissera tudo ao Duque, vinte e quatro horas depois, no dia seguinte ao da palestra com as duas mulheres.

E levára-lhe as duas cartas, e continuou levando-lhe as que successivamente ia obtendo.

Instaurára-se o processo, n'um extremo do Paço, na camara solitaria do marido e senhor, ultrajado e enfermo, -- emquanto no outro extremo a Inconsciencia, o Amor, a Aleivosia, tranquillamente iam entretecendo o drama fatal.

Hesitou o Duque?

Duvidou, retrahiu-se, sentiu-se um momento suspensa, á beira da Realidade monstruosa e crua, aquella alma altiva, -- moça ainda, -- cheia de luz e de sombras que revoluteiam e se penetram confusamente, -- e tantas vezes, comtudo, erecta e inflexivel na reacção intelligente, reflectida do Bom Senso, da Justiça, do Dever, através das trepidações da mentalidade melancolica e dos orgulhos de raça e de prosapia?

Fernão Velho lembra-se de algumas cartas, -- não do texto integral, é claro, mas de certas phrases, de certas referencias, de certas allusões luminosas, -- tão luminosas que lhe penetraram os miolos compactos, resistentes.

E pensar a gente que uns poucos de poetas gastaram a inspiração com este sujeito, duplamente velho, e que um d'elles, até, o Luiz de Campos, o imaginou um apaixonado sublime, feito de um pedaço da alma damnada de lago!...

A estupidez do Vedor é uma garantia da sua memoria, além de tudo corroborada por melhor testemunho. É um espelho.

Havia uma carta da Senhora, que dizia:

--«Não vinhaes, que está cá tudo pejado.»

Não chegára a tempo, ao Pagem.

Fôra escripta á ultima hora, n'uma occorrencia inopinada.

O Duque correleccionava os factos, e contou-os depois a Fernão Rodrigues, o seu -- «camareiro.»

O Pagem deveria vir. Mas o Duque -- «depois de despido, desejou de ir, aquella noite, jaser com ella, e fel-o assim.»

Ella, então, surprehendida, -- «fez um escripto, segundo m'o Duque dice que o vio e lêo,» -- explica o Rodrigues.

Era tarde: o escripto não pôde seguir, e outro d'elle para ella, queixa-se do mallogro: -- «que elle viera e que não abriram a janella e que então se lançara em uma escada que ahi estava, com a capa á cabeceira e não acordara senão depois das tres horas dadas, depois da meia noite.»

Somno de rapaz sadio. Somno de enamorado satisfeito.

Aquelle Fernão Rodrigues parece um bom homem. Velho criado da Casa, tendo servido o pae de D. Jayme, camarista d'este, -- « queria á Duquesa como á minha vida propria, por ser mulher do Duque e por criar meus filhos e ter delia recebido muita mercê.»

Não podendo fallar -- «com paixão» -- pediu tinta e papel e escreveu, elle proprio, o que viu e soube.

Muito mais intelligente do que o outro Fernão, -- ah! se as situações se tivessem invertido!... -- precisa as datas e os factos, com uma grande nitidez.

Elle não fôra envolvido nos rebates do soalheiro domestico. Se alguma cousa soubera, antes; -- se alguma vez suspeitára; -- se alguma murmuração ouvira; -- não o diz. Diz o que basta.

N'uma sexta feira, em 22 de outubro, já noite, o Duque chamára-o de parte.

-- «Que eu não me espantasse nem me turvasse do que me queria dizer, porque embora fosse cousa desacostumada, era do Mundo, que sempre dava o que tinha, -- e seriam tambem os seus pecados, d'elle, que dariam causa a ser assim.»

Faz calafrio esta serenidade resignada, fatalista, devota.

Lampeja n'ella, talvez, como lamina de aço, a fixidez caracteristica, soberbamente desdenhosa da tendencia melancolica, mas d'esta vez pressente-se tambem uma consciencia que trabalhou, segura e friamente, sobre factos positivos, sobre uma realidade irreductivel, fatal, e que vae cerrar-se, -- á voz da Lei e da Necessidade do seu tempo e do seu meio, -- sobre um julgamento indeclinavel.

Tambem o pae, caminho do patibulo, ia assim: -- resignado, humilde, n'uma grande serenidade devota, recalcando a paixão egoista na comprehensão e na sujeição heroica aos decretos da Justiça insondavel, do Alto, que era mister que se cumprissem n'elle e por elle.

Ah! é-nos facil a nós outros, homens de bem diverso tempo, cabeças e corações de tão diversa textura, -- é fácil, é, dizer na desenfadada segurança de um raciocinio desinteressado ou de uma sentimentalidade de reflexão, o que se comprehenderia que fizesse aquelle marido ultrajado: -- um homem, um Duque do seculo XVI!...

É fácil, e quantas vezes é estupido, tambem?!

Quantas vezes o tem sido, e é, em relação aos nossos proprios contemporaneos, aos que vivem entre nós, aos que são feitos como nós, e como nós pensam, e como nós sentem, e pelas nossas paixões e pelos nossos preconceitos e pelas nossas noções de Honra, de Justiça, de Direito se regulam e movem?!

Quantas vezes essas noções, esses preconceitos, esse modo de pensar, de sentir, de comprehender; esse engenho complicado de cousas relativas e de convenções artificiosas, a que se amolda a alma e a vida moderna, ou que se impõe a ellas, como immutavel typo das cousas rasoaveis e justas, -- quantas vezes tudo isso se despedaça e dissolve bruscamente, irremessivelmente, na recondita tempestade d'um craneo, na explosão singular d'uma existencia?

Ali defronte, do outro lado da rua, a dois passos da banca em que estou, como em theatro anatomico, fazendo tranquillamente esta dissecção com o bisturi que Deus me deu, d'esta vontade e d'este amor á Verdade e á Justiça; -- ali defronte, n'aquella casa banal e renovada, no meio de nós todos, poucos annos ha, representou-se uma tragedia medonha como esta de ha tres seculos.

E tantas semelhanças que eu poderia avocar, doutamente, miudamente, num luminoso confronto de caracteres e de fatalidades!...

Um homem, -- pudera dizer-se que tambem um Duque nos reinos e senhorios da intelligencia, da preponderancia, do prestigio social, que são os de hoje, -- teve a certeza de que o trahira a mulher. Confessou-lh'o ella.

E elle, -- moço, ambicioso, altivo; elle que tinha «a loucura da honra» ou a vesania do fastigio, -- elle hesitou, conteve-se, reflectiu...

Reflectiu, o desgraçado!

Muitas vezes, nada mais idiota do que a reflexão!

Reflectiu muito, longamente: -- quem pode dizer, quem poderia surprehender, deduzir, fixar o turbilhão recondito, tenebroso d'aquella alma, a logica absurda d'aquella situação singular?

Reflectiu... e acabou por estrangular a mulher.

Duvidou o Duque?

Duvidasse ou não, um momento, -- «por ser cousa desacostumada,»-- e esse momento teria sido o sufficiente para esmagar o Velho, -- não duvidou mais, não duvidou nos vinte annos seguintes, não duvidou até ao dia em que, com os pés no tumulo e a consciencia no Eterno, dita o testamento, que nem já pôde assignar.-- com a mesma serenidade resignada com que falla ao camarista, -- aquelle mesmo testamento que a fraude desastrada, ineptamente cortesã de Caetano de Sousa, mutilou.

Como não escrevemos um Romance, importa-nos pouco que estas antecipações da critica prejudiquem o interesse do enredo.

O que o Duque queria dizer e disse ao seu velho camarista e amigo, ao leal servidor de seu desgraçado pae, era -- «que houvesse por certo que sua mulher,» -- a que lhe haviam dado por companheira da sua grandeza e para mãe de seus filhos, -- «não era aquella que devia, nem a que elle,» -- o pobre servidor -- «cuidava.»

-- «Era má mulher.»

E contou-lhe tudo; friamente, miudamente, com uma crúa precisão estatistica das vezes que o Pagem entrara na camara da Duqueza, alta noite, durante aquella doença que o Duque soffrera ultimamente; com deducções seguras, meditadas, de promenores realistas.

O camarista perguntou-lhe como o sabia, e elle disse-lhe que Fernão Velho n'aquella mesma tarde lh'o dissera, apartadamente, mostrando-lhe logo duas cartas de amores; -- «uma d'ella e outra d'elle,» -- do Pagem.

E desfazendo as hesitações, as duvidas, as exortações do afflicto servidor, explicou-lhe como o Velho o soubera de Francisca da Silva, e como, dissimuladamente, promettendo calar e arredar de alguma maneira o rapaz, e trancar o mal -- «que não chegasse aos ouvidos» -- do Duque, obtivera de Anna Camella as cartas.

E como no dia seguinte o Velho trouxesse mais duas cartas, D. Jayme chamou ainda o Rodrigues, leu-as com elle, continuando assim com as mais que foram vindo.

-- «Eram cartas de meia folha de papel, e algumas escriptas na outra meia parte, e eram de amores e graves, e falavam em concertos de entradas e de entradas que já foram.»

O Pagem fazia allusões pueris, protestos apaixonados, solicitações audaciosas; -- em uma tinha saudades -- «daquellas tres horas,» -- que passára com ella; -- n'outra tranquillisava-a, que havia de manter sempre o juramento que lhe déra, e pedia-lhe nova entrevista.

Eram subscriptadas assim:

-- «Á Senhora Duquesa minha Senhora.»

E tratavam-n'a por

-- «Minha Senhora e minha Vida.»

E terminavam d'esta maneira:

-- «O vosso leal menino.»

E eram

-- «assignadas do seu proprio signal Antonio Alcoforado, com certos riscos no cabo do signal.»

Calligraphava, a petulante creança!...

Uma, d'ella, recommendava-lhe que dissimulasse.

Elle então, n'um requebro enamorado, atrevido, respondia-lhe:

-- «Como havia de dissimular a tardança da fala, lembrando-lhe o praser em que se vira por ella.»

As cartas tinham de ser vistas rapidamente.

Anna Camella importunava o Fernão Velho que lh'as restituisse logo, -- «porque se não achassem menos, se a Duqueza lhe pedisse a bueta, como muitas vezes fazia.»

Além de que o Rodrigues, pela edade, tinha já -- «muita parte da memoria perdida.»

Não retivera os textos.

Mas lembrava-se bem que -- «assim as da Duqueza como as do Alcoforado eram cartas de muitos amores, e falavam em se ajuntarem ambos, e assim no que entre elles era já passado, de que elle dizia que gostára muito, e que com aquelle contentamento refazia sua paixão.»

E andaram umas poucas de gerações litteratas a refazer e retocar a lenda d'um preconceito contraproducente e vão, -- quando tinham ali, nas velhas paginas escrevinhadas por uns pobres escrivães sertanejos do seculo XVI, um drama admiravel, cheio de movimento e de vida, profundamente commovente, singelamente vibrante de verdade e de natureza!

E andaram os geneologistas pautados e graves -- estupidos, -- de um seculo depois para cá, escondendo a «Inquirição devassa» ou maldizendo-a sem a ler, para afinal de contas a deixarem a rir-se d'elles, através das suas gavinhas tortuosas, no fundo do grande archivo, escrupulosa e lealmente reproduzida, até, nos repositorios feitos em época das menos suspeitas aos escrupulos e ás susceptibilidades da convenção cortezã!...

Apesar d'aquella ostensiva, d'aquella recalcada serenidade, o Duque deveria soffrer medonhamente.

Passava as noites em claro, deprehende-se, e conta Fernão Rodrigues que -- «a este tempo pela má disposição d'elle», -- lhe fazia companhia, dormindo no guarda-roupa, onde ficavam tambem Jorge Loureiro, -- «Escrivão da Camara do Duque e seu Tabellião Geral,» -- além de um moço da Camara, Gaspar Ferraz.

Pero Vaz, o official do Guarda-roupa, tinha de andar por fora n'uma commissão importante que lhe dera D. Jayme e que vamos já saber qual fosse.

O Duque abrira-se somente com o camarista, mas não era provavelmente sem intenção reservada que fazia ficar ali, á mão, o Escrivão e Tabellião geral da Casa, official de fé publica, como se diria hoje.

Logo ás primeiras revelações do Vedor, D. Jayme dissera a Pero Vaz que -- «um rapaz entrava na camara da Senhora Duquesa com uma rapariga della» -- e, accrescenta Pero Fernandes -- «emquanto a Senhora ia ás matinas.» Que lhe rogava, por isso, que elle e Pero Fernandes, o hortelão, vigiassem até ver quem era o sujeito.

Começaram então os dois, e parece que só começaram dois dias depois, na vigia, debaixo d'uns loureiros, em frente da camara da Senhora.

Logo no proximo domingo, -- diz o hortelão, -- sentiram abrir -- «a janella da camara donde dormia a Senhora Duqueza, duas ou tres vezes, e viram uma mulher que chegava á dita janella e dicera que aquella era a hora, mas nessa occasião não viram mais.»

Não tardariam a ver melhor.

XII Vimos mortes apressadas E vidas muy encurtadas Doenças não conhecidas Muytas canceiras nas vidas Poucas vidas descancadas.

Res. -- Misc.

Na noite de 1 de novembro, a Senhora Duqueza, tendo descido a ceiar á sala terrea, como de costume, -- depois da ceia, seriam dez horas, mandou pedir acima á dona da sua camara, Beatriz Annes, papel, tinta -- «e dois ou tres vintens,» -- que ella logo lhe enviou.

Escreveu uma carta, rasgou parte d'ella, talvez um rascunho, metteu no seio os fragmentos, e, chamando o Roseymo, deu-lhe a parte que fechára, e disse, alto, que mandava resar umas missas.

-- «Que dicesse a Bastião Lopes que lhe dicesse tres missas,» -- desenvolve a Anna.

O dia seguinte era o dos Finados, convém recordar.

O Vedor passara sem attentar n'ella, quando escrevia. Mas lá estava o porteiro, o João Gomes, que reparava em tudo, e ao qual a Senhora fez até notar que um dos vintens era maior do que os outros.

D. Leonor subiu para os seus aposentos, e o porteiro, fechando as portas, foi ceiar, vindo depois deitar-se -- «na cama que tinha n'esta mesma casa onde sempre dormia.»

A Senhora entrou no guarda-roupa e d'ali a pouco disse que queria resar, e pediu os livros. Deram-lhe dois.

Resou, fez uma recommendação á Anna Ferreira, a moça, -- «que se lembrasse do que lhe dicera ou fizesse o que lhe havia dito,» -- conta a Beatriz; -- esteve na camara, e voltando ao guardaroupa pediu alguma cousa que comesse.

A dona deu-lhe -- «umas amendoas confeitas e outras cousas.»

Comeu, e pedindo a sua bueta e uma tesoura abriu aquella e esteve cortando alguns papeis pequeninos que estavam n'ella. Depois foi para a camara.

A Beatriz ficou dando, ainda, umas voltas no guarda-roupa.

Cousa de meia hora mais tarde, entrando na camara para se deitar, encontrou a Senhora assentada junto da janella, -- «onde soia fazer a dita devoção,»-- e Anna Ferreira, a moça, dormitando, no chão, com a cabeça aos pés da cama da dona, que ficava, como já dissemos, atraz das cortinas da cama da Duqueza.

A Beatriz queixára-se um pouco: -- «que se Sua Senhoria havia de fazer a devoção, que lh'o dicera, que a fizera mais cedo, porque então era já muito tarde.»

A candeia da camara tinha uma corrediça adiante, o que fazia com que ficasse no escuro o logar onde estava a Senhora.

A dona foi-se deitar sobre a cama, mas -- «não podia dormir e se lhe agastava o coração, não sabia de que.»

Naturalmente, da rabugeira.

Passava da meia noite, é claro.

Vejamos agora o que succedia cá fóra.

Ahi por onze horas, Antonio Alcoforado levantára-se do leito e fôra chamar o João Fernandes, pedindo-lhe muito que o acompanhasse, porque lhe interessava muito o passeio.

O criado recusára-se a principio, gracejando do caso, e o Antonio insistira; que o Roseymo lhe trouxera um recado a que não havia de faltar.

Quando chegados ao Charqueirão, disse-lhe que o esperasse ali e que se tivesse frio se fosse.

Como da outra vez, Fernandes espreitou-o, até ver abrir a janella da camara da Senhora Duqueza.

Outros o espreitavam tambem, e melhor.

Eram o Guarda-roupa Pero Vasques e Pero Fernandes, o hortelão, acochados na sombra de uns loureiros, em frente das casas.

Entre a meia noite e a uma, viram um homem subir por cima dos alicerces e parede, -- «que ora se faz, em direito a uma janella que está na dita camara onde a Senhora Duqueza dormia.»

Chegado ali, correra em redor da casa, voltára, pozera-se a apanhar qualquer cousa sobre que subira, -- os cestos que serviam nas obras, -- e começára a fallar com uma mulher -- «que estava de dentro da janella,» -- cujo vulto se desenhava na claridade da candeia da camara, mas que os espiões não puderam conhecer, por estarem afastados.

Da janella lançaram qualquer cousa, -- uma corda, -- com a ajuda da qual viram o homem subir, -- «alar-se» -- diz o hortelão, e -- «entrar por a dita janella na camara da dita Senhora.»

O Guarda roupa mandou então ao hortelão que fosse chamar o Senhor Duque, e elle foi-se pôr sobre os alicerces -- «por onde o homem entrára,» -- com uma chuça nas mãos, de sentinella.

De cima, porém, sentiram-n'o, e uma mulher

disse-lhe, muito turvada:

-- «Quem está ahi?»

Elle respondeu:

-- «Sou Vasques. Esse homem que lá está dentro não sahia nem se mova, porque, se sahir, ma-to-o. Aguarde o Duque que vae lá e ponha-se em suas mãos.»

O homem chegou então á janella e fallou-lhe:

-- «Pero Vasques, deixae-me sahir pelo amor de Deus, não me mate o Duque!»

Era -- «Antonio Alcoforado, Moço fidalgo do dito Senhor, filho de Affonso Pires Alcoforado.»

O Vasques era amigo d'elle!

Mas não hesitou:

-- «Em má hora viestes. Não sahiaes por aqui, que se sahirdes mato-vos com esta chuça. Aguardae o Duque e ponde-vos nas suas mãos. Passareis com quatro ou cinco duzias de açoutes.»

O Alcoforado interrogou ainda:

-- «Não me matará o Duque?»

O terror da morte atravessára a alma da pobre creança. Era natural.

O Vasques, receioso de uma tentativa desesperada, atalhou:

-- «Não. Açoutar-vos-ha.»

Póde ter-se por certo que o Guarda-roupa ou não acreditára que o moço fosse ali por causa de uma «rapariga da Duqueza,» apenas, como lhe dissera D. Jayme, ou não alimentava, já, grandes duvidas a tal respeito.

O Alcoforado, então, lançára pela janella uma espada.

O que se passava na camara da Duqueza?

Como vimos, Beatriz Annes deitára-se sobre a cama, com -- «o coração agastado,» -- deixando a Senhora sentada, junto da janella aberta, a fazer a sua devoção de resar quinhentas vezes o psalmo De Profundis como ella dissera á Anna Ferreira.

O psalmo De Profundis!...

O grito dolorosissimo, o cantico afflicto, cheio de mystica ternura, das almas tyrannisadas! Um rosario de lagrimas bebidas na intima e derradeira esperança d'uma misericordia ideal!

-- De profundis clamavi ad te, Domine:

Domine: exaudi vocem meam, etc.

-- «D'este abysmo chamei por Vós, Senhor.

«Senhor: ouvide-me.

«Que os vossos ouvidos escutem a minha supplica.

«Se considerardes as iniquidades que vão cá, Senhor;

-- «Senhor, quem permanecerá ante Vós?

«Mas vós sois cheio de misericordia, e eu esperei, Senhor, por causa da vossa Lei.

«Minha alma amparou-se na Vossa Palavra:

«Minha alma esperou em Vós, Senhor.

«Israel espere no Senhor, desde o alvorecer á noite.

«Porque o Senhor é cheio de misericordia:

«E N'elle se encontra uma redempção abundante.

«E Elle proprio redimirá Israel de todas as suas iniquidades.

«Gloria a Vós, Senhor.

«De profundis clamavi ad te. Domine:

«Domine: exaudi vocem meam, etc.

Estranhas ironias da Fatalidade!

De repente a Beatriz ouviu a Senhora dizer, «muito turvada, não muito claro:»

-- «Quem sois!»

ou

E -- Quem está ahi?»

«saltando apressadamente da cama, veiu a ella:

-- «Jesus, Senhora, que é isto?»

E a Duqueza:

-- «Fallam ali em baixo.»

-- «Quem é?» perguntou.

E a Senhora:

-- «É Antonio Alcoforado.»

E debaixo diziam:

-- «Dae-vos á prisão.»

Ouvindo a Duqueza fallar no Pagem, a dona teve talvez um rebate

Observou, sacudidamente:

-- «Que tendes vós, Senhora, de ver com Antonio Alcoforado? Tirae-vos d'ahi e fecharei a janella.»

Mas a pobre Senhora disse-lhe então: -- «que o Antonio Alcoforado estava ali dentro.»

Assombrada, os olhos da Beatriz penetrando na escuridão do recanto, viram o Pagem, ou antes, -- porque é escrupulosa, sempre, -- a sombra do Pagem, -- «onde ambos estavam assim,» -- assentados!

Levou as mãos á cabeça, exclamando:

-- «Senhora, que é isto?!»

E abalou angustiada para o guarda-roupa, e a Senhora após ella, e a moça, a Anna Ferreira, que acordára.

Esta, estremunhada, parecera-lhe ver entrar pela janella o Alcoforado. Diz que fôra já quando iam todas no meio da camara que a Duqueza dissera -- «que era Antonio Alcoforado,» -- e que olhando então para traz -- «vira estar o Antonio Alcoforado em pé junto donde a Senhora estava resando e que debaixo da janella dizia Pero Vasques: -- «Dae-vos á prisão.»

Tudo isto devia passar-se rapidamente, atabalhoadamente.

No guarda-roupa, D. Leonor perguntou a Beatriz -- «se sabia de algum remedio e se se poderia deitar o Alcoforado por uma janella fóra.»

Estava -- «tão turvada que não acertava falla com falla.»

A dona -- «fóra de si,» -- só pôde responder -- «que estavam todas as portas fechadas.»

E o Duque batia, rijo, em baixo, á porta da escada...

Fôra n'essa noite, que estando já recolhida no quarto dos meninos, Francisca da Silva, -- «a pessoa virtuosa preta,» -- ouvira bater-lhe á porta a Anna Camella, dizendo-lhe, de fóra, que ia buscar umas chaves, e depois de entrar:

-- «Não venho buscar chaves mas venho que me dees o papel que vos dei que me pediu agora a Senhora Duqueza a bueta.»

Era o tal em que estavam -- «emborilhados» -- os outros.

A Francisca dera-lh'o, e deitára-se.

Anna Camella voltou, -- «chorando, muito triste e contou que a Senhora estivera vendo a bueta e os papeis, e que então lh'a mandára levar para a sua camara e que lhe parecia que o Antonio Alcoforado havia de entrar aquella noite... porque ella mandára já abrir a janella.»

A Anna fôra-se, Francisca da Silva tornára-se a deitar, fechando a porta -- «com uma pedra,» -- quando, d'ali a pouco, ouviu a Senhora Duqueza abrir precipitadamente a porta do guarda-roupa e vir bater á da camara dos meninos, dizendo:

-- «Abri-me lá, abri-me lá.»

E empurrando-a, entrou e foi, -- «vestida e toucada como andava de dia, sem chapins» -- apenas, assentar-se sobre a cama da filha, a pequenina D. Isabel, exclamando:

-- «Sou morta!»

Assombradas, a ama da creança e a Francisca, perguntaram:

-- «Que é isso, Senhora, como sois assim morta?

E ella:

-- «Esta noite me hão de cortar a cabeça, que acharam um homem na minha camara. Resae todas por mim, que esta noite me hão de cortar a cabeça!»

Terrivel desencantamento de alguns dias de cego e desopprimido enlevo, n'uma existencia de vinte e tres annos, que nunca a si propria se pertencera!...

A Beatriz, afflicta e confusa, abria a porta ao Duque quando este ia arrombal-a com uma tranca.

Cumprindo o mandado do Guarda-roupa, Pero Fernandes, o hortelão do Reguengo, fôra dizer a D. Jayme que -- «quem elle mandára velar jasia já dentro na camara da Duqueza e entrara pela janella, e lá ficára de guarda o Pero Vasques.»

O Duque ordenára que continuassem velando, e que não deixassem que alguem sahisse pela janella, e despido como estava, e mandando ao camarista, Fernão Rodrigues, que accendesse uma tocha e acordasse rapidamente Jorge Loureiro, o escrivão, elle proprio foi bater á sala de jantar, devagar, -- «passos» -- acordando o cerebero, o porteiro de D. Leonor, João Gomes.

Seria assim que batia, nas noites em que «lhe aprasia ir jaser com ella»!..

João Gomes acudiu prompto, e D. Jayme disse-lhe:

-- «Está cá um homem na camará da Duqueza.»

Voltando dentro, tomou uma espada das mãos de Jorge Loureiro, deu-lhe uma rodella e a tocha, e seguiu acompanhado por elle, pelo camarista e pelo porteiro, que pegara tambem n'uma espada, direito á porta da escada.

Mandou a João Gomes que batesse rijo e pedisse depressa -- «uma pouca d'agua rosada para o Duque.»

Como não abriram logo, D. Jayme lançou mão de uma tranca e bateu com tal força que quasi fez ir a porta dentro. Acabou então de a abrir a Beatriz Annes.

Subiu o Duque rapidamente a escada, indo adiante Jorge Loureiro com a tocha.

A camara da Duqueza estava deserta!

Dirigiram-se á dos meninos, perguntando o Duque, diz o porteiro:

-- «Quem entrou agora aqui?»

A porta abriu-se.

E a Senhora Duqueza, que estava sentada na cama de um dos filhos, respondeu, -- diz a Francisca da Silva:

-- «Não entrou ninguem. Eu estou aqui.»

E o Duque:

-- «Que fazeis vós aqui, Senhora, a taes horas vestida!»

-- «Estou com minha filha,» -- respondeu D. Leonor.

D. Jayme não disse mais: -- «começou de buscar debaixo das camas se estava outrem,» -- e sahindo apressadamente deixou á porta João Gomes:

-- «Ficae aqui,» -- recommendou-lhe, -- «e não deixeis sahir a Duqueza.»

João Gomes cerrou a porta e segurou -- «o ferrolho.»

Obedeciam todos, caladamente, automaticamente. Impõe-se assim a Loucura, o Erro?..

O Duque -- «desceu abaixo, a umas lojas onde dormiam as negras e as buscou todas e não achou ninguem senão ellas.»

Tornou logo a subir a escada, -- Jorge Loureiro sempre com a tocha adiante, -- e entraram na camara de D. Leonor.

Ahi, n'uma alcatifa, ao lado da cama da Senhora, meio occulto pelos cortinados, -- e por isso o não haviam visto da porta, na primeira vez, -- estava Antonio Alcoforado.

Finalmente!

O Pagem, -- desarmado, pois que atirára a espada do irmão pela janella, -- poz-se de joelhos, ergueu as mãos e pediu misericordia.

O Duque disse-lhe: -- «que se désse a Deus por que havia de morrer,» -- e o moço então pediu-lhe -- «que pelo amor de Deus o mandasse confessar primeiro,» -- ao que D. Jayme repetiu: -- «que se desse a Deus que ou seria ou não.»

Chegando á janella mandou recolher os espiões e a famulagem que já ali estava, e deixando Jorge Loureiro de guarda ao Alcoforado dirigiu-se ao guarda-roupa.

Ou n'esta occasião ou antes fora ao quarto de Anna Camella exigindo-lhe, alto, a bueta, e como ella lhe dissesse que estava no guarda-roupa foi ali, arrombou o cofresinho e tirou d'elle um papel, -- aquelle ultimo papel que a Duqueza guardara: -- a primeira ou a ultima carta, talvez, do Pagem, a derradeira folha d'aquelle pequenino livro do seu primeiro e ultimo amor, talvez!

Á porta do quarto dos filhos bradou, impetuoso e rude:

-- «Sahi, cá, Senhora. Esta é a minha doença, que dez coites ha que não durmo, nem aquelle que ali está fóra...

Nem aquelle!...

A phrase era um punhal que elle arrancava do proprio coração para o cravar no d'ella.

Deve ser fidelissima, não a pudera inventar tão cruamente, tão terrivelmente lampejante, a velha dona da camara, a Beatriz Annes, que a reproduz:

-- «Dez noites ha que não durmo!...

A precisão mathematica que só a grande dôr, -- a Desgraça, -- ou a Morte, -- imprime á memoria dos que fere no coração.

Fôra realmente em 22 de outubro, -- iam passadas dez noites, -- e não o sabia a dona, -- que o bruto do Vedor acordára bruscamente aquella alma altiva e leal; dez noites eram passadas, -- dez longas noites de outubro! -- que ella ouviria gargalhar na sombra, crescendo e alargando-se d'ahi, d'aquelle soalheiro escuso, d'entre os seus criados e villões até ás invejas e aos ciumes da Côrte, este pregão implacavel, infame:

-- «Deshonrado, alto e poderoso Senhor! Deshonrado, Duque de Bragança e de Guimarães! Escondias a mulher que não amavas no teu ermiterio sertanejo, rodeada da tua gleba, dos teus javalis, dos teus frades. Escondial-a do torvelinho assoalhado, fascinante, da Grandeza, da Adulação, da Côrte. Não te mareassem o escudo em que puzeras as armas de quatro Reinos as ledas recreações dos saraus. Não a entontecessem os rifões enamorados! Não lhe subissem ao coraçãosinho turgido de mocidade as glosas da sophistica galante!

«E vae ella, a fada encantada, que não era senão uma mulher moça e sã; que não tinha culpa de não te amar, -- que não amára ainda, -- que de mãos em mãos de velhas soberbas ou resignadas te viera cahir nos braços, que só por devoção e dever a estreitavam...

E vae ella... «lançou-se» com uma creança,

-- com um pagem que nem espada nem esporas podia usar ainda. Deshonrado, grande e orgulhoso Senhor!

«Antes ficasses em Castella, filho do Degolado de Evora!

«Antes envergasses o burel franciscano, melancolico alumno dos santões da Piedade! Deshonrado, deshonrado!...

«Mas tu não te pertences.

«Mas tu és um nome que continua o do Santo Condestavel e o do grande Mestre. Tu és uma instituição da Corôa gloriosa que symbolisa a honra, a altivez, a fidalguia d'um povo. Tens no brazão as Quinas e o Banco de pinchar. Lembra-te d'isto, homem! Lembra-te d'isto, Duque!»

E homem e Duque do seculo XVI, nascido e creado, ainda, no século XV: -- é necessario não esquecer isto, pelo menos.

E francamente não tem sido o que mais tem importado considerar á sentimentalidade e á critica moderna.

Nada mais caracteristico, comtudo, mais natural, mais vivo, -- da vida do seu tempo, do seu meio, -- do que esta monstruosidade a que vamos assistir na palavra ingenua, serena, fria, de uma multidão de homens e de mulheres que acabam de presencear, calados e immoveis, a scena terrivel.

-- «Devota besta fera,» o Duque? -- como n'um explosir de indignação generosissima, mas de hoje, lhe chama um escriptor illustre?

-- «Alma tisnada de fanatico?» -- como o suppõe outro, n'um impeto de piedade nobilissima, mas nossa, mas de agora.

E os que o rodeiam, e os que assistem, e as proprias victimas, resignadas, submissas?...

Uma d'ellas é a Duqueza, a filha de uma raça forte, intrepida, a mãe do futuro Duque, a filha adoptiva de D. Isabel. Não é já uma estranha. Fizeram-n'a Senhora, ali, a Egreja e a Corôa.

Uma palavra d'ella abalaria aquellas almas creadas no culto da sua grandeza, no convivio amoravel, grato, da sua auctoridade.

Se o Duque estivesse louco, ella fal-o-hia agarrar, quando, -- o que é pouco duvidoso, -- não o tivessem agarrado antes os seus proprios criados, fazendo acudir os medicos.

E os que logo depois fallam e escrevem do acontecimento?...

Não, não.

Nem doido, nem feroz, nem fanatico.

Estavam ali Fernão Rodrigues, o velho servidor do pae, o camarista e confidente de D. Jayme; - Fernão Velho, o vedor da Duqueza, o «amo» de seu filho, velho estupido, mas velho fidalgo; -- Beatriz Annes, a dona da Casa de D. Leonor, a que nunca suspeitára, a que nada disse; -- Jorge Lourenço, o escrivão e tabellião geral dos Duques, -- e Pero Vaz, o Guarda-roupa, o amigo do Alcoforado; -- e Anna Ferreira, -- e João Gomes, e o hortelão, e lá ao fundo as amas, aquietando talvez as duas pobres creanças acordadas por aquelles extraordinarios ruidos, e a distancia toda a famulagem, as escravas, e no dia seguinte a Villa, a Justiça, o Rei, Toda-a-Gente...

Mas estava tambem ali, alta noite, na camara de dormir da «Senhora Duqueza,» um homem, um moço-fidaldo, um pagem galanteador e garrido!

O Duque mandou pelo porteiro chamar um padre, o capellão Lopo Garcia, -- que viesse prestes acudir a uma doente.

O Alcoforado ficára alguns momentos a sós com o Jorge Lourenço, escrivão.

Conhecia-o. Era das relações da familia. As mães de ambos diziam-se parentes.

O Pagem disse-lhe que pois não tinha a certeza de confessar-se o ouvisse elle de confissão. O Jorge respondeu-lhe que sim; aconselhou-lhe que visse bem a consciencia, que se a tivesse -- «encarregada» -- lh'o dissesse.

E elle então contou-lhe -- «algumas cousas, e que pedisse ao Duque, quando viesse, que lhe perdoasse aquella traição que lhe fizera.»

Que cousas foram? Pouco importantes, naturalmente; sem relação com o caso, talvez; do contrario, o Jorge não as calára, como não calou o mais que promettera, ali mesmo, áquella hora solemne, calar.

O Duque estava no guarda-roupa, -- «ás historias,» -- com a Duqueza.

Ella -- «desculpava-se,» -- dizem o Pero Vaz e a Beatriz Annes -- «que lhe não tinha feito nada,» -- accrescenta a ultima.

Quando D. Jayme voltou á camara, o Pagem e Jorge Lourenço pediram-lhe de joelhos -- «que lhe perdoasse a traição.»

O Duque respondeu, diz Pero Vasques, -- «que se abraçasse com Deus, que o corpo havia de padecer e mais passára Nosso Senhor por nós outros.»

O Juiz da Terra tinha de cumprir a Lei, a Justiça d'ella. O de Cima, o do Ceu, julgaria a todos.

Fanatico?

Não: -- homem do seu tempo e do seu meio, simplesmente, positivamente.

E mandando sahir o escrivão ficou a sós com o Pagem.

Foi curta a conferencia; terrivel deveria ser para os dois!...

Creança, o Alcoforado n'aquelle momento havia de comprehender nitidamente que era um homem. Homem e cavalleiro, que se não usava espada, se expontaneamente a atirara pela janella, armou-se elle proprio cavalleiro n'aquelle lance medonho: -- pressente-se que nada disse.

Quando sahiu e o escrivão reentrou, o Pagem estava conformado, póde dizer-se tranquillo.

Era um homem realmente!

Vendo passar o Guarda-roupa Vasques, o amigo, pediu-lhe -- «pelo amor de Deus que lhe perdoasse, se lhe alguma cousa tinha feito.»

E ao Jorge Lourenço disse: -- «que porque fosse muito amigo do Duque» -- se desarmára; atirára a espada pela janella; -- que essa espada era de seu irmão e lh'a tomára quando elle dormia. Que lhe pedia pois que a desse ao criado, a João Fernandes -- «que viera com elle e estava ali esperando e já seria ido,» -- mas nada d'isto contasse ao Duque.

O capellão chegára e o Duque mandou-lhe que confessasse o moço.

Concluida a confissão, levou o padre ao guarda-roupa e ordenou-lhe que confessasse a Duqueza.

Depois do padre veiu o algoz: -- um escravo negro, com uma machadinha, -- «um manchil» -- da cosinha.

Antonio Alcoforado pediu apenas que lhe cobrissem o rosto, -- «porque não visse como o haviam de matar.»

Fizeram-lhe a vontade, curvou a cabeça e o escravo decepou-lh'a d'um golpe.

Além dos mais, o Duque quiz que assistissem á execução as criadas da Senhora: -- Beatriz Annes, Anna Ferreira, Anna Camella.

Como nós, leitor, D. Jayme não acreditava, naturalmente, na grande innocencia d'ellas...

O camarista, o Fernão Rodrigues, foi o unico, parece, que, -- «movido de piedade,» -- se afastou um pouco.

Demorava-se a confissão da Duqueza.

Impaciente, o Duque foi duas ou tres vezes á porta do guarda-roupa, perguntando -- «se não acabára;» -- da ultima disse imperiosamente:

-- «Acabae, Senhora! Absolvei-a, Padre! que não ha mister de mais...»

E mandando embora o capellão, avançou para ella com um terçado.

Ella duas ou tres vezes bradou misericordia, -- «que lhe não havia feito nada!» -- diz a Beatriz Annes, que estava da parte de fóra, -- e elle vibrou-lhe a arma á cabeça, recommendando-lhe, -- «que se lembrasse de Deus e não curasse de outra cousa,» -- ou como conta Jorge Lourenço:

-- «Esta era a minha doença d'estes dias. Daevos a Deus!»

Ao primeiro golpe, a desgraçada cahiu -- «entre uns cofres.»

O Duque ergueu-a pelos cabellos e deu-lhe os outros.

O afflicto camarista, que descera dois degraus da escada para não ver, espreitou então, e D. Jayme mandou-lhe observar -- «se estava já morta.»

Ordenou, em seguida, que levassem o cadaver para onde estava o do Pagem.

Foi assim que o Ouvidor Gaspar Lopes os veiu encontrar -- «ambos, um junto do outro.»

Com Fernão Rodrigues, o Duque recolheu-se aos seus aposentos, mandando chamar as Justiças.

Mas o Padre, o Lopo Garcia?

O Padre é um personagem mudo.

Passivo, atravessa esta scena terrivel como uma sombra.

A Lenda, -- mais propriamente, d'esta vez, Caetano de Sousa, o que mutilou o testamento de D. Jayme, -- phantasia-o em grandes exclamações e protestos.

A Verdade... é que nem uma palavra d'elle se escuta, se pressente, sequer, nos documentos.

Elle não depõe na Inquirição, e nada mais natural do que isso. Havia de depor o sygilo confessional?

Mas nenhum dos espectadores accusa a menor observação, a menor indiscrição do Padre.

Que extravagante «fanatico», o Duque, -- se o fosse, -- que tendo ali á mão um representante da Egreja, depositario, naturalmente, da verdade toda, nem por sombras pensa em consultal-o antes de fazer a sua justiça!

E que Padre aquelle, que se tivesse recebido a confissão da Innocencia, deixava silenciosamente que sobre ella prevalecesse a Mentira e a Morte!

Positivamente, o que tem andado esquecido um pouco é... o tempo em que estas cousas succederam, que foi no anno da Graça de 1512, duas horas passadas do dia 2 de novembro, quando amanhecia o -- Dia dos Finados.

O Padre, o Lopo Garcia, fui encontral-o ha dias, no cartorio da Misericordia de Villa Viçosa, -- um excellente cartorio, muito bem tratado, e uma piedosa Casa, primorosamente administrada, por signal.

Fez o seu testamento em 25 de outubro de 1522, que foi aberto, -- o que quer dizer, que elle morrera, -- em 20 de julho de 1523, -- e não parece que sentisse a alma muito -- «encarregada,» -- porque calcula-lhe a salvação eterna n'um -- «trintanario de missas.»

Já deveria ter ouvido de confissão uma nova Duqueza de Bragança.

Não muito longe d'ali, no coro debaixo, aberto e devassado hoje, revestido de pinturas santamente picarescas, do que era o famoso convento da Esperança, ao fim da Villa, encontrei tambem, a segunda, a definitiva sepultura da que foi D. Leonor de Mendonça.

Uma pedra rasa, junto de outra que cobre os restos da primeira mulher do filho, da sua nora posthuma, a Duqueza D. Isabel de Lencastre.

E em lettras cavadas, esta inscripção:

AQUI ESTÃO OS OSSOS DA SERENISS.ª S.ra DUQUEZA D. LEONOR DE GUSMÃO 1.ª M.er DE D. JAYMES IV. D. DE BRAG.ça FAL. EM ESTA V.ª V.ça AN. DE M. D. XII.

PARTE IV

COMO SE FAZEM LENDAS...E SE DESFAZEM

XIII

Pessoas ha hi tam fingidas que se presam de enlearem as outras e polas enganarem enganam a si mesmos, e trazem a verdade mal rebuçada e de quem sente he hi entendida; vendem suas tenções por justificadas.

Joanna da Gama. -- Ditos da Freira, etc.

Mas a Lenda?

Ah! a Lenda preparou-se, trabalhou-se, engenhou-se, setenta ou oitenta annos depois, no fim do seculo, por occasião de ser pretendente á Corôa a neta de D. Leonor de Mendonça.

Já se vê que havia de aproveitar os rumores truncados dos juizos ou das tradições populares, -- e creio que esses pódem ainda pressentir-se no trama, -- como tambem não seria justo, talvez, deixar de reconhecer uma inspiração de piedade sincera na formação inicial d'elle.

Segundo Caetano de Sousa, D. Catharina, -- que alguns teem confundido com a esposa de D. João III, e que não é esta, mas a Duqueza de Bragança, mulher de seu primo-irmão o Duque D. João, e neta de D. Jayme e de D. Leonor, pela filha d'elles a infanta D. Isabel, -- D. Catharina propoz-se a fazer, e fez, particularmente, uma inquirição nova sobre a tragica morte da avó, consultando e ouvindo -- «pessoas antigas, filhas de criados da Casa que a serviam n'aquelle tempo.»

Curioso é já que uma geração desapparecesse, a dos proprios filhos dos dois desgraçados consortes, -- a de D. Theodosio, o filho e successor, o grandioso e intelligente Duque, tão activo e cioso das tradições e prosapia da sua Casa; -- a de D. Isabel, a filha, casada com o infante D. Duarte, a mimosa e prendada princeza que havia de enlaçar definitivamente a Familia Ducal á successão da Corôa, -- sem que se pensasse n'aquella rehabilitação piedosa, que o não seria, além de tudo, apenas para a pobre Duqueza morta, mas para o proprio Duque homicida!...

E quanto mais facil e segura fôra então, vivendo, e continuando, até, tranquillos e favorecidos, ao serviço da Casa, todos ou quasi todos os que haviam assistido á tragedia, os que proxima e intimamente a conheciam, os que a tinham «devassado» e os que tinham deposto na «devassa»?!...

Esta ultima, porém, continuou, naturalmente, n'um dos dois exemplares, a guardar-se n'aquella bibliotheca que o Duque D. Theodosio, o proprio filho de D. Leonor, mandara, no seu testamento, que andasse sempre em Morgado.

E se, com devoto cuidado, recommendava os suffragios pelas almas dos antepassados mais longinquos, e o engrandecimento e o patrocinio das Casas religiosas e pias da Villa, -- os restos da pobre Senhora Duqueza, sua Mãe, deixava-os obscuramente jazer no isolado Convento de Nossa Senhora da Luz de Montes Claros, para onde, segundo um traço avulso da tradição, os levára uma besta de serviço caseiro, na funebre madrugada de 2 de novembro de 1512!..

D. Catharina, como dissémos, é aquella intelligente e energica Duqueza, digna neta de D. Jayme e de D. Manuel, que na fallencia da successão directa da Corôa, teria sido, muito provavelmente, Rainha de Portugal, se o marido, o Duque D. João, tivesse na cabeça e no coração, metade, que mais não fosse, da grande alma da mulher.

Foi, como é sabido, um dos pretendentes, e não só o mais legitimo, mas o que o Filippe mais temeu, a ponto de que, vendo-a viuva, e apesar de mãe, a importunou para esposa.

D. Catharina de Bragança dá a mão a D. Luiza de Gusmão, por sobre os sessenta annos do captiveiro portuguez.

Dois vultos de mulheres fortes, um no começo, outro ao cabo da misera jornada!

-- «É d'ella que se conta, -- diz F. Palha, -- «a anecdota bem conhecida de nunca ter querido dar tratamento ao Duque d' Alba, quando depois da conquista a foi visitar a Villa Viçosa.

«Filippe II, que tinha prevenido o Duque que não contasse ser tratado pela Duqueza com a distincção a que estava acostumado, perguntou-lhe que tratamento lhe tinha dado ; se fôra senhoria.

-- « Melhor do que isso, -- respondeu o Duque.

-- «Pois quê? por excellencia?

-- «Melhor do que isso.

-- «Alteza? será possivel?

-- «Melhor do que isso! tratou-me por... Jesus.

«De facto, a Duqueza nunca se dirigira ao velho caudilho que não fizesse preceder a phrase pela exclamação de -- Jesus.

-- «Jesus! senhor Duque, que prazer de o ver aqui.»

Mas se, como diz Palha, -- «a altiva Duqueza teve de sepultar a sua ambição nos paços de Villa Viçosa,» -- se não pôde insuflar no marido a sua habilidade e a sua intrepidez, -- quanto sonhou em pôr na cabeça do filho, a Corôa de Portugal! -- quanto lidou porque o Filippe cahisse em fazel-o seu loco-tenente, seu Governador em Lisboa!..

Não será natural; será, pelo menos, muito arriscado, correlacionar com estas idéas de D. Catharina, com o seu orgulho de raça, de singular superioridade heraldica, de fortaleza aristocratica e mulheril, a tentativa de trancar o processo da fraqueza, da queda da Avó andaluza, uma Duqueza de Bragança, como ella?

Como se sabe, os pretendentes tiveram de processar e relatar as suas pretensões, os seus allegados direitos á Corôa portugueza, e é claro que cada um d'elles tratou então de brunir e assear, o melhor que pôde, a sua prosapia, não só para lhe fortalecer a legitimidade, senão tambem para lhe prender e angariar a confiança, as sympathias fidalgas, burguezas e populares.

D. Antonio, o prior, lá procurou, muito complicada e muito inutilmente, arredar a bastardia recente, e a embaixada veneziana que veiu por aquelle tempo a Lisboa, encontrou-o todo occupado em colligir os papeis da sua pretensão.

Não parecera conveniente e opportuno, então, polir e sohredourar o glorioso escudo dos Braganças, fazendo desapparecer d'elle qualquer mareio que as circumstancias do tempo ou a fraqueza humana lhe tivesse feito?

A bem dizer, aquelle, do tragico desastre da Duquezasinha D. Leonor, era o unico, desde que a formosa bastarda do Condestavel abrira a série brilhante das grandes Senhoras da Casa, todas, realmente, excellentes senhoras, de que os papeis antigos sómente resam purezas e devoções exemplares.

Uma nota preciosa: -- um dos argumentos, ou uma das objecções que no pleito dos pretendentes se oppõe á candidatura de D. Catharina é a do facto de ser... mulher, porque -- «parece prejudicial á Republica & pouos delia serem gouernados por femeas em quem pella maior parte faltam fortalesa, constancia & liberalidade. Mulierem fortê quis inueniet?» etc.

Vivamente, habilmente procuram afastar e desfazer este argumento, as Allegações: -- «que sem embargo do que nelle se apontou, ouue sempre & ha hoje em dia muitas femeas em que se acham em summa perfeiçam as virtudes da prudencia, fortalesa, constancia, & liberalidade, como se pode ver por muitos exemplos... as quaes virtudes são muito mais certas nas femeas que descendem da Casa Real, assi pelo sangue de que procedem, como pella criaçam & doutrina que teem, & pello exemplo domestico que pella mayor parte seguem.»

No embate apaixonado das pretensões, quando D. Catharina não hesitava em accusar cruamente a bastardia de D. Antonio, e em dizer da Rainha de França, -- outra pretendente, -- que além de não estar provado que fosse descendente legitima de Roberto, filho de Affonso III e da sua primeira mulher, -- «a Condeça Mathildes,» -- menos provado estava que esse Roberto fosse filho legitimo d'aquelle consorcio, -- comprehende-se indeclinavelmente que a filha de D. Leonor de Mendonça precisasse acautelar que o exemplo da Mãe não pudesse allegar-se em opportuno reforço da -- «presumpção que he contra as femeas em cõmum,» -- para a excluir, a ella, da successão real.

Caetano de Sousa diz que vira, que tivera nas mãos aquella nova inquirição que attribue a D. Catharina.

Compunha-se de cartas e tradições avulsas, particulares.

Uma religiosa do Convento da Esperança, agradecendo á Duqueza ter honrado aquella casa com a guarda dos ossos de D. Leonor, -- por conseguinte em 1590 ou depois! -- lembrava-se de ter ouvido dizer ao pae, um Francisco de Valdarrama, a André de Angerino, a Gonçalo de Azevedo, e a outros criados de D. Jayme, -- «a verdade do caso,» -- e que Fernão Velho, o Vedor, tivera -- «pouca prudência no exame» -- d'elle. Como se fôra elle que o examinára!...

Que aquelle mesmo Vaidarrama -- «acompanhando o corpo da Duqueza ao Mosteiro de Montes Claros ouvira ao Reitor d'esta Casa,» -- vindo receber o corpo:

-- «Venhaes embora minha Santa Comadre, que por vós estava esperando.

Este Reitor era -- «homem acreditado pela sua vida e muito abalisado em virtude.»

Chamava-se Fr. Martinho Escrivão, e viera-lhe o appellido de ser escrivão o pae, -- «varão summamente penitente e contemplativo,» -- explica Caetano de Sousa.

D'onde se ha de entender que as mysteriosas palavras que parecem tolice vinham a ser uma revelação contemplativa.

E logo no dia seguinte tivera outra, o abalisado Fr. Martinho. Gastára tres horas na missa e durante ella -- «se vira uma pomba branca andar sobre o Altar de uma para outra parte.»

Para que tudo fique bem entendido, o geneologista accrescenta, certamente na fé da religiosa da Esperança, que -- «este santo varão affirmava a innocencia da Duqueza, dando a entender nas palavras a sua salvação, e a vida d'elle o fazia crido.»

D. Guiomar de Castro, mulher de Christovão de Noronha, camareiro do Duque D. João I, e filha de Heitor de Figueiredo, que por sua vez vinha a ser filho de Henrique de Figueiredo, veador de D. Jayme, em carta a D. Catharina, -- «referia a mesma innocencia pelo que ouvira a seu pae.»

Em Estremoz vivia uma -- «mulher de boa vida e devota,» -- Mecia Vaz, que ia muitas vezes a Villa Viçosa chamada dos Duques. Pois esta -- «não nomeava a Duqueza senão por Santa.»

Mas dizia cousa, senão tão santa, para o caso mais grave:

-- «Referia as violencias que o Duque fizera a algumas criadas para que lhe dissessem a verdade, e porque diziam o contrario lhe fizera diversos tormentos, o que não bastara para que ellas faltassem á verdade, e que ella vira o sangue fresco depois de passados tempos, com outras cousas em que justificava a sua innocencia chamando-lhe Martyr.»

Este Caetano de Sousa será um grande geneologista, mas é tambem um grande trapalhão, como se vê, se não é mais alguma cousa, como ha de ver-se ainda.

Além de que a «devota» mentia, evidentemente, se é que existiu, se é que dizia o que vieram a attrihuir-lhe.

A inquirição do facto, o depoimento das testemunhas presenciaes do successo seguira-se quasi immediatamente a este. No documento não se falla em tormentos, o que era natural e legal dizer-se, se os depoientes tivessem sido suhmettidos a elle; mas, demais, as testemunhas não são apenas mulheres e criadas, e raro seria aquella, homem ou mulher, sobre a qual o Duque podesse exercer sevicias.

Finalmente, Caetano de Sousa declara que a estes graves testemunhos, poderia -- «ajuntar outras circumstancias graves, que referidas por uma pessoa de qualidade á Senhora D. Catharina, confirmavão mais o que temos dito.»

E cala-se, o desalmado!

Cala-se, muito senhor de si, com esta banalidade sandia: -- «não necessita de mais justificação, da que temos referido, e também não é rasão, que tratando da innocencia d'esta Princeza, culpe mais que a sua infelicidade»!

Uma d'essas «circumstancias graves» não quer elle deixar de referir.

É a do sangue que se conservou fresco -- «sem que a industria nem o tempo o consumisse, e não parece casualidade senão uma evidente demonstração do Céu.»

Disse-lhe o Duque de Cadaval D. Nuno que isto era tradição constante entre os Senhores da Casa.

Que singular maravilha que escapou ao minucioso Venturino quando passou por ali!...

E a isto se reduz a famosa e piedosa inquirição rehabilitativa, de D. Catharina, de que ella, aliás, não fez grande caso.

Viu-a, teve nas mãos os documentos originaes, Caetano de Sousa, -- dil-o elle, -- e a isto limitou o extracto, e publicando nas suas Provas tantos documentos insignificantes e inuteis, não se lembrou, não quiz, incluir, ali, os que haviam de tirar de sobre a memoria da «innocente Duqueza» a terrivel «inquirição devassa,» que elle sabia que estava no grande Archivo da Historia Nacional, -- que elle não pôde rasgar e fazer desapparecer como truncou e mutilou o testemunho testamentario do proprio Duque que simula exaltar!...

E tem a audacia, elie, que offerece á posteridade como um Evangelho as lembranças cortesãs da religiosa anonyma da Esperança, e da neta de Heitor de Figueiredo, ou as revelações idiotas de Fr. Martinho Escrivão e da «devota» de Estremoz, -- tem a audacia de arredar, desdenhoso, a «devassa» publica, official, solemne, com esta baboseira que havia de encontrar copistas até aos nossos dias! de que -- «as testemunhas não poderiam ter legalidade, por serem todas da familia e obrigação do Duque!»

Que assim fosse: -- que outras poderiam ser?

Havemos de ver adiante o que testemunham os mais contemporaneos.

Será necessario accrescentar que essas cartas e testemunhos que Caetano de Sousa diz terem sido recolhidos por D. Catharina, não existem em parte alguma, desappareceram inteiramente, sem deixar o menor vestigio, onde natural fôra que se procurasse desde logo perpetual-as?...

Exactamente quem menos parece pensar em fazel-o é a propria D. Catharina.

D'ella existem cartas, existe um largo testamento.

Era um espirito culto, fino, superior, que manejava excellentemente a penna.

Pois nem no seu testamento ha uma palavra, uma allusão, para a rehabilitação da avó, em que se empenhára!

Tem junto de si homens perfeitamente aptos para verterem essa rehabilitação em trabalhos que a assegurem na Historia. Tem os Lucenas, por exemplo, muito antigos na Casa, muito lidos e cortesãos; um, o Affonso de Lucena, seu Secretario e Procurador, Desembargador do Ducado, o que lhe escreve, com outros, as Allegações dos seus direitos á Corôa, o que ella encarrega de preparar e dirigir a trasladação ruidosa dos ossos da pobre Duqueza D. Leonor.

Pois contenta-se com esta ceremonia, e nem se apressa em fazel-a.

Se a Inquirição desappareceu do Archivo da Casa, -- e nenhum indicio temos de que fosse então, -- tambem lá não existem vestigios, que mais não fosse, da rehabilitação tentada.

Demais, ... a primeira, no traslado immediato e authentico, estava archivada em Lisboa, estava já muito provavelmente na Torre do Tombo, -- não o ignorava a Duqueza, -- e as Allegações precisamente diziam que -- «a todos os documentos, papeis, & escrituras, que estam na dita Torre se dá inteiro credito por ser Archiuo publico... mormente sendo o dito Archiuo ordenado pellos Reis passados para guarda dos liuros, & papeis que nelle estam com officiais de muita confiança... como se refere em hua provisam dei Rei dom Manoel.»

Pois por lá andaram rabuscando muito os agentes de D. Catharina, sem ao menos juntarem á Inquirição as cartas e informações exalçadas por Caetano de Sousa!...

Ou porque muito intelligente, facilmente conhecesse o valor dos testemunhos colhidos, ou porque mais confiasse de uma manifestação auctoritaria, imponente, espectaculosa, do que de uma propaganda litteraria e arriscada, D. Catharina não poz evidentemente na rehabilitação historica da Avó um empenho e um cuidado tão ostentoso ou uma ostentação tão cuidadosa como a que empregou n'aquella trasladação.

Os restos de D. Leonor de Mendonça estavam, como dissemos, acantonados no alpestre Convento da Luz, em Montes Claros.

D. Catharina fêl-os transportar pomposamente para Villa Viçosa nos ultimos dias de novembro de 1590, -- setenta e oito annos completos depois da Catastrophe, -- com honras principescas, com um grande ceremonial de homenagens e respeitos que mais incidiam, certamente, sobre o nome e o prestigio da grande Casa do que sobre os carcomidos ossos da Senhora Duqueza.

Uma luzida commissão, composta de Affonso de Lucena, secretario de D. Catharina, e Francisco de Lucena, moço fidalgo, filho d'aquelle, Rodrigo Rodrigues de Lemos, secretario do Duque D. Theodosio II, e Lopo Vaz de Almeida, escrivão da Fazenda ducal e Antonio Rodrigues, moço da guardaroupa, apresentou-se ao Reitor do modesto Convento, com um breve do Cardeal Alberto, Archiduque e Legado, para que lhe fossem entregues os ossos de D. Leonor.

Reunida solemnemente a communidade, abriuse a sepultura, e -- «se tiraram os ossos da Duqueza, e limpos, os envolveram em um tafetá carmezim, franjado de prata» -- encerrando-os n'um caixão forrado de velludo e tafetá carmezim com pregaria dourada, -- «de comprimento de tres palmos e dois de alto,» -- sendo a chave entregue a Affonso de Lucena.

Collocou-se a uma na Capella-mór, diante do Santissimo, com muitos luzeiros em redor, n'uma especie de exhibição apotheosica.

No dia seguinte, -- 28 de novembro, -- reuniram-se todos os capellães ducaes e o mais clero da Villa, e chegando o Duque com seus irmãos, D. Duarte e D. Filippe e com D. Lucas de Portugal, e uma bella comitiva de fidalgos, cantou-se um solemne Responso.

Collocada a urna sobre uma tumba de brocado, o Duque, seus irmãos e D. Lucas trouxeram-n'a á mão até fora da Egreja, pondo-a sobre umas andas guarnecidas de velludo preto.

Formou-se então, e poz-se a caminho da Villa o brilhante cortejo: -- adiante, de Cruz alçada, a Communidade, com tochas accesas; junto ás andas o Deão, o Rev. Manuel Pessanha de Brito; atraz o Duque, os irmãos, e a nobreza, a cavallo.

Na Villa dobraram os sinos de todas as egrejas e conventos.

A multidão, que deveria ser enorme, assistiria, espantada e reverente, áquella passagem triumphal dos simples ossos de uma Duqueza de Bragança.

Quem se lembraria já do tragico successo de 1512?

Quem ousára pensar que aquella grande Senhora fraquejára e cahira, um dia, como qualquer mortal, da sua gloriosa magestade nos braços d'um pagem obscuro?

E se, -- porque é provavel, -- alguns soldados castelhanos guardavam ainda o velho Castello, como elles não sentiriam toda a grandeza e prestigio d'aquella gloriosa Casa!...

Nas mãos dos mesmos Senhores que em Montes Claros, foi a urna levada á capella-mór da pequena Egreja da Esperança, vestida e allumiada com singular esplendor, e, no dia seguinte, acompanhada por todas as communidades conventuaes, -- masculas, é claro, -- da Villa, não menos de quatro, e por toda a nobreza e clerezia, a urna foi levada, nas mesmas mãos, á portaria do Convento, onde a recebeu a propria Duqueza D. Catharina, com suas filhas, e as religiosas, conduzindo-a ao côro de baixo e collocando-a na sepultura aberta junjo da de D. Isabel de Lencastre, a devota esposa que D. João III impozera ao filho de D. Jayme, ao Duque D. Theodosio I.

Como Ignez de Castro, D. Leonor de Mendonça foi um dia Rainha: - «depois de morta.»

Mas, -- e faz-nos especie esta falta, -- não teve como ella... sermão, elogio historico, exposição revindicativa da sua memoria!

Não se adivinha, não se sente em tudo isto, como que um plano, um proposito, um pensamento reservado, politico, de affirmar, imponente e ruidosamente, que a Casa, o poder, o direito principesco, real, dos Duques de Bragança, não desarmava, não era morto, em face da Usurpação triumphante e da Aspiração sebastianista, em que, precisamente, por aquelle tempo, se refugiava a alma nacional?

Ah não! -- «A erva não crescia em volta do Paço de Villa Viçosa,» -- como quereria um dia o celebre ministro Filippino, para que a Utopia iberica triumphasse de vez.

Não havia de crescer a erva!...

O que havia de ir, dia em dia, crescendo, -- o que já começava então, -- era a reacção, o protesto, o desaggravo necessario, implacavel, da Nacionalidade, do Direito e da Historia.

Mas a que conclusão chegou a supposta inquirição de D. Catharina?

Qual foi, finalmente, -- «a verdade do caso» -- transmittida pelos testemunhos da filha de Valdarrama e pela neta do veador Henrique de Figueiredo, accrescentados pelos da devota de Estremoz e do illuminado de Montes Claros, que parece terem sido somente revelados por aquellas duas mulheres?

Caetano de Sousa junta-lhes, e faz bem, os de duas memorias que elle só, tambem, pôde ler, e uma das quaes conserva, até, anonyma.

Resultam d'esta amalgama tres versões, que, a bem dizer, conteem todos os termos da Lenda, menos um, que inteiramente passou, ou conveiu passar, despercebido ao geneologista.

A que elle parece adoptar como definitiva e como resultante da averiguação de D. Catharina, -- sem comtudo desfazer nas outras, -- antes aproveitando-as tambem, é a seguinte: -- que a catastrophe -- «nascera do desaccordo de uma moça namorada de Antonio Alcoforado, a qual tinha sua mãe no Paço e era Dona de Auctoridade, e Guarda do quarto da Duqueza, a qual fechava as portas, a quem a filha tomava as chaves para passar á casa em que estava a janella, por donde se communicava, o que a mesma mãe depois o veiu a saber, e dizia que sua filha merecia a morte e não a innocente Duqueza, o que ella mesmo passados annos referiu a muitos Senhores da Casa de Bragança.»

Não foi decerto a D. Jayme, nem nos vinte annos mais chegados.

Nem ao filho, ao pundonoroso D. Theodosio...

E calaram-se, então, aquelles Senhores, deixando que corresse infamada a memoria da Duqueza ou o proceder do Duque, por conta d'uma moça frasearia e anonyma?

Mas a dona da camara da Duqueza era Beatriz Annes, havia tres annos; não ha noticia de que tivesse filha, ha até rasão para suppôr que a não tinha.

E a janella por onde entrou o Alcoforado, e o quarto onde elle foi encontrado e d'onde não sahiu senão morto, eram a janella e o quarto da Duqueza: -- não outra, não outro.

Confusão ou embuste a este respeito, não seriam rasoavelmente explicaveis.

A questão da janella por onde entrava o Pagem ser a da propria camara da Duqueza, não é até uma circumstancia fundamental no successo.

O proprio Duque, quando manda vigiar o rapaz pelo seu Guarda-roupa e pelo hortelão simula suppôr que elle entrasse por ali na ausencia e a não sabidas de D. Leonor.

E ficou-se, então, muito calado, o Pagem, quando, com uma só palavra, adiaria, pelo menos, a propria morte, salvar-se-hia, naturalmente, e salvaria a honra e a vida da Duqueza?!

E calou-se o capellão, e não conseguiram o Duque, o ouvidor Gaspar Lopes, o juiz João Mouro, e todas as justiças, e, porque não dizel-o? todos os contemporaneos, surprehender a reles mystificação, ou tornar-se-hiam todos, -- como e porque? -- cumplices e participantes n'ella?!

Note-se, além d'isso, que na vida de todos elles, alguns annos depois, apenas, se revelára... o imaginado equivoco.

Outra versão que Caetano de Sousa dá e que por egual acceita, sem dizer quem lh'a fornece, é apenas o desenvolvimento romanesco da que fica exposta.

A namorada do Pagem, facilitára a este -- «falar-lhe da janella que cahia do Paço para o jardim onde se faziam obras e estavam abertos os muros.»

Vê-se como se vão aproveitando insidiosamente os elementos fornecidos pela inquirição judiciaria que se simula desdenhar, para imprimir um certo caracter de contemporaneidade á Lenda.

Mas o Duque -- «ardia em ciumes» -- não se diz porque, e mandára vigiar -- «de dia e de noite,» -- Antonio Alcoforado. Os espiões avisaram D. Jayme, de que o moço entrava por uma janella, e aquelle, então, foi-se ao -- «quarto da Duqueza,» -- e encontrou o Pagem que pretendera fugir pela janella, do que o impediram -- «as lanças e chuços.»

-- «Entrou o Duque e o achou naquella Casa.»

Fêl-o matar, -- «e precipitadamente foi á camara da Duquesa, que ao ruido que ouvira, assustada, passara á camara de seus filhos a saber se algum delles tinha algum perigo.»

N'esta altura do conto tem duas narrações o atrapalhado geneologista. Citemos a propriamente d'elle.

Quando o Duque avançou contra a esposa, esta,

-- «animosamente perguntou, porque a queria matar? E dizendo-lhe o Duque por que lhe fôra traidora, ella lhe respondeu: nem eu sou traidora, nem meus avós o forão nunca.»

E taes cousas lhe diria mais, que D. Jayme amançára e cedera, não só perante as rasões d'ella, mas -- «as persuações do Capellão que clamava pela sua innocencia, e sahindo da casa o persuadio um criado chamado Pero Vaz a que voltasse,» -- o que fizera, e a matára então.

Escusado é accentuar a repisada e evidentemente atrapalhada tentativa de arredar do proprio quarto da Duqueza a scena, imaginando-se outra janella por onde entrasse o Pagem, e outro quarto em que tivesse sido encontrado.

Mas é contraproducente essa tentativa: -- além de que a circumstancia nada provára.

Como se suscitára logo, exclusivamente, a suspeita menos verosimil, menos natural dos amores da Duqueza com o Pagem, sem que a ninguem acudisse a rudimentar idéa de que elle se atrevesse apenas a galantear uma das damas do Paço?

E elle mudo, sempre!

Mudo se deixa morrer e deixa infamar a Senhora que o creára como mãe, quando, sem ninguem infamar, pudéra ter confidenciado ao Duque, o objectivo da amorosa travessura!..

Mas estavam todos apostados, então, em matar a Duqueza e em dar como deshonrado o Duque,... a começar por elle proprio!...

Todos, e particularmente o Pero Vaz!

Este Pero Vaz, que quando o vê inclinado á brandura e á verdade, o estimula e açula, deve ser o Guarda-roupa da «inquirição» judiciaria, o amigo do Alcoforado, o que o Duque mandou que espionasse com o hortelão -- «quem era que entrava na camara da Senhora Duqueza, com uma rapariga della quando ella ia ás matinas.»

O seu papel na tragedia está em harmonia com a sua posição: é verdadeiramente a de um criado, a de um agente subalterno, a de um espião.

O que poderia movel-o áquelle incitamento cruel, odioso?

Viu entrar o moço, ficou surprezo quando descobriu quem era, declara positivamente que não conheceu nem o vulto nem a falla da mulher que estava -- «em cima.» Conta o que viu e o que fez, tão somente. Quando entrou na camara viu já o Duque -- «ás historias» -- com a Duqueza.

E toda a mais gente que estava ali e que descreve os episodios mais insignificantes, não lhe addita o depoimento, não lhe denuncia o incitamento atrevido, inverosimil, inutil.

É necessario recordar que esse mesmo Pero Vaz, por muitos annos depois, desempenhou tranquillamente o cargo e continuou no serviço e nas boas graças da Casa Ducal?

Em quanto aos clamores do capellão, nenhuma das testemunhas presenciaes, contemporaneo algum, dá o menor indicio d'elles, e mais deveriam pesar fortemente, -- bem mais do que as excitações do Guarda-roupa, -- n'um espirito profundamente devoto como o do Duque, e nas consciencias dos numerosos espectadores da catastrophe.

Lopo Garcia, vimos já que durou muitos annos depois, e nem ao entrar na Eternidade parece ter sentido muito carregada a consciencia com a memoria d'aquelle caso terrivel.

Mas ha um pequeno incidente que por si bastará para inquinar de artificiosa e suspeita a versão.

É a phrase da pobre Duquezasinha.

É o protesto altivo, reflectido, n'aquella hora angustiosa, de que -- «nem ella fôra traidora, nem o haviam sido, jamais os seus avós»?

Dá um rebate estranho a imponente apostrophe.

Ha n'ella como que a revindicação d'uma prosapia tradicionaria, a nota erudita de um desaggravo, não já d'uma alma de mulher perturbada n'um lance angustioso, mas da lenda d'uma Casa, do orgulho affrontado de uma Familia.

Realmente, ahi, Caetano de Sousa, sem o dizer, sem o saber talvez, reproduziu apenas o echo ou a reacção que o procedimento do Duque portuguez produziria, naturalmente, além Guadiana, especialmente entre os orgulhosos amigos e parentes da grande Casa hespanhola.

Em 1575 publicava, em Barcelona, João de Linhares um cancioneiro, hoje extremamente raro em qualquer das suas diversas edições, intitulado Flor de Enamorados.

Não sei se n'essa edição e na que se averba de segunda, em 1608, mas com certeza n'uma que parece mais rara ainda do que as outras, porque não é como as mais geralmente citada, -- na de 1612, -- encontra-se um romance que é a mais antiga producção litteraria em que se trata o assumpto, e que espelha ou que promove a Lenda.

Ali se encontra a famosa phrase attribuida a D. Leonor:

-- El Duque con gran enojo estas palahras decia, traidora me sois Duquesa, traidora, falsa, maligna, porque pienso que traicion me haceis y aleivosia; no te soy traidora el Duque ni en mi lihage la habia; e mais vibra ainda esta nota, por egual caracteristica, symptomatica, para quem tenha algum habito de ler estas cousas: -- « Socorred mis caballeros socorred por cortezia no hay ninguno alli de aquellos áquien la favor pedia, queran todos portugueses y nadie no le entendia...

Está claro: o formosissimo romance não entra em minudencias, evita-as até, evidentemente. Não trata dos «antecedentes,» começa logo na scena final:

-- Lunes se decia, lunes tres horas antes del dia quando el Duque de Berganza con la Duqueza reñia.

O Pagem é apenas

--...um pagecico

que a la mesa la servia

e que na falta dos cavalleiros castelhanos, e em face da cruel impassibilidade dos portugueses, brada, intrepido:

-- «dejes la Duqueza el Duque

«que nada te merecia.

O Duque, enojado do atrevimento da creança, corre atraz d'ella

-- «y cortóle la cabeza

aunque no lo merecia

Volta; a Duqueza, resignada, diz-lhe, comtudo:

--...padre y hermanos tengo que te lo demandarian Y aunquesten en España allá uiuy bien se sabria

O compositor claudica: -- D. Leonor não tinha pae; morrera-lhe cinco annos antes. E a respeito de irmãos,... tinha o cunhado, o aventureiro Girão, o que se diz que mandara desafiar D. Jayme.

Ultimo incidente: -- a Duqueza pede a confissão, o Duque recusa-lh'a. Veem depois, -- logo depois, -- os remorsos, outro termo da Lenda, de que depois fallaremos:

-- matéla sin merecello con enojo que tenia; donde irás el triste Duque de tu vida que seria como tan grande pecado. Dios te lo perdonaria.

Facto curioso e que não deixa de ser significativo:

A applicação, ou a explicação d'este romance perdeu-se na litteratura hespanhola; precisamente não a encontrou ella quando procurou estudar e colligir os seus cancioneiros. Reprodul-o, como correspondendo ao tragico episodio de outros dois conjuges portuguezes; -- o infante D. João, que alias nunca foi Duque de Bragança, e D. Maria Telles!...

E nem na propria Andaluzia, em Niebla, em Cadix, em Sanlucar, em Sevilha, os distinctissimos estudiosos que consultei puderam encontrar vestigios de uma memoria, quanto mais de uma reacção popular rehahilitativa do desastre da pobre filha de D. João de Gusmão!..

XIV

E porque contar polo meudo tudo o que n'esta batalha passou, seria enfadar aos que a lessem, o não faço, baste que durou muito...

Francisco de Moraes. -- Palmeirim, etc.

Faltava, porém, ás versões citadas, um elemento elucidativo, essencial: -- o fundamento, o inicio suggestivo das suspeitas ou dos suppostos ciumes do Duque.

Foi o que Caetano de Sousa julgou encontrar n'um geneologio que só elle viu ou cita, d'um Tristão Guedes de Queiroz, que escrevera outro, da Casa de Bragança; que viveu no século XVII, e que morreu, até, nos fins d'este seculo.

Segundo Caetano de Sousa, este Queiroz devia ter copiado a sua versão de texto anterior a 1590, pois que dá ainda a sepultura da Duqueza em Montes Claros. A rasão não é muito convincente: -- o facto póde derivar-se apenas da ignorancia, e é mais natural que tal seja a origem, porque se Queiroz soubesse que os ossos de D. Leonor estavam na Esperança, desde 1590, teria corrigido ou additado a copia.

Mas vejâmos a versão do desconhecido sujeito:

«A causa do ciume com que este Duque D. Jayme matou a Duqueza, sua primeira mulher,» -- seria esta:

Dera o Duque á esposa algumas joias, e ella offertára uma a certa -- «dama do Paço.»

A dama era galanteada por um moço fidalgo do Duque e brindára-o com a joia. Pôl-a o moço no chapéu e viu-lh'a D. Jayme. Mordeu-o, a este, a suspeita, e perguntára bruscamente á Duqueza pela joia. D. Leonor, receiosa de que o marido soffresse mal que a houvesse dado á Dama! respondeu-lhe que em seu poder a conservava com as mais. Pediu-lhe elle, então, ardiloso, que lh'a mostrasse, «porém não lha mostrando, confirmou sua temeraria suspeita, e matou a innocente Matrona.»

Simples, novellesco, e soffrivelmente tolo.

Como o Queiroz ou quem por elle inventou o conto conhecia pouco o Duque, a Duqueza, o tempo, a tragedia!

Mas este caso da joia, que tem sido dos mais explorados literariamente, recorda-nos o caso da bueta, ou mais propriamente, das buetas dos nossos documentos. Tinha uma a Duqueza, em que guardava as cartas do Pagem. Outra tinha este, em que muito provavelmente guardava as cartas d'ella. Antonio Alcoforado trazia presa ao braço a chave d'essa bueta, que dissera ao criado, ao João Fernandes, ter-lhe sido dada por um Senhor D. Affonso.

A bueta parece ser peça de importancia, na «inquirição devassa,» pois que o proprio Duque a apresenta ao criado para que reconheça se é a propria do Alcoforado. O criado reconhece-a.

Teria sido de D. Leonor?

Não se formaria aquelle conto da joia, sobre este caso da bueta?

E assim, em volta de um nome, ás vezes, de um episodio banal, que a crystallisação lendaria se fórma e avoluma.

O caso é que esta versão da joia serve a Caetano de Sousa para inquinar de doudo, não o Queiroz, mas o Duque, voltando á tradição dos seus -- «accidentes maniacos,» -- porque, -- «não tirou uma consequencia tão natural como era que não havia Antonio Alcoforado trazer no chapéo uma joia e aonde o Duque a visse se a Duqueza lha tivesse dado, o que era incrível de supor em uma Senhora tão illustre e virtuosa.»

Cahem quasi sempre n'estas sandices, em se pondo a fallar e a julgar da Mocidade e do Amor, estes velhos e graves moralistas das conveniencias e prosapias cortesãs.

Mas como se viu já, eu quiz auxiliar um pouco, accrescentar com alguma luz a mais, a piedosa embrulhada do illustre geneologista, que á força de querer attestar a immaculada innocencia da pobre moça andaluza, feita esposa e Duqueza sem consciencia e sem vontade, -- acaba por dar o Duque como um doido e um assassino vulgar, apesar de toda a rhetorica encomiastica em que procura enquadrar-lhe a figura.

N'uma busca teimosa, poderia dizer, desesperada, consegui colher, além de uma versão nova, a noticia de uma outra memoria inedita, -- e esta especial, positivamente, destinada á rehabilitação da «Senhora Duqueza.»

Infelizmente não pude haver á mão o texto original, mas o titulo claramente indica que não se trata de uma verdadeira e nova revelação documental, e sim apenas de uma compilação da lenda erudita para a destrinça e rejeição da qual sobejam os nossos documentos.

Não logrando descobrir a memoria, apeguei-me aos escassos e perdidos vestigios do auctor.

Conheço, tenho aqui, diante de mim, seguramente o principal trabalho d'elle, que realmente é um protesto vivo contra o ignorante silencio dos bibliographos e dos eruditos nacionaes.

A memoria seria um outro trabalho do Licenciado Gaspar Dias de Landim, sujeito do século XVII, um contemporaneo de Tristão Guedes de Queiroz, muito dedicado á Casa de Bragança no tempo dos Duques D. João II e D. Luiza de Gusmão, depois Rei e Rainha de Portugal.

É curioso, e não precisa de largo corrimento, o facto de ser no tempo d'aquelle Duque, depois Rei, quando é Duqueza de Bragança uma senhora da Familia de Niebla e de Medina Sidonia, -- uma Gusmão, como D. Leonor, -- a gloriosa Duqueza e Rainha D. Luiza de Gusmão, -- que parece resurgir, -- recrudescer, pelo menos, -- a Lenda, estimulando particularmente as pennas dos servidores da Casa.

Mais importa, porém, a versão nova, que Caetano de Sousa, ainda que conhecesse, muito naturalmente não daria.

Referi-me já a ella quando expuz o papel de medianeira e confidente nos recados e amores de D. Leonor e do Pagem, de uma dona d'aquella, a Anna Camella.

A versão é apenas esta: -- uma dama da «Senhora Duqueza» apaixonada pelo petulante moço e repellida e desdenhada por elle, n'uma espantosa revindicta accusal-o-hia, ao Duque, -- «de ter tractos illicitos com a Duqueza.»

D'aqui a morte dos dois -- «como é notorio nas historias.»

Mas porque, para vingar-se do Pagem, infamaria a Duqueza, certa seguramente, de que a faria matar, tambem, a desalmada dama?

Não o diz a discreta nota, e realmente comprehende-se que não precisasse dizel-o, ou que o dissesse sómente se podesse e quizesse mostrar a falsidade da denuncia.

Ahi sim, que sem mesmo a explanar, se adivinha e sente a torva violencia, doida e cega, do ciume, da paixão, da maldade humana.

A versão só em registo relativamente moderno, a encontro, mas além do sabor antigo que me parece ter, e de subscripta por investigadores experimentados, ajusta-se singularmente, á impressão produzida pelo testemunho de Anna Camella.

Como notámos, esta mulher confessa na sua retrospecção tão miuda que chega a ser odienta, dos episodios e palavras denunciadoras d'aquelles amores condemnaveis, um grande -- «avorrecimento» -- pelo Pagem.

Dir-se-hia que, como as pobres hystericas dos Conventos, se delicia na propria flagellação.

É possivel que esta impressão critica se derive principalmente de uma prevenção da Lenda; que o nosso espirito, por tanto tempo intrigado e predisposto por ella, não conseguisse emancipar-se inteiramente das suas suggestões sentimentaes, romanescas. Pode ser. É o que é, naturalmente.

Bayle, o grande sceptico, -- e mais era elle! -- protestára emmudecer, immobilisar o coração quando se resolveu a estudar, -- como quem diz a dessecar o Amor, -- e comtudo, como o pequeno musculo se ri e troça do orgulhoso, através das suas paginas mais fria e pensadamente analystas!...

Mas parece isto: -- o testemunho d'aquella mulher parece vibrar estranhamente no meio dos outros.

E o que é incontestavel é que a sombra d'ella, -- e que é ella mais do que uma sombra, um nome, uma obscura creatura, que não se sabe de onde veiu, se era moça, se era bonita; que nunca mais apparece? -- o que é incontestavel é que a sombra d'ella alastra sobre todo o drama, domina quasi toda a acção, concentra, a bem dizer, o segredo do entrecho.

Ella não é a Fatalidade. Mas é o seu instrumento.

A Fatalidade é o que se tem ido surprehendendo, o que se tem ido procurando esboçar, ligar, ajustar, por estas paginas adiante: -- a natureza, o meio, as circumstancias, a repulsão ou a consonancia das condições, a incompatibilidade ou a confluencia dos termos, a limitação, a fraqueza, a estupidez humana.

Não ha outra.

Mas supprimida aquella figura sinistra, -- que póde ser apenas um factor casual, como uma pedra em que se tropeça no caminho, como um pequeno insecto que nos mordeu nos campos viçosos e alegres, -- por pouco que o drama não desapparece obscuramente e sem ruido; que a tragedia não se suspende e aborta n'uma banalidade reles: -- uma mulher que trahe o marido sem que este o saiba.

Quer isto dizer, porém, que arredando aquella mulher, -- a Anna Camella, ou a da versão lendaria, -- por suspeita, por mentirosa enredadeira, até, que excedera na concepção monstruosamente odiosa do seu drama, os mais finos e experimentados engenhos de poetas e de dramaturgos que tenham tentado refazel-o, -- elle se dissolva e desappareça como visão inane?

Claramente, indeclinavelmente, -- não.

Mais ainda: -- Anna Camella, aparte a apprehensão do estimulo que pode tel-a movido a denunciar aquelles amores, não é senão uma figura muito secundaria no drama: -- a de uma intermediaria casual. E até não póde fugir-se facilmente á idéa de que essa intermediaria, -- sobre a qual nem a mais leve sombra de suspeita se revela no soalheiro ducal, como notámos já, -- não passe afinal de contas de uma simples criada velha, sinceramente escandalisada por aquelle attentado á honra da Casa e dos Amos, ou amedrontada pelas responsabilidades do papel que desempenha.

De resto, a versão do ciume d'uma dama da Senhora Duqueza, -- que não contraria a versão historica, documental, do facto, e apenas a corroborara, -- encontrei-a apenas em dois geneologios do século XVIII, -- copiando-se, evidentemente, um do outro, e exactamente nos mesmos que disparatam na filiação do Pagem e no nome da Duqueza!

Como se terá notado, é geralmente n'esses repositorios aridos e enfadonhos, mas tantas vezes, inopinadamente, interessantissimos, que geralmente, quasi exclusivamente, se encontra a memoria do tragico acontecimento.

Parecera, então, que a Lenda, pelo menos desde que pode considerar-se dominante, se impozesse firmemente á longa serie d'essas -- «memorias,» -- pois que entre nós realmente as supprem, -- da sociedade fidalga e da cortesania tradicional, o que tanto mais facil e natural seria quanto é certo que geneologistas e geneologios se copiam e repetem geralmente uns aos outros, sem grandes reservas, e que a especie litteraria estava longe da indiscreta e brutal independencia da sua primeira época, da do Nobiliario chamado do conde D. Pedro, por exemplo.

Não acontece, porém, assim.

Durante o seculo XVI, XVII e XVIII, limitam-se uns ao simples e inexplicado registo da morte de D. Leonor pelo marido; accrescentam-lhe outros, apenas, a nota vaga e banal da injustiça d'essa morte; alguns até presistem desceremoniosamente na affirmação do adulterio commettido.

Póde dizer-se que em nenhum ha a adopção convicta, segura, verificada da Lenda da Innocencia.

Na propria litteratura, só modernamente aversão rehabilitativa parece ter feito corrente segura e productiva.

Em Hespanha, depois do bello romancesinho de João de Linhares, (sic) cujo sentido se perdeu entre os proprios historiadores e litteratos, só encontrei noticia de uma composição dramatica, de Cubillo de Aragão, poeta e advogado andaluz, no seculo XVII, que pudera suppôr-se baseada na tragedia de Villa Viçosa, ou na obra de Linhares, reconstruida por un ingenio de fortuna, como Cubillo a si proprio se chama.

-- Lector, yo soy un Ingenio

De fortuna (Dios delante),

Que para uno y otro agûero

No es menester mas achaque.

Hice versos (Dios nos libre)

Hice coplas (Dios nos guarde);

Que de cien comedias, quem?

Sino Dios podrá guardarme?

Os trabalhos d'elle são excessivamente raros e não logrei até hoje por os olhos na colleção El Enano de las Musas, de que aquella comedia faz parte.

Mas de Hespanha me affirmam, -- e basta citar o nome de um dos que me affirmam, o sr. Manuel Tamayo y Bans, o illustre director da Bibliotheca Nacional de Madrid, -- que a comedia de Cubillo, El Duque de Verganza, como a de Lope de Vega, conhecida por aquelle nome também, não trata da morte da «Senhora Duqueza.»

Caetano de Sousa cita frequentemente uma obra de Fr. Jeronymo de San Roman, espécie de geneologio da Casa de Bragança (sec. XVIII), mas das proprias referencias se percebe que o frade nenhuma elucidação nova offerece.

Na litteratura portugueza é só muito modernamente que a tragedia de Villa Viçosa parece ter estimulado um pouco, a largos intervallos, a inspiração e a vontade dos dramaturgos e poetas.

Abre o certamen Ignacio Pizarro, o auctor do impropriamente chamado Romanceiro Portuguez, uma collecção de romances... d'elle, metrificados sobre assumptos ou lendas historicas portuguezas.

Um d'esses romances intitula-se a Duquesa de Bragança.

Pizarro obteve uma copia do «Auto e Inquirição devassa»; publica, mesmo, o primeiro, e diz crer que conseguiu unir aos requisitos do genero litterario que explora, -- «a mais escrupulosa verdade na narração.»

Pois nem a verdade da historia documental que pomposamente cita, nem a verdade da Lenda consagrada que substitue por outra, por uma flagrante invenção romanesca!...

O Pagem ama uma dama da Duqueza, -- para isto Pizarro só precisava de Caetano de Sousa; -- e a Duqueza dá a essa dama uma joia, -- a versão do Guedes Queiroz.

A dama chamava-se tambem Leonor, -- coincidencia engenhosa para illudir a impressão da «inquirição devassa,» -- e a verdadeira D. Leonor, a Duqueza, era capa ou alcoveta d'aquelles amores; -- não deu para mais o engenho d'este meu patricio transmontano, mais fallado do que lido!

Exposto isto, é fácil deduzir toda a intriga.

A dama faz idyllio com o Pagem, acode o Duque, vae-se a dama por ali fora, por aquellas salas a dentro, muito longas e complicadas, como salas que não são as dos restrictos aposentos da esposa de D. Jayme em Villa Viçosa, e só volta para saber que por fatal engano o Duque matou a esposa, na idéa de que era ella a Leonor do Pagem.

E aqui está como na mingua d'uma tradição popular definida e segura, na ausencia d'uma investigação séria e honesta, na presença, até, de um documento terminante, irrecusavel, que se não quer ou que se não sabe ler, se engenha e lança uma lenda nova!

E muito seriamente, Pizarro, explicando que o

-- «actual representante da casa de Alcoforado» -- é seu primo e amigo -- «o Ex.mo Sr. Barão de Villa Pouca,» -- que não é tal, -- observa:

-- «O remorso do Duque, suas austeras penitencias e cilicios, são prova evidente da innocen cia da infeliz duqueza D. Leonor de Mendonça.»

Outra falsidade, mas que d'esta vez não é originalmente d'elle.

Toda a originalidade de Pizarro ficou n'aquella dama Leonor e no papel de alcoveta attribuido á Duqueza.

Pobre «Senhora Duqueza»!

Não lhe bastavam os politicos do seculo XVI, os geneologistas do seculo XVII, os rhetoricos do seculo XVIII!

Ainda em cima os romanticos do seculo XIX!...

Todos os leitores terão ouvido certamente fallar d'estas penitencias e arrependimentos de D. Jayme.

É até cousa assente, hoje ainda, em Villa Viçosa até! que ali, no Palacio, existem duas testemunhas implacaveis das penitencias do Duque!

São o oratorio e o poço.

O sangue fresco, esse resolveu-se finalmente a desapparecer, ou por industria ou por casualidade, como diria Caetano de Sousa.

Lembra-me que uma noite, depois do jantar, na sala do bilhar do Palacio, Sua Alteza a Senhora Duqueza actual, com aquella bondosissima e intelligente amabilidade que a caracterisa, depois de inquirir das minhas investigações do dia, me perguntou, onde teria sido morta D. Leonor de Mendonça.

-- «Muito provavelmente, minha Senhora, aqui mesmo onde Vossa Alteza me faz a honra de perguntar.

Por traz da gentilissima Princeza, ficava exactamente a porta emparedada do lendario oratorio, um casinhoto, ainda meio sarapintado de episodios santos, muito pequeno e escuro, para illuminar o qual se abriu uma fresta: recanto conservado na reconstrucção do palacio, no tempo de D. Theodosio, e que, realmente, na minha reconstrucção... ideal, d'aquella manhã, me parecera poder conter-se na parte dos aposentos de D. Leonor, no lanço do guarda-roupa, talvez, em que ella foi morta.

A casa lobrega em que o Duque se penitenciava hydropathicamente, segundo a versão lendaria, mettendo-se n'um poço com a agua pelos peitos, essa casa em que não ha muito, a troco de uma esportula ao guarda do Palacio, tanto tempo, modernamente, abandonado, os visitantes vingavam a Senhora Duqueza, escalavrando um busto do Duque, -- essa casa lá está ainda; disse já que supponho ter sido a casa da comida, em que vigiava e dormia o João Gomes, porteiro, e onde D. Leonor, algumas vezes, depois da ceia, escrevia ao Pagem, pelo Roseymo, ou recebia as cartas d'elle.

Sómente, essa casa, não tem nada de lobrega.

É apenas terrea. E é bonita, elegante.

O poço é sómente uma pequena mina enquadrada no marmore do pavimento e onde, nem de cocoras, se assim coubesse, que não caberia, o Duque poderia ter agua muito acima dos artelhos.

O busto que officialmente se quiz enviar para Lisboa, e que um documento que encontrei em Villa Viçosa diz até, que para cá viera, naturalmente para o poupar á vindicta dos visitantes sensiveis, está lá tambem; provavelmente ornamentava ou encimava algum apparato decorativo, fontenario, da mina, e é muito duvidoso que seja o busto de D. Jayme, ou pelo menos do tempo d'elle.

Mas os arrependimentos, os remorsos do Duque?

Conta-se que elle fizera logo uma peregrinação penitenciaria a S. Thiago de Compostella; -- que alta noite, depois de novamente casado, sentia os gritos angustiosos da primeira esposa; -- que se desculpára para com o Rei; que reconhecera o erro sinistro que commettera; que, em summa, testemunhara positivamente a innocencia da pobre senhora.

E ainda isto é favor, que não é raro relampear a insinuação de que torcera testemunhas e justiças, capciosamente, cobardemente, para condemnar a mulher... depois de morta, ou se salvar a si!

Salvar, de quê?

Emquanto á peregrinação, ha de ver-se que, muito provavelmente, o Duque... não teve tempo de fazel-a, e pelo que importa ao testemunho rehahilitativo da primeira esposa, é tempo de explicar a referencia que tenho feito, mais de uma vez, a uma pia fraude de Caetano de Sousa.

Elle diz, com todas as lettras, que o Duque, -- «naturalmente pio e bom catholico, reconhecendo o seu delicto, buscava com fervoroso arrependimento o perdão.»

Ora, era já singular que no testamento que Caetano de Sousa publica, esse reconhecimento ou esse arrependimento não se revelasse, quando mais não fosse, por uma phrase, por uma recommendação piedosa em relação á pobre D. Leonor.

Mas, independentemente d'isto, uma impressão teimosa me produzia a leitura do Testamento, como o publica o geneologista, -- impressão que naturalmente terá sentido quem, costumado á leitura de documentos antigos, o tiver examinado: -- a de que alguma cousa faltava n'aquelle texto tão minucioso, tão nitido, póde dizer-se, tão sincero.

Nem era uma simples impressão casual.

Fallando do que recebeu «em casamento» com a primeira esposa, D. Jayme manda que primeiro que se partilhe -- «hão de haver Theodosio e D. Isabel,» -- os dois primeiros filhos, os d'aquella, «tudo isso porque he seu por serem dotaes que hão ser primeiro pagos.»

E antes dissera que não fizera contracto no segundo casamento, do qual nasceram muitos filhos.

Havia logar para reparo; parecia faltar alguma cousa, alguma referencia inicial, explicativa.

Mas, debalde procurei o texto que servira ao geneologista.

Um dia, porém, o sr. Fernando Palha lembrou-me que possuia o traslado contemporaneo do testamento, feito pelo mesmo secretario que fizera este, e que ali se alludia á morte da Duqueza. Era, pois, possivel a verificação do texto de Caetano, e d'esse confronto resulta, além de algumas pequenas variantes e de um erro de data que póde ser casual, porque os erros d'essa natureza são vulgares no geneologista, -- uma evidente mutilação, irrefragavelmente intencional, no texto impresso.

Sim; vinte annos e um mez depois de ter morto sua mulher; á beira da sepultura, em face da Eternidade, -- serena e tranquilamente, -- para que o lessem os filhos, os proprios e estremecidos filhos d'elle, Duque de Bragança e de Guimarães e d'ella, Duqueza D. Leonor, da grande Casa de Niebla e Medina Sidonia, -- elle, «o pio, o bom catholico,» como justamente lhe chama o geneologista, -- elle, o « muito prudente,» como o nota Damião de Goes, -- elle, o «varão forte,» como o grande Papa Leão X o recommendou ás bênçãos da Christandade, dois annos depois da tragedia, -- elle, incontestavelmente, o intelligentissimo, o valoroso, o altivo, o lealissimo Senhor, como o pintam os contemporaneos: -- dita ao seu secretario Ruy Vaz Pinto, o seguinte, que Caetano de Sousa, quasi tres seculos mais tarde, teve a audacia de subtrahir toscamente do seu testamento:

-- «Segundo direito, de meus filhos Theodosio e Isabel, é toda a fasenda que da Duqueza Leanor, sua mãe ficou, e porque se perde pela culpa, eu pratiquei com letrados e acharam que me não valiam testamento nem havia obrigação de se cumprir; ainda que alguma cousa disto apareça não se cumpra, nem alvarás de promessas, nem dividas, nem cousa nenhuma, porque as cousas feitas com intenção damnada não devem de haver effeito, porque (pelo que) alguns alvarás que me requereram algumas pessoas eu os não quiz cumprir, antes me descontentaram muito emprestarem dinheiro a minha mnlher em segredo pois eu lhe dava o que lhe cumpria.»

Então não estava o Duque com um d'aquelles accessos melancolicos tão exaggerados pela Lenda: -- o documento espelha um grande bom senso previdente e pratico, um caracter austero e crente, um vigoroso tino administrativo e fidalgo, uma resignada e serena tranquillidade de consciencia perante o Mundo e perante a superna Justiça.

O Direito que o Duque aponta e recommenda, sabem qual é?

É este:

-- «Em caso q. o marido mate sua molher licitamête como dito he: elle deue auer todos seus beês della pollo pecado do adulterio que lhe cômeteo: assi como os aueria se a ouuesse acusada e cõdenada per justiça. Pêro se per morte sua delia ficarê filhos dãtre ambos ou outros descendentes lídimos: elles deuem auer os ditos beés sem os auer o dito marido.»

E cumpriu-se.

Como uma vergastada de luz, o testamento do Duque D. Jayme, fustiga e dissolve todo esse castello nevoento e phantastico de hypocrita sentimentalidade e de desastrada adulação em que haviam de querer encerral-o com a mulher que matara, como simples joguetes, -- elle, de uma insania de momento, -- ella, da fatalidade de um equivoco, - ambos, de uma intriga de criadagem.

Sim, uma loucura o fez matar; -- mas foi a da Honra.

Sim, uma Fatalidade a matou; -- mas foi a do Amor.

A Sociedade e a Natureza: -- it is the cause, it is the cause...

Assim é que ambos ficam bem na Historia, por que assim é que foram.

Nem culpa tiveram de ser assim.

XV Tornemos ao desastre a nós choroso, Furtando-me ia á dôr, que ainda ameaça

Sá de Mir. -- Obs.

É tempo de retroceder, de fechar o longo parenthese da Lenda, de tornar ao tempo, á historia, á verdade, á tragedia real.

Claramente, o acontecimento havia de produzir uma certa sensação, uma grande sensação até, como diriamos hoje.

Enganar-se-hia, porém, quem quizesse irmanal-a com a que produziria no nosso tempo, com a que nos suggere agora o seu enfraquecido echo.

Certamente, o seculo XVI tinha coração, nervos, consciencia, como o nosso.

Sómente,... não eram os nossos.

Essa consciencia formava-se de bem differentes noções e experiencias: -- movia-se e trabalhava como um relogio antigo sobre um machinismo diverso no fabrico, quando não na graduação chronometrica do movimento.

Esse coração pulsava da mesma maneira, -- pouco mais ou menos, -- e já n'isto ha differenças a considerar; -- o sangue que n'elle entrava e que d'elle sahia era qualitativa e quantitativamente egual ao nosso: -- outras, porém, muitas vezes, eram as influencias perifericas ou as vibrações sensoriaes que o apressavam ou confrangiam.

Esses nervos tinham irritabilidades e adormecimentos particulares, proprios; perfeitamente, absolutamente seus, em relação ao tempo e em relação ao espaço: -- ao logar, ao meio.

E se a Historia é, -- nem se lhe achou ainda definição melhor, -- o desenvolvimento da Humanidade no Tempo e no Espaço, claro está que se embaralhamos as cousas em qualquer ou em ambos os dois factores, podemos ter muitas outras excellentes: -- mas o que não teremos, com certeza, é a Historia.

E, demais a mais, perdemos, não só a grande lição: -- o grande deleite d'ella.

Procurando, não sómente nos textos contemporaneos que vieram á luz da publicidade, mas no fundo dos archivos que guardam as notas mais fugidias e intimas, mais sinceras ou menos reflectidas do tempo, apenas se encontra, -- e ainda assim raramente, -- um registo superficialissimo, rápido, não artificiosamente, mas naturalmente laconico do acontecimento, como se elle fôra um simples incidente pouco menos que insignificante e banal no trama dos interesses, das paixões, das propulsões moraes e sociaes de uma, -- pôde dizer-se, de duas ou tres gerações.

Tem-se escripto, em copia de copia, inima despreoccupada segurança de critica, que os «escriptores do tempo,» -- como diz Gonçalves Dias, -- ou que o «testemunho dos contemporaneos», -- como se deixou illudir Fernando Palha, -- se inclinam á innocencia da Senhora Duqueza, e, até, que «a apregoam.»

Tem isto passado como cousa assente; como argumento decisivo.

Ora, nada mais falso; absolutamente falso.

Nem um só escriptor do tempo manifesta tal inclinação; nem um só testemunho contemporaneo, - nem um só!-- se pronuncia em tal sentido.

Precisamente, o contrario é que seria, talvez, exacto.

Damião de Goes que largamente falia, como vimos já, do casamento do Duque, na sua Chronica Manuelina; que é até quem mais falla d'elle, refese-se á morte da Duqueza apenas incidentalmente, sem dizer como fora essa morte.

E mais o Duque era morto já, e aos filhos d'elle e de D. Leonor só poderia ser agradavel, naturalmente, o desaggravo da memoria da mãe, que de certo o grande historiador facilmente faria bem melhor e mais habilmente do que o tentou Caetano de Sousa.

Damião de Goes era creança em 1512; veiu, porem, a conhecer D. Jayme. a familia, a segunda mulher d'elle, cujo nome aureola, ate, com uma adjectivaçã elogiosa, que forma um brusco contraste com a sêcca referencia a D. Leonor, como já o notou Camillo Castello Branco.

Mas Damião de Goes escreveu uma obra cujo original desappareceu, -- existindo d'ella, porém, umas poucas de copias, -- obra, sob mais de um aspecto, notavel, e pouco menos que desconhecida.

Era um livro de linhagens, um geneologio.

Ahi, Damião de Goes refere-se ao acontecimento, mas accrescentando apenas á referencia da Chronica, que D. Leonor fôra morta pelo Duque: -- «e por morte desta molher que elle matou, casou,» etc.

Arredemos já uma pequena suggestão romanesca que póde derivar-se, em animos desprevenidos, da approximação que nos textos de Goes e de outros se encontra entre a morte de D. Leonor e o segundo casamento de D. Jayme, oito annos depois.

Essa approximação não significa cousa alguma, nem na intenção dos auctores, nem na realidade dos factos.

Nos oito annos intercalaram-se, como veremos no proximo volume, outros amores.

Mas antes de Goes, e mais proximo do acontecimento, registara este, um escriptor, do qual, como de mais dois que havemos de citar, não tiveram evidentemente o menor conhecimento os modernos e faceis commentadores da tragedia.

Foi Sisto Tavares, «quartanario na Santa Sé de Lisboa.»

Um quartanario era um quarto de cónego, um beneficiado immediatamente inferior a meio conego, que vencia a quarta parte da congrua de uma conezia.

Este Sisto Tavares, homem curioso da nobreza da sua terra e do seu tempo, escreveu um interessante livro de linhagens que por sua morte, ahi por 1525, segundo Barbosa, Goes adquiriu com outros papeis, por uns dez cruzados, e conscienciosamente lançou na Torre do Tombo, quando Archivista Mór.

Sisto Tavares diz simplesmente que

-- «este Duque Dom James matou aesta Duquesa Dona Leanor sua molher e a hum criado seu, filho do Alcoforado, com que teue ma sospeita.»

Outro contemporaneo cujo registo chegou até nós, por signal que muito desconhecido tambem, e mais curioso talvez do que o do quarto de conego, é Fr. Affonso de Fala, que o escripturava ainda em 1584, á beira da formação da Lenda destinada a rehabilitar a memoria da pobre Duqueza.

É tambem um Livro de Linhagens, e tão meticuloso, ou tão sem ceremonias para com as preoccupações cortesãs é este frade, -- da Batalha ou de

S. Domingos, -- que até separa as linhagens e gerações que elle considera puras, das que -- «veem por via de bastardia,» -- ou ganças, como diz, lançando estas em livro especial e final a começar pela da gloriosa Casa que se deriva dos dois bastardos de João I e do grande Condestavel.

Pois Fr. Affonso de Fala, que não escreve para publicar, -- que, até, geralmente estes Geneologios eram uma especie de Memorias intimas, ou as suppriam, -- e que não tem duvida em dizer que D. Theodosio, o filho de D. Jayme, casara -- «casi por força,» -- com sua prima-irmã, velha e feia, D. Isabel de Lencastre: a respeito de D. Leonor limita-se a dizer, nas duas vezes que falla do caso, sem o menor reparo ou commento, que fôra morta pelo marido.

N'um d'estes livros de lembranças, conhecidos pela designação de «cartapacios de memorias,» -- escripturado, evidentemente, no seculo XVI, encontrei a nota, em meio gothico, mais desenvolvida, em relação áquelle seculo, do tragico successo.

E a seguinte:

«A morte da duquesa de bragança.

-- «No primeyro dia do mez de nouembro de mil e quinhentos e doze anos matou dom James duque de Bragança a duquesa sua molher filha do duque de medina sidonia de Castela as punhaladas a qual matou na Villa Viçosa porque disiã que achara com huñ filho do alcoforado amo do dito duque o qual moço tambem o dito duq. matou.

Esta nota parece ter sido feita antes do segundo casamento do Duque (1520), muito proximamente, até, do acontecimento, e como a de Sisto Tavares, quando o Alcoforado (pae) era vivo ainda, sabendo-se pelo testamento de D. Isabel, mãe de D. Jayme, que o era n'aquelle anno.

E é quanto, dos contemporaneos, -- além da inquirição e do testemunho testamentario do proprio Duque, tão insidiosamente escondidos até hoje,-- pude arrancar ao lendário pó dos Archivos.

Nos do paiz, que pude consultar, como nos de Hespanha, a começar pelos da Casa de Medina Sidonia, que as mais cavalheirosas e experimentadas amabilidades quizeram interrogar por mim, nada mais pode obter-se. Nos da Casa de Bragança, que me franqueou uma intelligentissima magnanimidade duplamente, verdadeiramente, Real, - nos archivos da Serenissima Casa, onde não podia encontrar mais zelo e maior favor, nenhum indicio, nenhuma nota, nenhuma folha trancada encontrei que se referisse ao facto. É sabido, porém, que esses preciosos Archivos soffreram, além de outras devastações, as do Terremoto e as de dois incendios, sendo provavel, pelo que expomos atraz, que antes de findar o seculo XVI uma outra tivessem soffrido que mais importasse á nossa historia presente.

Mas ha, tambem, silencios que valem provas.

É, por exemplo, d'estes, o de Barrantes Maldonado, o já citado historiographo da Casa de Niebla, que fechou as suas Memorias em 1578, tendo-as recolhido e verificado nos proprios archivos da Casa.

Barrantes foi amigo intimo dos Duques de Medina Sidonia, filhos do segundo casamento de D. João de Gusmão.

Conheceu D. Jayme, diz elle proprio; elogia-o; esteve em Portugal com o Duque de Medina Sidonia por occasião da vinda de D. Catharina, a mulher do nosso D. João III. Um filho d'elle foi pagem do Duque de Bragança, o filho ou o neto, de D. Leonor e de D. Jayme.

Pois Barrantes, que é extremamente, desceremoniosamente minucioso, como já vimos; empenhado sempre em exalçar os Gusmões, e sendo o unico que refere as festas do casamento de D. Leonor e da sua entrega a Portugal, Barrantes cala-se acerca da sua morte, é até a única vez que se cala em relação aos destinos dos filhos, legitimos e naturaes, de D. João de Gusmão.

E esses filhos?

Um era Duque quando foi morta a irmã, que tres annos antes o acolhera, exilado, perdido, ali mesmo, em Villa Viçosa.

Era muito moço, é certo, posto que muito mais moço ainda cavalgára á frente d'um exercito para submetter Gibraltar... Mas era doente, e morreu dois mezes depois de D. Leonor.

Ficaram outros, porém; ficara a irmã, a D. Metia, a companheira de infância d'aquella, casada com D. Pedro de Girão, o que também procurára a protecção de D. Leonor, o audacioso e aventureiro conde de Urenha, que exactamente mezes depois da morte d'ella, ajudado pelo pae e pelo Duque de Arcos, levantava um exercito de cinco mil infantes e quinze mil cavalleiros para se apoderar da Casa do sogro e do cunhado, fallecidos.

D'este Girão, só affirmam muito posteriormente dois escriptores, e resa a Lenda, -- que elles prinpalmente procuravam consolidar, -- que rompera n'um protesto decisivo contra a morte da cunhada.

Nada provava esse protesto; traduzira-se n'um repto formal, num desafio, que D. Jayme declinara, allegando que não podia bater-se, elle, que fôra -- «jurado Principe herdeiro da Corôa Portugueza,» -- com um simples Fidalgo particular!

E ficaria n'isto o incidente, com a trovoada de exclamações indignadas da cavallaria... moderna mal escondendo o impeto de accrescentar o apodo de covarde aos de «besta fera» e «tisnado» com tem agraciado -- «o que tomou Azamor.»

Recusar o duello do cunhado, elle, que matara «friamente» a mulher!...

Uma pouca vergonha.

Duvido da veracidade do cartel, mas antes de passar adiante fixemos uma circumstancia curiosa: -- a de vermos, passados annos, os parentes da Duqueza morta, e aquella mesma D. Mecia, sua irmã, corresponderem-se affectuosamente com D. Jayme, e tratarem com elle do casamento de sua filha em Castella.

O Girão é que parece ter-se conservado a mal com o Duque, mas, tambem, da falta de auxilio efficaz que encontrara no cunhado para as suas aventuras usurpadoras, não devia ter-lhe ficado uma grande affeição.

Desafiou-o, realmente?

Testemunho contemporaneo do repto, não se encontra.

O Girão vigiava a presa da Casa de Niebla, precisamente quando havia de chegar-lhe a nova da morte de D. Leonor.

E reptado ou não, o Duque teria diversas respostas a dar, muito mais sensatas, -- mais verdadeiras, até, -- do que essa tal que a Lenda lhe attribue.

Logo a primeira era a de que não podia reconhecer-lhe direito algum para reptal-o. Estas cousas tiveram sempre umas certas normas.

Tinha outra rasão, ainda: -- a do dever, a da Lei, que lhe vedava a acceitação ou a concessão do desafio, e por mais que isto possa parecer paradoxal aos brios e impetos da critica, não já positivamente cavalleirosa, mas cavalheira de hoje, a verdade é que nas condições do tempo, nas circumstancias do Duque, na feição especial do seu espirito, do seu caracter, no criterio do seu proceder, esta rasão facilmente passaria, de ponderosa, a decisiva.

Mas se as Chronicas e os Archivos contemporaneos se fecham n'uma mudez gelada, de mau agouro, sobre a terrivel tragedia, tendo só palavras de elogio e de respeito para o Duque homicida, -- se a família da victima não reage e protesta, ou se o protesto do Girão, sobre duvidoso, é suspeito e nada provaria: -- talvez os poetas, os artistas, os illuminados ou os sonhadores do tempo, talvez o grande poeta, o grande artista de todos os tempos, -- o Povo, -- avocasse a si o sombrio processo, pozesse embargo ou protesto á sentença cruel, na luz redemptora de um pressentimento de consciencia ou de coração, quando mais não fosse. Talvez!...

Tambem não.

Nem quando se ensaiava a Lenda!

Os poetas, -- e se os houve n'aquelle seculo!... -- nem um grito de piedade nos mandaram de lá, acompanhando a memoria da desgraçada Senhora.

Gil Vicente, que sabia tão engenhosamente fazer lampejar a insidia mordente da sua malicia ou da sua indignação nas tintas mais alegres ou mais graves da palheta genial, Gil Vicente falla algumas vezes do Duque D. Jayme, com um respeito que se pressente sincero, affectuoso.

No romance á acclamação de D. João II, é o Duque quem faz o voto da justiça direita, escrupulosa, fina:

Diria mui humilhado

O senhor Duque de Bragança

Alto Rei, nossa esperança

Deos que vos deu o reinado

Vos dará sempre bonança.

Esta supita mudança

Bem parece obra divina;

E com esta segurança

Fazei que vossa balança

Seja fina.

Mezes depois da catastrophe, Gil Vicente fazia e representava perante a Corte aquella formosissima e vigorosa Exhortação da guerra, inspirada pela partida para Azamor a do illustre e mui magnifico Senhor D. Gemes Duque de Bragança e de Guimarães.»

Avante! avante! Senhores

Que na guerra com rasão

Anda Deos por capitão!

Rezende, o gracejador, o malicioso, por vezes a caustico Rezende,

Os velhos sam namorados

os mancebos occupados

os casados são solteiros

os fracos são mui guerreiros

e os clerigos casados.

Rezende, que tem para Ignez de Castro, aquellas trovas doridas que ainda hoje são as unicas que podem emparceirar com as estrophes diamantinas de Camões,

Qual será o coração

tão cru e sem piedade

que lhe não cause paixão

uma tão gram crueldade

e morte tão sem rasão...

Garcia de Rezende, que no seu monumental Cancioneiro, publicado quatro annos depois, não hesita em recolher os epigrammas, os reparos, as notas mais indiscretas, -- sangrentas algumas, da sua sociedade cortesã: -- nenhuma nos transmitte sobre o tragico successo, e mais não faz ceremonia em estampar os rifões, as trovas, as ajudas enamoradas que levanta em torno da sua desenvolta formosura a que ia ser segunda esposa do severo Duque de Bragança e de Guimarães.

E o Povo, -- o tal grande Artista de todos os tempos, -- que recolhe, tantas vezes, no conto, na canção, na cantiga, os protestos da Innocencia, da Justiça, da Historia, abafados pelas malicias ou pelos interesses dos poderosos e dos cortesãos?

Um escriptor diz, e outros copiam e repetem -- «que os contos populares a este respeito seriam materia para deleitosos romances ou poemas.»

É inteiramente falso, ainda.

O romanceiro popular -- que não é o que fazem Pizarros, -- declinou o processo, não protestou contra a sentença.

É mudo.

Exactamente, como já vimos que é falso, como é uma affirmação inconsistente, arbitraria, improvada, positivamente desmentida pelos factos e pelos testemunhos, a de que os contemporâneos revindicassem a innocencia da pobre Duqueza e julgassem, consequentemente, o Duque, um assassino vulgar.

Para os contemporaneos, o acontecimento é singelamente este: -- um homem, um marido encontra alta noite na camara de dormir da mulher, outro homem, um seu criado nobre, um pagem.

Mata-os ambos.

Mata-os diante de toda a sua Casa; mata-os diante de Toda-a-Gente; mata-os -- «licitamente» -- diz a Lei.

E manda chamar as justiças, e diz-lhes: -- «matei-os.»

Extraordinario... seria que fizesse outra cousa.

Eram assim feitos esses contemporaneos.

Toda-a-Gente e a Lei estavam identificadas na mesma Consciencia.

Não teria passado, ou não havia de passar muito tempo que esses contemporâneos vissem ou soubessem caso semelhante, identico: -- o de um grande fidalgo, tambem. Pedro da Cunha, senhor de Gestaço e Panovas, commendador de Fonte Arcada, -- o que fez as fortalezas de Baçaim e Chaul, -- que encontrou sua mulher. -- uma grande senhora, egualmente, D. Luiza de Castro, filha do Conde de Monsanto, D. Pedro de Castro. -- com um criado seu, e os matou aos dois.

E quantos outros...

XVI

Lá não sei aonde era huma vez huma pessa de panno azul que por não seruir para boda, nem mortuorios, havia mil annos que estaua na tenda, porque os noyvos o achavão triste para libre, e ledo os enojados para capuzes.

F. M. de Mello. -- Apol. D.

As justiças fizeram a sua obrigação.

Fizeram o Auto, e logo -- «dia claro» -- deram começo á Devassa.

O Auto é mais ou menos conhecido; tem sido já publicado tres ou quatro vezes.

Quem o publicou primeiro foi o poeta Pizarro, e sobre a copia d'este, que abrangia a Devassa, outro escriptor, extractando-a, e muito atabalhoadamente, fez um pequeno quadro historico em que se pressente a impressão profunda que o principal documento produziu nas suas idéas, -- que eram as da Lenda dominante, -- da «innocencia da Senhora Duqueza.»

Adivinha-se o abalo rude que soffreu n'essas idéas nunca até ali discutidas, e pelo contrario, acariciadas pelas tendencias de escola, -- aquelle espirito generoso e culto, amestrado a sentir, viva e decisiva, a verdade da Historia, nos velhos documentos.

Luminosa e penetrante, a Devassa!

Mas essas tendencias e idéas reagiram, irritadas, contra o abalo, abafaram, até, -- parece, -- a natural suggestão da rasão e da vontade a uma investigação séria, honesta, conscienciosa, a uma revisão critica, necessaria, do preconceito já então romantico, não cortesão.

E esse bello espirito cahiu, sem força para afiirmar, sem direito para negar, n'este conceito desolador, tolo:

- «Seja como fôr, a rasão ou sem rasão da morte de D. Leonor será sempre um mysterio.»

Onde está aqui o mysterio?

O mysterio fêl-o a Lenda falsamente erudita, desastradamente, piegasmente cortesã.

O mysterio fêl-o a falta persistente, systematica, de investigação e de comprehensão critica do facto, ora determinada, ora alimentada por preoçcupações e por sentimentos alheios á Historia.

E tão systematiea tem sido essa falta, e tão pouco contava comsigo esse famoso mysterio... que a Inquirição, a Devassa, o documento fundamental, cuidadosamente conservado no Archivo Nacional, -- escrupulosamente transcripto nos Registos de Leitura Nova, em plena época de cortesania e de beaterio, -- visto por todos, copiado por alguns, -- extractado, até, posto que deficiente e incorrectamente,... não se publicou até hoje!

E mais era por onde devera ter-se começado.

Não faltando já na mutilação feita por Caetano de Sousa no Testamento do Duque!

Como dissemos, a Devassa seguiu-se ao Auto.

No curto intervallo foram as justiças a casa do Alcoforado e apprehenderam a arca do Pagem, que se abriu estando o Duque presente, segundo se deprehende d'uma referencia incidental. Foi elle proprio que tirou de dentro d'ella a bueta do Pagem, entregando-a ao escrivão, e que o criado de Manuel Alcoforado reconheceu, depois, na inquirição.

Presidem a esta, e fazem-n'a, o bacharel Gaspar Lopes, do Desembargo ducal, ouvidor da Casa e Correição dos Duques, e João Alvares Mouro, juiz ordinario da Villa.

São escrivães Alvaro Pacheco e Diogo de Negreiros.

O primeiro escreve o Auto e os dois depoimentos iniciaes; o outro, por mais expedito, provavelmente, passa a escrever os mais.

Assiste, como tabellião, Gonçalo Lourenço.

A Devassa funcciona na «sala que foi da Senhora Duqueza», e dura dois dias, os de 2 e 3 de novembro.

Em 6 reune-se de novo para ouvir ainda umas declarações insignificantes de Fernão Rodrigues, o camareiro, e de Jorge Lourenço, o tabellião geral.

Por Ayres Gomes, outro tabellião, manda o Ouvidor fazer um traslado authentico que assignam todos.

É este o documento conservado no Archivo Nacional; muito provavelmente o que havia de ser enviado para Lisboa para que o «feito» seguisse os tramites ordinarios. Adiante o transcrevo, na integra.

No primeiro dia depõem:

Pero Vaz, Guarda-roupa do Duque, o amigo do Alcoforado;

João Fernandes, criado de Manuel Alcoforado;

Beatriz Armes, dona da Gasa da Senhora Duqueza;

Anna Ferreira, moça da Camara da mesma Senhora;

Jorge Loureiro, escrivão da Camara do Duque e tabellião geral;

João Gomes, porteiro da Senhora Duqueza;

Anna Camella, dona da Casa da mesma Senhora.

Vê-se que não se perdia tempo.

São longos e minuciosos os sete depoimentos e o trabalho emodsto ar deveria deitar tarde.

No dia seguinte, depõem:

Roseymo, moço da Camara do Duque, «que servia em casa da dita Senhora Duqueza.»

Pero Fernandes, hortelão do reguengo.

Francisca da Silva, «molher que tem carguo dos coeiros dos Senhores filhos do Duque.»

Fernão Rodrigues, camarista, que escreve elle proprio o seu depoimento.

Fernão Velho, o vedor da Senhora Duqueza.

O cadaver de D. Leonor fôra enviado ao Convento da Luz, de Montes Claros, e sepultado ali.

A lenda escripta, naturalmente ampliada na lenda oral, conta este horror: -- que o Duque fizera amarrar o cadaver da esposa sobre uma besta de serviço caseiro e açoutando esta a fizera partir á aventura. A besta, então, por habito, por alvedrio, ha tal que suppõe até por mandado de Cima! tomára o caminho do convento.

Tudo isto deve ser falso.

Que o cadaver fosse conduzido no dorso de uma besta, é natural; mas a própria religiosa da Esperança, com quem exactamente tanto se apega a Lenda, diz que seu pae, o Valdarrama, conduzira o corpo da Senhora Duqueza a Montes Claros.

O Duque, vimos já, terminada a execução, mandara somente pôr «um junto do outro» os dois cadaveres, e recolhera-se, e chamara as justiças, e entregára-lh'os.

O do Alcoforado não se sabe onde foi sepultado.

Muito provavelmente as creanças, os filhos da Duqueza morta e do Duque homicida, foram logo enviados pelo ultimo á Duqueza Mãe.

É em casa d'esta, pelo menos, que se cria a menina, a D. Isabel, até ao tempo do segundo casamento do Duque.

Este, é provável, tambem, que sahisse de Villa Viçosa, recolhendo-se, como diz Caetano de Sousa, a Evora Monte, áquelle isolado e escuro outeiro acastellado que corta bruscamente o monotono e assoalhado horisonte da linha ferrea do Sueste, pouco adiante de Evora, a vinte e quatro kilometros da cidade.

É claro que o acontecimento deveria produzir um violento abalo no animo do Rei, e Caetano de Sousa, declinando a veracidade da versão sobre o seu Fr. Jeronymo Roman, vae dizendo que D. Manuel, profundamente escandalisado, quizera prender D. Jayme, pelo que este -- «acautelando-se andou muito tempo retirado com recato, temendo o rigor delRey.»

Mas é o proprio geneologista que se encarrega de provar que nem aquelle tempo seria «muito,» nem o rigor real se demorou em meditar o duvidoso projecto de um encarceramento banal.

Chamando as justiças locaes a devassar do seu procedimento, acto continuo a este, o Duque instaurava o proprio processo legal e mostrava que não queria eximir-se ás consequencias d'elle, consequencias que por mais edições que se tenham feito das Ordenações, vimos já que não andam muito conhecidas.

E tanto era elle proprio quem provocava esse processo, que a sua declaração, arredava lealmente o pretexto ou a hypothese do flagrante delicto, como disseramos hoje, e expressamente determinava a outra que a lei estabelecia, a que o obrigava a provar -- «depois, por prova licita e abastante, segundo o direito quer.»

Por isso, e para isso até, é que chamára as justiças.

A idéa de que esse proceder correspondia a um medo cobarde ou a um calculo hypocrita; de que o poderoso senhor, logo em seguida áquella execução, pensadamente, ostentosamente, quasi publicamente feita, se abatia e humilhava ridiculamente amedrontado, tremendo como uma creança ou como um poltrão, e procurando na mais odiosa mentira na infamação de si proprio, no mais que precario embuste de momento, facilmente esclarecido e desmentido logo, eximir-se ao rigor do Rei e da Lei, -- só póde ser uma idéa, por assim dizer, moderna, extemporanea, gerada e acreditada muito fora do conhecimento e da comprehensão do tempo, da sociedade, da situação moral, legal e historica em que o facto succedeu.

Embuste por embuste, mais simples, mais seguro, mais commodo, fora o que se fechasse n'uma execução summaria, sem apparato, e na rasão primeira e decisiva da lei:

-- «Matei-os por que os encontrei no pecado.»

Quem o desmentira?

Se houvera força e manha e influencia para forjar e fazer prevalecer um embuste, como não as houvera para o outro?

E já isto é conceder á idéa uma discussão que evidentemente não merece em face dos factos e circumstancias anteriores que todos a condemnam por insustentavel e absurda.

Omisiou-se o Duque?

Supponhamos que sim, se póde chamar-se omisio ao facto de se afastar um pouco do theatro do acontecimento, recolhendo, recatando a sua desgraça, tambem a sua prosapia senhorial, n'um velho castello solitario, pondo-as temporariamente ao abrigo das vistas impertinentes do meio que assistira, á vergonha, á deshonra do nome e da grandeza ducal, e talvez acautelando-as dos primeiros impetos, apaixonados e affrontosos da colera real.

Seguramente, D. Jayme havia de dar conta minuciosa ao Rei do acto que praticara, e não póde duvidar-se de que a devassa judiciaria seguira os seus tramites ou fôra communicada ás justiças da Côrte para que os seguisse.

Mas ha documento decisivo, -- e é o proprio

Caetano de Sousa que sem comprehender todo o alcance d'elle, o publica, -- de que o Duque proseguiu immediata e firmemente no proposito de justificar nos termos ordinarios da Lei, o seu procedimento.

Assim o fez declarar pelo seu procurador na Côrte, e para que o fizesse, -- «como he theudo.» -- como era a praxe, o uso, fazel-o, nos tribunaes d'ella, foi-lhe dada «Carta de segurança,» o que significa, -- mal o pensava Caetano de Sousa! -- que a «inquirição devassa» fôra vista -- «em relação» -- pelo corregedor da Corte e pelos outros desembargadores do Rei, e que elles haviam entendido -- «que rasoadamente» -- se podia provar -- «a razão e defeza allegada.»

Tudo isto se fizera, n'um praso, para o tempo, ainda até, para o nosso, regularmente rapido, pois que tudo isto se passara antes de 19 de fevereiro de 1513.

N'esta data, e a requerimento do Duque, são citadas, em nome do Rei, -- «as partes a que a justiça pertencer» -- para que por si ou seus procuradores, no tempo de quatro mezes, venham perante o Corregedor da Corte e a Casa da Supplicação, -- «accusar o dito Duque se quizerem por rasão da dita morte onde serão ouvidos e lhes será feito comprimento de justiça.»

E porque essas partes ou algumas d'ellas sejam -- «taes pessoas que a dita citação lhes não póde ser feita em pessoa» -- requereu-se e mandou-se que ella se fizesse por Editos da mais ampla e segura publicidade, affixados -- «em alguns logares do extremo de nosso Reino,» -- mais chegados aos de Castella, além dos -- «lugares acostumados.»

Note-se ainda que o Rei estava em Evora, a dois passos do supposto omisio do Duque.

Seguiu o «feito» até final sentença, como declarava a citação que succederia, «á revelia» das partes senão viessem accusar n'elle?

De que ellas apparecessem, não só não ha o menor vestigio, mas ha, em contrario, as mais seguras presumpções.

E na ausencia de toda a accusação, evidentemente prevalecia a «inquirição devassa» e sobre ella tinha simplesmente de incidir o julgamento da causa. Já pelo exame d'ella se devia ter reconhecido que -- «rasoadamente» -- se podia provar -- «a rasão e defeza allegada,» -- para a concessão da carta de seguro.

A ausencia de contradicta deixava subsistente a prova pela qual, nos termos expressos da lei, o marido homicida devia -- «ser avido por sem culpa e livre sem pena alguma.»

Assim se considerou e succedeu.

Nem mais se pensou no processo, naturalmente.

O julgamento, e não só o do Rei, o do Tribunal, mas o de Toda-a-Gente, resaltava, claro e irrecusavel, da Devassa incontestada.

Mas aquelle marido era um Duque, um grande Senhor; o escandalo fôra ruidoso e saliente; o acontecimento affrontára o alto prestigio da grande e gloriosa instituição ducal, poderia, até, no procedimento auctoritario do grande vassallo, -- embora elle tivesse, em principio, a mais larga jurisdicção justiceira nas suas terras, -- ferir um pouco as susceptibilidades da Auctoridade Real.

Convinha que esta não se mostrasse perfeitamente passiva e indifferente, e convinha ao Duque, ou melhor, convinha ao brazão ducal, resgatar num grande feito, n'uma fastigiosa affirmação de força, de segura e serena dedicação christã e patriotica, o luto, a humilhação, o vexame d'aquella desgraça.

O cerco á soberbia mussulmana da Africa não estava fechado: a pirataria tinha respiradouros largos, e particularmente Azamor desafiava orgulhosamente o plano pratico e necessario da politica portugueza. A conquista d'aquella praça estava resolvida. Em 1508 fizera-se um reconhecimento cuidado. Sabia-se que a empreza havia de ser custosa e aspera. Tentára-se então, e o mallogro, que fôra sangrento, mais estimulara a vontade e a prudencia.

Esta foi a penitencia, a expiação, o desaggravo conhecido, certo, authentico, que o Rei impoz ou que o Duque escolheu para o escandalo sangrento ou para o escandalo deshonroso, que enlutara e vexara o escudo bragantino: -- para ambos, naturalmente: -- tomar Azamor.

Tomar Azamor! -- bem mais digna expiação, desaggravo bem mais consoante com a tradição e com a honra d'esse escudo do que a peregrinação banal a S. Thiago da Galliza ou do que o banho devoto no hypothetico poço do Paço solarengo.

Desaggravo grandioso como os da lithurgia romana quando o Templo é profanado ou maculado o Altar pelo lodo da fraqueza e das paixões humanas, -- desaggravo, principalmente para elle, o grande, o prestigioso Senhor, o leal, o austero, o valeroso Duque abatido e vexado na sua honra: desaggravo que havia de tolher os escarninhos da malicia cortesã, que havia de esmagar os baixos apodos do ciume e da maledicencia geral, que havia de reerguer e restituir o trahido marido ao fastigio do Heroe nas acclamações da Christandade e da Historia.

Nada mais natural.

Este é que é o aspecto sob que me parece rasoavel e justo considerar esse desaggravo.

D. Jayme não leva o celicio do penitente sob a couraça do soldado. A bem dizer leva sobre esta o manto real. Leva -- «todo o comprido poder e alçada» -- da Corôa, -- «para d'elle usar,» -- proclama ella, -- «como Nós pessoalmente o fariamos, se presente fossemos, assim no Civil como no Crime, até morte natural inclusive, sem d'elle em caso algum haver outra mais appellação, nem aggravo, porque tudo Queremos e Nos Praz que faça n'elle fim.»

E esse mando supremo, e esse descripcionario poder, e essa auctoridade real, havia elle de exercel-a sobre mais de tres mil cavalleiros, em que se contavam os primeiros capitães do tempo, a fina flôr da nobreza portugueza; sobre dezenove mil soldados, entre os quaes avultavam os mais experimentados e intrepidos; sobre quatrocentas e tantas embarcações, as melhores do Reino; em summa, n'uma empreza em que haviam de andar germanadas, na intensidade maior, a prudencia e a coragem, o estudo e a decisão, a valentia do coração e a valentia do cerebro, -- n'uma empreza longamente meditada, cujo mallogro não seria sómente uma vergonha, mas uma catastrophe.

Era isto ser penitente, reu, condemnado?

Era isto reconhecel-o assassino por loucura, homicida por apaixonada precipitação, matador da mulher, contra a razão e contra a lei, oito ou nove mezes antes?

Como se poude ensaiar semelhante absurdo?

E elle organisa e instrue e disciplina e exercita toda esta multidão, e dirige-a, e leva-a a Azamor, e leva-a ao assalto, por mar e por terra, e apossa-se da formidavel praça, e entra sertão a dentro, e cumpre escrupulosamente as instrucções reaes, e prepara a administração da conquista, e escreve no meio d'estes trabalhos um longo relatorio, singello, modesto, cheio de bom senso, vibrante de verdade...

E... passados tres seculos, graças á Lenda, existindo ainda os documentos de tudo isto, os seus compatriotas bradam-lhe apenas sobre a memoria:

-- «Devota besta fera»!

-- «Alma tisnada de fanatico»!

Não. Não deve ser. Não ha de continuar a ser.

NOTA

Não tencionando fazer lista de errata, que leria de ser longa pelas circumstancias que difficultaram uma revisão cuidada, notarei, comtudo, que n'esta parte IV, e a pag. 218, houve um lapso, aliás facilmente corrigivel á simples leitura, que consistiu em chamar-se filha, em vez de neta de D. Leonor, a D. Catharina, e mãe em vez de avó, áquella. Poucas linhas antes se fixava exactamente a ascendencia da Duqueza pretendente.

DOCUMENTOS

I

Auto que se fez, e Inquiriram Devasa que se tirou sobre a morte da Senhora Duqueza.

Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil quinhentos doze annos, aos dous dias do mez de Novembro do anuo sobredito duas oras ante manhãa pouco mais ou menos em Villa Viçoza nas casas do reguenguo donde ora pouza o Senhor Duque de Bragança sendo hi chamado o Bacharel Gaspar Lopes Ouvidor de Sua Senhoria, e Joam Alvares Mouro Juiz Ordinario em a dita Villa: per o dito Senhor Duque etc. foi dito ao dito Ouvidor e Juiz perante mim Tabelliam que elle tinha morto a Senhora Duqueza sua mulher Dona Lianor, e assi Antonio Alcoforado filho de Affonso Pires Alcoforado Moço Fidalgo de sua caza por os achar ambos, e achar que dormiam ambos, e lhe cometerem adulterio: pelo que o dito Ouvidor e Juiz se foram a huma camara, honde a dita Senhora soia a dormir, e hi jazia morta a dita Senhora Duqueza, e assi o dito Antonio Alcoforado junto na dita Gamara, hum junto do outro, o qual foi vista a dita Senhora per o Ouvidor, e Juiz, e Gonçalo Lourenço Tabelliam, que era prezente eu Alvaro Pacheco Tabelliam, e tinha uma grande ferida per baixo da barba deguolada, que cortava o pescoço aeerqua todo, e outra grande ferida per de tras na cabeça, que lhe cortava a cabeça cassi toda, que lhe pareciam os miolos, e junto com a dita ferida tinha tres muito grandes feridas:

E o dito Antonio Alcoforado tinha o pescoço corto e em a cama da dita Senhora estava hum barrete dobrado de volta preto, que deziam esses, que hi estavam, que era do dito Antonio Alcoforado, e o dito Ouvidor, e Juiz mandaram fazer este Auto, para por elle perguntarem algumas testemunhas sobre o dito casso, e mandaram ao dito Guonçalo Lourenço, e a mim Tabelliam que assignassemos este Auto, a qual dita Senhora Duqueza estava vestida, e tinha uma cota de veludo negro barrado de sytim preto com huns perfiles de tafetá amarelo, e hum saynho de veludo negro, e huma cinta de sytim rasso abonado; e assi o dito Antonio Alcoforado, estava vestido, e tinha hum gibam de fustam prateado com meyas manguas, e colar, e pontas de veludo roxo e huas calças vermelhas, e hus burzeguis pretos, e çapatos, e hum sayo preto, e huma cinta de coiro preto cõ huma guarniçam de prata, e ante que se acabasse este Auto de fazer, cheguara Diego de Negreiros Escripvam dante o dito Ouvidor, e vio os sobreditos na dita Camara jazer mortos, como dito he, com as feridas atras escriptas, e mandou ho Ouvidor ao dito Diego de Negreiros Escripvam, que asinase este Auto comnosquo Tabelliaens: testemunhas que eram prezentes ao fazer deste Auto, Pero Vaz Guarda Roupa do dito Senhor, e Jorge Lourenço Escripvã da Camara do dito Senhor, e Joam Gomes Porteiro da Camara, e eu Alvaro Pacheco Tabelliam que todo vi, e fui prezente, e fiz este Auto perante os sobreditos. Nam faça duvida no riscado, donde diz antre linha em a cama da dita Senhora Duqueza, e no riscado donde diz ao fezer, porque eu Tabelliam o fiz por verdade perante o dito Ouvidor, e Juiz, e testemunhas, e assi nam faça duvida na antrelinha, donde diz lhe cometeu adulterio.

E dispois desto loguo no dito dia, já dia claro o dito Ouvidor com o dito Juiz, e Gonçalo Lourenço Tabelliam e Diego de Negreiros, dante elle perguntou as testemunhas seguintes sobre o casso atras escripto, e as porguntarão comiguo Alvaro Pacheco Tabelliam.

Item. Pero Vaz Guarda Roupa do Senhor Duque, etc. testemunha jurada aos Santos Evangelhos, e perguntado devassamente por o Auto, e por o que sabia deste casso, assi de vista, como d'ouvida, como de indicio, como doutra qualquer maneira, que era o que sabia deste casso do adulterio e morte, disse o dito testemunha que pode aver onze ou doze dias que o Senhor Duque etc. lhe dissera que hum Rapaz lhe entrava em a camara da Senhora Duqueza com huma rapariga sua, e que lhe roguava que elle, e Pero Fernandes Ortelam vigiasem até ver quem era o que assim entrava na dita camara, e que elle testemunha o fezera assi, como Sua Senhoria ho mandara, e que com o dito Pero Fernandes vigiara dhi por diante atee esta noute passada, e que estando elle testemunha, e o dito Pero Fernandes debaixo de huus loureiros junto das cazas do dito Senhor, e que estando antre as doze e ha huua ora depois da meya noite viram elle testemunha, e o dito Pero Fernandes sob ir hum homem por cima de huns alicerces, e parede que se ora faz em direito de huma janella, que estaa na dita camara, honde a Senhora Duqueza dormia, e tanto que cheguara ali fora correndo deredor das cazas, nom sabe elle testemunha a que, soomente o vio luogo tornar, vindo correndo, e junto da janella começara apanhar, pareceo a elle testemunha que eram pedras, o qual se pusera sobre o que pusera, e falara estando huu pouco com huma mulher, que, estava de dentro da janella, a qual molher elle testemunha vira estar com a craridade da candea da camara, e nom conheceo a dita molher, por estar afastado, e que esteve falando com ella o dito homem hum pouco, e estando assi falando lhe lançaram nom sabe elle testemunha o que, com que lhe pareceo que o ajudaram a sobir, como defeito o vio elle testemunha sobir, entrar por a dita janella na camara da dita Senhora, e que tanto que elle testemunha ho vio da seseguo dentro, mandou ao dito Pero Fernandes que fosse chamar o Senhor Duque, e elle testemunha se foi poer sobre os alicerces per honde o dito home entrara com huua chuça nas mãos pera ter a dita janella, que nam sayse, e que estando ho dito homem asy um pouco, foy elle testemunha sentido de sima da dita camara, e fallou-lhe huma molher muito trovada, dizendo-lhe, quem está hy, e que elle testemunha lhe disera sou Vasques, esse homem que lá estaa dentro nom saya nem se bula, porque se sayr matallo-ey aguarde ho Duque que vay lá e ponha-se em suas maus e que nisto cheguara o dito homem á janela e lhe desera Pero Vasques leixay-me sayr pelo amor de Deos nam me mate o Duque, e que então elle testemunha conhecera que era Antonio Alcoforado Moço Fidalgo do dito Senhor filho d'Afonso Pires Alcoforado, e que elle testemunha lhe desera, nom sayaes por aqui porque se sairdes matar-vos-ey com esta chuça aguarday o Duque e ponde vos em suas maaos, e pasares com quatro ou cinquo duzias d'açoutes, e que então elle Antonio Alcoforado desera nom me matará o Duque? elle testemunha lhe disera nam, açoutar-vos-ha, e que elle testemunha lhe desera isto por nom sayr por a janella, e que o dito Antonio Alcoforado lhe lançara huma espada, que tinha dentro por a dita janella, a qual espada elle disera a Ferraz que estava já ahy que a tomasse e que estando asy nisto, ouvira elle testemunha hir o Duque por dentro, e batera rijo nas portas da dita camara, ou em outras rijo, e tanto que asy batera rijo, entrara Sua Senhoria na dita Camara, e tanto que elle testemunha sentiu o dito Senhor na camara e o ouvio fallar e mandar fechar a janella que elle testemunha guardava, se viera daly para dentro das cassas, e que daly a hum pedaço o dito Senhor o mandara chamar e elle testemunha fora á dita camara, e achara o Duque estar estoriando com a Senhora Duqueza e outras mulheres, que hy já estavam, e que a dita Senhora Duqueza se desculpava, e que o dito Antonio Alcoforado estava ahy na dita camara, honde a dita Senhora tinha a sua cama e dormia, porem que quando elle testemunha já chegou, pela tardança que fizera cá em baixo, achara já estar o dito Senhor com a dita Duqueza ás estorias na sua guarda roupa da dita Senhora, e o dito Antonio Alcoforado na dita camara, como dito he, e Jorge Lourenço falando com elle, e o dito Antonio Alcoforado estava de giolhos encommendando-se a Deos, e como elle testemunha entrara dhy a hum pouco o dito Antonio Alcoforado lhe pedira pelo amor de Deos que lhe perdoase, se lhe alguma cousa tinha feito.

E em esto entrara o dito Senhor Duque para a dita camara, honde estava o dito António Alcoforado e o dito Jorge Loureiro, ao qual Senhor Duque o dito Antonio Alcoforado assy de giolhos, como estava, pedia perdam dizendo que lhe pedia pelo amor de Deos que lhe perdoase a trayçam que lhe fezera, que lhe mandase fazer bem pela alma, e que o dito Senhor lhe respondeo que se abraçace com Deos, que o corpo avia de padecer, que mais passara Nosso Senhor por nós outros.

Emtam viera Lopo Garcia Capellam do dito Senhor, e confessara o dito Antonio Alcoforado, e asy confesara a Senhora Duqueza, e acabado de confessar o dito Antonio Alcoforado, mandou o Senhor Duque que lhe atassem as mãos e o dito Antonio Alcoforado lhe pedio por mercê que lhe mandase cobrir o rosto, o qual lhe cobriram com hum lençol e tendo assy as mãos atadas e o rosto coberto, entrara hum negro com hum manchil e o deguolara, e acabado esto. se fora o dito Senhor Duque á dita Senhora Duqueza sua molher, e lhe deu certas feridas de que a loguo matou, segundo se contem no Auto estando elle testemunha prezente, e asy Jorge Loureiro, e Fernam Rodrigues Camareiro e outros, e decrarou o dito testemunha, e dise, que quando ho a ele testemunha sentiram debaixo da janella que lhe a molher falou e ele testemunha ouvio estrepidos na casa como que se hya daquela casa pera outra, e que ele testemunha vio loguo a casa escura sem a dita molher lhe mais fallar, nem a sentir ahy, e que quando elle testemunha fora á dita camara, vira huma corda de esparto da parte de dentro e que entam lhe pareceo a elle testemunha que com aquella corda ho ajudaram ha alar acima quando entrou na dita camara e ai nom dise. Alvaro Pacheco Tabelliam esto escripvi.

Item. Perguntado do costume dise que he Guarda Roupa

do Senhor Duque elle testemunha, e que era amigo do Alcoforado morto. E ai nom dise. Alvaro Pacheco Tabelliam esto escrepvi.

Item. João Fernandes criado de Manuel Alcoforado, testemunha jurada aos santos Evangelhos, e perguntado deyasamente pelo Auto atras escripto, que era o que dello sabia, asy de vista como d'ouvida, como de qualquer nutra sabedoria, dise o dito testemunha que pode ora aver hum mes, pouco mais ou menos, que Manuel Alcoforado amo dele testemunha desezava muito saber bonde Antonio Alcoforado seu Irmão hia muytas noites avia e o leixava na cama de noute, o hia fora de caza, e lhe levava a sua espada, e lhe fexava a porta da camara, donde dormião em casa de seu Pay, de fora, que lhe rogava que ho espereitasse e soubesse donde hia, porque ele lhe nom queria dizer nada, e lhe neguava todo, e que ele testemunha o espereitara de noute loguo emtam e tanto que ho viria sayr de cassa se fora á vista delle, e vendo que trazia caminho do Moesteiro ele testemunha se fora de diente por outra rua e se fora deitar debaixo dos alpendres do dito Moesteiro de Santo Aguostinho, que he junto do Reguenguo e Paços donde o Duque & nosso Senhor pousa, estando asy á sombra do dito alpendre, o dito Antonio Alcoforado passara soo pelo caminho que vay pela porta do Moesteiro pera os Paços do dito Senhor, e assy pera Borba, e que vendo-o elle passar lhe nom quisera fallar porque ho dito Antonio Alcoforado nom ouvesse meneneorea e amtam se tornara elle testemunha pera a pousada sem saber pera honde emtam hia e que ao outro dia o contara ao Manoel Alcoforado como o dito seu Irmão Antonio Alcoforado aquela noute depois das onze oras fora caminho de Borba nom sabia elle testemunha honde, e que depois desto teer dito ao dito Manuel Alcoforado elle testemunha disera apartadamente ao dito Antonio Alcoforado bem vos parece a vos taes oras hirdes vos caminho de Borba q. he proprio caminho pera homde vam pera os Paços do dito Senhor, e que o dito Antonio Alcoforado ouvindo-lhe isto se fisera muyto ruyvo e lhe disera, que por as chaguas de, Deos nom disese nada a seu Irmão nem a sua May, e lhe, deu juramento dos Santos Evangelhos em hum livro que nam disese nada como dito he, e que elle testemunha asy o fisera sem lhe o dito Antonio Alcofordo descobrir cousa alguma, e que depois dhy a quinse dias, pouco mais mi menos, estando o dito Antonio Alcoforado de noute ceando com seu Irmão e sua May cheguara Rosseimo Moço da Camara do dito Senhor a casa da May do dito Antonio Alcoibrado sendo ja honze oras da noite o mandara chamar o dito Antonio Alcoforado per huma negrinha, o qual se alevantou da messa e sayra fora, e tornara asentar-se á messa, e sua May lhe perguntara que honde fora e porque se levantara, e elle disera que lhe vieram puxos e que fora verter aguaa, e que depois de terem coado, indo-se todos deitar, o dito Antonio Alcoforado se deitara em calças e gibam sobre a cama e o Irmão lhe perguntara que he isto porque vos nom deitaees, elle respondera que avia dhir fora, que lhe emprestasse a sua espada, e que ho dito Manuel Alcoforado disera que nam queria antes mandara a elle testemunha tamchar a espada em huma arqua do dito Manuel Alcoforado, e que ho dito Antonio Alcoforado avendo desto paixão, disera, que em algum tempo teria alguma cousa que elle ouvesse mester, e que estando assy deitado seu Irmão lhe mandara por elle testemunha fechar a porta de fora, e que dhy a hum pedaço que seria meya noute, o dito Antonio Alcoforado sayo não sabe elle testemunha quem lhe abrio a porta e foy chamar a elle testemunha e lhe roguou que fosse com elle e que levasse huma lança, e que elle levaria a sua espada delle testemunha; elle se levantara e fora com elle, levando duas pedras na mão e hum punhal na cinta, e ho trouxera até o Charqueyram que estaa ao camto das taipas do Reguengo áquem do Moesteiro, e lhe disera que ficasse ali e que se elle muyto tardasse que se fosse para casa, elle testemunha se viera a pollo dito Antonio Alcoforado e o vira meter por dentro de mimas obras que se fazem junto da Camara da Senhora Duqueza sem o ver a elle testemunha o dito Antonio Alcoforado, e que estandolo asy espreytando ouvira abrir a janella da camara da Senhora Duqueza e que pelo nom sentirem aly estar, se tornara honde lhy elle mandara que ficasse e aguardara por elle até huma huma ora e meya que elle tornara pouco mais ou menos, e que então elle testemunha lhe disera com quem podes vos dormir no Reguengo nom pode ser senom com alguma negra, que nom viera caa por quanto ha no mundo o que elle Antonio Alcoforado lhe disera, se vos soubesse com quem ira, vos me nom porieis culpa, e então se foram deitar a dormir, sem lhe dar mais conta; e que esta noute passada contheuda no auto ás honze oras da noute o dito Antonio Alcoforado se levantara da cama, donde dormia e fora chamar a elle testemunha e lhe disera que lhe rogava que fosse com elle porque relevava muito e que elle testemunha nom o querendo fazer lhe disse que cousa podia ser que lhe relevava, e que elle Antonio Alcoforado lhe dissera que ho Roseimo lhe levara hum recado, e que elle testemunha se levantara e se viera com elle, e que junto do Charqueiram lhe dicera que ficasse aly e que se ouvesse frio que se fosse para cassa, e que elle testemunha o tornara a espreitar e sentira abrir a janella da Camara da dita Senhora como a outra noute que já dito tem ouvio, e entam se foy elle testemunha para a pousada, e disse o dito testemunha que por ora elle nom era acordado de mais porem que protestava lembrando-lhe de o tornar a dizer.

E loguo pelo Ouvidor lhe foy mostrado huua bueta que o dito Ouvidor tinha na mão a qual fora achada em a caza do Alcoforado Pay do dito Antonio Alcoforado na camara donde elle dormia em huma sua arqua a qual bueta eu Tabelliam dou minha fé que vy tirar a dita bueta da dita arqua ao Senhor Duque e ma meteo na mam, e lhe perguntou o Ouvidor ao dito testemunha se conhecia a dita bueta, e dise que sy conhecia, que era do dito Antonio Alcoforado, e a tinha dentro na sua arqua e trazia a chave no braço.

Idem. Lhe perguntou quem lha dera, disse o dito testemunha que Antonio Alcoforado lhe disse que lha dera o Senhor Dom Affonso, e mais disse o dito testemunha que outras muitas noutes antes destas que dito tem, o dito Roseimo Moço da Camara hya ás oras que elle testemunha jaa tem dito com recados do dito Antonio Alcoforado, sem elle testemunha saber o que lhe queria e al nom dise.

Item. Perguntado do costume, disse o dito testemunha que he criado de Manuel Alcoforado, Irmão do dito Antonio Alcoforado e ai nom disse. - Alvaro Pacheco Tabelliam que esto escrepvi.

E despois desto, loguo no dito dia o dito Ouvidor mandou a mim Dieguo de Negreiros Escripvao dante elle que por mais despacho escrepvese esta Inqueriçam, e o dito Alvaro Pacheco fosse a todo prezonte, e asignase todolos testemunhos que se tirasera, e as testemunhas que se corniguo perguntarão são as seguintes:

Item. Briatris Annes Dona da Casa da Duquesa nossa Senhora, testemunha jurada aos Santos Evangelhos, e perguntada devasamente pelo caso atras escripto que era o que dello sabia de vista, d' ouvida ou indicio ou d'outra qualquer maneira disse a dita testemunha que ella nunca vio nem sentio outra cousa, soomente que de hum mes para quaa via escrepver cartas a Senhora Duqueza mais do que soya e receber cartas per mão de Anna Camella e fallar com ella, sem ella testemunha sospeitar tal cousa, como a passada, soomente o estranhava em seu coraçam, e lhe via romper cartas a dita Senhora, e que pudera ora aver tres semanas ou o dito mes pouco mais ou menos, que a Senhora Duquesa lhe disse que avia de fazer huma devaçam ao Ceo com aquella janella da sua camara aberta, e que avia de ser a mea noute e que ella testemunha se rira disso por ser feita a taes oras, e que lhe pareceo que faria ella aquella devaçam pelo Duque nosso Senhor, e que aquela noute estando ella testemunha na camara da dita Senhora com ella e que estava tambem hy Anna Ferreira Moça da Camara, e que a dita Senhora se pos á janella, e a dita Anna Ferreira lhe lançara hum sayo seu ao pee da janella em que ella posese os pees, e se sentase, se quisese e que a dita Senhora se pos sobre o sayo da dita Anna Ferreira, e ella testemunha e a dita Anna Ferreira se deitaram sobre huma cama, em que ella testemunha dormya de tras das cortinas da cama da dita Senhora, e que adormeceram ambas e estiveram asy te que as a Senhora Duqueza acordou e que esto fez a dita Senhora outras noutes, duas ou tres, e se metia antre huma vez e outra cinco ou seis dias, e que ella testemunha por ella sempre começar á mea noute a fazer a dita devaçam adormecia, e per nom ter suspeiçam tinha o coraçom repouzado, e porque tambem esse pouco espaço que estava acordada a ouvir rezar e que ja quando se ella asentava a fazer a dita devaçã estava a janella aberta, e que a derradeira vez que a dita Senhora isto fez antes da mea noute, a dita Senhora dissera a ella testemunha Briatris Annes, se já fosse mea noute pera fazer esta devaçam, e lhe dissera que emquanto não eram oras que juguase com ella as cartas, e que estiveram asy com huãs cartas folguando hum pouco ate que ella dita Senhora disse que eram já oras, e que esta noute depois da cea, que lhe parece a ella testemunha que seriam dez oras pouco mais ou menos, a dita Senhora Duquesa mandara pedir a ella testemunha papel e tinta, e ella testemunha lho mandou de cima donde estava, porquanto a dita Senhora estava cá em baixo nas casas terreas, honde ceara, e que depois a dita Senhora se foi pera cima pera guarda roupa, e estando lá hum pedaço, disera a dita Senhora que queria rezar, e pedira livro, e que lhe foram dados dous, e que depois de ter rezado, sendo já tarde, disera a dita Senhora á moça que chamão Anna Ferreira que se lembrasse do que lhe disera ou fisesse o que lhe avia dito, nom se lembra ella testemunha qual destas dise, e que entam a dita Senhora se modara da guarda roupa honde estava rezando pera camara donde dormia, e estevera la hum pouco, e tornara outra vez pera guarda roupa, e pedira alguma cousa que comesse e ella testemunha lhe dera huuas amendoas confeitas e outras cousas, e tanto que comeo estando hy assentada pedira a sua bueta e abrira e tirara huns papeis pequeninos e pedira huua tissoura, e que os estava cerceiando, e dispois disto feito se tornou pera sua camara, e que ella testemunha ficou na guarda roupa espaço de mea ora a seu parecer della testemunha e acabado de fazer o que fazia tomara huua vela e se ya deitar dentro a camara da dita Senhora onde dormia e que a achou ainda acordada, e asentada ao pe da janella, honde soya fazer a dita devaçom, e Anna Ferreira jazia deitada no cham com a cabeça sobre os pés da cama della testemunha, como que dormia, e ella testemunha começara de dizer á dita Senhora como queichoza que se ella soubera que Sua Senhoria avia de fazer a devaçam que lhe dissera que a fizera mais cedo, porque entam era já muyto tarde, e que entam ella testemunha se deitara sobre a cama, e que ho luguar, honde a Senhora Duqueza estava era escuro por ter huma corrediça deante da vela, e que ella testemunha nom podia, dormir, e se lhe augastava o coraçam nom sabia de que somente que de hy a hum pedaço depois que se ella testemunha deitou, ouviu dizer á Senhora Duqueza quem sooes ou quem está hy torvada nam muyto craro, e que ella testemunha ouvindo-a fallar se levantara rijo e se fora a ella e disera Jesus, Senhora, que he isto, e que ella disera falam aly em baixo, e ella testemunha disera quem he? e que a dita Senhora dissera he Antonio Alcoforado, e que ella testemunha ouviho dizer debaixo: day vos a prizão, e por lhe ella dita Senhora dizer que era Antonio Alcoforado, ella testemunha lhe disera que tendes vos Senhora de ver com Antonio Alcoforado, tiray-vos dahy e serrarey a janella, e que ella entam disera a ella testemunha que o dito Antonio Alcoforado estava ahy dentro, e que ella testemunha olhara e o vira estar junto della asentado, a saber, a soma delle que lhe nom vio o rosto por ser escuro, honde ambos asy estavom, e ella testemunha levantara as mãos sobre a cabeça muyto espantando-se dizendo: Senhora que he isto e se sayra da Camara, e a Senhora Duqueza após ella, e asy a dita moça, que ella acordou, e foram ter á guarda roupa e na guarda roupa lhe disera a dita Senhora se sabia alguu remedio se se poderia deitar o dito Antonio Alcoforado por hum a janella fora, e que ella testemunha dise que estavam todas as portas fechadas, e estava fora de sy, e que nisto o Duque nosso Senhor batia rijo á porta debaixo da escada e que a Senhora Duqueza estava tam torvada que nom acertava falla com falla, e que ella testemunha abrira a porta ao dito Senhor e elle sobira e metera loguo o ferrolho á camara da dita Senhora, e se fora á guarda roupa e dhy á camara honde dormia Anna Camella e lhe pedira rijo o cofre ou boeta o que ella dice que na guarda roupa estava, e o dito Senhor a fora tomar á guarda roupa, e por lhe nom darem a chave a quebrou, e achou nella huma carta nom sabe de quem era, e que a Senhora Duqueza se avia modado da guarda roupa pera camara honde dormyam os Senhores seus filhos, e que ho Duque foy hy ter e lhe dise: Senhora say caa que cousas sam estas, esta he a minha doença, que dez noutes ha que eu nom durmo, nem aquele que aly está, dizendo-ho pello homem que estava da parte de fora, e que ella se desculpava dizendo que lhe nom tinha feito nada, e esto disera vindo já da camara donde ho Antonio Alcoforado estava e ficava ja fechado com hum homem dentro com elle, e que entam o dito Senhor mandou chamar Lopo Garcia seu Capellam e mandou confessar o dito Antonio Alcoforado, e depois de confessado, mandara confessar a dita Senhora e em tanto a confessavam se foy á camara e disera a Antonio Alcoforado que se encomendasse a Deos e que elle lhe pedira que lhe mandase fazer bem por sua alma, e que nisto viera hum negro com hum manchil e deguolara o dito Antonio Alcoforado, o qual hy loguo morreo, entam se fora o dito Senhor á guarda roupa honde estavam confessando a dita Senhora e perguntara se era ja acabada de confessar e que nom sabe o que lhe responderam, e que a dita Senhora disse dous ou tres brados pedindo misericordia que lhe nom avia feito nada, e que o dito Senhor lhe dissera que se lembrasse de Deos e nom curasse d'outra cousa, e que começara de dar loguo nella segundo ella testemunha ouvia os guolpes, porque estava na camara honde o dito Antonio Alcoforado jazia, e que loguo a vio morta, e ai nom dise, soomente que protesta ella testemunha se outra cousa ao diante lhe lembrar de o dizer, e ai nom disse.

Item. Perguntada a dita testemunha pello costume disso que vevia com o dito Senhor e com a dita Senhora avia tres annos e al nom disse. Dieguo de Negreiros esto escrepvi.

Item. Anna Ferreira Moça da Camara da Duquesa nossa Senhora que Deos aja, testemunha jurada aos Santos Evangelhos, e perguntada devassmente sobre o contheudo no Auto atras escripto que era o que dello sabia de vista, d'ouvida, de prezença ou de qualquer outra maneira dise a dita testemunha que poderia aver hum mez pouco mais ou menos que ella testemunha via escrepver cartas á Senhora Duquesa pera Antonio Alcoforado, o assi via receber outras á Senhora Duquesa do dito Antonio Alcoforado, e que ella testemunha sabe isto porque as recebia da mam da Anna Camella as quaes cartas levava e trazia Roseymo Moço da Camara, porque ella testemunha o via fallar muitas vezes com ha Senhora Duqueza e asy antes disto vio falar o dito António Alcoforado com a Senhora Duqueza muytas vezes á puridade, e lho parecia já isto mal, e suspeitou pello que via serem as cartas pera elle e nam pera outrem e asy as que vinham serem suas do dito Antonio Alcoforado, e que deste tempo que diz pera caa a Senhora Duqueza hordenara de fazer huma devaçam a qual começava sempre á mea noute, e dezia que rezava o salmo De profundis quinhentas vezes, e isto ao pee da janella da camara honde a dita Senhora doria, e com a dita janella aberta, e que fez a dita devaçam quatro noutes com esta e que se metia antre huma vez e outra ás vezes cinquo ou seis dias e ás vezes huu dia e outro nam, e que esta noute passada estando a dita Senhora Duqueza rezando sua devaçam, como as noutes passadas, como ja disse, sendo antre as onze e a doze oras da noute, ella testemunha estava encostada dormindo sobre os pees da cama de Briatriz Eannes, que estava junto da cama da Senhora Duqueza, e que asy mesmo jazia na dita cama encostada a dita Briatriz Eannes, e que nisto ella testemunha ouvira dizer á Senhora Duqueza ali honde a ella leyxara rezando quando se encostara, quem está hy ou quem soes, huuã vez ou duas, e que nisto a dita Beatris Eannes se levantara rijo dizendo que he isto Senhora, e ella testemunha se fora tambem apos ella pera honde a dita Senhora estava e que ella testemunha hia nom muito em seu acordo do sono, e que em cheguando a honde a dita Senhora estava, lhe parecera a ella testemunha que vira entam entrar o dito Antonio Alcoforado pella janella, dentro, e que com o espanto da Briatris Eannes e da Senhora Duqueza ellas abalaram loguo da ly, e a dita Briatriz Eannes perguntava á dita Senhora quem era ou que era aquilo, e que ella dita Senhora indo ja easy no meo da camara dise era Antonio Alcoforado, e que ella testemunha quando isto ouvira volvera o rosto atras e vira estar o dito Antonio Alcoforado em pee junto donde a dita, Senhora estava rezando, e que debaixo da janella da parte de fora dezia Pero Vasques day-vos a prisam, day-vos a prizam, o qual ella testemunha entam nom conheceo na fala senam quando lhe o dito Pero Vaz dice que era, e que asy mesmo conheceo bem o dito Antonio Alcoforado, assy quando lhe parecia que entrava pella janella como depois que o vio em pee dentro na camara, e que a, Senhora Duqueza fugio loguo da dita camara pera guarda roupa, e que ella testemunha e a dita Beatriz Eannes se foram com ella, e que nisto o Duque entrou pella escada acima e que então o dito Senhor foy de camara em camara e perguntava quem entrou aquy, the que entrou na camara honde a dita Senhora dormia, e achou hy o dicto Antonio Alcoforado e disera ey-lo aquy, e que entam que leixara hy Jorge Lourenço com o dito Antonio e lhe fexara a porta por de fora e mandara chamar huu Capellam seu que se chama Lopo Garcia e se fora honde estava a dita Senhora e começara destar estoreando com ella e que nisto viera o Capellam e o dito Senhor mandara confessar o dito Antonio Alcoforado e entretanto estava o dito Senhor com a dita Senhora nas ditas estorias e ella lhe neguava rijo, que nunca o dito Antonio Alcoforado entrara pella dita janella nem a ella cheguara, e que acabado de confessar o dito Antonio Alcoforado o dito Senhor entrara pera ahonde elle estava, e que entrara huu negro com huu manchil, e que lio dito Senhor dezia contra o dito Antonio que se arrependese de seus pecados e chamase por Deos, e que entam mandou ao negro que o deguolasse o qual o dito negro loguo hy deguolou e matou, e que ella testemunha o vio matar e estar hy morto, como dito he, e que depois disto o dito Senhor entrara pera honde estava a dita Senhora e a matou e que ella testemunha ouvio os guolpes e a vio morta, e mais disse ella testemunha que ella via romper e queymar as cartas que lhe asy traziam e disse que aguora nom he de mais lembrada, mas que protesta se lhe lembrar depois, de o tornar a dizer.

E disse mais que se lembra que averá dous mezes pouco mais ou menos que ella testemunha achou huma carta de amores debaixo da cabeceira da cama da dita Senhora, o que ella testemunha a leo, e que por nom ter signal nom soubera quem a mandara nem conhecera a letra, e que depois de a ter lyda a rompera e o disera á dita Senhora como achara a dita carta e que ella se sorrira e lhe perguntara que lhe fizera e ella testemunha disera que a rompera e ella dita Senhora lhe perguntara se lhe lembrava alguma cousa della e ella testemunha dissera que nam, e que então nom suspeitara cuja podia ser, se nom depois que vio a conversação da fala com o dito Antonio Alçoforado, porque algumas vezes a ella testemunha parecia aquilo mal e o falava com Cezilia Pereira que parecia muito mal falar mais a Senhora Duqueza com aquele moço que com outro, que lhe assacarião algum testemunho, e que a dita Cezilia Pereira se calava, e ai nom disse.

Perguntou-lhe o Ouvidor se se acordava dalguma palavra da carta e ella disse que nam porque a lera muito depressa.

Item. Perguntada a dita testemunha pello costume disse que era Moça da Camara da dita Senhora, e al nom disse -- Diego de Negreiros esto escrepvi.

Item. Jorge Lourenço Escripvam da Camara do Duque nosso Senhor e Tabeliam Geral testemunha jurada aos Santos Evangelhos, e perguntado devasamente pelo Auto atras escripto que era o que dello sabia asy de vista como d'ouvida ou presença ou doutra qualquer maneira, dise o dito testemunha que elle testemunha dormia na guarda roupa do Duque nosso Senhor e que jazia hy tambem Gaspar Ferraz Moço da Guarda Roupa do dito Senhor, e que cheguara a elles Fernam Rodrigues Camareyro do dito Senhor e os acordara e lhes dissera que se levantassem rijo e que estando elle testemunha jaa em pee, viera ter com elle testemunha o Duque e lhe perguntara pella sua espada, a qual elle testemunha tomara e lha metera na mão, e que ho dito Senhor disera a elle testemunha que tomasse outra dahy da guarda roupa, a qual elle testemunha tomou entrando na camara do dito Senhor, o dito Senhor lhe tornara a tomar a espada que elle trazia da guarda roupa o lhe deu a sua e asy huua rodela que ho dito Senhor tinha na mão e asy huua tocha acesa, e que entam entrou o dito Senhor pera o aposentamento da Senhora Duqueza e elle testemunha diante com a dita tocha, e bateo rijo á porta das escadas e por lhe nom acodirem loguo tomou huua tranca pera botar as portas dentro, e que emtam lhe veo abrir Briatris Eannes, emtam foy o dito Senhor teer á porta da Camara da Duqueza e elle testemunha diamte e que olharam da porta da camara, e nam viram nad, e dahy foram ter a camara do Senhor Dom Theodosio, honde estava a Senhora Duqueza asentada sobre a cama dos filhos e que emtam lhe perguntara o Duque que fazia aly, e ella respondeo que sempre aly estivera, e que emtam leixara o dito Senhor Joam Gomes Porteiro á porta da dita Camara e se deceo abaixo a humas logeas donde dormiam as negras e as buscou todas e nam achou ninguem senam ellas, e tornou loguo a sobir pella escada e elle testemunha com elle e entraram na camara da Senhora Duquesa e acharam hy em huma alcatifa da ilhargua da cama da Senhora Duquesa Antonio Alcoforado e posse em giolhos como vio o Duque e lhe disse que ouvesse misericordia com elle amiserando-se ante elle, e que o dito Senhor lhe disera que se desse a Deos porque avia de morrer, e que o dito Antonio Alcoforado lhe disse que pello amor de Deos que ho mandasse confesar primeiro, e que ho dito Senhor lhe dissera que se desse a Deos que ou seria ou nam, e que entam se sayra o dito Senhor pella porta fora, mandou a elle testemunha que ficasse com elle com a dita tocha e olhasse por elle e que entam tanto que ho dito Senhor sayo o dito Antonio Alcoforado disse a elle testemunha que pois nom estava certo de se confesar, que lhe pedia a elle testemunha que ho ouvisse de confisão, e que elle testemunha lhe disera que visse a sua conciencia em que a tinha encarreguada e que lho dissese, e que o faria, e que elle então lhe disse algumas cousas de sua conciencia, disendo-lhe outro sy que pedisse ao Duque quando viesse que lhe perdoase aquella trayção, que lhe tinha feita e que tanto que ho dito Senhor tornara, elle testemunha lhe disse como o dito Antonio Alcoforado dizia que pedia a Sua Senhoria que lho perdoasse aquella traição que lhe tinha feita, e que elle testemunha pedira por mercee a Sua Senhoria que lhe perdoasse, e que o dito Antonio Alcoforado se assentara tambem com elle testemunha em giolhos, e pedira por merece a, Sua Senhoria que lhe perdoasse aquella trayção que lhe tinha feita e que entam o dito Senhor mandou a elle testemunha que se sayse pera guarda roupa, honde estava a Senhora Duquesa assentada e ficou com o dito Antonio Alcoforado hum pouco, e emtam o tornara a chamar a elle testemunha porque tornase a ficar em guarda delle, e se sayra o dito Senhor pera fora e que entam o dito Antonio Alcoforado lhe tornara a dizer a elle testemunha que posto que fosse muito amiguo do Duque que huma espada que lançara pella janella fora a Ferraz, que era de seu Irmão e lha tomara jazendo dormindo, que a desse a João Fernandes que viera com elle e estava aly esperando por elle, porém que já seria hido, e que não dissese aquillo ao Duque e que em este emsejo viera o Duque e lhe perguntara ao dito Antonio Alcoforado honde pousava o dito João Fernandes, e que elle lhe dissera que pouzava na rua da Freyra junto com a casa de seu Pay em huma casa de hum canto, e que o dito Senhor lhe mandara que soubesse qual era aquella casa e que emtam elle testemunha disera ao Duque isto que asyma está escripto acerqua do dito João Fernandes, que o Alcoforado disera, e que então elle testemunha dissera ao dito Senhor se queria que o fosse buscar ao Olival, e que o dito Senhor disera jaa sera ido, porem levay Matia comvosquo, e se o adiardes trazeyo e que nisto chegara Lopo Garcia Capellam do dito Senhor pera o ouvir de confissão, e que em quãto o confessavão fora elle testemunha ao Olival em busca do dito João Fernandes e o nom achara e que quando tornou acabavam lhe de atar as mãos ao dito Antonio Alcoforado, e que estava ja hi hum negro com hum manchil, e que o dito Antonio Alcoforado requerera que pello amor de Deos lhe cobrissem o rostro com hum pano porque nom visse como ho avião de matar, e que entam lhe cobriram o rostro com um pedaço de lançol, e o dito negro o deguolou com o dito manchil, o qual elle testemunha o vio loguo hi morto e deguolado como dito he e que emquanto se isto fez se confesou a Senhora Duqueza ao dito Lopo Garcia, e que vio tomar ao Duque hum traçado e se fora para a dita Senhora, e lhe dissera esta era a minha doença destes dias, dayvos a Deos, e que lhe começara de dar com o dito traçado levando-a pellos cabellos e lhe deu as feridas contheudas no Auto, de que loguo morreo, e disse o dito testemunha que por ora nom he de mais lembrado, que protesta se depois lhe mais lembrar de o dizer, e loguo disse que tanto que a dita Senhora fora morta, loguo ha o dito Senhor mandara levar a elle testemunha e a Pedro Vasques pera sua camara, honde estava o dito Antonio Alcoforado morto, e mais disse que quando asy estava em guarda do dito Alcoforado e lhe falou no dito Joam Fernandes, elle testemunha lhe perguntara que fazia o dito João Fernandes quando elle ally hia e que ho dito Anto nio Alcoforado lhe disera que o aguardava naquele Olival e que ás vezes quando elle tornava, o achava dormindo e al nom disse.

Item. Perguntado pello custume disse que he criado do dito Senhor e que eu Escripvam lhe disera hum dia, dando-lhe hum recado de sua mãe May delle Antonio Alcoforado que a dita sua May dizia, que seus filhos eram seus parentes delle testemunha, e que a dita sua May lho dise tambem a elle testemunha depois, porem que se o eram que elle testemunha o nom sabe, e ai nom disse. -- Diego de Negreyros esto escrepvy.

Item. JOAM GOMES Porteiro da Senhora Duquesa testemunha jurada aos Santos Evangelhos e perguntado devasamente pelo Auto atras escripto, que era o que dello sabia de vista, d'ouvida, de presunçam ou d'outra qualquer testemunha, que ai nom sabe soomente que huu Moço da Camara que chamão Roseyno servia a Senhora Duquesa, e que sempre foy mettido a servir mais que outro, e que de um mez a esta parte, pouco mais ou menos, o vio muyto mais metido do que soya, com a dita Senhora, a qual falava muitas vezes com elle á puridade e lhe dava recados e elle trazia tambem, e que vio elle que com alguns recados que lhe o dito moro dava aa dita Senhora ella sorria algumas vezes como que guostava delles, e elle testemunha se espantava daquillo e dissera hum dia ao Vedor Fernam Velho que nom entendia o fallar daquelle moço com a dita Senhora e que elle Vedor lhe disera tambem que nom podia entender aquillo, e que elle testemunha suspeytava em seu coraçom que aquellas graças e recados seriam com Biatris Pinheiro sua criada da dita Senhora, que casara avia pouco, e que esta noute passada depois da cea elle testemunha vio que a Senhora Duqueza pedio papel e tinta e se pos a escrepver e escrepveo hum escripto e que mandou pedir dons ou tres vintens a Beatris Eannes a qual lhos mandara, e que estando a dita Senhora asy escirepvendo, passara pela dita casa o Vedor e nam atentara nisso, e que tanto que acabou de escrepver, deu ho escripto ao Roseyno e disse que mandava dizer hunas Missas, mostrando os vintens a elle testemunha de como hum era grande e o outro mais pequeno e que já outro dia antes disto vira estar falando o dito Roseymo com Anna Camella ao pee da escada soos e que estava hy com elle testemunha na sala o Vedor Fernam Velho e que elle testemunha quando o vira estar falando porque nam via Anna Camela perguntou ao dito moço com quem falava, e a dita Anna Camella disse comiguo fala e o Vedor dissera com Anna Camella he, leixay-o e que esta dita noute depois de a dita Senhora ter escripto e mandado a carta pello dito Roseymo, á Senhora Duqueza ficou outro pedaço da mesma carta que ella rompeo com a mão e o meteo no seo seyo e se foy pera cyma, e elle testemunha fechou suas portas e se foy a cear, e tornara e se deytara na cama que elle testemunha tinha nesta mesma casa homde sempre dormia o que aly antre a huma o as duas oras despois da mea noute a seu parecer delle testemunha, jazendo dormindo, ouvio bater o Duque, á porta passo e elle testemunha acodira e abrira a porta, e que o Duque lhe disera estaa caa hum homem na camara da Duquesa, e que nisto tornara o Duque pera dentro honde estava a sua cama e donde elle viera, e elle testemunha tomara huma capa e huma espada e o Duque tornara logo rijo com uma rodella e hua espada e que o Duque disse a elle testemunha que batese rijo á porta da escada que vay pera a camara da Senhora Duquesa, e pedise depreça huua pouca dagua rossada pera Sua Senhoria, e que elle testemunha bateo rijo na dita porta e lhe nom acodira ninguem, e que entam o Duque tomara huã tranqua e se fora rijo ás portas e dera nellas e que as fez casy abrir, e a esto acodira rijo Briatris Eannes de cima e acabara de abrir a dita porta, e que entam o dito Senhor sobio rijo pellas ditas escadas e com elle o Camareyro e Jorge Loureiro, e elle testemunha, e que cheguãdo o dito Senhor acima remetera o dito Senhor á camará dos Senhores seus filhos, dizendo quem entrou aguora aqui, e que o que lhe responderam de dentro, elle testemunha o nom entendeo, e que elle testemunha cheguara á porta da dita Camara e vira estar a Senhora Duqueza asentada e encostada sobre a cama de aeus filhos e que o dito Senhor se tornara loguo a sair rijo e disse a elle testemunha Joam Gomes ficay aqui a esta porta e nam leixeis sair a Duqueza por aqui, e que elle testemunha çarrara as portas e as teve carradas pello ferrplho té o dito Senhor tornar de cá de baixo, honde avia vindo a buscar as cassas, e nom sendo ainda elle testemunha sabedor de mais do que lhe o Senhor disera e que entam o dito Senhor disera á dita Senhora anday pera caa Senhora e a fizera sahir á guarda roupa della dita Senhora e elle testemunha vinha hy tambem e que elle testemunha cheguara ha porta da camara da dita Senhora e vira hy estar ho Antonio Alcoforado em pee e que estava já com elle Jorge Lourenço, que ho dito Senhor ja hy avia leyxado em guarda delle, e que nesto o dito Senhor mandou a elle testemunha que fosse chamar Lopo Garcia Capellam que viesse pera huma doente e que elle testemunha o foy chamar e trouxe comsiguo e que tanto que ho dito Lopo Garcia entrou mandou o Duque a elle testemunha que o metese dentro na Camara da Duqueza, e que estando asy o dito Lopo Garcia, viera o dito Senhor hy e lhe mandara que confesasse o dito Antonio Alcoforado, que na dita Camara estava, e que tanto que o dito Antonio Alcoforado foy acabado de confesar, o dito Senhor mandara ao dito Lopo Garcia que confesase a dita Senhora Duqueza sua mulher, e que mandou a elle testemunha que estivese na mesma casa em que se ella confesava e que a nom leyxasse sair daly, e que emquanto se a dita Senhora confesava ho dito Senhor mandou matar ao dito Antonio Alcoforado, e depois de todo feyto o Duque foy duas ou três vezes honde a dita Senhora estava confesando-se perguntar e saber se se acabava de confessar e que ella tardava na confissão e a deradeira vez que foy disse acabay, Senhora, asolveya Padre que nam ha mister mais, e que o Padre asolveo e o dito Senhor se fora para ella com huu treçado que levava e lhe dissera que se encomendasse a Deos e se lembrase de sua alma, e que a dita Senhora ouvindo-lhe isto dera certos gritos, e o dito Senhor lhe dera com o treçado as feridas contheudas no dito Auto, porem que em estando-lhe assy dando, ella cayra antro huns cofres e o dito Senhor a levara, pelos cabellos e a tirara dantre elles e lhe tornara acabar de dar as ditas feridas contheudas no Auto, de que loguo morreo, e que asy morta a mandou o dito Senhor levar honde o dito Antonio Alcoforado já jazia morto, e que por ora nom he lembrado de mais qua protesta se lhe mais ao diante lembrar de o dizer, e ai nom disse.

Item. Perguntado o dito testemunha pelo custume disse que era Porteiro da dita Senhora e ai do eustume nom disse. Diego de Negreiros esto escrepvi.

Item. Anna Camella Dona da Casa da Duqueza nossa Senhora, testemunha jurada aos Santos Avangelhos, e perguntada devassamente pelo Auto atras escripto que era o que dello sabia, se de vista, se d'ouvida ou presunçam, a dita testemunha disse, que quando Antonio Alcoforado servia a Senhora Duqueza sendo hordenado pera andar com o Senhor Dom Theodosio ella testemunha vio que este anno passado elle era tão sobejo e descortez que ella testemunha lhe tinha por isso avorrecimento, e que foy era tanto crescimento seu despejo que via fallar a Senhora Duquesa muytas vezes com elle e fallavam de puridade e as vezes presente todos, asy em casa como quando saya fora pelas varandas e Reguenguo, e que a ella testemunha parecera aquilo muyto mal nam sospeitando em al, soomente em se desautorizar huua tam grande Senhora, como ella era, a falar e zombar tantas vezes com hum moço que se punha loguo a falar com elle muitas vezes huma ora e meya ora ás vezes passo e ás vezes rijo perante todas as mulheres da cassa, e que depois de o Duque nosso Senhor vir esta derradeira vez de Lisboa, hordenara de tirar o dito Antonio Alcoforado do serviço da Senhora Duquesa por ser já grande, e que antes de o Sua Senhoria tirar huns dias poucos, nam se lembra ella testemunha quantos, a Senhora Duquesa se pos a fallar com o dito Antonio Alcoforado huu boõ pedaço em cousas de risso, e ás vezes passo e ás vezes rijo, estando o dito Antonio Alcoforado de giolhos ante ella, e que a dita Senhora prezente todas tirou huua tizoura de hum estojo que trazia e cortou ao dito Antonio Alcoforado huua guedelha de cabellos e depois de lha ter tirada começara de se rir contra elle e de zombar delle e da guedelha que lhe tirara dizendo-lhe sey que avees grande manencoria de vos cortarem os cabellos, estando assy com elle motejando como dito he e que da hy a poucos dias tirara o dito Senhor o dito Antonio Alcoforado pera o servir e depois de ser tirado do serviço da dita Senhora, sobreveyo huu dia que a dita Senhora entrou na cansa donde as mulheres ouvem Missa e que estava ella testemunha hy com as outras mulheres e que tanto que a dita Senhora entrou se sayram todas as outras pera fora como era de custume que nam aviam de estar honde ella jestevesse senam Donzellas ou Donas, e que ficou ella testemunha soo com a dita Senhora, a qual se asentou sobre huma arca e fizera hum cordam de cabellos com seda, e que por lhe nom parecer bem, o tornara a fazer o cordam dos ditos cabellos com fio d'ouro ou de prata e que o mostrou entam a ella testemunha dizendo-lhe conheces isto, e que ella testemunha disera sã cabellos, e que a dita Senhora disera bem conheces e que a ella testemunha lembrou a guedelha dos cabellos que ella tirara ao dito Antonio Alcoforado, e ficara morta e sospeitara entam que se queriam bem hum ao outro, e tevera des entam a mal todo o passado que lhe vira passar ao dito Antonio Alcoforado com a dita Senhora e que daly por diante se começarão a cartear a dita Senhora com o dito Antonio Alcoforado e que o primeyro que escrepveo foy elle, e que lhe deu a carta a ella testemunha áquella porta, presente todos, dizendo que era de sua irmaa Dona Maria que pedia a ella testemunha que a dese á Senhora Duquesa e lhe disese se quisese escrepver que estava aqui hum homem d'Arrayolos, que ho faria esperar, e que ella testemunha dera a dita carta á dita Senhora e ella lhe tornara a mandar outra dizendo que lhe disesem que a mandase a sua Irmaa, e que ella testemunha lha dera ao dito Antonio Alcoforado. e que dahy por diante se escrepveram muytas vezes, dizendo que ora eram as cartas da Irmaa, ora da May, e passara asy huns boõs dias ate que o dito Senhor aguora adoeceo desta doença em que jouve em cama, e que entam acabou ella testemunha de conhecer que eram as cartas dantre ambos de mao titulo, porque a Senhora Duqueza lhe avia dito a ella testemunha que desse as ditas cartas ao dito Antonio Alcoforado ou a Roseymo Moço da Camara que lhas levasse desimuladamente que o nom entendese ninguem, e que ás vezes quando a dita Senhora estava cá nesta casa de baixo que ella mesmo per sy dava as ditas cartas ao dito Roseymo para as levar ao dito Antonio Alcoforado e lhas tomava quando lhas trazia, e que estas cartas que o dito Roseynio levava, eram tanto amende que ella testemunha veo em conhecimento que era de maa parte como foy e se pejava ella testemunha ja muito de levar nem trazer as ditas cartas e o disse á dita Senhora por vezes, dizendo-lhe como lhe aquillo parecia mal, que ouvesse medo do Duque que ho nom conhecia, que ás vezes o pouco para elle era muyto, e que ella dita Senhora lhe respondera que nom ouvesse medo que nam era nada nem era o que ella testemunha cuidava, e que estando asy o dito Senhor doente da doença que ella testemunha acima diz o dito Roseymo trouxera huma carta e a dera á dita Senhora por sy e que ella dita Senhora chamou a ella testemunha e lhe dise por palavra que disese ao dito Roseymo que disesse a Antonio Alcoforado que aquillo que elle escrepvia que o fezesse se quisesse porem que vise bem o que fazia que bem sabia quanto lhe relevava, que mais o avia por elle que por ella, e que se o fizesse que fosse bem feyto que ela o leyxava sobre suas costas, e que com todo se ouvese de fazer, que fosse ás doze oras da noute ou á huma ora depois da mea noute que quanto mais tarde tanto melhor, e que aquelle serão ella testemunha nam soubera outra cousa soomete se recolhera pera sua pousada, porque ella testemunha nom dormya na camara, nem na guarda roupa, e que loguo ao outro dia pella manhaa ella testemunha ouvira queyxar Briatris Eannes que se queixava que se deytara muito tarde porque a Senhora Duquesa fizera huua oraçam muyto grande á janella da sua camara, e que nom acabara senam ás tres oras depois da mea noute, e que quando ella testemunha isto ouvira afirmara em sy que o dito Antonio Alcoforado entrara com ella dita Senhora e que loguo no mesmo dia pareceu ser que o dito Antonio Alcoforado tornou a mandar requerera dita Senhora peia ver loguo de tornar a entrar essoutra noute seguinte com ella porque a dita Senhora chamou a ella testemunha e lhe disse que lhe roguava que mandas e chamar Antonio Alcoforado aly á porta è lhe disese que a ella dita Senhora parecia que era impossivel poder ser porque ella estava ainda tam amedorentada do passado que nam estava em sy, e que estava ainda tremendo, e que aquelle dia nom podera jamtar, nem cear de medo, e que lhe fazia a saber que tinha a perna que elle sabia, segundo lhe a ella testemunha parece, que ella disse, muyto rascada e que lhe doya muyto, e que com todo que fezesse o que quizesse, que o leyxava nelle, e que se o fezesse que atentase muyto bem o que fazia, e que se ouvesse de ser que fosse áquellas proprias oras que fora a outra noute passada, e que ao outro dia pella manhaã lhe pareceo certo entrar elle Antonio Alcoforado com a dita Senhora, segundo as palavras lhe mandou que lhe dicesse as quaes palavras foram que lhe disese ella testemunha ao dito Antonio Alcoforado que elle estaria muyto contente e ella descontente, e que elle estaria muyto ledo e ella estava muyto triste, porque elle comprira e ella morrera, e que asy lhe dera a dita Senhora huma manilha sua d'ouro que que lhe ella testemunha mostrase ao dito Antonio Alcoforado, a qual ya toda torsyda, e que lhe disese que olhase aquella manilha que tal hya e que ella a nom avia de mandar concertar senom quando vise o seu dia, a qual manilha ella testemunha diz que lhe tornou a dita Senhora, e que ella testemunha entam acabou de entender todo o mal e o nom pode mais soffrer porque lhe parecia a ella testemunha que fazia muyto mayor trayção em o calar e leyxar preseverar que em o dizer a quem vise o que se nisso devia de fazer, e que pera isso lhe fira necessario conselho e que entam ella testemunha fallara com Francisca da Silva que he huma pessoa preta muyto virtuosa e que tem carregue dos coeyros dos filhos do dito Senhor, e que lhe mostrara ella testemunha esas cartas que lhe a dita Senhora tinha dadas a ella testemunha a guardar, e que ella Francisca da Silva as lera, que seriam sete ou oyto cartas afora outras que ella testemunha lhe via romper e queymar, e que entam acordaram ambas de o dizerem a Fernam Velho Veder da dita Senhora e que ambas lho diseram ao dito Vedor, dizendo-lhe ella testemunha que tamanho mal como aquelle ella o nom podia sofrer, que lho dizia pera que vise o que nisso devia de fazer e que depois de ter asy dito ao dito Fernam Velho lhe parece a ella testemunha que o dito Antonio Alcoforado entrara outra noute com a dita Senhora, segundo as outras noytes e pella mesma maneyra porque lhe vio mandar carta pello mesmo Roseymo e asy ella dita testemunha lhe tornou por elle mesmo a mandar a resposta, e que este Dominguo que foy ante ontem, a dita Senhora de dia rõpera todas as cartas que estavam na dita bueta e lhe leyxara os sinaes, e os emburolhou todos em hum papel e os tornara a meter na dita bueta, e que no mesmo dia o dito Alcoforado tornara a escrepver huua carta á dita Senhora e a dera ao dito Roseymo que a dese a ella testemunha que lha desse, e ella testemunha a tomara e a mostrara ao Vedor Fernam Velho o qual depois de aver asy çarrada lha tornara a dar a ella testemunha e ella a deu á dita Senhora, e que depois de a dita Senhora ter lido a dera a ella testemunha que lha guardase, e ella testemunha a fora mostrar ao dito Vedor, e que elle a leo e lha tornou a dar, e que desta carta a dita Senhora nom deu a ella testemunha resposta nenhuua por palavra nem por escripto, soomente a dera ao dito Roseymo tanto que acabara de cear, como viram quantos estavam na dita casa, e que loguo ao outro dia segunda feira á noute trouxera o dito Roseymo outra carta á dita Senhora e lha deu, e que tanto que a leo a dita Senhora a queymou em huma vella, e que naquella mesma noute depois de cea tornara a dita Senhora escrepver a resposta da carta que avia queymado e ha deu por sua mão ao dito Roseymo, dizendo alto que o ouvi sem todos que disese a Bastiam Lopes Capellam que lhe disese humas tres Missas, e que loguo na mesma noute á huma ora depois da mea noute pouco mais ou menos, jasendo ella testemunha em sua pouzada na cama ouvio bater rijo ao Duque nestas portas debaixo e que lhe veo abrir Briatris Eannes, e que ho dito Senhor Bobio acima, e que sobira loguo á Camara honde a dita Senhora dormia bonde achara o dito Antonio Alcoforado segundo lhe loguo diseram, e ella testemunha vio depois que se levantou que a Senhora Duquesa tanto que ouvio o Duque em bayxo loguo foy fugindo pera camara bonde dormiam seus filhos honde a o dito Senhor foy achar vestida e toucada como ella soya d'andar e que dy a trouxe á guarda roupa honde mandou estar a ella testemunha e a Briatris Eannes e a Joam Gomes com a dita Senhora té que mandou vir hum confessor, e disse que as Amaas dos Senhores lhe disserão que quando a dita Senhora fora fugindo pera Camara dos ditos Senhores quando lhe abriram dissera ella que entam avia de ser morta, e que as Amaas lhe perguntaram, porque, e que ella respondera vy hum homem na minha camara e venho fujindo, e que naquilo cheguara loguo o dito Senhor, como já dito tem, e dera sobre ella e a tirara pera guarda roupa e que ho dito Senhor tinha mandado confessar Antonio Alcoforado e tanto que ho acabaram de confessar o dito Senhor mandara hir a ella testemunha, e Anna Ferreira e a Briatris Eannes pera a Camara da dita Senhora honde o dito Antonio Alcoforado estava, e que asy mandou hy vir huu escravo com hum manchil e mandou que deguolase o dito Antonio Alcoforado, o qual o asy foz o deguolou o dito Antonio Alcoforado que loguo morreo, o que em quanto se esto fez se acabava de confesar a dita Senhora e o Duque sayra, e com hum traçado lhe dei a certas feridas de que ha loguo matou e ella testemunha os vio ambos mortos junto hum com o outro, o dise a dita testemunha que por aguora nom he lembranda de mais, o que protesta se lhe mais lembrar, de o dizer depois, e al nom disse.

E perguntada a dita testemunha pelo custume dise que ella he criada da dita Senhora Duquesa e tinha aborrecimento ao dito Antonio Alcoforado polo que fazia e al nom disse. Dieguo de Negreiros, esto escrepvy.

E depois desto tres dias do mes de Novembro de mil quinhentos e doze annos em Villa Viçoza nos Paços do Reguenguo do Duque nosso Senhor na sala que foy da Senhora Duquesa que Deos aja, o Ouvidor Gaspar Lopes e o dito Juiz e Tabelliaens, e comiguo Escripvam perguntarom as testemunhas, seguintes:

Item. Roseymo Moço da Camara do dito Senhor que servia em Casa da dita Senhora Duquesa, testemunha jurada aos Santos Evangelhos e perguntado devasamente pellas cousas contheudas no Auto atras escripto que era o que delo sabia de vista, d'ouvida, de presumçam ou d'outra qualquer maneyra que seja, o dito testemunho dise que averá ora hum mes, pouco mais ou menos, que a Senhora Duquesa se começou a cartear com Antonio Alcoforado, as quaes cartas elle testemunha levava, e que lhe parece que as cartas seram ate dez ou doze, poucas mais ou menos, e que de todas ellas lhe tornava elle testemunha a reposta, e que ás vezes lhas levava a casa e outras vezes lhas dava aquy no Paço, e que muytas delias levavam alfinetes por chancellas e que algumas vozes as respostas que elle testemunha trazia, se achava a Senhora Duqueza aquy em bacho lhas dava, e se a nom achava as dava Anna Camella que lhas dese e levase qualquer recado que elle lhe dava; perguntado o dito testemunha que recados eram, dise que algumas vezes lhe dizia a Senhora Duqueza que disese ao dito Antonio Alcoforado que disese áquella mulher que lhe mandase dizer como estava o menino, e que ho dito Antonio Alcoforado lhe tornava a mandar dizer que dezia a mulher que beijava as mãos de Sua Senhoria e que o menino nunca mais perdera door de barrigua e que a sua maa desposição ya em crescimento, e que outra vez lhe dise a dita Senhora que disese a Antonio Alcoforado que disese áquella mulher que pera que queria o que nom pode ser, e que outra vez lhe dezia que lhe disese que olhase o que fazia que bem sabia o que relevava, e que outras vezes lhe disera ho Antonio Alcoforado que beijaria, as mãos de Sua Senhoria mandar-lhe dizer de sy ou de nam, e que a dita Senhora por sy lhe mandara em resposta alem de huma carta que lhe escrepvera que lhe disese que nam, e que alguns recados e cartas lhe dava a dita Senhora per sy e outros lhe dava Anna Camella, e que algumas vezes lhe dezia a dita Senhora sorrindose contra elle testemunha que nam abrise elle as cartas que lhe ella dava e que lhe dezia que nam, e que outra vez mandou Anna Camella a elle testemunha que chamase o dito Antonio Alcoforado que cheguase á porta da sala da Senhora Duqueza pera lhe dar um recado da dita Senhora pera sua May, e que quer estevesse a porta aberta, quer çarrada que ella lhe daria o recado.

E mais dise elle testemunha que Anna Camella lhe dou neste tempo huu ou dois recados que deziam que disese a Antonio Alcoforado que dezia a Senhora Duqueza que sy que viese, se quisese, e que fizese o que quizese que tanto lhe dava, e que hum dia lhe dise a dita Senhora a elle testemunha que se o Duque seu Senhor lhe visse a elle dar hum escripto daqueles que lhe diria, e que elle testemunha dise que deria que era pera Izabel Sacola, e que per duas ou tres ou quatro vezes lhe dise o dito Antonio Alcoforado que disese á dita Senhora dando-lhe cartas pera ella que deria áquella pessoa que beijaria as maãos de Sua Senhoria vir loguo áquillo e mandar-lhe loguo a resposta, e mais dise que a Senhora Duqueza ou Anna Camella nom se alembra qual dellas, porem que o recado era da dita Senhora que disese elle testemunha a Antonio Alcoforado que lhe mandava ella dizer que elle estava muyto contente e ella muyto descontente, e que elle estava ledo e ella muyto triste, porque elle acabara e fizera o que quizera que pera que queria mais, e que Antonio Alcoforado disse e perguntou hum dia a elle testemunha se a Senhora Duquesa andava triste, se leda, e que elle testemunha lhe dissera que leda andava, e que elle testemunha dissera isto á dita Senhora da pergunta que lhe o dito Antonio Alcoforado fizera e que ella lhe perguntou a elle testemunha que lhe dissera e que elle testemunha lhe disera como Sua Senhoria andava leda, e que ella disera que pera que lhe diria elle aquillo, que melhor fora diser-lhe que andava muyto triste, e por ora disse o dito testemunha que nom he lembrado de mais, que protesta se lhe mais lembrar de o tornar a dizer e ai nom disse nem se lembra por ora de mais, e disse mais o dito testemunha que hum dia dise a Senhora Duquesa a elle testemunha que fosse dizer a Antonio Alcoforado que lhe mandase dizer se avya sua May de vir cá que se ella caa que andase elle pastando pelo holival pera que sua May vise, porque folguaria muyto de o ver, e que depois em outro dia lhe tornou ha mandar dizer a dita Senhora por elle testemunha que porque nom viera elle ao holival que sua May desejava muyto de o ver e que elle nunca aly quizera vir, e que elle lhe tornou a mandar dizer que elle viera e andara por hy muito e que nunca sua May cheguara á janella nem a podera ver, e mais dise o dito testemunha que lhe parece que a primeira carta que se mandou foy da Senhora Duqueza pera o dito Antonio Alcoforado pera que a dese áquella mulher que elle sabia e al nom disse. E mais disse o dito testemunha que muytas infindas pezes e que dia se fazia que eram duas e tres vezes a dita Anna Camella mandava por elle testemunha chamar o dito Antonio Alcoforado pera lhe dar recados da Senhora Duquesa, e al num disse.

Item. Perguntado o dito testemunha de custume dise que he Moço da Camara do dito Senhor e servia a dita Senhora, e al nom dise.

Item. Pero Fernandes Ortellam do Reguenguo testemunha jurada aos Santos Evangelhos, e perguntado pelo contheudo no Auto atras eseripto, que era o que dello sabia de vista, d'ouvida, prezumçam ou d'outra qualquer maneyra, dise o dito testemunha que esta sesta feyra passada fez oito dias que Vasques Guarda Roupa do dito Senhor foy ter de noute á porta da poisada delle testemunha e o chamou e elle testemunha se levantou e elle lhe dise que o Duque nosso Senhor lhe mandara que elle lhe viesse dar conta de como emquanto a Senhora Duqueza hya ás matinas lhe abriam a janella do sua camara e nom se sabia quem era que convinha elles ambos averem de vigiar de noute te que o soubessem e o visem, e que isto se avia de fazer como Pero Vasques entam disese, e que elle testemunha e o dito Pero Vasques dahy por diente começaram de vigiar cada noute, o espreitar quem tal fazia, e que ao Dominguo seguinte ás duas ou tres mas depois da moa noute, estando elle o dito Pero Vasques debayxo de huns loureiros sentiram abrir a janella da camara, donde dormia a dita Senhora Duqueza duas ou tres vezes, que viram huma molher que cheguou a dita janella, e que disera que aquella era a ora ou a propria ora, e que entam nom viram mais o nam leyxaram de vigiar ate esta segunda feira de noute que foy o primeiro dia de Novembro ás duas ou tres oras depois da mea noute, estando elle testemunha o o dito Pero Vasques debaixo dps ditos loureyros, que estavam defronte da camara da dita Senhora, ouviram abrir a janella da camará da dita Senhora tres vezes muyto passo, e que luogo veo ter á janella hua molher que elles nam conheceram, e luogo viram embaixo ao pee da janella hum homem o qual se lançou rijo, e correndo de longuo das varandas, e de la tornou e começou pelo cham dapanhar como que eram pedras e poer sobre a parede nova que se fazia junto da dita camara pera se sobir nellas, e sobir ha janella, e que daly tornara aballar e fora teer honde elle testemunha e Pero Vasques estavã e colhera de sobre elles hum ramo de loureyro sem os ver, e tornara outra vez a hir-se á parede e apanhou outra vez nom viram elles entam o que era, soomente depois que elle testemunha vio que eram cestos, com que serviam nas obras, e se pôs sobre elles, e esteve hum pouco falando com huma molher que elles nom conheceram, e que ella lhe lançou o que quer que foy, e o alçou arriba á janella, o qual homem elle testemunha e o dito Pero Vasques viram entrar por a dita janella e que depois de elle estar já dentro, lhe dise o dito Pero Vasques que ja era tempo que fosse chamar o Duque e elle testemunha o fizera asy, e o dito Senhor lhe mandara que se tornase luguo e guardasem muyto bem a janella que ninguem nom sayse por ella e que elle testemunha fora pera o dito Pero Vasques e o achara ja ao pee da janella, e que lhe disera o que ho Duque mandava e elle Pero Vasques se fora sobir sobre a parede por honde ho homem sobira com huma chusa, e elle testemunha ficara em bayxo ao pee da janella, e que o dito Pero Vasques em cima foy sentido e a molher sayo á janella, e perguntou quem está hy pera que sam hy essas armas, e que Pero Vasques disse aguora o vereis, esse homem que lá tendes nom o deyteis fora, nem vós, nem elle nom sayaes por aquy, esperay hy o Duque que vay la por dentro, e que a dita molher desapareceo luguo daly e nunca mais hy tornou nem fallou, soomente fallou huu homem, e disse, porque ho Pero Vasques perguntava quem era o homem que lá estava dentro na camara e elle respondeo e dise sam eu e o dito Pero Vasques dise quem sooes vós e elle respondeo Antonio Alcoforado, e que o Pero Vasques disse ó que em maa ora cá viestes, e elle disera que lhe pedia que o leyxase sair e o Pero Vasques disera que nom avya hy remedio, que ho Duque lhe mandara guardar aquella janella, e que era já lá em cima, que o esperasse, e que entam o dito Antonio Alcoforado lhe lançara abaixo huua espada, a qual nom sabe elle testemunha quem a tomou, e que loguo o Duque foy em cima na dita Camara e da janella mandou ao dito Pero Vasques, e a elle testemunha, e outros que ja hy estavam que todos ge fossem pera a guarda roupa e ninguem nom bolise comsiguo, e que asy o fizeram, e que depois ouvio dizer como o dito Senhor mandara matar o dito Antonio Alcoforado e matara a dita Senhora, e ai nom dise, e protestou se lhe algua cousa mais lembrase, de o dizer.

Item. Perguntado o dito testemunha pello custume e cousas que lhe pertencem, disse o dito testemunha que he Ortelam deste Reguenguo e ai nom disse. -- Diego de Negreiros que esto escrepvi.

Item. Francisca da Silva, molher que tem carguo dos coeyros dos Senhores filhos do Duque nosso Senhor, testemunha jurada aos Santos Evangelhos e perguntada devassamente pellas cousas contheudas no Auto atraz escripto, que era o que dello sabia de vista, d'ouvida ou presumçam ou d'outra qualquer maneyra, disse a dita testemunha que podera ora aver hum mes pouco mais ou menos que ella testemunha vio a Anna Camella muyto triste e choroza e lhe perguntou que era aquillo e de que andava asy triste que lho disese porque ella bem o sabia, e que esto lhe disera ella testemunha porque lho a dita Anna Camella disese, porque lhe pareceo que era por algum mao recado, nom sospeitando tamanho mal nem em tal pessoa, e a dita Anna Camella lhe dissera como hera hum grande mal e huu muyto mao recado, que ella Anna Camella entendia que Antonio Alcoforado entrara aquella noute com a Senhora Duqueza, segundo hum recado que lhe dera a dita Senhora, porque ella lhe dera cartas della ao dito Antonio Alcoforado e dera outras delle aa dita Senhora. mais que porque nam sabia ella Anna Camella ler, nom sabia o que nas cartas vinha, perguntada a dita testemunha se lhe disse a dita Anna Camella o recado que lhe a dita Senhora dera, e ella disse que sy que Antonio Alcoforado lhe mandara recado a ella Anna Camella per Roseymo, Moço da Camara, pera que ella perguntasse á Duqueza se veria aquella noute, e que a dita Senhora lhe disera que disese ao dito Roseymo que fosse dizer a Antonio Alcoforado que nam, que tinha ainda tamanho medo do passado, que estava ainda tremendo, porem que se nisso profiase que viesse, e que visse bem o que fazia, que todo leyxava sobre elle.

Pedindo a dita Anna Camella a ella testemunha conselho do que faria, e que ella testemunha dissera que pera sua condenem era necessario ver alguma cousa em que se afirmasse, e que ella lhe mostrara hua carta do dito Antonio Alcoforado pera dita Senhora, e que ella testemunha a quizera ler e que em ho começo della dezia Senhora de minha vida, e que vendo ella testemunha aquillo nom tevera coraçom pera mais ler e a tornara á dita Anna Camella, e lhe disera que pera aquilo avia mester conselho, e que entam ella se apartara da dita Anna Camella e cuidara em sy o remedio de tamanho mal, como aquelle, e que lhe pareceo que ella nem outra molher nom poderia poer nisso remedio, e que lhe pareceo bem de o dizer ao Vedor Fernam Velho pera que o remediasse, e que ainda ella, testemunha dise em sua conciencia que seria bõo dizer-lhe aquilo pera que mandase matar o dito Antonio Alcoforado e o Roseymo, ou o disese ao Duque, e que entam ella dita testemunha disera ha dita Anna Camella que aquillo era necessario dizer-se a pessoa que nisse podesse poer alguu remedio e que seria bõo de se dizer ao Vedor, e que avia mester de lhe mostrar algumas cartas, em que se elle afirmase, que se as tinha e que disse que sy, e lhe mostrara em huma boeta seis ou sete cartas do dito Antonio Alcoforado pera a dita Senhora, as quaees ella testemunha tomara e lhe lera os começos por nom ter coraçom pera mais ler, e que todas começavam como a primeyra, dizendo: Senhora de minha vida, e que asy lhe mostrava a dita Anna Camella huma carta da dita Senhora pera o dito Antonio Alcoforado e que ella testemunha a nom quis ver, e que nisto chamaram ambas o veedor e lho diseram, e que o Veedor ficara morto e depois tornara em sy e disera eu me ey de perder por este moço que ho hey de matar, e entam se fora, e que porem a que quaesquer cartas que mais passassem que lhas mostrassem e que dahy por diente ella testemunha perguntava aa dita Anna Camella se avia hy alguua carta e que se avia que a mostrasem ao Veedor e senam nam, e que ho Veedor disse que pois que vira cartas delle que as queria ver della, e que ouveram huua carta da dita Senhora e que ho Veedor a tomara e a quizera ler e que em começando nom podera ter sofrimento de a ler e a tornara a dar dizendo que nom era letra, da Duqueza, e que perguntou mais o dito Veedor a Anna Camella se poderia aver outra carta escripta daquella letra porque aquella letra num era da Senhora Duqueza e que a dita Anna Camella disera que sy era porque a dita Senhora a escrevera e que ella testemunha disera emtam que seria mais que mudaria a letra, que ella não se avia de liar em tal caso de ninguem e que entam se apartarom e que despois desto, passado outro dia Fernam Velho disse a dia testemunha que queria tornar a ver as ditas cartas, as quaes lhe foram mostradas pella dita Anna Camella e elle Vedor as vio o as tornou a dar aa dita Anna Camella, e que despois disse o Vedor a ella testemunha que naquellas cartas nom hia huua carta que elle vira da primeyra vez, que lhe parecia da letra da Senhora Duqueza que era huua carta que tinha huua rompedura, que perguntasse por ella á dita Anna Camella, e que ella testemunha perguntara pella dita carta á dita Anna Camella e ella lhe disera que todas aquellas eram as que o dito Vedor tinha visto da primeyra, e ella testemunha lho dise que lhas tornasse a dar asy como estavam pera as tornar a mostrar ao Vedor e que a dita Anna Camella disse que depois de as o Vedor ter vistas, a Senhora Duqueza lhe pedira a bueta e queymara ou rompera todas as cartas que nom leyxara senom hus pedacinhos emborilhados em huu papel, e que ella testemunha lhe disse que lhe desse aquelle papel e que o mostraria ao Vedor, e que a dita Anna Camella lhe dera o dito papel emborilhado, nom sabe nem vio o que hya dentro, e que tendo-ho asy em seu poder ella testemunha o guardou peia o aver ao outro dia de mostrar ao redor, e que jazendo ella testemunha já em sua cama, que era a noute trespasada em que foy morta a dita Senhora aly á mea noute segundo a ella testemunha parece, Anna Camella foy bater á porta da pousada dos Senhores, honde ella testemunha dorme, e ella testemunha lhe perguntou que queria e ella disse que hya buscar humas chaves, e que depois que entrou, disse nom venho buscar chaves mais venho que me dçes o papel que vos dey que me pedio aguora a Senhora Duquesa a bueta, e que ella testemunha entam tomara o papel e lho dera e se tornara a deitar em sua cama, e que a Senhora Duqueza a estas oras estava na guarda roupa que he servidam da pouzada dos ditos Senhores, e que parece que depois de a Senhora Duqueza ver a bueta se foy pera a sua camara e fecharam a porta da guarda roupa, e que Anna Camella se tornou pera honde ella testemunha jazia chorando muyto triste e contou a ella testemunha que a Senhora Duqueza estevera vendo a bueta e papeis della e entam que a mandara levar á sua camara, e que lhe parecia que o dito moço Antonio Alcoforado avia de entrar aquella noute com a Senhora Duqueza porque ella mandara já abrir a janella da camara, e que estevera ahy a dita Anna Camella hum pedaço com ella testemunha e se fora e ella se tornara a deytar e fechara a sua porta cõ hua pedra, e que daly a a quarto de mea ora a Senhora Duquesa abrio rijo a porta da guarda roupa e foy bater á porta da camara dos Senhores e dizia rijo abrime lá abrime lá, e que ella testemunha se nom pode tam azinha alevantar que ella já nom tinha a porta aberta e entrou e se foy asentar vestida e toucada como andava de dia sem chapiis sobre a cama de sua filha, e que disse sam morta, e que ella testemunha e a Ama da senhora sua filha lhe diseram que he isso Senhora como socos asy morta, e que ella respondeo esta noute me ham de cortar a cabeça, que acharam hum homem na minha camara, rezay todas por mim que esta noute me ham de cortar a caberá, o que nisto viera o Duque rijo pellas casas e entrara dentro homde a dita Senhora estava perguntando quem entrou aquy, o que a Senhora Duquesa disse nam entrou nimguem eu estou aquy, e o Duque lhe perguntou que fazês vós aqui Senhora taes oras vestida, e que ella disse estou aqui com minha filha, e que ho Duque passou por ella e começou de buscar debaixo da cama se estava hy outrem e quando nom vio mais se tornou a sayr rijo e leyxou á porta Joam Gomes Porteyro, que nam leyxasso sayr ninguem e foy buscar outras casas, e entam tornou o chamou a dita Senhora pera a guarda roupa e mandou vir um Confessor e mandou confessar a dita Senhora, e ella testemunha ouvio gritar a dita Senhora e lhe ouvio dar os guolpes das feridas de que morreo, e que sabe que tambem foy morto o dito Antonio Alcoforado e que mais lhe lembra que depois de Anna Camella lho ter dado conta do que passava lho disse hum dia vistes tam grande desaventura, vistos que hum cordam de cabellos que traz a Senhora Duqueza fello de huua guedelha que cortou ao moço e que quando o moço servia aquy a Senhora elle era tam demaziado em fallar solto e sem pejo e pouco acatamento aa dita Senhora que a ella testemunha parecia mal haver-se huua tamanha senhora de desautorizar a fallar daquella maneyra com hum moço, e que tambem a Ama da Senhora Dona Izabel lho estranhou e o dissera a ella testemunha que lhe parecia mal desauthorizarse a dita Senhora tanto a fallar com huu moço daquella maneyra, porem que nom presumiam nada do que passou nem nos vinha por memoria, soomente ho aviam por desautorisamento, e ai nom disse, protestou a dita testemunha que se alguma cousa mais lembrar, de o tornar a dizer.

Item. Perguntada a dita testemunha pello custume, disse que vivia com a dita Senhora e tinha e tem parguo dos coeyros de seus filhos, como dito tem e ai nom disse. Dieguo de Negreiros esto escrepvi.

Item. Fernam Rodrigues Camareiro do Duque nosso

Senhor testemunha jurado aos Santos Evangelhos, e perguntado devassamente pello casso atras escripto, que era o que dello sabia de vista, d'ouvida, ou presumçam ou per outra qualquer maneyra, disse o dito testemunha o que se segue, e porque o dito testemunha num podia fallar com paixam, disse que lhe desem tinta e papel e que ho escrepveria e escrepveo o que se segue:

Digno eu Fernam Rodrigues que huu dia de sesta feira vinte dous dias de Outubro desta Era presente jaa de noute me chamou o Duque e me disse, que eu nom me espantasse nem me torvase do que me queria dizer, porque posto que fosse cousa desacostumada, era do Mundo e que sempre dava o que tinha, e que seus pecados dariam causa ser asy, que eu ouvesse por certo que sua molher nom era aquella que devia nem a que elle cuidava, e lhe era maa mulher, e se lançava com Antonio Alcoforado, e que daquella doença que entam tevera, elle entrara na sua camara tres vezes com ella; a saber, a primeira vez num acabara de comprir seu propozito, e as outras duas vezes sy segundo crya e avia por certo, eu lhe perguntey como ho sabia, e diseme que Fernam Velho o apartara aquella tarde e lhe disera mostrando-lhe loguo duas cartas d'amores, huma della e outra delle, que parecia o casso andar já de todo ávante, e o dito Antonio ter entrado com ella as ditas nontes. Perguntey-lhe como o sabia o dito Fernam Velho, e dise-me que Francisca da Silva lho descobrira e lhe disera que Anna Camella lho disera, e elle fosse falar com a dita Anna Camella e lhe daria disso mais largua e certa informaçam, e que o dito Fernam Velho fallara com a dita Anna Camella disimuladamente, dizendo que lhe disese a verdade de todo o que sabia o que veria se podia isto remedear de maneyra que nom fosse ás orelhas do Duque dizendo que tomaria de noute o dito Antonio Alcoforado, e o espantaria ou mataria de manevra que lhe fizesse leyxar aquelle propozito, e a Duquesa ficase asy sospença, e a dita Camella lhe dera entam as ditas cartas, isto se passou aquella noute assy, ao outro dia seguinte veo o dito Fernam Velho com outras duas cartas ao Duque, que lhe dera a dita Anna Camella pera o Fernam Velho se informar melhor do feyto, nam cuydando que elle dava disto parte ao Duque, soomente pedia as cartas a ella pera melhor ser informado, porque soubesse como avia de destalhar o casso, e o dito Fernam Velho veo mostrar as cartas ao Duque, e elle e eu as lemos e eram cartas de mea folha de papel e algumas escriptas da outra mea parte, e eram de amores, e graves, e falavam em concerto de entradas, e de entradas que já foram, porque a huua dizia que estando com ella lhe rotara o estamaguo destemperado e que crya que estaria mal delle, asy como ele estava do seu, pedindo-lhe por merece que se lembrasse de sua payxam e que avia saudade daquelas tres oras; a outra antro as outras cousas falava que elle avia sempre de ser seu servidor leal e avia de manter ho juramento que lhe dera, todavia pedia entrada com ella, e os sobreescriptos diziam = a Senhora Duqueza minha Senhora, e os sobescriptos diziam = o vosso leal menino; e asinadas do seu proprio sinal Antonio Alcoforado com certos riscos no cabo do sinal; e porque a Duqueza via muytas vezes estas cartas que estavam em hua bueta da dita Anna Camella, pedia que loguo apresa como as visse o dito Fernam Velho lhas tornase antes que a Duqueza lhe pedise a bueta; ho outro dia ou loguo ao outro veo o dito Fernão Velho com outras duas cartas, huma da Duquesa e outra elo dito Alcoforado, a da Duqueza desia que desinralase e mostrava como que lhe fora dito que elle tinha mao recado em seus segredos, e como descontente disso, e carta refraldada de molher que trazia descontentamento de nom calar. E a delle era de juramentos que as suas cousas guardava e mantinha inteiramente como de servidor que sempre avia de ser leal e fiel ate morrer, chamando-a e nomeando-a por minha Senhora e minha vida, duas e tres vezes em cada carta, todas asinadas por sua mão com a dita subscripçam do vosso leal menino; outro dia veo outra carta por o dito Fernam Velho, que o dito Alcoforado escrepveo aa dita Senhora, dizendo que o mãdara vir aquella noute e que elle viera, e que nom abriram a janella e que entam se lançara em huma escada que hy está com a capa a cabeceyra e que nom acordara senom despois das tres oras dadas depos da mea noute, e isto passaria desta maneyra, a Duquesa mandaria chamar o Alcoforado por huu escripto, que viese aquella noute, segundo sova fazer, e despois d'estar isto asy, o Duque depois de despido, dezejou de hir aquella noute jazer com ella e fello asy, e ella quando isto vio diz que fez hum escripto, segundo mo Duque disse que diz que ho vio e leo, o qual era de tres ou quatro regras, e diz que desia mim vinhaes, porque está todo pejado, o qual escripto lhe nom foy dado, por ser já muito tarde, e na carta em que dezia ao dito Alcoforado que desimulase, dezia elle na reposta que me lembrou a este ponto, que como desimularia a tardança da falla, lembrando-lhe o prazer em que se vira com ella, e outras cartas vy que trouve o dito Fernam Velho que lhe dava a dita Anna Camella, o qual dava tanta pressa de lhas tornar porque se nom achassem menos, se a Duqueza pedise a dita bueta, como muytas vezes fazia, que se nom pode fazer verdadeyra rolaeom dos pontos dellas, asy pella brevidade, por eu ser velho e ter ja muyta parte da memoria perdida, somente me afirmo que assy as da Duquesa como as do Alcoforado eram cartas de muytos amores, e fallavam em se ajuntarem ambos, e asy no que ante elles era já passado, de que elle dezia que gostara muyto e que com aquele contentamento refazia sua payxam, e as cartas que eu vi e ly seriam cinquo ou seis delle e delia seriã duas, e como o Duque asy foy sabedor per o dito Fernam Velho e pellas primeyras duas cartas, e de como o dito Alcoforado já tinha entrado em sua camara, mandou a Pero Vasques, seu Guarda Roupa e a Pero Fernandes seu Ortelão que cada noute se viessem a huns loureyros e murtas que estam junto com a dita janella e velasem toda a noute, e se vissem alguem entrar por a dita janella que lho viesem dizer, e eu a este tempo pella maa desposyçam do Duque dormya na camara, e asy velarom os dias passados cada noute sem fazer nenhum movimento ate segunda feyra á noute primeyro deste mez de Novembro que ás duas oras depos mea noute, pouco mais ou menos, veo o dito Ortelam chamar o Duque, dizendo que o que elle mandava velar, jazia já dentro na camara da Duqueza e entrara pella janella, e que o dito Vasques ficava ao pé da janella em guarda, e o Duque asy despido como estava me chamou, e mandou acender huua tocha, e asy despido tomou huma espada, e se foy pera laa, e bateo a huma porta primeyro da escada que vay pera dita camara, que estava fechada de dentro, e nom lha quiseram abrir, e entam pedio huma tranca e deu dous ou tres golpes na porta e já que a queria acabar de quebrar, veo huua Briatris Eannes, como que novamente ouvia, abrira a dita porta, e sobio o Duque e eu com elle, e Jorge Lourenço que levava a tocha diante, o entrando na dita camara, vi o dito Alcoforado estar a ilhargua da dita cama sobre huma alcatifa de giolhos com as maos alevantadas pedindo mesericordia, e a Duquesa sairasse por outra porta pera outra cassa hy honde dormiam eus filhos, e o Duque entrou e trouve-a fora e o Duque mandou chamar Lopo Garcia seu Capellam, e mandou confessar o dito Alcoforado, e mandou chamar hum negro que serve na dita orta, que chamâo Diogo e por elle mandou matar e dito Alcoforado, o (piai dizem os (pie liv estavom porque eu nom pude estar hy, movido de piedade, que o dito Alcoforado pedio ao Duque que lhe perdoase pello Amor de Deos a trayçam que lhe tinha feita, e entam mandou o dito Capellam que confesasse a Duquesa, o qual a confessou e entre tanto veo o tomou hum cutello que traz ao monte, e tornou o achouha ainda confessando, e avya já pedaço grande que a confesava, e mandou que a solvessem, e o Creliguo ido, disse aa dita Duqueza que pedisse perdam a Deos e que se lembrase de sua alma que avia de morrer, e isto feito tirou o dito cutello e com a mão esquerda a tomou pellos cabellos e deu-lhe nom sey quantas feridas, as quaes eu nom vy, porque deey dos ou tres degraos pella escada, que a matou; eu parecendo-me que era feyto cheguey á porta, e o Duque me disse se estava já morta e eu lhe disse que sy, e entam se deceo pera a sua pouzada, e eu com elle asy que ambos ficaram mortos, antes que o Duque de la viesse.

E protesto se me alguã cousa mais lembrar de o dizer, se me fôr perguntado.

E do custume digno que á Duqueza queria como á minha vida propria, por ser mulher do Duque e por criar meus filhos, e ter della recebido muyta merece.

E acabado o dito Fernam Rodrigues de escrepver seu testemunho, eu Escripvam lho torney a ler, e lido, elle disse perante os sobreditos Ouvidor e Juiz e Tabelliaees que asy o afirmavaa e dezia que asy passara. E eu Escripvam esto escrepvi e asinou o dito testemunha ao pee do seu testemunho, e o Ouvidor e Juiz asy Tabelliaees asinaram aquy.

E depois desto loguo no dito dia o dito Ouvidor com o dito Juiz e Tabelliães comiguo Escripvam foy a outra casa dos ditos Paços, donde estava Fernam Velho, e o perguntamos e seu dito he o seguinte:

Item. Fernam Velho Vedor que foy da Senhora Duqueza, testemunha jurada aos Santos Evangelhos e perguntado devassamente pelo Auto atras escripto que era o que dello sabia de vista, d'ouvida, de presumção ou d'outra qualquer maneyra, disse o dito testemunha, que dia das onze mil virgens disse Francisca da Silva a elle testemunha grande mal, grande mal, que mal, disse elle testemunha, e que ella respondeo, homem em casa, e que elle testemunha disse, homem, com quem, com Madanela Ferreyra, e ella disse que nam, e elle disse pois com q e que ella disse, com vossa Amaa, e elle testemunha muyto torvado disse como sabeis isso, e que ella respondeo fallay vós com Anna Camella que ella vo-lo dirá todo como passa, e que elle testemunha buscara geito pera fallar com a dita Anna Camella ate que o teve, e ella com grande choro e payxam lhe contou todo o passado, dizendo-lhe que nunca Deos quizesse que a Duqueza Dona Izabel ouvesse outros netos senam os filhos de seus filhos, pedindo a elle testemunha que pello Amor de Deus que avitase aquelle mal de maneyra que aquelle moço nom fosse mais por aquillo adiente e o Duque nom fosse sabedor, e que entam lhe metera na mara quatro ou cinco cartas poucas mais on menos, das quaes elle testemunha escolheo duas, a saber, huma da lettra da Senhora Duqueza e outra da lettra de Antonio Alcoforado pera as aver de mostrar ao Duque, nom dizendo a ella nada, e mais lhe disera que o dito Antonio Alcoforado a seu perecer tinha entrado com ella Senhora Duqueza tres vezes de noute, as quaes ella nom vira nem sabia senom quanto lhe a Senhora Duquesa dissera hum dia, se estava hy Antonio Alcoforado, e que ella o achara á porta da salla e que elle Antonio lhe disera a ella Anna Camella, Senhora peço-vos por mercee que digaes a Sua Senhoria se irey acola ou se irey honde Sua Senhoria mandou, ou huma palavra asy deste geito nom se lembra elle testemunha bem como foy, e que ella o fora dizer á dita Senhora, a qual lhe respondera, dize-lhe que nam, porque ainda estou muyto amedorentada da noute passada e estou ainda tremendo e tenho huma riscadura em huma perna, e que ella Anna Camella entendera entam que era aquillo mal e em maa parte, e o disera á Senhora Duqueza dizendo-lhe camanho mal era, e como se ella Anna Camella achava enguanada que por nom saber ler nem escrepver nom entendera até aly seus recados, e que porque a metia em tamanho mal, e que a Duqueza se atoveara muyto contra ella, dizendo-lhe que se ella vivia com ella que porque nom faria o que lhe ella mandasse, que fizesse o que lhe mandava, e que ella entam com muyta paixam levara o recado ao Antonio Alcoforado, e detriminara de lio dizer a elle testemunha, e que as cartas que elle testemunha levara, huma dezia, a saber, a da Senhora Duqueza, nam vinhaes, que está caa tudo pejado, e que a outra delle pera ella era d'amores, entre as quaes palavras que nella vinham dezia que por fazer prazer ao seu menino, ou pello deseançar ou fazer mercee ao seu menino asynha eram passadas tres oras, e que mais lhe disse entam a dita Anna Camella que a Senhora Duqueza lhe mandara dizer ao dito Antonio Alcoforado outra vez que elle staria conteente e ella descontente, e que elle estaria ledo e ella triste, porque elle cumprira ou fizera o que desejava, e que elle testemunha contara tudo aquillo ao Duque e lhe mostrara as ditas cartas, e que dahy por diente todas cartas que a dita Anna Camella podia aver todas lhas mostrava, tudo por atalhar a tamanho mal, como se fazia, e que antre outras cartas que depois mostrou ao dito Senhor as quaes lhe a dita Anna Camella dava e que em huma dellas fallava em como estando com ella, lhe rotora o estomaguo mal disposto e asy dizia outras cousas, e que elle testemunha tevera tento dahy por diante, e via que a Senhora Duqueza parceiramente dava recados a Roseymo perante todos paso, e asy lhe dezia quando acabava de comer que se nom fosse sem seu recado, e perguntava-lhe se lhe trazia recado, e esto muytas vezes, e que tantas vezes mostrou cartas ao Duque ate que ho Duque o tomou dentro em a camara da Senhora Duqueza e que fez o que fez segundo he notoiro a todo mundo, que morreram ambos.

E mais disse o dito testemunha que antes desto acontecer, servindo ho dito Antonio Alcoforado ao Senhor Dom Theodosio, a dita Senhora falava tantas vezes asy com elle como com outros mocos que a elle testemunha parecia mal dezautorizar-se ella asy a fallar com moços, e que hum dia huma moça foy levar fruyta á cassa da Senhora Duqueza e estava com ella á porta o dito Antonio Alcoforado, e que parece que ho dito Antonio Alcoforado lhe estava falando amores, e a moça lhe disse que era menino, e que elle respondeo, menino eu! sam homem e mais que homem, e que elle testemunha quando lhe aquillo ouvira, o fora dizer á Senhora Duqueza, pedindo-lhe por mercee que se não dezauthorisase a fallar com moços, em especial com Antonio Alcoforado, e que ella ouvera desto merencoria e lhe disera que queria aquillo dizer que por fallar com hum menino lhe avya de dizer aquillo, e que ella testemunha lhe respondera aspero, dizendo ora vos digno que nom he bem que vos dessautorizes a fallar com elle, e lhe contara todo o que elle passara com a moça e que ella cuidava que elle era menino e que elle era homem porem que em seu coraçam delle testemunha nom entrara suspeiçom maa, soomente lhe parecer dessautorizamento pera hua tamanha Senhora, e que depois desto Dom Joam e Dona Maria lhe estranharam a dita Senhora fallar tanto com os moços, e em especial com o dito Antonio Alcoforado e o diseram a elle testemunha, nom sospeitando em mais que lhes parecer que se dessautorisava nisso, e que elle lhe disera aa dita Dona Maria como lho ja avia dito e que ella nom dava nada por isso, que nom podia mais fazer e que ao Dom Joam respondera quanto lho asy estranhara que nom sabia que fizesse ou que nom podia mais, nom se acorda qual destas cousas disse, e assy disse elle testemunha que nunca vyo fazer cousa á Senhora Duqueza que fosse de repreender, que elle testemunha lho nom disesse o mais onesto que podia, e mais non disse, e protestou, que se lhe alguma cousa mais ao diante lembrase, de o tornar a dizer, e al nom disse.

E perguntado o dito testemunha do custume disse que he criado do Duque nosso Senhor e era Veedor da Senhora Duquesa, e lhes criou seu filho, e que estimava tanto o serviço della como delle dito Senhor, e ai nom disse. -- Diego de Negreyros o escrepvy.

A qual Inqueriçam o Bacharel Gaspar Lopes do Desembarguo do Duque nosso Senhor e Ouvidor de sua Casa e Correyçam mandou a mim Ayres Gomes Tabelliam do dito Senhor que a treladase, a qual treladey e se concertou com o proprio original comiguo Tabelliam e com o dito Ouvidor e Juiz, Escripvam e Tabelliaens, que a tiraram e vay escripta em trinta e oito folhas de papel com este pouco, que vae este termo, e foi asinado por todos os sobreditos, e nom leva couza que duvida faça e por fé e verdade os sobreditos asinaram, como atraz dito he. E ou sobredito Ayres Gomes Tabelliam do dito Senhor em a dita Villa Viçoza e seu Termo, que esto escrepvy e meu publico sinal fiz que tal he -- Lugar do Sinal publico -- Ayres Gomes -- Pagou nihil -- Ho Bacharel Gaspar Lopes -- Joam Alvares -- Gonçallo Lourenço -- Diogo de Negreiros - Alvaro Pacheco.

E despois desto seis dias do mez de Novembro de quinhentos e doze em Villa Viçoza, nos Paços do Duque nosso Senhor, na sala que foy da Senhora Duqueza que Deos aja, estando hy o Ouvidor Gaspar Lopes com todos outros Juiz e Tabelliães que estiverão ao tirar da Inquerição, perantes elles e mim Escripvão pareceo Jorge Lourenço testemunha da devasa e dise e decrarou sob carguo do juramento que feito tinha que quando elle diz que foy com a tocha diante do dito Senhor que chegarão á porta da camara da dita Senhora, que elle não vio o dito Antonio Alcoforado, que asy estava dentro, porque estava á ilharga da cama da dita Senhora e se encobria com as cortinhas da dita cama, somente despois que entrou dentro, como dito tem e ai nom disse. Diogo de Negreiros esto escrepvy.

E logo hy pareceo Fernam Rodrigues Camareiro do dito Senhor, e disse decrarando no custume de seu termo que lhe esqueceo com paixam que elle he criado do Duque, que Deos aja, Pay do dito Senhor, e assy deste, e seu Camareyro, e tem delle recebido muita mercê como já dito tem, e ai nom disse. Diogo de Negreiros esto escrepvi. -- Ho Bacharel Gaspar Lopes -- Gonçalo Lourenço -- Joam Alvares -- Alvaro Pacheco.

Archivo Nac. Gav. XI, Maço 8, N.° 10.

Livro da Leitura nova (q. abr. a Gav. XI do Maço I a XI) -- Fs. 243--278 v.

II ROMANCE DEL DUQUE DE BERGÃÇA Lunes se clecia, lunes, tres horas antes del dia, quando el Duque de Berganza con la Duquesa reñia. El Duque con gran enojo estas palabras decia, traidora me sois Duquesa, traidora falsa, maligna, porque pienso que traición me haceis y alevosía; no te soy traidora el Duque ni en mi linaje lo había. Echó mano de su espada viendo que así respondia; la Duquesa con esfuerzo con las manos la tenia. Dejes la espada Duquesa las manos te cortaria; por mas cortadas el Duque á mi nada se daria, sinó veldo por la sangre que mi camisa teñia; socorred mis caballeros socorred por cortesía; no hay ninguno alli de aquellos á quien la favor pedia, queran todos portugueses y nadie no lo entendia, sinó era un pagecico que á la mesa la servia dejes la Duquesa el Duque que nada te merecia el Duque muy enojado detrás el page corria y cortóle la cabeza aunque no lo merecia vuelve el Duque á la Duquesa otra vez la persuadia morir teneis la Duquesa antes que viniese el dia en tus manos estoy Duque haz de mi á tu fantasía que padre y hermanos tengo que te lo demandarian y aunquesten en España allá muy bien se sabria no me amenaceis Duquesa con éllos yo me avernía confesar me dejes Duque y mi alma ordenaria confesaos con Dios Duquesa con Dios y santa Maria mirad Duque éstos hijicos quentre vos y mi habia no los lloreis mas Duquesa que yo me los criaria revolvió el Duque su espada á la Duquesa heria dióle sobre su cabeza y á sus pies nmerta caía cuando ya la vido muerta y la cabeza volvía vido estar sus dos hijieos en la cama do dormia que reían y jugaban con sus juegos á porfia cuando asi jugar les vido muy tristes llantos hacía con lagrimas de sus ojos les hablava y les decia hijos cual quedais sin madre á la cual yo muerto habia matéla sin mercello con enojo que tenia donde irás el triste Duque de tu vida que seria como tan grande pecado Dios te lo perdonaria.

Canc. llamado Flor de Enamorados... Por Iuan de Linares. Barcelona, 1612 -- 12.°

III

Casa y estados del ex.mo sr. marques de Villafranca, duque de Medina Sidonia, conde de Niebla, &. &.

Ex. mo Sr. -- Evacuado ai informe pedido por V. E. sobre los antecedentes del triste fim que tuvo Doña Leonor de Guzman y Mendoza, en Portugal, el Archivo de V. E. no tiene mas datas que los siguientes:

Dom Juan Alonso Perez de Guzman, 4.° del nombre, 8.° Señor de Sanlucar, 5.° Conde de Niebla, 3.er Duque de Medina Sidonia, 2.° y ultimo Marques de Gibraltar, nació en Sevilla -- á de Fbro, de 1464, y fúe 1.er Marques de Cazaza en el Reino de Fez, habiendo fallecido en Sevilla á 10 de Julio de 1507. Caso en el ano 1486, con Doña Isabel de Velasco, su prima segunda, hija de D. Pedro de Velasco, 2.° Conde de Haro y Condestable de Castilla y de Doña Mencia de Mendoza, su mujer, hija dei 1.er Duque dei Infantado, y fueran sus hijos entre otros:

Doña Leonor de Guzman y Mendoza, que caso en el año 1501, con Don Jaime, 4.° Duque de Braganza, hijo de Don Fernando III, Duque dei mismo titulo y de Dona Isabel de Portugal, hermana dei Rey D. Manuel, y de ambos proceden los Reyes de Portugal.

Es cuanto el Archivo tiene el honor de poder poner en conocimiento de V. E.

Madrid, 2 de Noviembre de 1888. -- Dios guarde a V. E. m. a. -- José de Huyos.

A SEGUNDA DUQUEZA

SERÕES MANUELINOS-II

A SEGUNDA DUQUEZA

I SORTES VENTUREIRAS Quando vi de tal feição Tão frio o tempo moderno, Fiz um triumpho d'Inverno Depois será o do Verão; Nos quaes foi meu pensamento Fazer a farca distincta...

Gil Vicente.

I

O CONVENTINHO DAS CHAGAS

...porque naturalmente folga homem de tornar á memoria do passado.

A. Tenrreiro, Iten.

Um dia, no escuro e pobre Côro de Baixo do conventinho das Chagas, de Villa Viçosa, quando eu procurava nas lageas sepulchraes a que deveria cobrir as cinzas da Duqueza Dona Joanna de Mendonça: -- á minha imaginação fortemente commovida na reconstrucção ideal do Passado, por momentos pareceu que resurgia, d'entre aquellas sombras humidas e desoladas, -- viva, alegre, triumphante, como a cantaram os poetas do Cancioneiro Geral, -- a bella figura da segunda e virtuosa esposa do grande Duque.

E não era bem uma visão doentia, inane.

Não.

A vida, a mocidade, a graça, o espirito bondoso e scintillante, alguma coisa, em summa, d'aquella Côrte formosa e intelligente do Rei Afortunado, uma d'aquellas estrellas do Céu Manuelino celebradas por Gil Vicente, illuminava novamente o arruinado e intristecido Mosteiro.

As enclausuradas velhinhas acordavam do torpor d'aquella sepultura antecipada, e redemoinhavam, n'um açodamento respeitoso e jovial, em volta da gentillissima Senhora, a nobre e doce Padroeira, a boa e estremosa Mulher do primoroso Duque, a que o soube comprehender e a que o soube amar.

E ella seguia com intelligente e generosa curiosidade a minha busca fastidiosa.

Soletrava graciosamente as inscripções truncadas e desvanecidas.

Protegia com desenfadada paciencia a teimosia, a bem dizer maniaca, do rude estudioso, como seculos antes, nos Paços de Almeirim ou da Ribeira, auxiliava Mestre Rezende, na tarefa das trovas ventureiras para os Saraus da Côrte.

Lembra-se, meu caro Conde de Seisal, o senhor que anda escondendo na sua grande modestia uma bella alma de artista, e que tantos esforços de engenho ensaiou n'aquelle dia por fazer comprehender ás pobres velhas espantadas que diacho procuraria eu sob os pesados estrados do Côro?

Pouco antes, ao almoço, a Senhora Duqueza, surprehendendo-me, com a sua bondosa intelligencia, o mal disfarçado desejo de visitar o pequeno e ignorado Mosteiro, auctorisára-me a que a acompanhasse lá.

Como falassemos de Villa Viçosa, que eu visitava pela primeira vez, e naturalmente se alludisse aos muitos conventos, quasi todos em ruinas, da historica e graciosa Villa, o Senhor Duque dissera-me.

-- Aposto que V. estimaria bem visitar um, que ha aqui, junto do Paço, habitado ainda por umas pobres velhinhas. Mas olhe que não encontraria lâ, de certo, nenhuma Soror Marianna...

-- «Conforme, meu Senhor. Mais ou menos authenticas, eu creio que as houve em todos. E sem mal pensar, alguma coisa sei já dos conventos de Villa Viçosa...

E sabia. Vagamente ouvira, por exemplo, a engraçada historia, que escapou a Boccacio e de que tenho agora, aqui á mão, documento picarescamente preciso, de uma pobre freira de Santa Cruz, Soror Claudina da Natividade, processada e expulsa, em 1622, por se provar até á evidencia que era..., que não era mulher, e readmittida e rehabilitada, pouco depois, por se demonstrar com a mais perfeita segurança... exactamente o contrario. Ah, os Conventos!...

Mas atalhando a mofina reminiscencia, contei como logo de madrugada fôra ver o Convento dos Agostinhos, alli mesmo defronte, o pantheon dos Duques, e como me pagara da visita descobrindo lá, n'uma esconsa sacristia uma formosa pedra tumular, artisticamente lavrada, cobrindo os ossos de não me lembra que velho personagem historico.

-- «Agora d'esse outro Convento, do habitado», -- concluira, -- «permitta-me meu Senhor, muito sinceramente, dizer-lhe que se Vossas Altezas não estivessem cá, certo que ensaiaria o pecaminoso atrevimento de lhe violar a clausura, que alli viveram as filhas do Duque D. Jayme e lâ deve estar sepultada a sua segunda esposa.»

-- «Pois vou dar-lhe o gosto de lá entrar sem ter de penitenciar-se de coisa alguma», -- observara-me bondosamente a Senhora Duqueza, -- «Ir-me-ha mostrar a lapide que descobriu em Santo Agostinho e iremos depois visitar as minhas boas amigas, as minhas pobres velhinhas das Chagas e procurar a sepultura da segunda Duqueza.»

Por uma especial e antiga concessão pontificia, a clausura abre-se e suspende-se n'aquella devota Casa á voz ou á presença dos Duques Padroeiros, e n'uma visita anterior a illustre Princeza pedira ás religiosas que fizessem limpar um pequeno pateo interior d'onde desejava ir, em breve, desenhar um lanço de pittorescas ruinas que lhe prendera a fina impressionabilidade artistica.

Iria, pois, n'aquelle dia, um bello dia primaveral, de soberbos effeitos luminosos, em que os columnellos e as gelosias, de tons vestutos e severos, deveriam recortar-se graciosamente, com as suas trepadeiras verdejantes n'um fundo de transparencias azues e de nuvensinhas esquivas beijadas por um sol delicadamente amoroso.

E então eu, na sombra da egregia Senhora, acompanhando o amabilissimo Veador, poderia correctamente satisfazer a minha inoffensiva, a bem dizer, devota, curiosidade de coisas velhas e esquecidas, como já de manhã pudera fazel-o atravez do grandioso Paço de Dom Jayme e de Dom Theodosio I, sob a inexcedivel generosidade do Senhor Duque, tendo por guia o seu estimavel secretario, um amigo e um estudioso tambem, o meu caro Conde de S. Mamede, o companheiro e confidente dedicadissimo das nossas angustias de Berlin.

Por signal, que bem mais feliz do que a Arte, foi essa curiosidade impertinente.

As pobres conventuaes, cheias de esmeros e de finezas para com a sua adorada Padroeira, tinham feito mais do que asseiar o pateo: -- tinham, cuidadamente, entusiasticamente... caiado as ruinas.

Deus lhes perdôe a tolice!

Menos desastrada, ainda assim, do que a d'aquelles que foram collocar o aventesma, a figura

Medonha e má...

d'um gazometro,

... que os ares escurece,

junto, ao lado, em frente, ou detraz, da

... branca Thetis unica, despida

da Arte Manuelina, da joia de Belem!

Se bem me lembro, ha uma só freira, perfeitamente authentica, nas Chagas: -- uma pobre senhora octogenaria e tropega, sombra commovente de uma abbadessa na sombra de um convento que foi dos de mais santa e fidalga prosapia da Villa.

Comtudo, as rejas, lá estão, austeras e hostis, mais talvez n'aquelle solitario abandono de hoje, do que quando bafejadas, -- quantas vezes incandescidas! -- pelas palestras das Esposas do Senhor, muitas, certamente, formosas e frescas como tentações do Peccado.

Ali, á entrada, deveria estar a velha roda inutil a scismar tristemente nos bellos tempos em que alegrava tantos corações e alvoroçava tantos estomagos, offerecendo, lesta e dedicada, o seu largo seio de Pelicano, aberto á voracidade de uns e de outros: -- ora dos estomagos cá de fóra, ora dos coraçõesinhos que chilreavam lá dentro.

Da grossa sineta, rispida e importuna, desencantando e estremecendo com as suas ordens sacudidas de velha dona imperiosa as doces visões com que a nossa phantasia irresistivelmente povoa aquellas solidões dolentes de um convento extincto, -- ah! da sineta posso jurar que existe, que me parece ouvil-a ainda a gritar desesperada á communidade que viesse receber a egregia Padroeira, como talvez no tempo de Dona Joanna de Mendonça.

E d'ahi: -- talvez não.

Um livrinho manuscripto de memorias antigas, que exactamente n'aquelle dia mandaram das Chagas ao Senhor Dom Carlos, e que o amabilissimo Principe me confiou, dá-me a entender que não seria naturalmente pela portaria conventual que a Duqueza Dona Joanna entraria lá quando visitava as filhas, para as quaes expressamente se fizera a piedosa instituição.

Era um pequeno caderno em oitavo, amorosamente encapado em velha seda listada, que pertencera decerto a mais de uma freira; que passara mesmo de umas para outras gerações monasticas como breve repositorio de lembranças historicas da Casa.

Abria com estes dizeres, em lettra feminina, grossa e firme:

Neste Caderno, Breuem.te se poderã ver. a fundação, e q.m sam os Padroeiros do Real Mostr das Chagas de V.ª Vça...

Em épocas muito distantes e diversas fôra escripturado, evidentemente.

Se uma verba dá ainda Dona Leonor, -- «a Senhora Duqueza» -- como sepultada no Convento da Luz de Montes Claros, d'onde aliás sabemos que os seus ossos foram transportados para o da Esperança, em 1590, e se outra, fazendo a lista dos Duques, não passa além de Dom João II, o que havia de ser Rei em 1640, n'algumas ha referencias e copias do Agiologio e de obras relativamente modernas, e a ultima pagina escripta é um modelo de certidão de noviça, datado de 1793!

A propria ementa da fundação não é original.

Obtivera o Duque Dom Jayme um breve pontificio para fazer um convento, proximo a Extremoz, em que professassem as filhas do segundo casamento, mas mudando de tenção acerca do local, fel-o edificar junto do palacio de Villa Viçosa.

Para iniciar e dirigir a communidade mandára vir, do convento de Santa Monica de Evora, as Sorores Margarida de Jesus e Leonor da Cruz, tia e sobrinha, mas as escrupulosas freiras intransigentemente se oppozeram á determinação dos illustres fundadores, que pretendiam dispor de entrada franca no convento por meio de um passadiço que o ligasse ao Paço.

Toda a singular auctoridade do Duque, ainda em coisas ecclesiasticas, e a sua prestigiosa influencia junto da Santa Sé que lhe sanccionara a resolução, não conseguiram demover os escrupulos de consciencia ou a teimosia orgulhosa de Soror Margarida de Jesus, e ao fim de dois annos, em 1530, as duas freiras abandonando o mal iniciado Convento, foram inaugurar outro na Villa -- o de Santa Cruz, -- em umas casas que lhes deu um capellão ducal, Mendo Rodrigues de Vasconcellos.

Tres annos depois, morto o Duque, o filho, Dom Theodosio I, chamou da Conceição de Beja, sete religiosas que se mostraram mais accomodaticias do que as primeiras, e começou então a funccionar regularmente a instituição de Dom Jayme, professando a filha d'este, Dona Maria, com o nome de Soror Maria das Chagas; demorando-se um pouco a profissão de outra, Dona Vicencia, -- «por alguas Resois de estado», -- diz o livrinho, e não se realisando a da terceira, Dona Eugenia, porque, -- «a casarão» -- com o marquez de Ferreira.

Era pois o conventinho uma dependencia do Paço, e não teria, naturalmente, a Duqueza Dona Joanna de aguardar na Portaria que á voz irritante da sineta conventual lhe dessem accesso no mausoleu antecipado das pobres filhas.

Não fora certamente a memoria, pouco menos que inteiramente perdida, d'esta Senhora que me levara a Villa Viçosa.

Mas pois que ao cabo da liquidação ingrata da terrivel tragedia da «Senhora Duqueza», d'entre as minas... de uma lenda a que a mentira cortesã logrou prender a poesia e a piedade dos corações generosos, me apparecia esta figura encantadora, cheia de graça mulheril e de dedicação conjugal, naturalmente procurou-me n'ella uma consolação e um repouso ledo, a imaginação fatigada de sombras e terrores.

Assim nasceu este Livro.

Infelizmente,... para a Historia, a gentilissima e alegre visão, fulgurando por um momento, apenas, no culto e na palavra apaixonada dos poetas e dos chronistas da Côrte, desapparece completamente na grande obscuridade da virtude tranquilla e silenciosa do Lar.

II OUTROS TEMPOS! Guerra, guerra todo o estado! Guerra, guerra mui cruel! Que o gran Rei Dom Manuel Contra Mouros está irado.

Gil Via, Exh.

A voz do grande Rei vibrara forte e longe, nos solares e nos concelhos, nos interesses e nas consciencias, desde o Minho ao litoral algarvio.

Como se a annunciassem gloriosamente, -- os Berços de João Goterres, inventados pelo proprio Monarcha, haviam estrondeado no Cata que farás, visando o pontal de Almada, sombrio simulacro das praias e muralhas mauritanas.

Poucos dias depois, Dom Manuel chamava ás armas os Prelados do Reino e os Mestrados das Ordens.

Embora costumada já aos ruidos e extranhezas das aventuras ultramarinas, Lisboa deveria achar-se, por meado de 1513, fortemente alvoroçada pelos preparativos da grande expedição.

Invadiam-n'a as levas varias da peonagem sertaneja; iria, certamente, na Ribeira uma faina açodada e singular; a multidão de fidalgos aventureiros, moços e velhos, pobres e ricos, de grandes nomes prestigiosos ou de mal segura nomeada, encheria as ruas e os terreiros com as ostentações estrepitosas e petulantes das suas prosapias.

Lá em baixo, no Restello, apinhoava-se uma formidavel armada como não se vira maior desde a expedição de Ceuta, e todos os dias, no Terreiro do Paço, manobrava um dos quatro regimentos de Dom Jayme, com os seus bellos uniformes brancos, de grandes cruzes vermelhas no peito e nas costas.

De todos os pontos do paiz chegavam grossos troços de cavalleiros, de espingardeiros, de besteiros, de gente solta e voluntaria, de creadagem solarenga, trazidos ou enviados pelos grandes Senhores e Officiaes da Corôa, pelos fronteiros e alcaides, pelos anadeis e adais móres.

Sómente á sua parte, as terras do Duque de Bragança e Guimarães forneciam quatro mil infantes e quinhentas lanças, gente escolhida e instruida pelos seus quatro coroneis amestrados nas campanhas de Italia: -- João Rodrigues que mandava a guarda ducal, Gaspar Vaz, Pedro de Moraes, Christovão Leitão. Ao ultimo incumbira elle de fazer de mil vadios lisboetas, um regimento de solida infanteria.

Outros tempos, outros tempos!...

Em volta d'este nucleo da tactica moderna, a velha fidalguia do Reino, com os seus creados e vassallos, constituia um verdadeiro exercito em que alvejavam as cabeças mais intelligentes e brilhavam as espadas mais rijas das jornadas de Africa.

A Casa do Rei contribuia com mil cavalleiros.

Um só fidalgo, o que havia de ser o ostentoso donatario do Funchal, João Gonçalves da Camara, um neto do Zarco, trazia á sua custa vinte navios, seiscentos peões, e duzentos homens de cavallo.

O pregão d'esta cruzada nova suspendera a Justiça e a Lei. Protegidos pela Palavra Real desciam dos montes ou atravessavam as fronteiras, os foragidos, os homiziados, feitos voluntarios de Deus e da Patria.

Da Patria, certamente, que é um erro de entendimento e de Historia imaginarmos que mudam as coisas porque evoluciona a noção e a comprehensão d'ellas, como o viajante a quem parece que são os horizontes que se trasladam e elle que permanece immovel.

Da Patria, sim, que lá, em face do Rei e da Côrte, á turba fulgurante dos grandes Senhores e das grandes Damas, o dizia um plebeu genial, Gil Vicente, como se por elle falasse a alma forte e aventureira da sua querida terra:

Oh famoso Portugal

Conhece teu bem profundo,

Pois 'té ao polo segundo

Chega teu poder real!

E não era um cortezão lisonjeiro, um poeta de inspiração e de palavra recalcada nas discrições aduladoras ou nos enthusiasmos postiços da Convenção palaciana, o Gil Vicente!

Esses vieram depois.

Antes que Dom Manuel entregasse ao egregio General o estandarte da brilhante expedição, Gil Vicente, a bem dizer desfraldava-o intrepidamente, nos saraus do Paço fustigando, rijo e fundo, com elle, corações e consciencias, ora como estimulo consolador e amigo, ora como latego ameaçador e penetrante.

Aos fidalgos dizia:

Avante, avante Senhores...

Oh! deixae de edificar

Tantas camaras dobradas

Mui pintadas e douradas.

Que é gastar sem prestar.

Alabardas, alabardas!

Espingardas, Espingardas!

Não queiraes ser Genoeses,

Senão muito portuguezes

E morar em casas pardas.

Cobrae fama de ferozes,

Não de ricos qu'he perigosa.

Dourae a patria vossa

Com mais noses que as voses.

Outros tempos, outros tempos!...

A gente ecclesiastica, aos grandes da Egreja, reprehendia e apostrophava, ousado e severo:

Oh prelados não durmais!

Clerigos, não murmuraes!

Oh pastores da Egreja!

Morra a seita de Mafoma:

Ajudae a tal peleja,...

Que açoutados vos veja

Sem appellar para Roma.

Deveis de vender as taças,

Empenhar os breviarios,

Fazer vasos, das cabaças,

E comer pão e rabaças

Por vencer vossos contrarios

E vós, priores honrados,

Reparti os priorados

A Suiços e soldados:

Et centum pro uno accipietis.

A renda que apanhaes

O melhor que vós podeis,

Nas Egrejas não gastaes,

Aos pobres pouco daes,

E não sei que lhe fazeis.

Dae a terça do que houverdes,

Para Africa conquistar

Com mais praser que puderdes,

Que quanto menos tiverdes

Menos lereis que guardar.

E á multidão anonyma, aos burguezes, ao Povo, bradava elle, seu filho e seu amigo leal:

Oh senhores cidadãos,

Fidalgos e Regedores:

Escutae os atambores,

Com ouvidos de christãos.

E a gente popular

Avante não refusar!

Ponde a vida e a fazenda,

Porque para tal contenda

Ninguem deve receiar.

Pode bem dizer-se que a resolução auctoritaria da empresa se fundia, luminosa e acariciadora, n'esta estrophe:

Deveis Senhores esperar

Em Deus, que vos hade dar

Toda a Africa, em vossa mão.

Africa foi de Christãos

Mouros vol-a tem roubada,

Capitães ponde-lh'as mãos

Que vós vireis mais louçãos

Com famosa nomeada.

E emquanto a voz dura e imperiosa do Commando não disparava, como formidavel catapulta, aquella turba aventureira e viril contra as muralhas irriçadas de mourama, a palavra quente e commovida do poeta incendiava e revolvia os brios e as ambições em volta e em face do Rei moço e forte que a Opulencia e a Victoria illuminavam em cheio:

Rei das grandes maravilhas...

Á miragem dos prestigios e das grandezas que estimulava as sedes da Ambição nos arcabouços dos velhos batalhadores, Gil Vicente accrescentava, -- não fôsse elle portuguez! -- a nota sugestiva do Eterno Femenino que lá assistiria tambem ao auto heroico, do fundo de muitos corações adolescentes e nas cubicas de muitos olhares enamorados:

Oh senhoras portuguezas!

Gastae pedras preciosas

Donas, Donzellas, Duquezas,

Que as taes guerras e emprezas

São propriamente vossas.

E guerra de devoção

Por honra de vossa terra,

Commetida com razão,

Formada com discrição,

Contra aquella gente perra.

Fazei contas, de bugalhos,

E perlas, de camarinhas,

Firmaes, de cabeças d'alhos;

Isto sim, Senhoras minhas,

E esses que tendes,... dae-lh'os!

Oh, que não honram vestidos

Nem mui ricos atavios

Mas os feitos nobrecidos;

Não briaes d'ouro tecidos

Com trepas de desvarios;

Dae-os para capacetes...

A Fé, o Patriotismo, a Ambição, o Amor acudiam á conjura do encantador nigromante n'um concerto de gloriosos estimulos, e a triste e formosa Policena, a amorosa «troiana», vinda das profundezas infernaes:

Pelas virtudes dos Céus

Pela potencia de Deus

Sem mais arte...

dizia áquella «belenissima côrte», com a irresistivel evidencia das verdades eternas, como sómente havia de «ser amado o bom galante»:

Que seja mui esforçado

Isto é o que mais val;

Porque um velho idoso,

Feio e mui socegado,

Se na guerra tem boa fama,

Com a mais formosa dama

Merece de ser ditoso.

Senhores Guerreiros guerreiros

E vós, Senhoras guerreiras,

Bandeiras, e não gorgueiras,

Lavrae para os cavalleiros;

Que assim nas guerras troianas,

Eu mesma e minhas irmans

Teciamos os estandartes,

Bordados de todas partes

Com divisas mui louçans.

Com cantares e alegrias,

Davamos nossos colares

E nossas joias a pares

Por essas capitanias..

Um coração estava alli para o qual esla fulguração deslumbradora do Amor e da Mulher deveria parecer-se estranhamente com o lampejar frio e mau de uma punhalada!

Em poucos mezes se apromptara a formidavel expedição, e a 14 de agosto, na velha Sé de Lisboa, bento pelo Arcebispo D. Martinho da Costa, sobre o altar do Padroeiro da Cidade, o estandarte Real, entregava-o Dom Manuel ao -- «illustre e mui magnifico Senhor Dom Gemes Duque de Bragança e de Guimarães».

Porque era elle o General, mais do que o General, o o loco-tenente do Rei, a quem -- «pela grande confiança» -- que n'elle tinha, o intelligente, o habil, o experiente Monarcha conferia e dava todo o seu -- «conprido poder e alçada sobre toda a gente da dita Armada e Exercito, de qualquer estado e condição que seja, para d'elle usar como Nós propriameute o fariamos, se presente fossemos, assim no Civil como no Crime, até morte natural inclusive, sem d'elle em caso algum haver outra mais apellação nem aggravo».

Porque era a elle, ao fanatico allucinado da Lenda, ao doudo homicida da Critica que só n'aquella havia de firmar-se quatro seculos depois,-- era ao Duque Dom Jayme que se entregava alegremente, confiadamente, sem reacção, sem protestos, uma multidão dos seus mais intelligentes e mais altivos pares, -- a fina flor da fidalguia e da milicia portugueza, -- a maior expedição que Portugal lançava mar em fóra. -- uma empreza que os politicos mais auctorisados e os capitães mais valentes consideravam das mais asperas e importantes para a consolidação das nossas conquistas d'Africa, para a segurança da nossa expansão maritima.

E não havia de ser mentirosa a Lenda!...

E não havia de ser absurda a Critica!...

Era a elle, ao que matara a «Senhora Duqueza», pouco mezes antes, -- e deviam conhecel-o bem, e deviam saber excellentemente se era um doudo, um mau! -- que se entregavam honras, prosapias, e vidas como estas: -- Dom João de Menezes, o prestigioso almirante do Meditteraneo; Dom Affonso de Portugal, o que havia de ser o primoroso Conde de Vimioso; o habil Alcaide mór de Faro, Ruy Barreto, já nomeado para capitão da conquista; o pundonoroso Conde de Borba; Dom Luiz dê Menezes, o futuro Alferes mór do Reino; Dom Henrique de Menezes que havia de ser embaixador á Roma de Paulo III; João da Silva, o dilecto sobrinho do bispo do Algarve, Dom Aleixo; Ayres Telles, o poeta batalhador; Luiz da Silveira, o futuro Conde de Sortelha; João Rodrigues de Sá, o Alcaide Mór do Porto; e os Mascarenhas, e os Abreus, e os Eças; e os Mendonças, de Mourão; e os Pereiras, de Arrayollos, e os Camaras, os Ornellas, os Esmeraldos, das ilhas, e tantos e tantos.

E fora elle que presidira assiduamente á organização da empreza; -- que iniciara n'ella a reforma da tactica e da disciplina antiga; -- que ao mesmo tempo marinheiro e soldado, almirante e general; -- no mar -- «com a agulha deante de mim», -- como elle proprio o conta, discutindo com os pilotos, com os Berrios, com o Pedro Affonso de Aguiar, com o João de Lisboa, havia de guiar aquella formidavel armada de 430 embarcações, -- «em que haviam mais de 30 de gavea», -- e em terra, acautelando e trabalhando, animando e reprehendendo, distribuindo contoadas e conselhos, formaria as varias batalhas e bandeiras d'aquelle confuso exercito de vinte e tantos mil homens, apoz o desembarque tumultuoso e arriscado, entrando com elle em Azamor, refreando-o firmemente na investida triumphante, caminho do sertão.

Rezolvido rapidamente, em dias, apenas, o temeroso problema que afrontara as melhores espadas e longamente preoccupara as melhores cabeças, havia de ser elle, ainda, que no meio do bulicio da conquista, emquanto talvez os seus companheiros de armas, esqueceriam na furia selvagem do saque os mais rudimentares deveres de christãos e cavalleiros, havia de ser elle ainda, que redigisse singelamente, friamente, o relatorio da campanha, dando conta ao Rei de como cumprira a commissão que recebera d'elle:

-- «Louvores a nosso Senhor, Azamor é de Vossa Altesa sem morte nem ferida de homem fidalgo, salvo algumas feridinhas que alguns houveram em um desmando de uma escaramuça o dia que aqui chegámos; mas de quantas feridas meu coração ha sido trespassado pelo mau aviamento que trazemos das cousas necessarias, não o poderá crer senão quem me vê lançar os bofes...»

Mas poucos mezes havia que Dom Jayme matara a pobre «Senhora Duqueza», e a sombria fatalidade que desde o berço pesava sobre o filho do Degolado de Evora, -- vencida pela justiça dos contemporaneos, -- vingou-se ferozmente chamando a Lenda cortezã a desfigurar, perante a Historia e a Politica, n'um doudo sinistro o Pensador austero, o habil General, o leal e patriotico conselheiro do Rei Venturoso.

III

CASAMENTO E MORTALHA...

Isto é mundo ou he mar? São homens ou são ondas? He vida humana ou he roda? Tudo he Irmão, porque sua perpetua instabilidade tornou o mundo em mar, e os homens em ondas, e em roda a vida humana.

Man. Bern. Ex. Esp.

Voltando da conquista de Azamor, doente , e quando já não era indispensavel lá, o Duque de Bragança, segundo todas as probabilidades, conservou-se em Lisboa e na Côrte.

O seu prestigio accrescentara-se consideravelmente com o exito da brilhante expedição, cuja noticia echoara longe e fôra gloriosamente festejada pelo Pontifice como a de um singular serviço á Civilisação Christã.

Quatorze mezes, apenas, depois do tragico successo de Villa Viçosa, o Chefe Supremo da Egreja, -- e não um Borgia desabusado, mas um Leão X, o Papa Artista, um dos espiritos mais levantados e sympathicos do seu seculo, -- laureava o nome do valeroso Duque, -- «o varão forte», -- recommendando-o ás benções e aos applausos da Christandade, como o de um filho e soldado exemplar e dilecto.

Nem ficava, sómente, em palavras esta consagração calorosa, que logo pouco depois, uma bulla pontificia reprimia em favor de Dom Jayme e dos seus successores as pretenções jurisdicionaes dos Arcebispos de Braga, concedendo-lhe uma «conservatoria», uma quasi absoluta isempção das Egrejas, mosteiros e instituições do Padroado Ducal, para que elles se não intrometlessem com este.

E a esse diploma succedia-se outro, a instancias do Rei, concedendo a creação de quinze egrejas d'aquelle Padroado em commendas da Ordem de Christo, e outros, ainda, e, em summa, repetidas e decisivas manifestações de sympathica confiança e de singular prestigio, quer da Corôa Nacional, quer da Tiara Pontificia.

Nem era, como poderia suppôr-se, um viuvo sinistro, n'aquella Côrte intelligente e alegre, o que matara, havia bem pouco, a esposa juvenil.

Como antes d'esse terrivel successo, e naturalmente porque ninguem pensara em attribuil-o a uma melancholia homicida do Duque;-- como annos antes, quando voltara de Castella, moço e acariciado pelo favor real: Dom Jayme havia de sentir novamente, em volta da sua prestigiosa figura, quebrarem-se muitos olhares amoraveis, arfarem muitos colos gentis, morderem-se muitos labios deliciosos no doce e estimulante enlevo dos corações donzeis ou na manha provocante da ambição mulheril.

Voltara, por assim dizer, ao tempo em que -- «era moço e cuidava pouco de casar e muito de folgar,» -- como elle escrevia mais tarde, recordando, com amarga ironia, os enredos casamenteiros em que a Politica acabara por lhe amortalhar o coração.

Moço era ainda, e sobre as sombras geladas da sua pobre mocidade, batia novamente a luz larga e quente da Côrte Manuelina, não já em aurora indecisa e suave, senão em meio-dia ardente e triumphante.

Mas como então, tambem, vigiava-o, acompanhava-o, suppunha possuil-o, com um amor cioso e oppressivo, -- cego, ainda!-- a politica e o favor real.

Talvez logo á volta de Azamor, e, pelo menos, em 1515, Dom Manuel dispozera já d'aquelle marido em disponabilidade.

Promettera-o, em Setubal, ao segundo Marquez de Villa Real, Dom Fernando de Menezes, para a filha, Dona Leonor de Noronha, que andava nos seus 27 annos e que já então começaria a revelar-se, sob a direcção de Mestre Resende, aquella afamada Senhora muito -- «erudita nas humanas e Divinas lettras» -- que veiu a ter grande nomeada depois.

Este Marquez de Villa Real, que era tambem Conde de Alcoutim e de Valença e que só deixara de ser tres vezes Conde por ter tido de ceder o Condado de Ourem, em 1496, á reconstituição da Casa de Bragança, era um poderoso e influente fidalgo do tempo e da estima de João II; parente do Rei, e primo do proprio Duque Dom Jayme, com o qual, é bem de ver, andava mal avindo.

Era filho do celebre governador de Ceuta, o Conde Dom Pedro de Menezes, o que Dom João II fizera primeiro Marquez de Villa Real com extraordinario aparato, e de Dona Brites, segunda filha do Duque de Bragança, Dom Fernando I.

Além de outros irmãos, incluindo, como era de uso, uma bella enfiada de bastardos, o velho governador de Ceuta dera ao seu successor, uma irmã, -- Dona Joanna de Noronha, -- que casara com o Condestavel Dom Affonso.

Dom Affonso foi o bastardo que o Duque de Vizeu, Dom Diogo, -- morto por Dom João II em Setubal, -- fizera em Castella na mui nobre e gentil Senhora Dona Leonor de Sottomayor e Portugal, Duqueza de Villa Hermosa, viuva do Duque Dom Affonso de Aragão, mestre de Calatrava e irmão do Rei Catholico.

Matando-lhe o pae, Dom João II incumbira o celebre ministro, Antão de Faria, de fazer crear o rapaz, secretamente, em Portel, -- «como filho de lavrador,» -- não viesse d'alli a renascer lhe a casta que pensava exterminar.

Foi exactamente o que esteve para succeder.

Dom Manuel reconheceu como sobrinho authentico o malfadado producto dos descuidos amorosos do irmão e da viuvinha hespanhola.

Em vez de lavrador, fel-o Duque e Condestavel, e casou-o com Dona Joanna de Noronha, a irmã do Marquez de Villa Real, em 1501, muito a contento da familia e dando-lhe dois contos de tença pessoal.

Pouco fruiu estas mercês o pobre moço que tres annos depois do casamento morria em Beja deixando á viuva uma filha, Dona Brites de Lara, que foi uma formosissima mulher, no dizer de todos os chronistas, e uma cabecinha um tanto leviana, em moça, pelo menos, ao contrario do que todos elles dizem e segundo o mais insuspeito testemunho, como vae ler-se.

Ora ao mesmo tempo que acordara com o Rei, casar Dom Jayme com a filha litterata, Dona Leonor de Noronha, -- o Marquez de Villa Real entendera que ficava combinado tambem com D. Manuel, e que este positivamente lhe promettera, matrimoniar a sobrinha dos dois, Dona Brites de Lara, com o filho e futuro Marquez, D. Pedro de Menezes.

Mas um dia, cartas da Côrte, naturalmente, avisamn'o, estando em Villa Real, do malogro eminente e um tanto escandaloso d'este bello plano.

Sabe que o Duque de Bragança, certamente -- «por o danar,» -- tracta com a irmã, a mãe de Dona Brites, -- «o casamento de sua filha para si mesmo e se envolvem neste trato amores».

Dom Jayme, dizem-lhe, frequenta assiduamente a casa de Dona Joanna de Noronha, -- «estando hi sua filha bordada de louçainhas,» -- em quanto o noivo da disputada menina continua em Ceuta, e de ha tanto, -- «armado por vosso serviço,» -- diz ingenuamente o Marquez ao Rei.

E sabe-o quando já o caso dava escandalo na Côrte, quando já andava -- «em reposteiro».

Experiente e brioso, ferido nas susceptibilades e nos interesses da sua prosapia, o Marquez escreve seguidamente a Dom Manuel duas cartas de energica e honrada queixa, em que não esconde a ameaça, um tanto insolente, de uma conflagração grave, e terminantemente reclama duas providencias immediatas e radicaes: -- que o Duque de Bragança, a quem não poupa a rancorosa lembrança de que só o favor real o fez e levantou, seja prohibido, sob pena de -- «caso maior,» -- de frequentar aquella casa e de continuar aquelle galanteio, -- e que a promettida do filho lhe seja immediatamente entregue, a elle, seu tio, -- tirada por conseguinte á mãe, -- como joia ou mercadoria que á sua honra pertence guardar illesa das cubiças e das linguas alheias.

É completamente inedito este incidente: -- sobre elle se calaram discretamente chronicas e geneologios, e mal cuidava o Marquez, elle que ciosamente queria guardar do filho a noticia do caso e que exigia do Rei que ninguem mais podesse fallar de semelhante cousa, -- mal cuidava que seria elle proprio que tres seculos, depois, não só de profundo silencio mas de pia mystificação por esconder as aventuras da sobrinha, havia de estimular a curiosidade desabusada da Historia.... a devassar essa e outras aventuras mais graves.

Fôra mal ou deficientemente informado o Marquez?

Assiduamente frequentaria Dom Jayme a casa de Dona Joanna de Noronha que seria ainda, em 1515, uma viuva em bom estado.

Mas se -- «neste trato se envolviam amores,» -- vamos ver que não seria a menina que os despertasse.

Andaria ella então nos 13 ou 14 annos, edade ingrata que todas as -- «louçainhas» -- de que a bordasse a mãe não fariam muito seductora ao malfadado viuvo da «Senhora Duqueza» duramente experimentado n'estes amores precoces, e já então nos trinta e sete annos de uma opulenta e recalcada virilidade.

Quando, porém, recorda as promessas recebidas do Rei, em Setubal, o Marquez é precizo, terminante, e seguramente verdadeiro.

Talvez, exactamente, para lhe abrandar relutancias á reconciliação com Dom Jayme, pelo casamento d'este com a irmã, Dom Manuel, fingida ou sinceramente, accedera ao empenho do Marquez, de matrimoniar a sobrinha dos dois com Dom Pedro de Menezes.

Duplo e soberbo negocio que bem valia aos Menezes e Noronhas o sacrificio de alguns despeitos e ciumes.

A idéa d'essa reconciliação e d'estes consorcios derivava-se naturalmente do presistente plano adoptado por Dom Manuel, de dissolver e desarmar, em volta de si, por novas ligações de familias, de prosapias e de interesses, os odios, as dissenções, os fundos antagonismos que a sangrenta solução da conspiração fidalga, no reinado anterior, creara entre as grandes Casas e os grandes Senhores portuguezes.

Este trabalho bastara, -- diga-se de passagem, -- para conferir ao Rei Venturoso o titulo e o louvor de um dos monarchas mais habeis, mais estadistas, -- e por que não dizel-o, francamente? -- mais patrioticos, que tem havido em Portugal, consideradas as circumstancias do Paiz, e da politica peninsular, á luz serena da Historia como ella deve fazer-se: -- collocando os homens no seu tempo e os Estados no seu direito necessario.

João II e Manuel, -- e para mim um completa o outro, -- consolidam e salvam definitivamente a nacionalidade portugueza, como sociedade politica, como individualidade historica, na crise de expansão absorvente da monarchia central da Peninsula, em que exactamente a meio do reinado do segundo acabam de se afundar e desapparecer todas as outras.

E salvam-n'a, principalmente, pela forte e resoluta acção disciplinadora e auctorilaria no interior, e pela arguta e persistente politica de alliança pessoal e de ameaça latente, em face da formação, a cada momento conturbada, mas fatal, da unidade hespanhola: -- o constante perigo, o eterno inimigo da independencia e da nacionalidade portugueza.

Áquelle plano Manuelino, de concentração e pacificação nacional em volta do Throno, -- como diriamos hoje. -- devia ter obdecido jâ o casamento do condestavel Dom Affonso, -- o filho do Assassinado de Setubal, -- com a filha do altivo amigo e partidario de João II.

Uma observação que tem faltado á critica do grande Rei é a da politica casamenteira por elle exercida, não sómente em volta de si, mas nos seus proprios enlaces: -- por um lado, e em relação aos outros, desarmando e dissolvendo nas affeições e principalmente nos interesses das ligações domesticas os rancores e antagonismos das grandes Casas, e consolidando, por esta fórma, a paz publica e a auctoridade real; -- em relação a elle proprio, enfreando e illudindo os impetos e tendencias absorventes da politica castelhana na alliança matrimonial, presistemente renovada, com as princezas e eventuaes herdeiras do throno de Isabel e Fernando: -- assegurando assim a paz exterior e a tranquilla expansão da nossa politica ultramarina.

No mesmo plano se prenderia, pois, naturalmente, a idéa de casar o poderoso e dilecto Duque de Bragança com a filha do soberbo e despeitado Marquez de Villa Real que independentemente do antagonismo herdado e do ciume accrescido pela ostentosa rehabilitação do filho do Degolado de Evora, tivera de restituir-lhe, embora com valiosa compensação, o condado e Casa de Ourem.

Mas o que succedeu?

Dom Manuel, com toda a sua fleugma bondosa e pacata, era um Rei a valer.

Havia de carregar o sobr'olho á atrevida ameaça do orgulhoso Marquez, e a exigencia da entrega immediata da sobrinha, -- que o era tambem do Rei e sob seus olhos se creava na Corte, -- deveria, seguramente, feril-o, como irrespeitosa impertinencia, não só no seu carinho domestico mas na sua ciosa auctoridade.

O que é certo é que plano do Rei e empenho do Marquez dissolveram-se n'esta solução inesperada: -- pedir e obter Dom Jayme -- «alvará de promessa» -- de Dom Manuel, de que não sómente não concederia a pequena Dona Brites á gloriosa procreação de novos Marquezes de Villa Real, mas, se a não casasse com algum dos infantes, a daria ao Duque de Bragança para mulher de seu filho e successor.

Soube-o D. Fernando de Menezes?

Certo que o saberia.

Os dois potentados não se podiam vêr, mas D. Manuel, desistindo de os reconciliar, facilmente, friamente, sem perder a cabeça em coleras ou duresas desaustinadas fez perceber ao Marquez de Villa Real, mais exactamente, fez perceber aos dois que eram passados os tempos das indisciplinas e insubordinações fidalgas.

N'este revolver, porém, da historia escondida e abafada pela Chronica discreta e lisongeira, outra surpresa nos está reservada.

É a de vêr-mos, poucos annos passados, ser o proprio Rei quem promova e faça o casamento da gentil e disputada sobrinha com o filho do Marquez, então bem menos talvez a contento d'elle, e não lhe custando pouco a obter do Duque que o exonere da promessa feita.

Nem é tão somenos o facto que não se desnovele inesperadamente na historica liquidação de uma lenda interessante longamente acariciada por litteratos e chronistas.

IV CORTE PLENA Oh lusida côrte formosa, leal Dourada e honrada de manhas e galas Espelho de todas as galas e falas....

Gil Vicente, Nao, etc.

Não casou, pois, o Duque Dom Jayme com Dona Leonor de Noronha.

O Rei, a Politica, a Rasão de Estado, não poderam já dispôr d'aquelle marido, como o haviam feito quando o ligaram á pobre moça andalusa que -- «se lançara com o Pagem» -- na bucolica e solarenga semsaboria de Villa Viçosa.

A prendada discipula do Mestre André de Resende, -- que provavelmente pensava tanto em D. Jayme como este, n'ella, -- consoreiou-se espiritualmente com o Sabelico e com o Job, não podendo advinhar que a estupida posteridade dos Agiologios lhe poria -- «a perpetua castidade» -- muito acima das suas esmeradas versões.

Perdeu a Casa de Bragança uma litterata e não perdeu muito.

Ganhou talvez não se repetir a tragedia de 1512.

-- «O que tomou Azamor», -- não era já o pupillo passivo e submisso do Rei.

Era um dos seus conselheiros intimos, e até dos que mais desempenadamente e dos que menos ceremoniosamente conviviam com elle, como o refere Damião de Goes que -- «tinha o bacio do penteador» -- emquanto o irmão, -- o Fructos, -- ageitava a regia cabelleira, escutando ambos as desenfadadas palestras dos dois.

Terrivelmente recalcada a expansibilidade affectiva da mocidade na submissão fatal aos calculos da Politica que o fizera marido enganado e homicida, Dom Jayme rendera-se á estimulação egoista da prosapia e do engrandecimento do nome que fôra chamado a refazer e continuar.

N'esta mesma capitulação se lhe salvou, naturalmente, o amor dos filhos, das duas creanças que a «Senhora Duqueza» lhe deixara, a bem dizer, no berço. O que é curioso, o que perfeitamente define e caracterisa, mais o tempo, do que o homem, é que tão proximo ainda da catastrophe, dispunha já do filho e successor, -- do pequeno Dom Theodosio, -- como d'elle proprio haviam descricionariamente disposto, escolhendo-lhe e negociando-lhe a mulher que teria de ser-lhe companheira na vida, sem que lhe enfreasse os calculos, a lição da deshonra propria.

Frequentando a Côrte, realçando n'ella até, pelos primores e galas do seu vestir italiano, não havia de embebel-o facilmente aquella atmosphera fastigiosa e frivola em que os espiritos e os corações se expandiam e volitavam n'uma especie de triumpho perenne, afundadas, quasi completamente, n'um horizonte longiquo as grandes manchas de sangue e de lucto, de revolta e de lagrimas, de pavor e de odio.

Mais lhe haviam de agradar os exercicios da tactica do que os galanteios dos saraus, elle que tanto se amofinara em Azamor com os impetos desordenados das multidões guerreiras.

Mais se occuparia em caçar e montear, -- grande monteador e apaixonado cavalleiro que foi sempre, -- ou em ler e ouvir os relatorios dos distantes cruzeiros e campanhas, -- elle que tanto estimou os Berrios, Vasco da Gama e Sampaio, -- do que em discutir os rifões e ajudas de enamorados despiques ou em escutar os casos e escandalos do soalheiro cortezão.

Mas se não haviam de o fazer outro, a Côrte e os saraus; se não poetava, se não galanteava n'elles, era moço ainda, estava na força e na plenitude da virilidade, e o seu proprio temperamento vibratil e recalcado, e a sua pobre mocidade solitariamente sepultada na longa contenção da Conveniencia, da Convenção, da Vontade alheia, haviam de sentir alguma vez, -- e vamos ver que sentiam, -- impetos violentos de reacção e de revolta, n'aquelle meio fortemente saturado de seducções e de appetites para um homem como elle.

Em volta da sua figura prestigiosa de Favorito, aprimorado no requinte do luxo, da moda, do bom gosto dominante, por complacencia, a principio, talvez, por estimulação orgulhosa, depois, casavam-se com os ruidos das longiquas pelejas, -- quasi sempre ruidos de victoria, -- os galanteios, as intrigas amorosas, as aventuras alegres de uma sociedade que se desopprimia e desenfadava da lucta, longa e austera, pela existencia no fastigio e no goso das grandezas e maravilhas inesperadas, como se conta de certos marinheiros que se embriagam para não sentir a morte eminente.

Os batalhadores que partiam iam poetando sobre as ondas os seus amores da Côrte, e os conquistadores que chegavam, -- cheirando ainda á pimenta e ao sangue das jornadas orientaes, -- depunham no regaço das Damas, como os velhos Cavalleiros da Tavola, o suspirar implorante dos seus corações amantes:

Tres ha que sou fora,

quatro mil legoas daqui,

donde affirmo que não vi,

nem menos des que nasci,

tão gentil dama ate agora.

Com os estrondos da faina viva da Ribeira, crusavam-se os aromas sensuaes da canella e do sandalo que abarrotavam a Casa da India, e para desenfastiar das severas preoccupações da Diplomacia e da Politica, não faltariam novidades -- «em resposteiro», -- tão aperitivas e galantes como a da

Dona Camilla casou

Com João Rodrigues de Sá:

o valente Alcaide do Porto, o companheiro e amigo do Duque, na jornada de Azamor;

Ao outro dia alevantou

N'isso muitas cousas ha...

ou como a da grande Dama -- «que rafiava e beijava Dona Guiomar de Castro», -- com todas as lettras, e outras tantas que lá andaria revendo, em provas do regio -- «empremedor Hermann de Campos», -- o bom do Resende, ahi por 1516.

Os mais graves e brilhantes Senhores, -- altos funccionarios da Corôa, até, -- não desdenhavam envolver-se n'estes galanteios apaixonados e n'estas historias facetas.

De vez em quando, afundavam-se alguns nos mares distantes; cahiam outros sob os alfanges da mourama; sepultava-se este na penitencia dos claustros, dizendo um adeus ironico ao mundo e aos companheiros

E trabalhae por andardes

Com as damas,

lá vos honrae de danardes

Suas famas.

matava outro a mulher, no fundo do gyneceu solarengo, -- «por fazer mal de si» -- com algum familiar garanhão, em quando elle galeava na Côrte e esta ria e trovava;

Os velhos são namorados, os mancebos occupados, os casados são solteiros, os fracos são mui guerreiros e os clerigos, casados...

Sobre aquelle caso, por exemplo, da Dona Guiomar, armou-se um verdadeiro torneio em que terceiaram os seus joviaes despeitos os mais emproados Senhores.

Foi Dom João de Menezes o que primeiro sahiu a terreiro com o atrevido pregão:

Senhora, eu vos não acho razão para rafiar e beijar, tão sem empacho, Dona Guiomar, Salvante se vós sois macho. Se o sois, e não sois dama, é mui bem que o digaes, e tambem deve sua ama não querer que vós jaçaes, só com ella, em uma cama. Confessae-nos que sois macho, ou que folgaes de beijar, que d'outra guisa não acho razão de antrepernar tal dama, tão sem empacho.

Acudiu logo com uma -- «ajuda», -- muito perfido e galante, Fernão da Silveira:

Dois gosto podeis levar, senhora, d'esta maneira, pois sabeis de tudo usar: ser macho para Guiomar e femea para Nogueira. E por isso não vos tacho, Antes vos quero louvar; nos trajos em que vos acho podereis vós emprenhar outra mulher, como macho.

Remordido, talvez, no sangue parente, Dom Rodrigo de Castro, de quem o terrivel Fernão nos conta -- «que beijou uma dama e ella metteu-lhe a lingua na bôcca», -- continua a -- «ajuda» -- d'esta maneira:

Lancem-vos fóra do Paço ou vos levem a Lisboa, estaria em Almeirim, ou em Evora ou em Setubal, a Côrte folgasã, ou vos dêem outra machoa com que percaes o raivaço. Lancem-vos um berbicacho, ou vos mandemos capar, porq'outra fórma não acho, para poder escapar, Dona Guiomar, Pois s'affirma que sois macho.

Ao que Dom Pedro da Silva observa sentenciosamente:

Para parecer donzella Cousas tendes bem que farte, mas chamardes, vós, moella a beiços de dama bella: não vos vem de boa parte. Hoje avante não me agacho, Nem mais hei assim d'andar, mas, com mui gentil despacho, vos hei d'ir arregaçar, e olhar se sois femea ou macho.

Então, Fernão da Silveira, -- «o Regedor», -- o alto e grave ministro da Casa da Supplicação, disserta:

Com estes tratos d'amor, com estes beijos, má hora! vos não ham já por senhora, mas por um fino senhor. Tambem trazes um racacho e um som de galear, que beijaes, tão sem empacho, Dona Guiomar, que vos ham todos por macho.

E vae D. João de Menezes, trova assim -- «o cabo»:

Uma mui estranha cousa Se ruge cá entre nós, porque lá comvosco pousa Dona Joanna de Sousa, dizem que prenha de vós. Tambem diz que c'um muchacho vos foi não sei quem topar: Haveis ora mau empacho. mandae um d'elles cortar ou topar, e ficae femea ou macho.

Mas se esta vida airada e jovial dos bastidores cortezãos não podia já penetrar e reduzir um homem como D. Jayme, mal havia resistir-lhe, nos ultimos lampejos da solitaria declinação, a pobre da sua mocidade, á feiticeira e deslumbrante corea que a Formosura, a Intelligencia, a Plastica, a Graça capitosa, scintillante, mordente, formavam n'essa Côrte triumphante, n'esses deliciosos saraus de Almeirim e da Ribeira, -- «quando não havia Despacho e Conselho», -- em volta da figura gloriosa e viuva do grande Duque.

Gil Vicente descreve-a, -- a legião enamorada, a grinalda viva, palpitante das Sereias, -- «a caça que se caça em Portugal»,-- como lhe chamava o humorista Diogo Velho -- «o da Chancellaria».

É um longo rosario de diamantes que deslumbram, de esmeraldas que teem fulgurações phantasticas, de rubis que açulam o appetite, de opalas que dão vontade de morder... e em que alguns mordem, realmente.

Primeiro, a

... Santa Dona Maria Anriques, tão preciosa, a leda, a gentil Dona Maria Henriques Que todo o mundo conquista; pela qual anda el discreto y noble persona, Gonçalo da Silva, mordiendo la tierra, Porque ansi lo ciega continuo la guerra, Gomo si el fuese rocin de atahona...

e tambem o Calataud que

Anda el cuitado tan puesto en el hilo Que dicen por él: Oh cirio pascual Que ya fuiste cera y ahora es pavilo.

Vem depois Dona Joanna de Mendonça,

... tão formosa, preciosa e mui lustrosa, mui querida e mui oufana,

a Dona Joanna que traz captiva uma multidão de poetas do Cancioneiro e com a qual havemos de conversar longamente; -- e a sua homonyma, a Dona Joanna Manuel,... angelica e humana, naturalmente a filha do Camareiro mór Dom João Manuel, a que foi primeira mulher do castelhano Dom Affonso Pacheco, e n'esse caso, realmente, angelico testemunho da humanidade de um bispo de que era neta, o illustre bispo de Ceuta Dom João Mauuel, como este fora tambem a prova viril da humanidade de um austero monarcha, o nosso Dom Duarte.

Apparece-nos logo a Calataud, de sangue aragonez, -- «a perfeita» -- Dona Maria de Calataud que veiu a casar com o Senhor de Barbacena, Dom Jorge Henriques, Reposteiro-Mór de João III, e de quem e de outra dizia Rezende:

Calataud, Figueirós... Figueirós é no serão de cantigas de tenção mais servida, que ninguem, de tres que cantam mui bem nisto sabereis quem são...

Seguem-se a Dona Catharina de Figueiredo, -- «a Real», -- a da

... graça especial Que os mais altos inclina

e que foi, talvez, fenecer no claustro, -- e Dona Brites de Sá, de quem Mestre Garcia jura, baboso, que

Os olhos que se pozerem, firmes, em seu parecer: livrar-s'-hão de quem quizerem, mas dos seus,... não pode ser!

Nem havia de esquecer -- «a sentida» -- Dona Margarida de Sousa, quando era universalmente sabido que

...as mulheres Sousas de nação São boas, são graves, formosas, mui bellas; E tanto vos monta adorardes nellas Como não terdes nellas devoção...

umas esquivas entontecedoras! -- e a Dona Violante de Lima,

... de grande estima, mui subida, muito acima, d'estimar nenhum galante,

a soberba! -- e «a assisada» -- Dona Izabel de Abreu, talvez uma neta de Fernão de Magalhães, -- e a Dona Maria de Athayde, muito provavelmente a futura condessa da Vidigueira, a filha do celebre Valido de Dom João III:

... fresca rosa nascida em hora ditosa quando Jupiter se ria;

e a

Santa Beatriz Da Silva, que sois aquella, Mais estrella, que donzella, Como todo o mundo diz;

e a Dona Anna de Eça -- «a sem par», -- «a bem aventurada», não sei dizer porque, -- uma descendente de Ignez de Castro.

Mas não pára n'ella a roda encantadora.

Faltam, por exemplo, as Vilhenas, as genuinas Vilhenas, bem entendido, a D. Beatriz, -- «a perigosa», como lhe chamou muito bem Dom Diogo -- «o filho do Marquez»:

Não se espera outro remedio de quem vir a Perigosa senão vida duvidosa,

e a quem a emula na influencia enamorada, a Dona Joanna de Mendonça, aconselhava muito rasoavelmente que adoçasse com a piedade a condição fatidica:

E parece-me rasão que pois sois tão Perigosa, não sejaes... despiedosa...

-- e a Dona Filippa de Vilhena, a filha de outro companheiro do Duque na jornada de Azamor, a neta de Dom Francisco de Almeida, que veiu a casar com o Conde de Portalegre, mordomo-môr de Dom João III, e de quem, -- antes d'isto, é claro, -- Simão da Silveira affirmava, muito suspeito:

Trove quem souber trovar, diga quem souber diser, louve quem souber louvar, a Dama mais singular que nunca se viu nascer: a qual bem sabeis, senhores, s'a feição vos não engana, esta é a de Vilhana dona Felipa, que dana minha vida por amores...

E quantas e quantas mais?!

Algumas teriam casado jâ, e segundo Rezende, viveriam -- «por isso tristes»; -- quantas, porém, ficariam ainda, e quantas teriam vindo, depois, juntar-se á luminosa pleiade!

Y otras señoras que nombrar no quiero Quia non debemus de plaza decir Que sufren las llagas dei triste encubrir Las cuales padecen tormento mas fiero.

Ah Côrtes dos nossos tempos!

Pobres Côrtes constitucionaes, -- macambunzias e postiças! Sem Alma e sem Fé!

Como estaes longe d'estas Côrtes da Renascença, d'estas Côrtes a valer!... tirante duas ou tres, quando muito, -- a da Allemanha, talvez, como eu a vi no Cortejo das Caudas, no tempo do velho Imperador, -- o Dom Manuel, de lá: -- lembra-se, Sr. Serpa? -- talvez, um pouco, a da Italia, como eu a sonhei em Veneza, n'uma bella regata á Seculo XVI, na atmosphera phantastica dos Palacios e dos Canaes assoalhados: -- lembra-se Doutor Bocage? -- lembras-te, lâ no fundo sertão africano, meu deslocado conditieri Serpa Pinto?!

Quanto melhor fôra, -- pois que não podieis ser o que ellas eram, -- que vos tivesseis dispensado de existir emprestando uma vida que por não poder ser a vossa, tem de ser uma convenção de vida, mascarando-vos com uma symbolica, que por não ter a razão, a alma, na alma, na razão social, ha de ser forçosamente uma symbolica de Theatro?

Se ao menos tivesseis podido conservar os Saraus!

Foi n'um d'elles, talvez, -- voltemos ao nosso conto, -- e foi exactamente em uma d'aquellas estreitas do Ceu Manuelino, descripto em 1512, -- no mesmo anno da catastrophe de Villa Viçosa! -- por Gil Vicente, -- na mais cantada, na mais brilhante, na mais cruelmente provocante e esquiva, -- que se embeberam os olhos e o coração do Duque de Bragança e Guimarães, do melancholico viuvo da «Senhora Duqueza».

Quando?

Não muito longe, decerto, de quando o Marquez de Villa Real julgando-o destinado á litterata filha, o accusava ao Rei de lhe desinquietar a sobrinha; -- ahi entre 1516 e 1519, quando elle tão preoccupado parecia com obter uma nora bem aparentada e rica em quem o pequeno Dom Theodosio lhe continuasse a successão e a prosapia, como dispondo-se já a uma abdicação, a uma declinação voluntaria, resignada.

E pois que fallámos na promettida nora convém saber como foi que ella, apezar do Alvará de promessa de Dom Manuel, que a recusava terminantemente ao filho de Dom Fernando de Menezes, veiu a ser, não a continuadora da estirpe Bragantina, mas da dos Marquezes de Villa Real.

V

AMORES INÉDITOS

Estado Real não tira amor natural.

Del. Ad.

Quantas vezes a anedocta, o incidente apparentemente insignificante e banal, o velho papel esquecido no fundo dos archivos, surprehende e revolve a coordenação mais engenhosamente preparada pelo historiador para explicar os acontecimentos, quando não para escondel-os, na memoria das gerações?!...

Tem de succeder isto, frequentemente, entre nós, sendo, como é, tão escassa e difficil, ainda, a exploração directa da Historia, e fazendo-se esta, geralmente, em copia de copia, ainda em cima ao sabôr e interesse dos preconceitos e paixões vigentes, sobre os documentos impressos que as circumstancias do tempo, das instituições e das pessoas, natural ou intencionalmente inquinaram de incompletos ou falsos.

Lembra-me que um dia, conversando com o Rei Dom Luiz, ácerca de cousas varias da historia nacional, o vi muito surpreso e admirado porque alludindo-se a Dom João II, eu, perfeitamente esquecido de conveniencias cortezãs na palestra amiga que a bonhomia habitual do Rei desopprimia de hypocritas ceremonias, não podera conter esta expansão heretica:

-- «Ah! Dom João II, o homem, o grande homem, o grande Rei, o melhor e o maior dos Reis que tivemos!...

-- «O que! pois Você... , um rapaz, um liberal, um democrata que até algumas boas almas do nosso conhecimento, do de Você e do meu, sabe... , me têem, ás vezes, pintado como republicano e conspirador; -- Você, um homem de coração, gosta de João II, o que matou o Duque, o que matou os dois Duques e o Bispo e outros... , o que fez a Monarchia Absoluta... , o nosso Luiz XI...

-- «Menos na cobarde manha, meu Senhor, que elle era valente e direito como os que o são mais. Mas porque os matou elle, meu Senhor?

«As chronicas dizem alguma cousa, mas sabe Vossa Magestade muito bem que não dizem tudo.

«E vae nós que vivemos muito socegados e certos do que é muito nosso: das nossas opiniões, dos nossos direitos, da nossa vida, pozemo-nos a encher as lacunas e hesitações das chronicas, não com as circumstancias e com a razão do lempo em que essas tristes cousas aconteceram, mas com a nossa bella sentimentalidade desenfadada e pacata, mas com os nossos encantadores ideaes de liberdade e de humanidade... de hoje.

«E depois d'isto, a que conclusão chegamos, meu Senhor? A de que o melhor que Dom João II tinha a fazer... era deixar-se matar!...

«Mas Vossa Magestade, bem percebo, quiz apenas disfructar-me um pouco; -- melhor sabe, do que eu o poderia dizer, o que seria Vossa Magestade e o que seriamos nós todos... se elle não matasse. Uma Galliza é que nós seriamos a esta hora..., quando muito.»

Calado, mas com aspecto affavel, amigo, -- pareceu-me até que alegre, pode ter sido, porém, desvanecimento proprio, -- o bom Rei deixara-me desafogar assim.

Estavamos sós, felizmente: -- nem olhos nem ouvidos de grave palaciano podiam sentir-se affrontados pela desceremonia conversa em que facil nos foi reconhecer, e d'esta vez com agradavel surpreza minha, que estavamos inteiramente de accordo.

Mas é assim; está succedendo isto todos os dias; succede com uma infinidade de factos e de situações, de acontecimentos e de personagens da Historia.

Como nas juntas mal reparadas ou nos mal fechados lanços dos velhos edificios, germinam e florescem as parasitas, nas lacunas e discrições da Chronica depõem os ventos de todos os quadrantes e fecunda e acaricia o sol de cada dia a varia sementeira da Lenda cuja vegetação caprichosa acaba por deformar e esconder successos e caracteres, causas e effeitos, relações necessárias e indeclinaveis soluções.

Não é porém, de João II, que vamos conversar agora. E do que se lhe seguiu, no nome.

É noticia corrente, e incontestada até hoje, a de que entre Dom Manuel e o filho, -- o que havia de ser Dom João III, -- se suscitara funda e escandalosa divergencia por occasião e por causa do terceiro casamento de Dom Manuel, em 1518, com a graciosa Princeza -- graciosa... porque era Princeza, -- Dona Leonor, a irmã de Carlos V, a que depois de ser Rainha de Portugal havia, de o ser de França, e tendo sido mulher do Rei Venturoso por obscura intriga, teria de o ser do Rei Galante, --Francisco I, -- como preço de carceragem.

Sobre esta tradicção, corroborada pelos mais auctorisados testemunhos, a começar no de Damião de Goes, -- tem-se historiado, romanceado e poetado a lenda de uma recondita e malograda paixão do Principe, -- tres annos depois Rei, -- pela juvenil Madrasta.

Não ha faltado até quem explique por essa funesta paixão, com uma grande segurança physiologica, o caracter taciturno e duro de João III que é apenas o que tem esquecido provar para que a explicação seja luminosamente viavel.

O velho Rei Venturoso, -- pois que á Lenda convém fazel-o velho aos 48 annos, bem vividos e mantidos por uma forte e sadia organisação, -- teria promettido, ao filho e para elle, instante e ruidosamente negociado o casamento da Princeza castelhana, mas extemporaneamente, -- sensualmente affirmam poetas, -- enamorado da pobre menina,-- quando mal lhe arrefecera o leito da segunda e estremecida esposa, -- guardara para si a futurada nora.

Dom João sentira profundamente este rapto paterno.

E sentira-o, é claro, porque amava já a Princeza, do fundo da sua alma moça e ingenua, n'um impulso instinctivo que dispensara até o soccorro dos olhos, pois nem sequer os havia pousado ainda no dôce objecto amado!...

Pois porque havia de sentil-o, senão porque a amava e queria?... Andava elle então nos 16 annos.

A esta encantadora simplicidade, tão natural e commovente, se reduziria a historia d'este complicado casamento em pleno seculo XVI, negociado entre o successor casual de João II e o imperial herdeiro do throno de Isabel a Catholica, quando exactamente os dois deviam ter excellentes rasões para se olharem desconfiados e se assegurarem, previdentes, dos movimentos reciprocos.

Um idylio triste!

No Auto d'El-Rei Seleuco, Gamões parecendo apenas pôr em Farça o conto antigo, com uma grande fidelidade apaixonada de artista erudito, não fizera mais do que memorar, em generosa reprimenda, o caso singello e obscuro da historia portugueza:

Olhae que extranhesa vae!...

O muito amor ordenar

Ir-se o filho namorar

De uma mulher de seu pae!

O contrario precisamente, mas ahi é que estava o engenho e a generosidade da recordação!...

E os alegres convivas de Estacio da Fonseca teriam facilmente sentido o dorido contraste entre o velho Rei egoista que furtara ao coração e aos braços do filho a noiva promettida, e a figura, sublimemente bonacheirona, do Seleuco.

Este, mal o esperto Physico lhe diz como irrecusavelmente descobrira a paixão do Principe pela Madrasta.

Nel pulso que se alterava

Si la via ó si la oia,

resolve alegremente ceder-lh'a como o melhor dos Paes e dos Tyrannos:

Finalmente hei lh'a de dar

Que a ambos conheço o centro.

Dom Manuel, pelo contrario, ter-se-hia anteposto, atravessado, rudemente, ao filho, e os seus amigos e negociadores teriam procurado alé afamar de tonto o amoroso Principe, intrigando-o calumniosamente no espirito da pobre Dona Leonor, trabalho tanto mais odioso, de certo, quanto sobejo e inutil, porque, realmente nem o espirito, nem o coração d'ella haviam de ser ouvidos e achados n'este negocio, como não tiveram de o ser, annos depois, no do seu segundo casamento, e mais ella era então Viuva, Mãe e Rainha.

Mas devia ser verdade: -- lá diz um seculo mais tarde Frei Luiz de Sousa, -- e com mais esperta malicia do que a d'elle, teem glosado todos, que uma Dama do Paço, Dona Brites de Mendonça, contava que no Grato, na recepção real dos desposorios, vendo pela primeira vez o Principe, a Rainha, -- «a boa Senhora, como espantada do que lhe tinham dito e do que via por seus olhos dizia para as Damas com ironia e ao parecer não sem magua:

Este es el bovo?...»

Esta é a Lenda.

Ora a memoria da Dama de que falla Frei Luiz de Sousa poderia tambem contar, -- mas não lhe conviria ao tempo, -- que quando fôra dos desposorios do Grato andava o Principe envolvido em trato amoroso bem menos tristonho e romantico do que o da supposta paixão pela Madrasta em quem pela primeira vez punha os olhos, mal costumados já a maiores encantos.

Reconduz-nos este facto brusco, e tambem, até agora, absolutamente inedito, aos casos e personagens com que travamos conhecimento na precedente palestra.

Prejudicada a idéa do casamento do Duque Dom Jayme com a litterata filha do seu orgulhoso adversario, o Marquez de Villa Real, ficara naturalmente malogrado tambem o outro termo do regio plano: -- o casamento do filho do Marquez com a juvenil sobrinha d'este e do Rei, Dona Brites de Lara, a neta do Duque de Viseu.

É até permittido duvidar da sinceridade do Rei quando em Setubal a promettera por nora, ao Marquez, como este lhe lembrava na colerica carta de 1515.

Dom Manuel tinha acerca de Dona Brites bem diversas idéas.

Considerando-a como sua sobrinha, e propriamente seu pae adoptivo era, -- em parte por affeição, em parte ainda pela costumada politica, -- reservava-a para algum dos Infantes que não podesse, por falta de Casa propria, collocar em mais avantajado casamento.

Previdente e pratico, -- Rei Mercador, lhe chamam, -- fazia de conta que guardando para algum dos filhos esta noiva, para o pequeno Dom Fernando, por exemplo, cinco ou seis annos mais novo, lhe ia preparando e assegurando a Casa.

Dona Brites era filha unica e havia de herdar uma excellente fortuna, accrescentada pelo favor real, além de que as relações da sua procedencia e parentesco necessariamente lhe creavam uma situação importante que não podia ser indifferente á politica do tempo.

Para o caso, porém, de se malograr o projecto, Dom Manuel, acautelando o futuro da sobrinha, não podia hesitar, e não hesitou, -- como dissemos, -- entre o futuro Duque de Bragança e o que havia de ser Marquez de Villa Real.

Mas a creança herdara com a formosura, -- que todos concordam em attribuir-lhe, -- a alma amorosa da avô paterna, a galante viuva do Mestre de Calatrava.

Pesava-lhe mais o coração do que a cabeça, e abriu-o cedo âs dôces aventuras do amor, talvez tambem um pouco ás da ambição, excedendo por sua conta e risco o pratico e carinhoso pensamento do Rei.

Não foi um dos Infantes, mas o proprio Principe e Herdeiro Real, -- -o que segundo a Lenda deveria andar tristemente absorvido na supposta paixão da inesperada Madrasta, -- que se enfeitiçou e prendeu nos encantos e «louçainhas», da encantadora prima.

Da mesma edade os dois, vendo-se e encontrando-se facilmente, -- elle, gentil e femeeiro, estimulado pelas facilidades e adulações da sua singular situação, -- ella, formosa e cortejada, a bem dizer nivelada com elle pelo parentesco e pela adopção real, filha de uma raça ambiciosa e aventureira que pozera já os olhos e por bem pouco não conseguira pôr as mãos, na Corôa: -- embarcaram ambos, alegremente, n'um idylio de secretos e desaustinados amores, em quanto o Rei, o Duque e o Marquez, gente pratica e sisuda, disputavam gravemente a quem ella havia de querer e dar-se.

Deu-se a Dom João.

Não deixa duvida o dizer dorido, indignado, do proprio Dom Manuel a Dom Jayme que fomos um dia desencantar do fundo da Torre do Tombo onde parece que o Rei e o Duque, coutando com a injustiça da Lenda e com a mentira da Chronica cortezã quizeram previdentemente guardar: -- um, a maguada confidencia, o outro o auto da inquerição e devassa da morte da «Senhora Duqueza».

É sómente em outubro de 1520, -- vinte e um mezes depois do seu casamento, com Dona Leonor, -- e logo veremos que é só então, por não aguar, naturalmente, mais alegres e absorventes preoccupações do Duque, -- que Dom Manuel lhe envia o seu proprio Secretario a narrar-lhe o caso d'aquelles doidos amores, rescunhando, elle mesmo, a interessante historia.

Conta, pois, Dom Manuel, que quando estava no proposito de casar a sobrinha com um dos Infantes ou de a dar a Dom Jayme para o filho, haviam surgido,-- «entre o Principe e ella, algumas cousas d'amores», -- em que, por estar certo de que as não ignora inteiramente o Duque, -- «hei por escusado de n'isso me alargar».

Mas alarga-se, felizmente.

Ou porque receie que Dom Jayme se não compenetre bem da gravidade que essas cousas haviam assumido, ou porque amagua e a colera vençam a pudica discrição e o incitem ao desabafo apaixonado em seio que sabe ser de leal e seguro amigo, diz-lhe mais que deve saber tambem -- «que isto foi tanto adiante, sem eu ser d'isso sabedor que quando o soube era já muito desservido do que até então era passado, e tanto que de nenhuma cousa o podia ser mais, nem falecia muito para de todo não ser mui anojado, e entre mim e o Principe se seguir mui grande escandalo».

Tivera, pois, Dom Manuel, de prover -- «por cartão», -- imperiosamente, -- «o melhor que o pude fazer e com tanto resguardo como n'isso pude dar e que por muito que desse não se poude escusar de não se ir mais adiante», etc.

Seria realmente importante poder precisar uma data; mas se ella nos falta, o periodo restricto dentro do qual, necessariamente, succederam os factos denunciados determina-se com facil e irrecusavel exacção.

É em 1515, que o Marquez de Villa Real reclama energicamente a entrega de Dona Brites de Lara, como noiva do filho: é, pois, n'esse anno, mais exactamente, talvez, em 1516, que Dom Manuel pensando guardar para um dos Infantes, a sobrinha, a promette a Dom Jayme para o filho e lhe garante que a não dará ao do Marquez, se não realisar aquella idéa.

Dona Brites e o Príncipe estariam então nos 14 annos, e se o Marquez a suppunha já iniciada pela Mãe em tratos d'amores, facil é de comprehender que os do Principe, com a feição que assumiram, surgiriam mais tarde, como relata Dom Manuel.

Foi sómente em 1516, que o Rei se resolveu a dar Casa e Côrte a Dom João; -- que pela primeira vez o fez apresentar e servir como Principe Herdeiro na regia consoada do Natal, -- e que o admittiu a conselho.

Poucos mezes depois, em março de 1517, morre a Rainha Dona Maria, e segundo o testemunho unanime, manifesta Dom Manuel, pela morte inesperada da formosa e estremecida esposa, uma profunda magua que chega a traduzir-se, formalmente, em projectos de retiro ascetico ou de abdicação parcial no Principe que tres mezes depois completaria os quinze annos.

Seria bruta injustiça duvidar da sinceridade d'essa magua.

Certamente, o Rei Venturoso não era um sentimental.

Mas não era um hypocrita, um cynico.

Era uma forte e sã organisação, admiravelmente equilibrada sobre um fundo affectivo, bom, honesto, que em muitos actos se affirma, caracteristicamente, muito em especial no seu viver domestico, nas suas relações de familia.

Bom filho, bom pae, bom marido, ainda quando não queiram accrescentar-lhe ao necrologio, como lhe accrescentaram os contemporaneos: bom Rei.

-- «O bom Rei», -- epitapha Gil Vicente.

Deu-se excellentemente com as esposas, e ellas com elle. Foi com a Dona Maria que viveu mais tempo e nenhum facto, nenhum incidente, põe a menor suspeita á sua profunda e leal affeição por ella.

Mas para o nosso caso, basta considerar que não seria, decerto, quando soubesse já da intriga amorosa do Principe, que, experiente e pratico, tendo por tanto tempo hesitado em dar-lhe Casa, havia de pensar em dar-lhe a Coroa. Não o sabia ainda, é evidente.

É, porém, quando revelava essas disposições; é no fim d'esse anno e no seguinte que succedem os dois graves acontecimentos accusados pela Chronica e um por outro explicados pela Lenda, do inopinado casamento do Rei com a promettida do filho, e do agastamento d'este, ou da publica dissenção dos dois, escandalosamente avolumada, decerto, pelas murmurações dos cortezãos e partidarios.

Depois, Chronica e Lenda emudecem, e tanto que mal lhes surprehendemos a vaga noticia de ter Dom Manuel mandado sahir da Côrte um dos validos do Principe, o celebre e ostentoso Dom Luiz da Silveira, á guarda e conselho do qual o confiara quando lhe dera Casa e Côrte.

Ao que logo acode, muito atabalhoado, o bom do Frei Luiz de Sousa, que fôra aproveitar-se de -- «leve occasião de culpa», -- que não explica, para melhor fazer accreditar na boa razão propria em casar de novo!

De passagem convém notar um incidente que pode não ser indifferente; que não é naturalmente alheio: -- é que por este tempo, tambem, regressa a Portugal, certamente com licença, senão por ordem, de Dom Manuel, o filho do Marquez de Villa Real, o Conde de Alcoutim, Dom Pedro de Menezes, a quem primeiro fôra destinada Dona Brites de Lara.

Dom João acompanha o pae -- «muilo galante e custoso», -- sempre com o seu querido trajo portuguez, ao encontro e desposorios da Madrasta; faz gala da sua submissão e affeição filial, e circumstancia ou noticia alguma auctoriza a suppôr que depois do escandalo revelado pela Chronica, outro succedesse, entre os dois, que por sombras podesse corresponder ao -- «mui grande» -- relatado pelo proprio Dom Manuel; o que todo o resguardo d'este não pode impedir que fosse -- «mais adeante».

Ao contrario: até á morte do Rei a melhor harmonia parece existir entre ambos, além de que não seria já sobejo o tempo para n'elle caber todo o enredo, manifestamente longo, do drama amoroso de Dom João e da prima, tanto mais que no anno seguinte ao do casamento do Rei já as cousas estavam deslindadas e resolvidas, definitivamente, como veremos.

Temos, pois, que os amores do Principe fôram surprehendidos pelo pae, e que este teve de intervir energicamente -- «o melhor que poude» -- na occasião, entre 1517, pouco depois da morte da Rainha Dona Maria, e 1518, antes do casamento com Dona Leonor.

Assim, o escandalo da narrativa, da expansão intima do Rei, coincide com o revelado, mais ou menos discretamente, pela Chronica, e tanto são um e o mesmo que a obsessão apaixonada de Dom João por Dona Brites de Lara vem a concordar chronologicamente, -- percebe-se já, e veremos logo, que logicamente, tambem, -- com a insolita resolução de Dom Manuel tomando para si a noiva que negociara para o filho.

Não sómente a revelação positiva d'este caso até agora escondido, desconhecido, absolutamente inedito, dissolve e arreda o conto, já de si sofrivelmente inconsistente, da paixão do Principe por Dona Leonor, que não vira, como illumina e explica, fácil e naturalmente, a historia do terceiro casamento de Dom Manuel, completando e esclarecendo, com irresistivel evidencia, as meias palavras e entrelinhas de Goes e de Francisco d'Andrade, os dois contemporaneos cujos testemunhos phantasiosamente se tem querido averbar á Lenda.

Tenham santa paciencia os litteratos e os politicos, que para não perderem inteiramente o gosto de uma intriga amorosa entre Dom João e a Madrasta lhes fica ainda, -- até quando? -- a que os ultimos architectaram quando ella era já viuva e elle Rei, além de que uns e os outros poderão vêr mais uma vez que a Historia não é menos opulenta e interessante do que a Lenda, em casos complicados e inverosimeis de Amor e de Politica.

VI

PORQUE DOM MANUEL CASOU TERCEIRA YEZ

... quero fallar-vos claramente n'esta materia para vêr se nos accordamos em que cousa seja Escandalo.

Cav. de Oliv. Car. 47.

Tem-se exagerado um pouco a versão de que Dom Manuel incutira no filho e ruidosamnte manifestara na Côrte o empenho de casar Dom João com a filha de Filippe I, a que depois lhe deu por Madrasta.

Esse mesmo exagero prejudica a Lenda que levianamente o explora, difíicultando-lhe uma explicação rasoavel da inopinada resolução do Rei.

É certo, porém, que de longe acariciava Dom Manuel o projecto d'este casamento, e que insistentemente o negociara com o Rei castelhano, com o Imperador, -- o avô do que havia de ser Carlos V, -- e. com este proprio.

Perfeitamente se conformava esse enlace com o espirito, a tradicção e o interesse da politica Manuelina: -- politica de dois gumes, que nas ligações matrimoniaes das duas Coroas procurava, por um lado, uma garantia e um vinculo de quietação e de paz contra as tendencias absorventes e antagonicas da dos Reis Catholicos, e por outro lado, creava e mantinha na Corôa Porlugueza um termo de ponderação, de correcção, de ameaça, até, com que essas tendencias haviam de contar, nas contigencias e perturbações da Successão castelhana.

Affonso V e João II, haviam guardado cuidadosamente a Excellente Senhora, a directa herdeira do throno occupado por Isabel a Catholica como titulo e bandeira eventual de séria revindicação nas oscillações e impetos da politica castelhana.

Dom Manuel casando com a filha mais velha de Isabel e Fernando, fizera-se jurar herdeiro e successor d'elles, por sua mulher, e morta esta, apressara-se em substituil-a pela immediata irmã, reatando o vinculo de um direito a considerar na precária situação da successão d'aquelle throno.

Viva ainda a Rainha Dona Maria, mas vendo longe, -- que não era então peticega ou estrabica como veiu a ser depois, -- a politica portugueza tractava já, não apenas de casar o Herdeiro da Corôa com a irmã do que naturalmente o seria da de Castella, mas em collocar junto d'esta uma irmã do futuro Rei de Portugal; em dar ao Imperio uma nova Imperatriz.

Agora, exactamente, ia esse throno atravessar, mais uma vez, perigosas contigencias.

Dom Fernando o Catholico, regente em nome de Joanna a Doida, morrera em 1516, recommendando a Cisneiros que chamasse apressadamente á Corôa, Dom Carlos, o filho da infeliz Rainha e de Filippe I.

Posto que pela incorporação da Navarra, em 1515, a Monarchia hespanhola podesse considerar-se feita, os antagonismos e insubordinações recalcadas pelos rijos punhos de Fernando e Cisneiros iam estremecel-a e conturbal-a, de novo, e qualquer dos factos obrigavam a especiaes cuidados a politica portugueza que com tanta habilidade, tenaz e previdente, ora contraminara o sonho ambicioso da hegemonia e da ab.sorpção castelhana, ora se precavera e armara contra elle, com afagos de alliança, ou com ameaças de incitamento e favor a descontentes e rebeldes.

A morte da Rainha de Portugal acabava de cortar a ligação pessoal das duas Corôas, e ao pratico empenho de continual-a, da parte de Dom Manuel, pelo casamento do Principe Herdeiro com a irmã immediata do que ia ser Rei de Hespanha, e seria, na falencia d'este, a immediata herdeira d'aquelle throno, -- naturalmente se associava, agora, o interesse do proprio Dom Carlos, que havia de exigir a prompta realisação do negociado consorcio como penhor e garantia leal de adhesão e de reconhecimento ao seu proprio direito e herança.

Vinha Dom Carlos a caminho de Castella, e as proprias disposições de espirito em que a morte da Rainha Dona Maria lançara o Rei Venturoso, o seu projecto, -- tão seu realmente, -- de entregar-se á guerra da Mourama, feito Fronteiro algarvio, e chamando á governança Real o filho, deviam movel-o a chamar este, tambem, ao compromisso e á necessidade inadiavel do casamento com Dona Leonor.

Essas mesmas disposições revelam que o suppunha apto e prompto a realisar tal casamento; recuar agora seria tornar-se suspeito e hostil.

Ainda em setembro de 1517, quando chegaram a Lisboa as reliquias de Santa Auta, otferecidas pelo Imperador, estava Dom Manuel no proposito de abandonar o Poder, segundo testemunho contemporaneo.

Emquanto porém estas grandes novidades alvoroçavam, naturalmente, a Côrte e o Paiz, e se não a eminencia de uma positiva abdicação, o crescimento da auctoridade e da influencia de Dom João junto do desolado Pae, havia de açular em volta do Principe as intrigas e cubicas cortezãs: -- Dom Manuel toma, em profundo segredo, uma resolução insolita.

Despachando, em outubro d'aquelle anno, o seu Camareiro e Privado, Dom Alvaro da Costa, a comprimentar o novo monarcha hespanhol que nem ainda aportara á Peninsula e não fora, tão pouco, regularmente reconhecido, encarrega-o, confidencialmente, de negociar o casamento d'elle próprio, Dom Manuel, com a irmã de Dom Carlos, a esposa que pedira para o filho, mettendo n'esta nova e extraordinaria negociação os homens que mais actuavam no animo e no Conselho do futuro Imperador e Rei.

Conserva-se um completo sigillo em ambas as Côrtes, seguramente, ácerca d'esta negociação inopinada, cuja noticia, com a da sua conclusão, somente em julho de 1518 surprehende Lisboa, firmando-se o contracto nupcial em 16 d'esse mez, logo que chega a dispensa pontificia, urgente e caramente obtida.

O que movera Dom Manuel a esta brusca resolução, tão destoante das suas anteriores deligencias e das suas recentes disposições de coração e de espirito?

A -- «razão da carne» -- que Frei Luiz de Sousa tem a fraqueza, não de adoptar, felizmente, mas de insinuar, com outras em que a sua penna cortezã, mas intelligente, manifestamente se embaraça e hesita, sómente poderia merecer reparo por lembrar que chamado, moço e forte, de uma quasi obscuridade ociosa ao supremo fastigio do Poder Real; cercado de uma Côrte que a Graça, a Bellesa, a Ambição feminina opulenlavam, ao sol da Renascença, com todos os appetites, com todas as seducções da Aventura galante, Dom Manuel offerece á Historia esta singularidade de a ter poupado ao registo banal de formosas damas penitenciando os regios caprichos no abbadessado de grandes conventos, e de bastardos pimpolhos creados para illustres senhores em pouco ceremonioso resguardo.

Já não succede o mesmo ao filho.

Mas a Lenda, que não consegue forjar uma explicarão rasoavelmente viavel, intriga, recalca e esconde a que não se fez esperar; a que, embora com naturaes discrições e reservas, o proprio Rei não callou.

Da bôcca d'cste a ouviu e transmittiu, singelamente, Damião de Goes que andava -- «ainda em pelote no Paço» -- e que foi o ultimo a beijar-lhe a mão na grande audiencia em que elle se resolveu a dar as suas razões á alvoroçada Côrte, deante do proprio filho macambuzio e despeitado.

É claro que o grande historiador não havia de ser menos discreto do que Dom Manuel, quando depois lhe escrevia a Chronica em pleno reinado de João III.

Mas além de que o seu testemunho directo vale bem mais, sob todos os aspectos, do que o d'aquelles que posteriormente lhe substituiram a versão romanesca, parece, por egual, evidente que se o agastamento do Principe se derivasse exactamente de uma boa e decidida vontade em honrar, elle proprio, o compromisso do pae, casando com Dona Leonor, não deixaria Damião de Goes de revindicar em favor e louvor de Dom João esta circumstancia, quando excelentemente o podia fazer sem insinuações indiscretas e sem prejudicar, sequer, a boa defeza do proceder do Rei.

E quando o não fizesse Goes, como deixaria de fazel-o Francisco d'Andrade, o chronista de João III, por mais de um titulo suspeito de favor e dilecção especial por elle, n'este mesmo caso, até?

Ao contrario, porém, o que Damião de Goes diz, sem rodeios nem hesitações de reservada intenção, como cousa corrente e sabida, é que Dom Manuel, quando pensava em abandonar o Poder ao filho e em casar este com a irmã de Dom Carlos, -- «se fez em outra volta», -- porque -- «veiu a saber que os privados do Principe Dom João seu filho lhe aconselhavam algumas cousas fundadas em lhe ser desobediente».

Quasi pelas mesmas palavras, diluindo a mesma nota da filial revolta ou da incutida desobediencia, no encomio da ostensiva correcção do proceder futuro, Francisco de Andrade indica exactamente a mesma situação delicada e tensa.

Accrescenta-lhe, até, uma revelação preciosa: -- a da cumplicidade, a da suggestão criminosa do Guarda Mór do Principe, Dom Luiz da Silveira.

Coincidem e completam-se, assim, os dois unicos depoimentos, contemporaneos, auctorisados, sérios, que até hoje se conhecem, e que tão mal se conhecem que se lhes tem attribuido uma significação contraria.

Mas já soffrivelmente illucidativa em face dos successos conhecidos, da situação que elles determinavam, e, muito particularmente, das proprias negociações para o casamento do Principe com a irmã do que ia ser Rei de Hespanha, -- a phrase sincera e incisiva de Goes, resolve-se agora, á luz da narrativa de Dom Manuel ao Duque de Bragança, numa explicação cathegorica, definitiva, evidente.

A «desobediencia» de Dom João explica tudo, e perfeitamente, naturalmente, a explica, a ella, o caso revelado por Dom Manuel.

No seu amoroso enlevo por Dona Brites de Lara, Dom João ter-se-hia recusado a honrar o compromisso do Pae, e a sacrifical-a ao empenho da Politica Real desposando a Princeza castelhana.

Nada mais natural e simples.

Uma curiosa coincidencia vem dar ainda singular relevo á phrase de Damião de Goes.

Não era Dona Brites uma obscura e modesta dama, mas quasi uma Princeza da Familia Real, largamente aparentada com as mais fidalgas e poderosas Casas, e unico rebento do altaneiro tronco geneologico que João II derrubara ás punhaladas em Setubal.

Por outro lado, rodeavam o Principe Herdeiro examente alguns dos mais salientes representantes da velha parcialidade do Duque de Vizeu; era, até, o seu dilecto e confidente amigo nas intimidades e occupações de moço, o filho e irmão de dois dos mais atrevidos conjurados do assassinado de Setubal, Dom Antonio de Athaide, que não consentiu tambem que lhe escolhessem e impozessem mulher, tomando-a, elle proprio, por amores, nos Tavoras.

Era este, segundo a phrase, ridiculamente lisongeira, de Frei Luiz de Sousa, o -- «Effestion» -- de Dom João, o confidente, como quem dissera: o alcoveto, do moço Principe.

O -- «Parmenio», -- o Luiz da Silveira, disse-nos já o que fazia junto d'elle, por aquelle tempo e no assumpto, Frnncisco d' Andrade, bem mais auctorizado e competente do que o doce e illustre dominicano. Não commandava -- «os exercitos de Alexandre», -- mas commandaria patrulhas de ambiciosos e despeitados.

Foi isto, parece, o que apurou Dom Manuel, mandando-o sahir da corte.

A importancia, o grave alcance que nas palavras de

Dom Manuel a Dom Jayme se attribue ao enamorado enlevo do Principe, pela neta do Duque de Vizeu, claramente revelam, não apenas, o escandalo, se o fosse, de um galanteio da Côrte, mas a oppressão de complicações e de perigos, positivos e sérios, para a politica e para a auctoridade Real.

Não é apenas, não é certamente, a affeição paternal, a moralidade domestica, que mais se sentem affrontadas e surprehendidas com aquelles desaustinados amores.

Tanto pelo menos, mais talvez, do que a leviandade, do que a deshonra, até, da sobrinha, -- e convém considerar sempre estas cousas á luz das idéas e dos costumes do tempo, -- afflige e preoccupa Dom Manuel, a obsessão amorosa do Principe Herdeiro.

Porventura sonhariam os dois, -- quando o não sonhassem por elles os que os rodeavam e dirigiam, -- assegurar por vinculos, mais resistentes e praticos, os que não eram já, sómente, de coração, e a idéa de um consorcio do futuro Rei com a filha do Condestavel, não seria por tal fórma extravagante e insolita que não aguçasse muitos devaneios e apetites de ambição e de orgulho fidalgo; -- talvez até que consolasse o do Marquez de Villa Real, do rude malogro do seu primeiro projecto.

As disposições manifestadas por Dom Manuel, de abandonar o Poder ao filho, haviam de favorecer essa idéa, e, em todo o caso, creariam em volta dos amores do Principe pela galante prima, um alvoroço cortezão de adhesões e de estimulos que lhe despertassem, no antegoso da Corôa, o da liberdade que o pae e a Politica lhe recusavam, para escolher mulher.

Alguma cousa parecida com o caso de Dona Ignez de Castro.

A Historia está cheia d'estas impaciencias e alé d'estes amores dos Herdeiros Reaes, logo explorados, quando não suggeridos, pela intriga e pela ambição fidalga, -- logo acariciados, tambem, quasi sempre, d'além da fronteira...

A situação era evidentemente delicada e tensa.

O rompimento brusco da negociação do casamento, de ha tanto entabolada, para o casamento em. Portugal, da irmã de Dom Carlos, exactamente quando este vinha reclamar e receber a Corôa hespanhola, e em volta d'elle, na Peninsula e do outro lado dos Pyreneus, sopravam intrigas e ameaças de guerra, lançaria nas relações dos dois paizes, uma nota desastrosamente inopportuna de desconfiança, de retrahimento, quando não de manifesta hostilidade.

Dom Carlos precisava assegurar-se da attitude do Rei portuguez, e mostram os documentos da epocha que não descurou, que não demorou a necessidade d'esta segurança.

Outra questão, de não somenos importancia politica, se prendia com esta, observamol-o já, nas preoccupações e nas deligencias da politica Manuelina: -- era a do casamento do proprio Dom Carlos. Disputava-lh'o a França que chegara a assegural-o no tratado de paz de 1516, para a filha de Francisco I.

Malogrado o casamento de Dona Leonor, em Portugal, é mais do que provavel que não viesse a ser Imperatriz, a nossa encantadora Dona Isabel.

De resto, seria natural, que encontrando Dom Manuel viuvo e o filho muito moço e de mal definido caracter ainda, Dom Carlos e os seus conselheiros preferissem o casamento de Dona Leonor com o Rei, como mais seguro penhor e vinculo da cordialidade e da alliança portugueza. Parece até poder deduzir-se isto da carta em que Dom Manuel encarrega o seu embaixador em Roma, de obter-lhe a dispensa para este enlace, tão favoravel, diz, á paz dos dois Estados.

Em todo o caso e sob todos os aspectos, impunha-se indeclinavelmente a necessidade de uma solução urgente, resoluta, clara.

Que outra desobediencia poderia ser, n'este assumpto, a de Dom João, -- que a Chronica denuncia positivamente, -- senão a de não querer acceitar a esposa que o pae, de longe, lhe destinara, quando sabemos, agora, como elle andava enlevado d'amor em outra mulher que poderia fazer consorte e Rainha, muito a contento de grande parte da fidalguia nacional?

Poderia talvez Dom Manuel vencer esta objecção inesperada, mas como presistir no projecto de um afastamento tranquillo da Corte e dos Negocios, deixando o Poder Real entregue, em situação tão grave, ás contigencias de um casamento forçado e d'aquella conjuração amorosa que logo desafogaria em cortezã e politica?

Substituindo-se ao filho no compromisso e casando, elle proprio, com a irmã do que ia ser Rei de Hespanha, honrava a palavra dada e assegurava os immediatos interesses da politica exterior, ao mesmo tempo que desopprimia a interna, das complicações e dos perigos da aventura galante do Principe, abandonando o desconsolado proposito de uma abdicação que se revelava inoportuna e arriscada.

Facilmente se comprehende que a resolução desagradasse ao moço e aos que antegosavam com elle, mais do que elle talvez, a posse antecipada do Poder.

N'este, e não na Princeza castelhana que não vira; -- na auctoridade e na liberdade immediata do Supremo Árbitrio que lhe permittiria exercer e coroar livremente as inclinações do coração ou os enlevos da adolescencia, é que Dom João pozera os olhos e a vontade mal disciplinada e armada, ainda, para a resistencia ás intrigas e sugestões dos cortezãos.

Ahi o ferira e surprehendera, duramente, a resolução inopinada do pae, accrescentada, publicamente, com a imponente audiencia em que elle obrigara todos a reconhecer-lhe o direito e a razão; accrescentada, ainda, particularmente, podemos hoje dizel-o, com o -- «cartão», -- com a intimação imperiosa e inflexivel de Dom Manuel para que cessasse a amorosa intriga com Dona Brites de Lara.

Resignado ou não, o Principe obedeceu, talvez, ostensivamente, n'este ultimo ponto.

Mas não casara; mas ficara livre.

Recalcou na impotencia, o despeito; acompanhou o pae á festa nupcial; foi requintadamente correcto e filial para com Dona Leonor, aos ouvidos da qual havia de ter chegado o rumor do escandaloso incidente como esturdia leviandade de rapaz, o que lhe suscitaria, naturalmente, o mal interpretado reparo a que se apegou a Lenda.

Mas quando toda a Côrte, por aduladora galantaria, se vestia á flamenga, para receber a filha de Filippe o Bello, o trajo portuguez, teimosa e singularmente, mantido pelo Principe, não era, decerto, uma homenagem de namorado á madrasta extrangeira, quando o não fosse á compatriota amante.

Ora Dom Manuel era um homem experiente e pratico.

O caso dera-lhe rebate vivo aos cuidados e interesses de pae e de Rei, e uma vez de sobreaviso, rudemente acordado da tranquilla segurança do seu poder e da sua politica de subordinação e de concentração nacional, não adormeceu sobre o parcial e duvidoso triumpho.

Vigilante e desconfiado, certificou-se, -- confessa-o elle proprio, -- de que o -- «cartão» -- não resolvera ou não abortara, decisivamente, a sentimental aventura.

Comprimida e contida apenas pela Auctoridade Real que se reerguera, imperiosa e resoluta, á affronta ingrata de a supporem enfraquecida e desarmada, -- aquella especie de conjuração obscura, que não era somente de dois corações ingenuos, poderia, emquanto solteiros o Principe e a prima, alimentar n'elles, e em outros, esperanças e estimulos de reação e desafogo.

Não tendo podido, ou não tendo querido, casar Dom João com a Princeza castelhana, Dom Manuel resolve então matrimoniar, -- «como melhor poder», -- Dona Brites de Lara, -- «por apartar» -- definitivamente, diz, -- «os inconvenientes d'entre o Principe meu filho e ella, que são os maiores que para mim podem ser».

Intimidada; talvez, tambem, um pouco desilludida da firmeza do amante; naturalmente industriada pela familia, a pobre moça acaba por dizer ao Rei -- «que a case com quem houver por seu serviço e com aquella mercê que houver por bem».

Ha de notar-se que vamos simplesmente approximando os factos conhecidos á luz do até hoje ignorado documento.

Regressara; fôra talvez mandado regressar, de Ceuta, onde estava desde 1512, o filho do Marquez de Villa Real, o primo co-irmão de Dona Rrites, seu primeiro promettido, como vimos, e, ou por manhosa suggestão de Dom Manuel, ou por mais facil e recatada solução, a bem dizer, domestica, do escandaloso devaneio, é com esse que o Rei determina matrimonial-a, apressadamente, porque -- «creio e hei por certo, segundo tenho sabido», -- diz elle, ainda, que é este o marido que Dona Brites prefere.

Mas sempre meticuloso e fino em attenções para com o Duque Dom Jayme, o Rei Venturoso não se esquece da promessa que lhe fizera.

Envia-lhe o seu secretario a pedir-lhe que o exonere do antigo compromisso, pois que assim como teve de desistir, elle proprio, de casar Dona Brites com um dos Infantes, não acha bem, nem o Duque quereria agora, certamente, que a desposasse seu filho e successor, -- «por esta mulher estar tão fóra daquillo que eu della esperava e com tanta magoa da sua honra».

De resto, a sua resolução está tomada: -- tem determinado casar a sobrinha com o Conde de Alcoutim -- «não lhe dando, porém, daquillo que lhe tenho promettido, casando com meu prazer», -- observa insinuantemente, -- «senão o que me bem parecer, e tirando-lhe disso boa parte».

E insistindo, vivamente, na gravidade inilludivel do caso. Dom Manuel espera que o Duque o desculpe por ter assim de faltar ao que lhe promettera, -- «como cousa que tanto me vae e que é de tanto meu descanço, por apartar tão grande escandalo como se me pode seguir, o qual seria tamanho e de tanto meu desserviço e desasocego».

Curiosissima e caracteristica nota da politica, da moralidade, melhor é dizer: -- da consciencia -- do tempo!...

Zelando, affectuoso e austero, a honra do Duque e da Casa de Bragança, -- quem sabe se lembrando-se da tragedia de Villa Viçosa? -- Dom Manuel diz-lhe, assim, sem reservas, carinhosa e honradamente, que a noiva que lhe promettera e elle queria para o filho, não lh'a aconselharia, não lh'a dará agora, que não é digna d'elle e do futuro Duque, pois não soube guardar a honra de mulher.

E ao mesmo tempo, friamente, calculadamente, sem uma palavra de hesitação ou de escrupulo, atira essa mulher, que elle proprio repudia e infama, para os braços de um nobre e moço soldado que regressa das asperas campanhas do Maghreb, herdeiro, tambem, de um nome e de uma estirpe, longa e gloriosamente vinculada á defesa e serviço do Paiz e do Throno.

Nem pára n'isto a extranha e caracteristica situação.

Perante a positiva e insuspeita infamação da pretendida nora pelo proprio Rei e tio, Dom Jayme, o severo, o inílexivel juiz e matador da «Senhora Duqueza», hesita ainda em ceder, em exonerar Dom Manuel da promessa de lh'a dar para o filho; tem escrupulos e -- «pejos», -- é documental, em desistir d'essa noiva poluida para o que ha de ser o successor e continuador do seu nome e da sua Casa.

Passa-se isto em 1520, como dissemos.

Mas o expediente Real, o accordo, a solução, o casamento, em summa, de Dona Brites de Lara com Dom Pedro de Menezes é cousa assente e irrevogavelmente resolvida antes que Dom Manuel, por ceremoniosa deferencia ou por affectuosa precaução, a mande communicar e explicar a Dom Jayme, primeiro pelo seu secretario, depois pelo Conde de Vimioso.

Caetano de Sousa dá noticia de um Diploma Regio feito em Evora, um anno antes, precisamente, em 20 de outubro de 1519, pelo qual Dom Manuel faz mercê á sobrinha de uma tença de 300$000 réis, e accrescenta que n'essa Carta se encorporava outra, de 5 de junho de 1512, para satisfação das arrhas da Condestablessa viuva, -- a mãe de Dona Brites, -- que -- «vivia ainda».

Seria naturalmente o processo da negociação entre Dom Manuel e a pobre moça, e a mãe d'ella, talvez; quem sabe se talvez, tambem, o proprio Marquez de Villa Real, cá Casa do qual voltava, d'esta sorte, o grosso dote que dera á irmã, melhorado com as arrhas e «adqueridos» do defunto Condestavel, não desfazendo no lustre do novo vinculo de regio parentesco que os amores entre o futuro Rei e a futura Marqueza poderiam até sobredourar um pouco.

Observe-se, comtudo, que o pobre Marquez pouco sobreviveu a este negocio. Morreu tres annos depois, em 1523.

Mas Caetano de Sousa diz tambem que o casamento se fez em dezembro d'esse mesmo anno de 1519.

Enganou-se, talvez, com o contracto dos desposorios, se é que não errou, involuntaria ou propositamente, a data. Sentem-se-lhe os rodeios e embaraços de nobiliarchista cortezão por disfarçar e esconder quaesquer vestigios, que certamente encontraria, do recalcado escandalo, mas poderia suppor-se que era a malicia e não o feitio adulador que lhe moldavam a phrase quando falando de Dona Brites escreve que -- «a naturesa ajunctou discrição e formosura sobre o real sangue que lhe deu o nascimento, o que fez a esta Senhora tão esclarecida que a habilitava digna consorte de hum soberano».

Desmanchou-lhe a habilitação, o Rei.

E no fim de tudo, foi um casamento feliz, ao que parece. Soffrivelmente prolifico, pelo menos.

Dom Pedro de Menezes foi soldado e latino.

Soldado, deixou o nome brilhantemente ligado á epopea das nossas jornadas africanas.

Poeta e latino exalça-lhe o merecimento Catallo Siculo.

Dona Brites castigou nobremente a sentimentalidade hereditaria na procreação honesta de muita gente illustre.

Uma das filhas casou com o Duque de Aveiro, o filho do bastardo de Dom João II; outra, foi segunda mulher de Dom Antonio de Athaide, o confidente dos principescos amores da mãe.

Dom João, -- o que proximamente seria o terceiro de nome no throno portuguez -- jâ quando ella casou andaria enlevado, não ainda na supposta paixão da madrasta, -- mas nas seducções de uma moça da Camara da propria Rainha, a filha do Alcaide Carrança, a Dona Izabel Moniz, que veiu a ser uma santa freira de Santa Clara do Porto, pois que logo no anno seguinte, em 1521, davam os dois á Sé Bracarense, n'um viçoso pimpolho, a garantia de que não lhe faltariam os grandes Arcebispos.

Não desfazendo em outro, Dom Manuel, que -- «morreu menino». -- e cuja data e mãe discretamente perderam de memoria os geneologistas.

A historia da paixão da madrasta veiu depois.

Mais exactamente: fez-se depois.

Fez-se das murmurações de enamorado convivio entre Dom João III ainda solteiro e Dona Leonor depois de viuva.

Com bem diverso proposito foram estas murmurações alimentadas, de um lado, do lado de Portugal, pelos que desejavam poupar ao Reino os enormes encargos de um consorcio novo e da liquidação das arrhas e dote da viuva Rainha, conservando-a no Paiz e no Throno, -- do outro lado, do lado de Castella, pelos partidários de Carlos V, que entendiam, com elle, ser a melhor maneira de fazer esquecer a Francisco I o captiveiro imperial, continuar-lh'o nos braços da irmã do Imperador. Fica para apurar mais tarde este caso.

Uns e outros exploraram o escandalo, se o não inventaram, que é o mais provavel: -- uns simulando querer, piedosamente, explical-o e expungil-o pelo amor e casamento de Dom João e da madrasta; -- outros pretendendo, briosamente, atalhal-o pela separação immediata dos dois e pelo regresso da pobre Rainha á ciosa auctoridade do irmão.

Venceram os ultimos, como é sabido, e não deixa de ser curioso e de dar novos trabalhos explicativos á Lenda, que vencessem, exactamente, por Dom João III, com inflexivel e bem pouco amoravel teimosia, não ter querido dar razão aos primeiros, e ter resistido a todas as intrigas e deligencias para que desposasse a madrasta, o que realmente não é a melhor prova de que estivesse apaixonado por ella. Escrupulos de fanatico, vieram a dizer os que depois de commoverem os corações generosos com o romance da sua malograda paixão de Principe, se castigam, movendo-os contra o seu não menos lendario fanatismo, bronco e sombrio, de Rei.

Voltando porém á nossa historia, menos romanesca mas bem mais natural e clara: -- Dom Jayme acabou certamente por conformar-se com a pratica deliberação de Dom Manuel.

Nem elle então havia de pensar muito no casamento do filho.

Como apegando-se desesperadamente â vida, n'um ultimo lampejo da mocidade, aquelle coração mal aventurado lançara-se tambem n'uma amorosa aventura que ou não o deixaria attentar muito na da projectada nora ou lhe abrandaria, n'uma complacente comprehensão, a revolta da austeridade e da prosapia affrontadas pela formosa rapariga.

Isto explica, naturalmente, a demora de Dom Manuel, em communicar-lhe os acontecimentos e em não chamar opportunamente Dom Jayme, o seu amigo e conselheiro leal, a acudir-lhe na paixão e no desserviço do escandalo domestico.

Desauctoriza-se um pouco, para taes casos, o discreto e prestigioso Duque, como é tempo de vermos.

VII DAMA DE FOLGAR Á barca, á barca segura! Guardar da barca perdida! Á barca, á barca da vida!

G. Vic. A. da B.

Foi em Dona Joanna de Mendonça,

... tão formosa Preciosa e mui lustrosa, Mui querida e mui oufana,

-- n'uma Mendonça, ainda! -- que a alma viuva e devastada -- «do que tomou Azamor,» -- procurou dessedentar-se e reviver, na necessidade inconsciente, fatidica, physiologica, de amar livremente e de sentir-se expontaneamente amada; de se abraçar com outra alma, de se fundir e completar n'ella.

Foi áquella graciosa e dominadora mulher, creança quasi, pobre, desvalidosa, pouco menos que obscura, que se lhe apegaram olhos e coração, n'uma paixão ardente, desesperada, irreductivel dos quarenta annos, -- que já os passara Dom Jayme.

É ainda a Natureza reconstituindo-se e vingando-se, triumphantemente, da Convenção que a tyranisa, do Preconceito que a deforma e mulila, da Lenda, -- da injusta Lenda, cortezan e hypocrita, -- que a relega e falsea.

Conta um velho papel, que um dia, -- não se sabe, nem é facil averiguar quando, o Duque, -- «estando frenetico,» -- naturalmente numa das suas crises mysantropicas, resolvera e, teimosamente, presistira em não tomar alimento, porque dizia que -- «estava morto.»

Atrapalhados os medicos, -- «os physicos,» -- como então, e por muito tempo, se disse, e vendo que a mania podia declinar em realidade pela debilitação crescente d'esta abstinencia prolongada, o mais -- «artificioso» -- d'elles, um hypnotista prematuro, fizera-lhe, de noite, -- «uma visão que lhe mostrou que elle estava vivo e que se não comesse é que havia de morrer.»

«D'ahi por deante comeu, e foi livre d'aquelle mal d'ahi a alguns dias,» -- conclue o papel.

Foi assim; foi tambem uma especie de visão salvadora a da gentilissima moça.

Dona Joanna de Mendonça estava longe de ser uma grande Dama.

Os geneologistas dão-se tratos por prender-lhe a linhagem em tronco glorioso, realengo até, que irmane, rasoavelmente, com o do prestigioso Duque, porque nunca quizeram perceber aquelles senhores que exactamente uma das melhores tradicções da Casa de Bragança, -- melhor ainda: da Corôa Portugueza, -- é a sua tradição democratica, genuinamente nacional.

Sempre que a repudiou ou que a trahiu, Casa e Corôa divorciaram-se da Nação: -- uma, porque abandonando o culto da sua origem, perdia a razão do seu direito: a outra, porque eximindo-se ao historico symbolismo do seu poder, alheiava o principio fundamental da sua legitimidade: -- a identificação, a garantia, a affirmação necessaria da Independencia, da Individualidade Nacional.

É isto a Monarchia Portugueza.

É, e sómente quando, ou emquanto, o souber ser e fôr: será.

Esta é a sua caracteristica diferencial: não representar, como outras, uma tradição de conquista, a sobreposição d'uma casta ou de um poder forasteiro, estranho; ser uma tradição de independencia, de reacção ou de revolução autonomica, nacional.

Em todas as suas falencias e provações tem de queixar-se de si que esqueceria, que deixaria de comprebender, que não saberia defender, firmemente, dos enredos doutrinarios ou das egoístas ambições dos politicos a sua razão, a sua virtude, a sua força inicial, necessaria, organica.

Mas, emfim, como é Damião de Goes que diz: -- «Os Furtados vêem da Rainha Dona Urraca, de Gastella, d'esta maneira,» -- e com os Furtados vieram os Mendonças, e a maneira é graciosa, e a historia contende com os primórdios da nossa, intercalemol-a, summariamente, aqui.

Era uma vez uma Dona Urraca, filha e herdeira de Affonso VI de Castella, irmã, conseguintemente, da nossa Dona Thereza, a mae do habil e intrepido fundador da Independencia Portugueza.

Esta Dona Urraca vinha a ser viuva de um Conde -- «Dom Reimão de Tolosa», -- aliás Ramon de Borgonha, conde da Galliza, que falecera em 1107, -- ha que tempo isto foi! -- em Grajal de Campos, deixando-a mãe de dois pequenos, um dos quaes havia de ser o celebre Dom Affonso VII -- «Emperador das Hespanhas», -- depois de muitos perigos e contendas.

Dona Urraca ficara, pois, por morte do pae, Rainha de Castella, tão moça quanto galante.

Como um vizinho, um rapaz atrevido e ambicioso, o Rei de Aragão, D. Affonso I lhe ameaçasse o Estado, entenderam os syndicatos politicos do tempo, -- que já então os havia, -- que o melhor a fazer era consorciar os dois, sem se importarem com a vontade d'elles, -- com a d'ella, pelo menos, -- como de feito, no -- «Castello de Munhão» -- aliás Muñon, em outubro de 1109 -- «casaron é ayntaron» -- a dita Dona Urraca com o Rei aragonez.

Muito expertos, como sempre, os syndicatos.

Fizeram, por largos annos, a desgraça dos dois e dos respectivos povos.

Era o seu officio.

Além da pobre moça, divergiram, apenas, os padres, por causa do parentesco proximo, que não houvera tempo e dinheiro para fazer dispensar pelo Papa.

Muitos annos depois é que este apurou que o casamento era incestuoso e nullo, mas não é isso que nos importa agora.

Ora convém saber que já quando elle se fizera, se falava muito de uma pouco recatada inclinação da formosa viuva pelo nobre -- «Conde de Campos Espina,» -- melhor talvez Dom Gomez de Candespina, que se permitira pretendel-a para mulher, em tempo ainda do pae.

Não tardou, pois, que os dois regios esposos se desaviessem tão seriamente que Dom Affonso, perdida a gravidade magestatica, -- de resto pouco equilibrada então, -- esmurraçasse e pisasse aos pés a consorte como o ultimo villão das suas terras, e que alguns d'elles desembestassem as línguas alarves chamando á sua gentil soberana -- «meretriz y enganadora.»

Não teem aceado muito mais as linguas, depois, os politicos!...

Mas o que Dom Affonso, rapaz previdente e pratico, principalmente mirara, na sua acquiescencia ao consorcio, não fôra tanto a mulher, como a Corôa, antecipando-se ao seu longinquo successor, mais polido e amoravel, comtudo, Dom Fernando o Catholico.

Tratou, pois, de guarnecer de aragonezes as cidades e fortalezas castelhanas, e encerrou a Rainha na de -- «Castiller,» -- aliás, Castellar, de Aragão -- «porque ella não vivia como á sua honra cumpria,» -- diz, finamente, Damião de Goes.

Ora uma Rainha n'estas condições não era muito facil de guardar, n'aquelle tempo, se em algum o foi.

Um bello dia, Dona Urraca -- «teve sua maneira» -- de sahir e aparecer aos seus leaes subditos, o que a elles -- «muito pesou,» -- e, para evitar maiores incommodos, naturalmente, os moveu a restituil-a aos ferros del-Rei seu marido.

Novamente, porém, teve ella -- «sua maneira» -- de apparecer-lhe, exigindo-lhes então, petulantemente, em Côrtes, as villas e terras que lhe pertenciam, e o cumprimento das -- «suas lealdades.»

Conformaram-se, d'esta vez, e passou a brava e galante dama a andar por meio d'elles -- «toda á sua vontade», -- não já com um Conde, apenas, mas com dois: o antigo namorado Dom Gomez, e Dom Pedro de Lara, outro valente partidario que sem impertinentes ciumes se ia pagando na exuberancia sentimental da malfadada Senhora, da esperança de reconquistar-lhe um throno... que compartilhasse com elle.

A historia continua em complicadas e sangrentas bulhas, no meio das quaes foi morto um dos Condes, o primeiro, e apparecem dois outros, muito nossos conhecidos, o de Portugal e o de Trava, além da mulher do primeiro e amante dos filhos do segundo, a nossa Dona Thereza, a irmã bastarda de Dona Urraca.

Uma longa e enovelada epopéa de intrigas, de cutiladas e de amores heroicos, um tanto desvergonhados, ás vezes, d'onde á força de uma grande habilidade como de uma tenaz e admiravel intrepidez nasceu Portugal, e d'onde, por agora, só nos importa saber que nasceu, tambem e antes, o primeiro Furtado que houve no Mundo: -- Fernando Perez Hurtado, -- filho de Dona Urraca e do seu segundo Conde.

Como a estirpe illustre se fixou, áquem da fronteira e se enxertou na dos Mendonças não é fácil saber-se, com segurança. É certo, porém, que nos ultimos reinados da dynastia Affonsina tivemos cá um Affonso Furtado, -- «fidalgo honrado que foi Capitão-Mór do Mar d'estes Reinos,» -- e que, por signal, ia deixando perder-se a gloriosa semente, só reproduzida por um filho, do mesmo nome, depois, felizmente, com larga e sobeja vitalidade.

Affonso Furtado, filho, foi o avô de Dona Joanna de Mendonça e merece, por isso, especial referencia.

Merece-a ainda, por que o foi tambem de outra formosa mulher que deixou vinculado o nome á historia e á fidalguia do Reino.

Sabe-se que foi Anadel-Mór de besteiros e que seguira o partido contrario ao Infante Dom Pedro, o que morreu em Alfarrobeira, nas contendas que a ambição desalmada e hypocrita do poetado Regente suggeriu na menoridade de Affonso V.

Duas vezes casou este Affonso Furtado, Junior que já devia ser de Mendonça.

A primeira mulher, Dona Constança Nogueira, filha de um Alcaide-Môr de Lisboa, Affonso Annes Nogueira, deu-lhe um filho, -- Nuno Furtado de Mendonça, Aposentador-Mór de Affonso V, morto n'uma refrega em Castella e pae de Dona Anna de Mendonça, a formosa e apaixonada amante de Dom João II, que morreu santamente Commendadeira do Mosteiro de Santos, este e o futuro Duque de Coimbra, Dom Jorge, os dois egregios monumentos de taes amores.

Da segunda mulher, -- Dona Brites de Veragata ou Villarragut, -- creada da mulher do Infante Dom Pedro, teve o Anadel-Mór, além de outros, um filho, chamado Diogo de Mendonça que foi o pae de Dona Joanna.

De maneira que n'esta bemavenlurada familia, e até em duas primas-irmãs, vieram a prender-se, definitivamente os corações do algoz e do filho do Degolado de Evora!

Estranha ironia da Natureza ou do Acaso!

Não satisfeitos com a gloriosa procedencia de Dona Urraca, e com a honra d'aquella mancebia regia tão viçosa e florente pelos seculos adeante em novas fidalguias, os dedicados pesquisadores de vidas nobres veem a descobrir, pela creada valenciana, que dizem filha de um terceiro barão de Ollacan, Antonio Villarragut, qualquer ligação heraldica dos Mendonças com uma grande Casa da Hungria.

Esta Hungria deu basta nobreza a Portugal e esteve muito em moda nos geneologicos.

Em elles não sabendo onde prender uma linhagem illustre, ou precisando fazel-a tal, enterravam-lhe as ultimas radiculas no paiz Magyar.

Era como a Syria, na Lenda aurea dos Martyres.

O que é certo, é que Diogo de Mendonça, era em 1469 cavalleiro fidalgo, com 2§700 réis de moradia, e que por morte do irmão mais velho fôra Anadel-Mór, como o pae.

Mau Anadel, parece, pois que a requerimento dos povos, Dom Manuel tivera de lhe tirar o cargo, dando-lhe para viver a Alcaidaria-Môr de Mourão, e pouco depois 92$000 réis de tença como indemnisação da respectiva judiaria extincta com as mais.

Com um certo desapego pela ascendencia realenga, casou com Brites Soares, bastarda d'um pequeno fidalgo sertanejo, Fernão Soares d' Albergaria, «Senhor do Prado» e de uma rapariga beiroa, Maria Gonsalves, de Alfacachão, ao pé de Vizeu.

Foi, tambem, prolifico este casamento.

Dos filhos, o primogenito, Francisco de Mendonça, foi capitão de Ormuz e morreu moço, sendo casado com uma filha do celebre Dom Francisco d'Almeida, Dona Leonor da Silva que trancou a viuvez com Dom Rodrigo de Mello, o primeiro Marquez de Ferreira.

Foram os outros: Pedro de Mendonça que succedeu ao pae na Alcaidaria de Mourão e foi do Conselho de Dom João III, casando com Dona Thereza de Lima, filha de Dom Alvaro de Lima; -- Antonio de Mendonça o Martello, que casou com uma filha do aio e depois Camareiro e Guarda Roupa de Dom João III, Ruy de Paiva; -- Chrystovão de Mendonça, que em 1519 embarcou para a India e foi, como o primeiro, capitão de Ormuz, onde morreu, tendo casado com Dona Maria de Vilhena, que se consorciou depois com o Vedor das ^Obras, Simão da Silveira.

Das filhas, casou uma, Dona Izabel de Mendonça com Dom João Manuel de Vilhena, morgado castellano; -- outra, Dona Margarida, foi mulher de Jorge de Mello, o Monteiro-Mór, -- e tres ultimas perderam-se nas sombras do Claustro, sabendo-se apenas de uma que foi abbadessa de Santa Clara, de Coimbra.

Entre estas ultimas e a segunda é que viera ao mundo a bem fadada para mais altos destinos, -- Dona Joanna de Mendonça, Dama da Rainha, -- da Dona Maria, primeiro, talvez da Dona Leonor, ainda, -- mais propriamente: uma d'aquellas moças, filhas segundas e pobres, de servidores da Coroa, que andavam no Paço amparadas e educadas pela munificencia regia.

Dona Joanna de Mendonça não deveria ser já uma creança, em 1512, pois que andava nos Saraus e era das

Santas Virgens conservadas em mui santo e limpo estado,

a quem Gil Vicente, ou a sua -- «alcoviteira Branca Gil», -- exhortava a que soccorressem

... o namorado, Que vós sejaes namoradas.

Foi no Velho da Horta, n'aquelle delicioso Auto em que as meninas da Côrte são gentilmente avocadas pela manhosa e aposentada rameira, como piedosa desculpa dos amores serôdios e adulteros do pobre Velho:

Que a todo o homem perfeito Mandou Deus, no seu preceito: Amarás!

Que edade teria Dona Joanna? Não poderia ser muita.

Andaria entre os 14 e os 20.

Se a Arte, -- a da Côr ou a da Forma, -- não nos transmittiu o retrato d'esta Estrella do Céo Manuelino, -- e mais ella, não só pelos dotes plasticos, bem merecera que a fixasse a Pintura ou a Estatuaria, -- os poetas que lhe volitavam em redor, até os graves chronistas e geneologos, encarregaram-se de pintal-a e esculpil-a, gloriosamente.

Garcia de Rezende, quando de Almeirim envia novas da Corte ao saudoso Manuel de Goios, -- «que estava por capitão na Mina,» -- isto é, antes de 1516, ou então, diz-lhe:

Dona Joanna de Mendonça, que deixastes, cá partida, uma muito gentil moça: não é cousa d'esta vida, que mata os homens por força! Cresceu tanto em formosura, em manhas, desenvoltura, graça, saber, discrição, que não sinto coração, a que não dê má ventura!

E muitos annos depois, quando já viuva e mãe de muitos filhos, Damião de Goes que a conheceu, lembra-se de que era -- «uma dama formosa, prudente e discreta.»

Conservara os predicados da mocidade, vê-se.

As trovas que inspira, o gracioso cancioneiro que em volta d'ella se forma e em que ella propria collabora, completam e accentuam a revelação d'aquella gentilissima individualidade.

Era, evidentemente, uma mulher intelligente.

Poetisa, por desenfado e galantaria, sem preoccupações litteratas e como tal afamada nos saraus d'aquella Côrte tão aprimorada e exigente nos lazeres da bella Arte, deixou de poetar para sempre quando outra poesia mais alta e util, a de companheira de um grande desgraçado, -- a do Amor sério, a da honesta Maternidade, -- lhe acendrou o coração e o espirito.

Não anda citada, é claro, na historia litteraria corrente, que entre nós, a respeito de espiritos mulheris de eleição tem geralmente a memoria muito cheia de nomes e hendecasylabos francezes para que possa inclinal-a, sem perigo de extravasar tolice, á femenilidade e á redondilha patria.

Mal podera, tambem, passar pela idéa á fidalga collaboradora de Garcia de Rezende que um plebeu impertinente de alguns seculos adeante lhe havia de apanhar meia duzia das perolas que a sua desenvoltura galante deixou cahir nas salas de Almeirim, ou da Ribeira.

-- «Por bem» -- foi, como dizem as pêgas chocalheiras de Cintra.

Mas pois que este traço da desenvoltura é memorado, insistentemente, pelos admiradores de Dona Joanna de Mendonça, convém salval-a das suspeitas e remoques da má lingua de hoje.

Aquillo, então, era elogio e prenda.

Além de que eramos muito menos sorumbaticos e graves, já um escriptor distinctissimo que profundou muito o viver e pensar dos seculos XV e XVI, advertiu que o sentido, a bem dizer, moral, ethnologico, de certas palavras se tem modificado, por maneira, que não contando com isso nos arriscamos aos mais temerarios juizos, -- aos mais disparatados até, -- relativamente aos personagens antigos.

Assim, Lucrecia Borgia, que ainda fazendo o desconto enorme da Lenda, não é, não pode ser, naturalmente, para nós, o ideal da discrição e da prudencia feminina, é geralmente para os seus contemporaneos, e não somente para os seus cortezãos, a «discreta», a «prudente» Lucrecia.

Nem foi, rigorosamente, a palavra que mudou.

Foram os costumes, o meio, o senso moral ou o senso critico; as correlações convencionaes ou educativas do Pudor, da Consciencia, do Decoro social.

Não ha, pois, de que suspeitar na «desenvoltura», no «despejo» como se dizia tambem, ao tempo, da formosa filha do Alcaide de Mourão.

Nem os seus cortezãos, os seus -- «servidores» -- se queixam e murmuram, lastimosamente, senão da esquiva galantaria d'ella, do seu desapego affeclivo, da sua isempção desenfadada, gracejadora, cruel, no cêrco de adorações e de enamorados enlevos que vivamente lhe fazem.

A sua desenvoltura é isto.

Era um d'estes temperamentos activos e resistentes que parecem feitos para dominar e estimular os outros, guardando e defendendo, numa forte autonomia de movimentos, o thesoiro da sua affectividade sexual, como á espera de ignota existencia a quem o abram e entreguem, por uma vez, intacto e opulento.

Mas com ser isto, não era uma soberba, uma esquiva pretenciosa e sêcca, como algumas das suas companheiras, pelo gosto d'aquella, por exemplo, de quem dizia o engraçado Rezende:

Uma, de sangue real,

que se criou em Castella,

sendo nossa natural,

não anda ninguem com ella,

nem casa em Portugal.

Faz mesuras de cabeça,

não acha quem lhe mereça

mesura d'outra feição,

senão primo com-irmão,

ou outrem que o pareça...

Salamandra que as labaredas do Amor e do Apetite lambiam sem macular, Dona Joanna de Mendonça folgava e ria dos seus adoradores e poetas; não lhes dava ouvidos ou não lhes dava o coração; não se rendia ás suas queixas e aos seus louvores repudiados em trovas onde, mais de uma vez, palpita e se advinha uma affeição sincera, uma cubiça apaixonada.

-- «Dama de folgar» -- lhe chamam elles.

Trazia-os enleados, captivos; folgava em vel-os -- «marteirados»; -- aconselhava -- «a perigosa» -- Dona Beatriz de Vilhena a que não fosse -- «despiedosa»; -- advogava, graciosamente, junto das genlis companheiras, nos -- «jogos de cartas». -- ou nas -- «sortes ventureiras» -- dos Saraus, a causa dos enamorados -- «servidores», -- mas com a turba dos seus, queixam-se elles em côro, longe de praticar os conselhos que dava, era -- «de muita cruesa»; -- «tomava praser de seu mal», -- gostava de os -- «ver morrer»... -- por ella, naturalmente, como aguardando, alegre e recatada Ophelia, o prestigioso dominador a quem entregar-se, inteira e pura.

Por isso tambem, quando uma vez, por qualquer desenvoltura mais viva, a Rainha, certamente a boa e devota Rainha Dona Maria, lhe mandou que -- «não sahisse uns dias da pousada» -- do Paço, rompeu-lhe em volta, em toda a linha dos poetas dos Saraus uma surriada de arrelias e de revindictas joviaes.

O grave, o primoroso João Rodrigues de Lucena, espraiou-se, elegantemente, em provar que era muito bem feito que se prendesse a cruel menina, porque era evidente e sabido que

... solta, então,

prendereis muita mais gente

e em mais esquiva prisão.

E concordavam todos, que sim, que era razão e justiça direita, e o dorido Simão de Sousa, n'um grande rancor amoroso, sô queria ser elle, n'aquella -- «prisão» -- ,

... o carçareiro

e senhor,... que se pagasse!

Se não havia de querer, o Simão!...

VIII

POR AMORES

... as eminencias que só são alturas são perniciosas, as que são excellencias, estas são estimaveis.

F. C. de Lacerda, Cart. part.

Convinha-nos conhecer, por mais de um motivo, o Simão de Sousa, o que faz trovas a Dona Joanna de Mendonça, ahi por 1516 ou pouco antes.

Destaca-se elle, caracteristicamente, d'aquella côrte enamorada e poeta da filha do Alcaide de Mourão, não por trovar melhor as graças e cruezas da moça, mas porque se lhe surprehende e advinha nas cantigas alguma cousa mais do que um galanteio ostensivo e banal; um sentimento, um enlevo real e sério; o nectar e o fel de uma verdadeira paixão.

Que já com outras, com a Calataud, -- «a perfeita»,-- por exemplo, se mostra elle muito apaixonado e suspeito.

Era, certamente, um d'aquelles

... que bem Sousas são, e que

Muito a miudo começam amores,

Porém nunca acabam de ser namorados, da graciosa lenda Gilvicentiana.

Uma lenda soffrivelmente lisongeira, tambem, e tanto, diga-se de passagem, que a respeito da grave isempção e esquivança das

... mulheres Sousas de nação,

está bem de ver que não mette em linha de conta a illustre manceba do Bispo do Porto, Dom João de Azevedo, nem a que fez, com o Marquez de Valença, o muito nobre senhor Dom Affonso, Bispo de Evora.

E outras, e outras...

Conhecemos uns poucos de Sousas, d'aquelle feitio, n'aquelles tempos proximos.

Um dos mais preclaros, e que realmente parecia não acabar de -- «ser namorado», -- é o Dom Pedro de Sousa, filho do Almotacel-Mór de Dom João II, Ruy de Sousa e de uma das formosas Vilhenas, -- a Dona Branca.

Foi dos mais ostentosos fidalgos que receberam na fronteira a terceira esposa de Dom Manuel, ás ordens de Dom Jayme.

Um valente e um Sousa a valer.

Governou Alcacere Seguer e Azamor, e foi senhor de Bringel, Alcaide-Mór de Beja e Conde de Prado.

A Alcaidaria de Beja houve-a elle, com uma bella fortuna em tenças de juro, da segunda mulher, Dona Margarida de Brito, -- «a qual matou por lhe faser aleive, segundo elle dice», -- conta-nos Damião de Goes.

Foi um caso de sensação, este, não pelo aleive e pela consequente morte da Senhora, é claro, mas pela arremettida fidalga e original com que o Sousa coroou a historia.

Casara elle, primeiro, com uma filha do Coudel-Mór, Fernão da Silveira, de quem teve, apenas, Francisco de Sousa que tambem offereceu, tristemente, um testemunho nova á lenda enamorada da familia.

Enviuvando, a fatidica exuberancia amorosa, naturalmente auxiliada, um pouco, pela fortuna da filha e herdeira do Alcaide de Beja, fixou-se-lhe nesta mulher.

Quando soube, porém, do aleive, não se contentou em matal-a.

Arremetteu por Castella dentro, trinta leguas bem contadas pelos geneologistas, com mais quatro homens -- «de cavallo», -- atraz do creado garanhão.

Levantou-se, além da fronteira, um enorme bulicio, e não foi sem -- «grande esforço e valentia» -- que a vingadora cavalgada poude escapar às Irmandades que a perseguiam, e recolher-se, a salvo, da consummada proeza.

Estava escripto, porém, que não havia de acabar de ser namorado, o Sousa.

Não tardou, pois, que se namorasse de uma Dona Joanna de Mello, filha de um Provedor de Evora, Dom Affonso de Aguiar, casando pela terceira vez.

Bem mais feliz do que o filho, o Dom Francisco de Sousa, que lembrámos acima.

-- «Por amores», -- como se dizia então, consorciara-se este com a filha do illustre Barão de Alvito, Dom Diogo Lobo, Dona Maria de Noronha.

Não a desamparara no fundo do solar sertanejo, como tantos, antes com ella vivia em Beja, tranquilla e affectuosamente, a julgar pela crescida prole com que os dois iam regularmente assegurando os altos destinos geneologicos do nome.

Um dia, porém, entra-lhes em casa, rudemente, o Juiz de Fóra, -- «com fortes Provisões dei Rei Dom Manuel, a requerimento do dito Conde seu Pae e do dito Barão seu sogro», -- não se sabe porque; arranca-o -- «dentre os lençoes onde com sua mulher estava», -- muito moralmente, e põe-n'o com forte escolta, a caminho de Lisboa.

Chegado aqui, embarcam-n'o na nau Loba que partia para a India, onde -- «endoudeceo de paixão e lá morreu, o que lhe foi feito», -- conclue doridamente o Livro das Linhagens, -- «sendo elle muito honrado e bom fidalgo».

Talvez, por isso, até.

Mas seria um nunca-acabar estas historias dos Sousas, e o que precisavamos conhecer, de mais perto, era o Simão das trovas, que aliás não é fácil tambem destrinçar entre os homonymos que se nos deparam.

Logo com o primeiro que nos acode á memoria e que não pode ser o nosso, se dá um caso complicado e galante que abona a inclinação lendaria da raça.

Citemol-o sempre, pois que um filho d'elle, Francisco de Sousa, creado pobremente por um mercador que fôra domestico da familia, sahindo bom soldado, acompanhou Dom Jayme a Azamor.

O caso fôra este: -- Simão de Sousa tivera este filho de uma freira de São Bento do Porto.

A cousa não faria bulha se a Esposa do Senhor,. -- Dona Calharina de Faria, -- não fosse sobrinha do celebre Antão de Faria, Camareiro e Valido de Dom João II, que muito praticamente mandou o Simão expurgar-se d'aquelles sacrilegos amores em Ceuta, onde os pagou com a vida em 1488.

Voltando de Azamor, o pobre do filho, vendo-se mal visto dos emproados parentes, internou-se em Castella, alijando o nome funesto do pae, tomando amorosamente o da mãe, que era viva ainda, e protestando que taes cousas commetteria, como Francisco de Faria, que assim passou a chamar-se, que se roesse de inveja a prosapia descaridosa dos Sousas.

Mas não havia de fugir ao destino.

Vindo a Portugal na idéa de embarcar para a India, quando atravessava a Beira para ir despedir-se da mãe, ao Porto, namorou-se da filha de um -- «Anriques Cardoso, rico e honrado homem» -- chamada Helena Alves Cardoso, de quem teve, desposando-a, um unico filho, Simão Francisco de Sousa que militou em França e lá morreu.

Dois Simões de Sousa nos apparecem ainda a intrigar a nossa natural curiosidade de conhecer o sentido e mallogrado cantor de Dona Joanna de Mendonça.

De um d'elles, bastardo de um Camareiro do Infante Dom Henrique, Luiz de Sousa o craveiro, sabemos apenas que morreu pelejando contra os turcos, em companhia de um Diogo de Mello, talvez o que os papeis antigos dizem que morreu indo a Rhodes.

De outro temos sómente a vaga noticia de que filho de um sobrinho d'aquelle Luiz de Sousa, se fez frade -- «que chamarão Frei Simão».

Resta-nos, finalmente, o Simão de Sousa do Sem ou Docem, cujo nome figura frequentemente na epopêa maritima do tempo Manuelino.

Seja, porém, qual fôr, se alguns d'elles é, o nosso Simão de Sousa, é certo que as suas trovas revelam, claramente, que não era apenas um cortezão casual e desinteressado de Dona Joanna de Mendonça, e dão-nos, até, a respeito d'ella, uma indicação que poderia ser-nos preciosa.

Importunando a esquiva e dominadora Dama da Rainha, com as queixas e maguas de um amor que parece ter alimentado esperanças de ser correspondido e pago, Simão de Sousa, ouve um dia, -- «que casava Dona Joanna de Mendonça», -- e rompe n'uma cantiga mordaz, tristemente sarcastica, insolentemente prophetica, em que a propria incorrecção e dureza de forma parece espelhar o tumultuar da paixão:

Se vos vir tão enganada,

e nos deixardes tão sós,

quando perguntar por vós

sem... pela enforcada.

Quando foi isto?

Antes de 1516, ou quando muito n'esse anno, decerto.

Seria já com Dom Jayme que a davam em amorosa intriga?

Um só episodio, insignificante, mas caracteristico, chegou até nós, da paixão tarda e profunda do Duque.

Confiara Dona Joanna, de uma creada, uma peça de porcellana que estimava.

Quebrou-lh'a a mulher, e naturalmente na irritação do momento, a filha do Alcaide dissera-lhe que ou havia de lhe restituir inteira, a querida porcellana, ou apresentar-lhe... alguma cousa impossivel: -- «um lobo vivo», -- dizem os velhos papeis.

Já então a cortejaria o Duque, e de medianeira lhe serviria a creada pois que esta lhe foi contar o caso e pedir favor.

Dias depois, entrava no Paço e era entregue á gentil e maguada menina, um lobo aulhentico e vivo que o Duque lhe enviava da sua Tapada, onde -- «com grande deligencia foi tomado de seus monleiros por haver muitos nella».

Galanteio ducal do seculo XVI!...

E nada mais transpira d'estes derradeiros, talvez os primeiros amores do austero viuvo da «Senhora Duqueza», senão que enlevado em Dona Joanna, ou que enlevados os dois, -- ella como se tivesse emfim encontrado o conquistador, o senhor, o esperado e encantado Principe a que havia de render e entregar a esquiva e graciosa desenvoltura da sua mocidade; -- elle como se a alma ensombrada e opprimida lhe rejuvenescesse e se abrazasse n'uma segunda adolescencia, se lançam nos braços um do outro, apenas pagando á Convenção e á Conveniencia social o preito das exterioridades formalistas da Fé.

Elle era o primeiro Senhor do Reino, depois do Rei.

-- «Depois de Vós, nós,» -- podia dizer-se que era já a divisa Bragantina.

Era rico, poderoso, temido.

Experimentado, terrivelmente experimentado nas illusões e perfidias da Mocidade, da Grandeza, do Amor, fizera-se severo e pratico.

Duro, talvez.

Tinha quarenta e dois annos, mas a Desgraça que logo lhe fustigava, rijamente, os primeiros, havia de ter-lhe accrescentado a edade ao coração.

Temperamento e educação continuavam, como até o fim da vida, a impulsional-o ás occupações e ás idéas devotas: -- monasticas, até.

Ella, pelo contrario, era pobre, quasi de condição humilde, sem outra força que não fosse a que tantas vezes é fraqueza; -- a de um corpo formosissimo, a de um espirito gentil, despreoccupado, alegre.

Teria metade da edade d'elle; pouco mais.

Folgava nos Saraus; fizera-se mulher sem conhecer da vida mais do que a atmosphera falsa, artificiosa, enganadora da Côrte.

Andava já, n'esta, quando succedera a tragedia de Villa Viçosa.

Teria ouvido contar muitas vezes a historia d'aquella pobre mulher, -- moça e alegre, como ella, -- cruamente, desamparadamente morta ás cutiladas por elle, junto dos pequeninos filhos, a dois passos do cadaver degolado do Pagem, -- uma creança, tambem, -- em face da famulagem alcoviteira e estupida.

O quadro sinistro não lhe teria alguma vez surprehendido e apavorado aquella cabeça intelligente e poeta, aquelle coração amoravel e ingenuo, quando até á sua delicada figura de menina e moça, sem fortuna e sem nome, se curvava, implorante e cúpida, em propostas e protestos de amor, a viuva grandeza do Duque?

Grandeza e Fortuna, calculos e escrupulos da Prosapia e da Politica, distancias de condição e de edade, recordações sinistras e perigos de educação cortezan, -- faceis suggestões, até, e tolerados exemplos dos costumes sociaes do tempo, tudo desappareceu e cedeu, n'uma absoluta impotencia, perante este accordo de duas existencias que por si proprias, sem intervenção de Reis calculistas ou de ambiciosas familias quizeram dar-se e fundir-se.

Como galhofeiramente diria o nosso Gil Vicente:

Isto tudo faz fazer

O mau rapaz do Amor.

Bom rapaz, d'esta vez, pois que o exito deu-lhe inteiramente razão.

Não se discutiram clausuras e cautellas; não se fizeram arrhas e dotes; não se chamaram notarios a preceituar e enlear o Futuro nas formulas e casos da Prudencia tabellioa.

Á beira da sepultura, elle diz:

-- «Eu casei com a Duqueza Dona Joanna de Mendonça pelo contentamento que tinha d'ella, e não olhei a fazer contracto nem para seu proveito nem meu.»

Ella deu-se sem «preço de seu corpo,» como menos hypocrita do que já era então, dizia a velha jurisprudencia.

Elle recebeu-a, mais exactamente: deu-se-lhe tambem, sem querer saber dos globulos realengos que lhe andariam nas veias, e que tanto haviam de fazer matutar e mentir os futuros Caetanos de Sousa.

Quando muito, -- façamos esta concessão ao Geneologio: -- não casou o Duque sem a ceremonia de pedir venia, primeiro, ao Rei.

Quando foi, porém?

Foi em 1520.

É tudo o que podémos arrancar á escassa memoria da Chronica fidalga.

Nem mais lográmos encontrar nos próprios archivos da Casa.

Quando fôra da extraordinaria nova do terceiro casamento de Dom Manuel, estava o Duque na Côrte.

Foi um dos que assistiram á audiencia das regias explicações do caso, com que todos ficaram ou se mostraram satisfeitos, menos o Principe que via mallograr-se a illusão de poder dispor da Corôa e de si, para se dar e a dar, talvez, á prima gentil.

Dom Manuel não diria ao Duque tudo quanto naturalmente calava dos outros.

Mas é provavel, e os documentos autorizam a hypothese, de que além das razões ostensivas e publicas, o Rei não occultasse, inteiramente, do seu dilecto servidor e amigo a razão fundamental e verdadeira da resolução inopinada, se é que a não acordara com elle.

É a elle, até, que Dom Manuel encarrega de receber na fronteira a terceira esposa e Rainha, como já lhe recebera a segunda.

Era alguma cousa mais, -- d'esta vez, -- em face da mal abafada perturbação dos espiritos e das vontades, -- do que a graça, o capricho, o favor de um patronado domestico que iniciava o relevo e a grandeza de um valimento Real. Era, necessariamente, uma selecção partidaria, como se diria hoje; uma delegação de confiada privança; uma affirmação de pessoal e intimo accordo.

IX

ANJO DO LAR

Porque Anjo quer dizer propriamente Nuncio, e não é nome de natureza, senão de officio, e porque o officio dos espiritos inferiores d'este coro é annunciar e ser embaixadores da vontade de Deus...

F. B. Flos Sanct.

E com quanta ostentação magestaticamenle

impressionista, com que primoroso e imponente lusimento, cumpre Dom Jayme a renovada commissão!

Dir-se-hia que acabando de beijar, leal e convicto, a mão do afrontado Monarcha, na grande audiencia em que elle explica e intima á oscilante Côrte, o extraordinario acontecimento, se voltava, erecto e resoluto, em toda a grandeza da sua força e da sua dedicação, para os que haviam ousado contrariar a Vontade e a Auctoridade Regia, intimando-lhes ás murmurações e aos despeitos o silencio e obediencia.

Sente-se o amigo, o partidario acrisolado e decidido, como se sente o artista, n'aquella grandiosa ceremonia.

Não parece, tambem, que uma idéa, um sentimento novo, alguma cousa como um raio de luz jovial e estimulante, -- um raio de vida, de mocidade ou de amor, -- banha e remoça aquella alma concentrada e fria?

É quasi um exercito o cortejo.

Parece o proprio Rei o enviado.

Formam a guarda ducal duas companhias dos seus alabardeiros, de cincoenta homens cada uma, uniformisados de velludo negro e amarello, com as capas de panno fino d'esta côr, barradas do mesmo velludo, gorras de gran, espadas doiradas, grandes alabardas cravadas de pregaria vistosa.

Os Reposteiros, os Porteiros, os Cozinheiros, vinte e quatro Moços de Estribeira vestem jubões de seda e saios de gran, de varias côres, segundo os officios.

Quarenta Moços da Camara, de corpos em velludo alaranjado, calças de velludo pardo guarnecidas de tafetá amarello, capas d'esta côr barradas d'aquelle velludo; -- treze trombetas e onze charamellos tambem vestidos de velludo e seda dos mesmos tons, com as Armas Ducaes em escudos de prata nos peitos; -- seis atabaleiros, de amarello e preto, com os gorros encarnados; -- dois Porteiros com as grandes Maças de prata, e cottas de velludo roxo bordadas a ouro; -- os Reis d'Armas, o Arauto, o Passavante, de coitas carmezim e as Armas bordadas a ouro e prata; -- seis Moços-Fidalgos; -- uma multidão de Officiaes e famulos solarengos; -- trezentos homens de cavallo, com lanças e couras, commandados por Antonio Lobo, o Alcaide-Mór de Monsarás; -- recuas de azemolas variadamente ajaezadas, conduzindo bagagens e utensilios de serviço: -- tal é a opulenta e deslumbrante moldura da grande embaixada em que fortemente se destacam as purpuras episcopaes, os trajos variados e elegantes, as armaduras ricas de muitos dos maiores Senhores do Reino.

Monta o Duque, á gineta, um formoso cavallo ricamente ajaezado á Mourisca de carmezim bordado a oiro e aljofares.

Veste de preto, com bonete de velludo em que fulgura um punhado de diamantes.

Vão-lhe á dextra um cavallo ajaezado a ouro e prata, charel de velludo de altos, encarnado, redeas de fio de ouro, e uma esbelta mulla guarnecida de tecidos de prata: -- 40 marcos d'este metal, em fio, -- repartidos em flores de oiro; copos, estribos e esporas de oiro, tambem; teliz de velludo encarnado, preto e pardo, franjado e semeado de flôres a oiro.

Á beira do Sever, da parte de Castello de Vide, se postou a deslumbrante comitiva.

Do outro lado ostentava correspondentes galas a que de Saragoça conduzia a futura Rainha de Portugal entre o Duque de Alva e o bispo de Cordova.

Trocadas as primeiras saudações, ao som alegre e longo das charamellas e ataballes, passou Dona Leonor a ribeira, apeando-se Dom Jayme para beijar-lhe a mão, e fazendo ler, alto e solemne, o regio mandato de receber a mulher do seu Amo e Monarcha.

De um pulso d'ella pendia uma cadeia de oiro, gracioso symbolo da superioridade europea e christã sobre a tosca moral dos que se servem apenas do ferro e da corda para conduzirem as femeas aos harens e libatas dos Senhores...

Nas mãos de Dom Jayme entregou o representante de Dom Carlos, irmão e dono da juvenil Princeza, a outra extremidade do aureo grilhão.

Estava feito o trespasse.

Pernoitaram a Rainha e a comitiva no forte Castello de Dom Diniz, e ao outro dia entraram no Crato, onde se consummou o tão discutido consorcio.

Foi isto em novembro de 1518.

Estava ainda viuvo Dom Jayme, mas é mais que provavel que já então, entre as festas e alvoroços das nupcias reaes, lhe andasse a viuva virilidade desannuviando-se nas graças e encantos de Dona Joanna de Mendonça.

Continuava esta no Paço, e d'esse mesmo anno ha testemunhos de que a acaricia o favor e a munificencia Real.

Era já orphão, ou n'esse anno o foi, decerto, pois que o irmão segundo, o Pedro, succede na Alcaidaria de Mourão, sendo feitos, elle e outro irmão, o Antonio, cavalleiros fidalgos com moradias de 2$600 réis.

O terceiro dos que haviam ficado no Reino, Chrystovão de Mendonça, embarca no anno seguinte para a India.

Deviam ter casado todos, e as irmãs mais velhas, tambem.

Produz, naturalmente, uma certa impressão de extranheza, a quasi segregação da propria familia, em que a gentil dama da Rainha nos apparece, n'este tempo e depois. E comtudo, independentemente dos costumes do tempo e de que os Mendonças, -- pelo menos os do Alcaide de Mourão, -- eram amigos e servidores do Duque de Bragança, tendo sido dois, como vimos, seus companheiros na jornada de Azamor: os amores de uma das Mendonças com o poderoso e egregio Senhor mal pode suppor-se que lhes não fossem agradaveis á fidalguia e aos interesses, ainda quando se não resolvessem e liquidassem limpamente perante a Egreja.

De bom animo e com excellente e ostentado proveito haviam acceito os Mendonças da amante de Dom João II estes outros amores bem mais desproporcionados e escandalosos, pois que até um d'elles, se presara de ser creado e valido do bastardo producto da formosa irmã.

Por outro lado não é menos provavel, que apesar da annuencia final de Dom Manuel a este enlevo amoroso, Dom Jayme tivesse de vencer objecções e contrariedades, quer da politica, e da prosapia da familia, quer dos graves e necessarios interesses da sua situação de chefe e administrador de uma enorme Casa.

Era viva a mãe que affectuosamente creava os dois orphãos da «Senhora Duqueza» e que não veria, sem apprehensões e reluctancias, succeder-lhe inesperadamente no titulo e na carinhosa protecção e educação dos netos, unicos herdeiros da riqueza e do prestigio ducal, uma simples dama do Paço, moça, formosa, sem tradições nem experiencia de grande Dama, e que ella não poderia já iniciar e instruir na alta e singular posição de Duqueza de Bragança, como tão mallogradamente fizera com a pobre Gusmão.

Escrevendo o seu testamento, em 16 de julho de 1520, Dona Izabel, que só um anno depois morria, não tem uma palavra, não denuncia um movimento de carinhosa deferencia para a que, se não era já, ia ser brevemente, a sua segunda nora.

Um facto, pouco vulgar succede por este tempo, a alguns dias apenas, de distancia, que não pode deixar de suggerir reparo.

Um dos mais importantes e fidalgos servidores do Duque, um intimo da Casa, como se diria hoje, o filho do velho e dedicado Aio de Dom Jayme, -- Martim Affonso de Sousa, Alcaide-Mór de Bragança, -- desliga-se d'elle, inteiramente, abandona o seu serviço, com o pretexto de passar ao do Rei; de -- «lhe cumprir e relevar viver» -- com este.

E tal empenho põe no caso que obtendo, ou por obter a licença do Duque, de que o Rei não prescinde, por escriptura publica renuncia a todas as coisas, honras e promessas que de Dom Jayme recebera o pae, obrigando-se a que -- «nunca em tempo nenhum», -- as reclamará, nem tão pouco, directa ou indirectamente solicitará voltar a seu serviço e Casa.

Tinha vinte annos, apenas, Martim de Sousa, mas pede e obtem, ainda, que Dom Manuel lhe releve os cinco que lhe faltam para a maioridade legal.

É apertado e urgente o caso, vê-se. Não andaria n'elle qualquer reluctancia de indignada prosapia ao reconhecimento da nova Senhora Duqueza?

O que é certo é que só n'esse anno, como dissemos já, podemos, com regular segurança, collocar o desfecho definitivo da amorosa intriga n'um casamento que tão modesto, senão escondidamente se fez, que não deixou de si, na Chronica e no Geneologio, mais do que o suave e honesto perfume de uma sincera e despreoccupada fusão de duas almas, não apenas o de dois corpos ou o de dois nomes.

Quasi pelos annos de casados se contam os filhos de Dom Jayme e de Dona Joanna de Mendonça, embora de quasi todos se ignore a data em que nasceram.

Foram oito e apenas onze annos durou este tranquillo e recatado consorcio.

Dos masculos, teve o primeire o nome do pae e morreu moço e padre, deixando testemunho de como lhe erraram a inclinação, n'uma menina que foi fazer companhia ás tias, já então freiras, naturalmente, nas Chagas, de Villa Viçosa.

Os outros foram: -- Dom Constantino, o celebre Dom Constantino, o galante padrinho, por Dom João III, do Duque de Orleans, o filho de Henrique II de França; e depois Vice-Rei da India; o que tomou Damão como o pae tomara Azamor; -- Dom Fulgeneio, feito padre tambem e Dom Prior de Guimarães, que segundo os velhos papeis -- «furtou a um fisico a filha, -- Camilla de Sousa, -- e tendo-a -- «por manceba» -- lhe fez o nobre Senhor Dom Francisco de Bragança que o tio paterno, de que vamos falar, creou, além de uma menina, Dona Angelica de Bragança, recolhida devotamente pelas tias das Chagas, onde chegou a ser abbadessa; -- finalmente Dom Theodozio que veiu a ser arcebispo de Evora, de grande nomeada devota, boa pessoa que gastou cento e cincoenta mil cruzados, segundo as contas de Caetano de Sousa, em fazer-nos a mercê da Cartuxa de Scala Caeli, nas ruinas da qual se alberga hoje o meu bom amigo e dedicadissimo antiquario Barata.

Das filhas do Duque e de Dona Joanna, casaram duas com Marquezes de legitima prosapia: uma, Dona Joanna, com Dom Bernardo de Cardenas, marquez de Elche, um hespanhol; outra, Dona Eugenia, com Dom Francisco de Mello, o segundo Marquez de Ferreira, e outras duas fizeram-n'as freiras nas Chagas, onde se chamaram Soror Maria das Chagas e Soror Vicencia do Espirito Santo, longamente penitenciando a forte resistencia da raça, e tambem um pouco os desvios demasiado profanos dos irmãos e do proprio pae.

Porque é de saber que este, o austero Duque, deixou ainda duas bastardas que nas Chagas, se recolheram tambem, uma: Madre Soror Antonia da Encarnação, que morrendo em 1635 com mais de cem annos, deveria ter nascido nos ultimos do pae; a outra: Dona Maria, de quem não se sabe senão que alli a sepultaram egualmente.

Mas os primeiros filbos da formosa -- «dama de folgar» -- dos Saraus e das Trovas ventureiras, foram, a bem dizer, os pobres orphãos da «Senhora Dnqueza», o Dom Theodozio que havia de ser o intelligente e grandioso successor de Dom Jayme, e Dona Izabel, a formosa e futura Infanta Dona Izabel, as duas creanças cujos destinos pareceram singularmente consorciar-se para salvar um dia a Casa de Bragança e restituil-a á sua gloriosa identificação com a Independencia Portugneza.

Como filhos proprios os adoptou a Segunda Duqueza, continuando-lhes e completando-lhes, como intelligente e acrisolada mãe, a creação educativa da avó.

Fazendo o seu testamento, em 1520, no proprio anno do segundo casamento do filho, a mãe de Dom Jayme, a viuva do Degolado de Evora, recommendava, ciosa e apprehensiva, que casassem bem, muito fidalgamente, como merecia, a neta, -- «porque lhe parecia que lá no outro mundo poderia receber desprazer do contrario».

Talvez como o recebia n'este, do casamento do Duque com a filha de um simples Alcaide alemtejano.

Como rejubilara, porém a desventurada e amoravel Senhora se tivesse podido ouvir o filho dizer ao Rei, proximo tambem da morte: -- «eu vos posso bem jurar que assim Deus me dê saúde para a alma e para o corpo,... que tirando a Duqueza a quem eu devo muito do ensino e tratamento de minha filha, que eu não vi pessoa em toda a minha vida a que minha filha não faça muita vantagem, ainda que fôra filha de um lavrador. E prouvera a Deus que achara eu outra para meu filho, em camisa e sem dote nenhum, ainda que meu filho fora Imperador».

Muitos annos sobreviveu Dona Joanna de Mendonça, ao marido.

Moça e formosa, era ainda, certamente quando elle morreu, em dezembro de 1532, e não em setembro, como diz Caetano de Sousa que tambem lhe erra, de dois annos, a data do testamento.

Mas em quasi meio seculo de viuvez continuou nobremente, silenciosamente, a tranquilla e doce obscuridade dos doze annos de casada.

Morreu em 1580, mais do que octogenaria, com certeza, fazendo-se sepultar no Côro de Baixo do conventinho das Chagas, alli defronte dos Agostinhos onde dormia o somno eterno o grande desgraçado a quem dera, talvez, os unicos dias felizes que elle poude arrancar á Fatalidade sombria e á oppressiva Grandeza, -- n'aquelle mesmo escuro e pobre Côro de Baixo do Conventinho das Chagas, de Villa Viçosa, d'entre as sombras humidas do qual, um dia, quando eu procurava nas lageas sepulchraes a que deveria cobrir-lhe a sepultura, á minha imaginação fortemente commovida na reconstrucção ideal do Passado, por momentos pareceu que resurgia, -- viva alegre, triumphante, como a cantaram os poetas do Cancioneiro Geral, a bella figura da segunda e virtuosa esposa do grande Duque, -- a que o soube comprehender e a que o soube amar.

II

CANTIGAS DA CÔRTE

...os serões de Portugal Tam falados no mundo, onde são idos? E as graças temperadas do seu sal? Dos motes o primor e altos sentidos, Os ditos avisados, cortesãos, Que é delles? quem lhes dá sómente ouvidos?

Sá de M. Cart.

Melhor, talvez, devera epygraphar-se esta parte: -- Cancioneirinho de Dona Joanna de Mendonça.

E até, mais aperitivamente: -- Album de uma Duqueza do seculo XVI.

Não falando já em que seria importante e bonito, prefacial-a uma longa dissertação erudita, contundentemente illustrativa dos varios e suppostos cyclos muito methodicamente percorridos, á nossa vontade e conveniencia, pela Musa Nacional, litteratae popular, pensada e expontanea, atravez dos Cancioneiros da Côrte e do Terreiro, das Sallas e das Ruas, ou desde a redondilha, nitida como placido regato, até aos metros de grandes folegos e habilidosa gymnastica para uso e agrado da gente fina e moderna.

Mas este pequeno repositorio das trovas ingenuas e insipientes que doudejaram em volta da figura gentil de uma obscura moça da Côrte Manuelina, ou lhe saltitaram da penna despreoccupada e galante, seriam mal escolhido, quasi ridiculo thema, para lição tão ponderosa e grave.

Veem aqui, como o verniz nos quadros, a emprestar brilho á perspectiva, já que não podem dar merecimento ás masellas do desenho.

Ou então: como moldura rica que disfarce ou valorise, burguezmente, a pobreza da tella.

São todas vertidas do Cancioneiro Geral, ou mais exactamente, compiladas n'uma versão d'elle, e muito intencional e petulantemente digo que são vertidas ou que as destaco e compilo de uma versão.

Não comprehendo porque havemos de verter de linguas extranhas os textos que queremos vulgarisar, e não havemos de verter, ás vezes, até, bem mais dificultosamente, da orthographia obsoleta e da velha typographia os da nossa propria lingua para os tornar immediatamente legiveis e comprehensiveis, tambem, aos que não teem tempo ou não poderam adquirir os recursos para entender essa orthographia, para os assimilar n'essa forma typographica, como não poderam aprender aquellas linguas.

Uma das razões porque somos, hoje, ainda, o povo que menos conhece e aprecia a sua litteratura original e antiga, inutilisando e perdendo, assim, uma das forças mais necessarias e disciplinadoras da própria educação civica, da propria individualidade nacional, é a especie de adoração hieratica, -- sem maior ceremonia: tola, -- do feitiço orthographico que nos teem imposto os editores e reproductores da chamada, muito vaga e inscientemente, tambem: a litteratura classica.

A qual litteratura vem a ser, d'esta sorte: -- a litteratura que ninguem lê.

Ou a que só lê meia duzia de sujeitos mais ou menos versados nas usanças, imperfeições e caprichos das velhas orthographias ou da typographia primitiva: confusa e grosseira.

Em certos e restrictissimos casos, -- nas edições criticas, por exemplo, -- e até certo ponto, comprehende-se o respeito, ainda assim, geralmente, um tanto ou quanto supersticioso, da forma orthographica, typographica, mesmo, na reproducção dos textos antigos.

Nos mais, porém, e particularmente, quando o proposito, o desejo, o interesse é o de vulgarisar o que se entende, o que se pretende e convém que seja vulgarisado; que seja lido, comprehendido, apreciado pelo grande publico contemporaneo: o systema, se de systema merece o nome quando lhe falta o predicado fundamental para o ser, é perfeilamente irracional e contraproducente.

Nem havia razão e direito para dizer isto, hoje ou ainda, senão entre nós, infelizmente, onde estas cousas podem encontrar reparo e objecção com pretenções viaveis de seriedade ostensiva.

Imaginem, que nos propunhamos a reproduzir fielmente a fórma graphica do pequeno Cancioneiro que vamos respigar na bella obra de Rezende.

Em primeiro logar vêr-se-hia logo extremamente embaraçada essa supersticiosa fidelidade, na questão typographica.

E depois, quantos embaraços e difficuldades,- -- fastidiosos e fatigantes, -- interromperiam a cada palavra, a comprehensão, a assimilação intellectual e esthetica do pobre leitor profano!...

Uma ou outra vez darei, em nota, o exemplo, que terá, até, a vantagem de mostrar como a simples traslação da typographia deficiente e imperfeita ou da orthographia obsoleta e confusa para as formas graphicas da arte e da «leitura nova» -- deixem-me empregar esta phrase que lembra um caracteristico e historico exemplo, -- conserva fielmente o pensamento, a elaboração, a suggestão, a obra intellectual do tempo, em todos os seus termos originaes e proprios, restituindo-a apenas, á communicação, á comprehensão externa, talvez melhor: restituindo-a á vida.

Escreve, por exemplo, Dona Joanna de Mendonça, ou mais confusamente, talvez, do que a sua calligraphia, imprimiu-lhe o Herman de Campos:

Fermosura tã ssobeia

vs. deu deos qua antre nos

que nam sey quem vs. bê veia

que sse nam perca, etc.

E nós, então, para que o bom do leitor que não tem tempo para decifrar estas cousas, se não embaraçe e não mande irrespeitosamente passear a Dona Joanna, fazemos-lhe o favor que elle aliás nos retribue, de traduzir:

Formosura tão sobeja

vos deu Deus, cá entre nós

que não sei quem vos bem veja

que se não perca por vós.

E nem se quer prejudicamos os cacóphatons de quem, se tivesse aprendido rhetorica, naturalmente os não faria, mas não faria tambem... as trovas que é o que queremos tornar legivel e conhecido.

I

DE DOM JOANNA DE MENDONÇA

Rifão:

Não se espera outro remedio, de quem vir a Perigosa, se não vida duvidosa...

A Senhora Dona Joanna de Mendonça

Por acudir ao rifão, não sei cousa que não faça, até confessar na praça tudo o que n'elle vos dão.

E parece-me razão que pois sois tão perigosa não sejaes... despiedosa.

... Começam logo os louvores das damas os quaes fez todos a Senhora Donna Joanna de Mendonça:

I Não sei que possa dizer, por vós, que seja louvor, que se tão ousado fôr perderei o entender. Quando quero começar, é cousa que não tem cabo: antes me quero calar que cuidaram que vos gabo. II Formosura tão sobeja vos deu Deus, cá entre nós, que não sei quem vos bem veja que se não perca por vós, que não deis sempre cuidado, que não mateis cada hora. Antes de vós desamado, que amado d'outra senhora! III Pois sois sem comparação, de todas quantas nasceram: os que por vós se perderam bem se perdem com razão. E pois nunca vimos tal, nem creio que viu ninguem: que façaes a todos mal eu digo que fazeis bem. IV Tendes tanta gentileza, tanto ar na fala e rir, que quem vos, senhora, vir, nunca sentirá tristeza. Fostes no mundo nascida com graças tão escolhidas, que só por vos ter servida, daria duas mil vidas. V Vossas grandes perfeições, manhas e desvenvolturas, tiram todas as tristuras que acham nos corações. Vossas penas são prazer, vossos cuidados, victoria, vosso mal, é bem fazer, e vosso esquecer, memoria. VI Quem vos não viu não tem vida, quem vos não serviu, senhora, pode contar por perdida toda sua vida té agora. E quem vir tal formosura, seja certo que hade ter, em quanto viver, tristura, juntos pesar e praser. VII Do que vós tendes de mais podeis dar a todas, parte, e em vós ficar que farte, sem falecer o que daes. Que todas queiram tomar manhas, graças e parecer de vós, não pode minguar quanto n'ellas mais crescer. VIII Dama de tal formosura, dama de tal merecer, o que vive sem vos vêr não teve boa ventura. Para que é vida sem vós? Nem se pode chamar vida, e se não foreis nascida porque nasceramos nós? IX Quem viu nunca tal senhora, quem viu nunca tal mulher, que pode dar, se quizer, a morte e vida n'uma hora? Certo não dirá ninguem, que se viu tal creatura, nem que tal desenvoltura donzella teve, nem tem. X Sois tão linda, tão airosa, que muitos mataes por fama; ante vós nenhuma dama não se chamara formosa: porque quantas damas são, juntas só n'uma figura, não terá comparação ante vossa formusura. XI Se no mundo se perdesse quanto se póde cuidar, tudo vós podéreis dar sem que nada falecesse: Porque o que em vós sobeja é tanto, que abastaria a mil mundos, e teria cada uma o que deseja. Cabo Em saber e descrição, em virtudes e bondade, e em toda perfeição, tendes primor na verdade. Sois tambem mui piedosa, amiga de todo bem, sobretudo a mais formosa do que ouviu nem viu ninguem.
II

DE SIMÃO DA SILVEIRA

De Simão da Silveira á senhora Donna Joanna de Mendonça sobre uma ave que lhe lançou de uma janella

Em a vossa ave tomando, lhe senti no coração que vos quer morrer na mão, antes que viver voando.

Isto vem de conhecer-vos, de que todo mal se ordena: uns se depenam por ver-vos e outros vos vêem com pena. Está-se toda matando, queria, por salvação, ir morrer na vossa mão, antes que viver voando.
III

DE JOÃO RODRIGUES DE LUCENA

De João Rodrigues de Lucena á senhora Dona Joanna de Mendonça, porque lhe mandou a Rainha que não sahisse uns dias da pousada

Senhora, vivei contente, não vos dê nada paixão, porque não é sem razão que quem prende tanta gente, saiba que cousa é prisão.

Porque sabendo a certeza do mal que a tantos fazeis, não creio que querereis usar de tanta crueza, com os captivos que prendeis. Mas cuido que differente sois d'esta minha tenção, e que sendo solta, então prendereis muita mais gente, e em mais esquiva prisão. Glosa sua a esta sua cantiga Em graças tão acabada, como discreta e prudente, em tudo tão excellente; pois sois de todas amada, senhora vivei contente. E ainda que vejaes cousas feitas sem razão, alargae o coração, e que sejam muitas mais não vos dê nada paixão. Sede leda, se podeis, pois tendes em vossa mão as vidas de quantos são; e não vos maravilheis, porque não é sem razão, que bem sabida a verdade de vosso dano presente, quem vos tem tão descontente, usa de mais piedade que quem prende tanta gente. Por isso, senhora, tende muito grande coração, ou mudae a condição; que razão é que quem prende saiba que cousa é prisão. Não cureis de vos queixar nem deis lugar á tristeza; folgae dama de folgar! não cureis de vos matar, porque sabendo a certeza da grande pena crescida que daes aos que prendeis, sei que toda vossa vida vivereis arrependida do mal que a tantos fazeis. Nem creio que pode ser que tão crua vos mostreis; e vendo os vossos morrer, de seu mal tomar prazer não creio que querereis. Nem se pode suspeitar de tamanha gentileza, que possa querer matar, nem com quem a muito amar usar de tanta crueza. Que não vos fez Deus formosa para matar: nem mateis; mas quanto mais poderosa, deveis ser mais piedosa com os captivos que prendeis. Mas hei medo que sejaes, do que digo, descontente, que creio que não estaes bem nem mal com os que mataes, mas cuido que differente. Que por vos verdes vingada, por vossa consolação, por dardes pena dobrada, por fazer mal: apartada sois d'esta minha tenção. Que como vos vi prender, logo tive suspeição que avieis de querer a muitos mais mal fazer, e que sendo solta, então... Então cumpre de guardar, que se vossa mercê sente que alguém ousa d'assomar, então, para vos vingar prendereis muita mais gente. Mas não sei s'haverá quem, porque dos que vivos são, uns morrem por querer bem, outros vivos se manteem em mais esquiva prisão. A senhora Dona Joanna A cantiga, assim glosada, mande vossa mercê ler, e se fôr d'alguem tachada, sendo de vós amparada logo pode parecer. E s'ella por si não fôr tal que vos pareça bem, pois é em vosso louvor, valer-lh'-ha vosso favor, o que não faz a ninguem.
IV

DE SIMÃO DE MIRANDA

De Simão de Miranda porque viu a cantiga na cabeça da senhora Dona Joanna de Mendonça

Seja a cantiga, adorada, Senhores, que o não mereça não ella, mas a cabeça onde hontem foi mostrada.

Esta não terá peccado d'inveja, nem de soberba, pois não pode a natureza dar-lhe mais do que lh'é dado.

V DE AYRES TELLES

(e outros)

Cantiga sua á senhora Dona Joanna de Mendonça

Pois com o mal que me causaes, senhora, tendes prazer, não sei porque não olhaes, que para o eu sentir mais, devia menos de ser.

E quem é sua verdade desejar de vos servir, como podeis presumir que pode nada sentir fazendo vos a vontade. Pois em quanto não tiraes do meu mal vosso prazer, é razão que me creiaes que quanto o fizerdes mais, tanto menos hade ser. A gloria d'esse perder que terá quem vos servir, quil-a Deus só descobrir a quem quiz dar mais prazer. Porque a vida, qu'algum tem, não se sente nem padece senão segundo merece a causa d'onde ella vem. E quem esta poder ter, senhora, por vos servir, não pode pena sentir que não sinta mais prazer.

O barão:

Se com vosso parecer: condições, manhas, conseguem as o atras damas, de crer devem que haveis de fazer que os servidores as neguem. E por isso quem tiver siso, deve de fugir d'onde não deixam sentir a pena que dá prazer.

Francisco da Silva:

O que menos vos conhece este hei por mais perdido, porque quem por vós padece, na gloria tem mais havido, do que na pena merece. E quem por vós se perder, ser-lh-'ha melhor não sentir o gosto de vos servir para mais vos merecer.

O conde de Vimisoso:

Se prazer é ser perdido, grande dita foi a minha, pois com tanto mal soffrido, me fui perder tão asinha. Ditoso em me perder, mas não para vos servir: qu'outro tem esse poder, e eu nasci para o sentir.

Outra sua

Eu determino d'haver uma vida emprestada para por vós a perder, porqu'a minha não é nada: Que não tem tanto valer, para que possa sentir a gloria que deve ter, senhora, quem vos servir.

Alvaro Fernandes d'Almeida:

Por este contentamento, que declara este rifão, quando tiver mais tormento terei mais satisfação, que se pode acontecer, nem que posso já sentir, pois que quando me perder hade ser por vos servir.

Manuel de Vilhena:

Esta gloria quem a tem, posto que folgue com ella, não lhe tirara ninguem o receio de perdel-a. Em cousa que s'hade ter para mor pena sentir, não se pode achar prazer se não só em vos servir.

Garcia de Rezende:

Quem menos vos tem servido, tem mais que vos allegar, pois vai mais o mais pedido: melhor me vem o partido do perder que do ganhar. E se me não quiz perder, senhora, por vos servir deveis crer e consentir que foi por mais merecer.

Francisco de Sousa:

Tres annos ha que sou fóra, quatro mil legoas daqui, donde affirmo que não vi, nem menos des que nasci, tão gentil dama até agora. E por isto sei dizer, que quem quer que vos servir, que quanta pena sentir se paga só com vos ver.

Diogo de Mello:

Pois nos Deus quiz amostrar, em vós todo seu poder ter sujeito, devemol-o bem de louvar, se se não arrepender de vos ter feito. Gram mercê quiz fazer só a quem quiz descobrir a gloria que é perder a vida por vos servir.

João Rodrigues de Sá:

Mas, porém, não a quiz dar tão barato, que escusasse de passar, quem a buscasse, grandes tormenlos d'amar antes que a porto chegasse. Para se poder suster a gloria de vos servir, deu mal para resistir a tão sobejo prazer

Dom Francisco de Viveiro:

Cuidar em dar-vos louvores, é lançar agoa no mar, sem jamais nunca chegar a vossos grandes primores. Mas sei que quem vos sentir fará o qu'heide fazer, que é morrer por vos servir e sem isso não viver.

Francisco Homem:

Tão grande merecimento que razão leve por guia, não vos pinta a phantasia que lhe dais contentamento. Mas a gloria de vos ver obriga a vos servir, sem se poder encobrir de ninguem mais seu prazer

Pero Moniz:

Tal rosto e tal figura vos foi Deus, senhora, dar que quem quer que vos olhar, não tem a vida segura. Ditoso se a perder! pois s'hade restituir a pena qu'hade sentir com a gloria qu'hade ter.

Cabo de Ayres Telles:

Se eu podesse ganhar d'outra parte cem mil vidas, seria por vol-as dar para as ver tão bem perdidas. Porque é tão pouco perder uma só por vos servir, que por mais gloria sentir quereria mais vidas ter.

VI

DE LUIZ DA SILVEIRA

Cantiga que fez Luiz da Silveira á Senhora Dona Joanna de Mendonça

Sentido de quem não sente, queira Deus que ainda se sinta descontente, de contente do que me a mim não contenta.

Novos descontentamentos lhe causem novos desejos; tantos arrependimentos tenha de seus pensamentos que a mim pareçam sobejos. Que ainda de mim se contente, tão descontente se sinta, e sinta quanto não sente do que se agora contenta.

VII

DE SIMÃO DE SOUSA

De Simão de Sousa a Dona Joanna de Mendonça

Senhora, quem vos não viu é fóra de um gram cuidado; quem vos viu bem lhe ha custado!

Custa bem, e custa dôr, custa vida, e dail-a tal que deve de ser melhor o que se ha por maior mal! se quero cuidar em al, ou fingir outro cuidado, é trabalho escusado. E pois hi não ha descanço, menos piedade vossa, seja o tormento mais manso, com que a vida melhor possa. Que a dor disto seja vossa, eu por meu hei o cuidado que me tanto tem custado. Outra sua a esta senhora Se vedes, pelo que faço, que o posso bem fazer, é porque al não pode ser. N'este tempo que passou, que nunca pode passar, na vida que me deixou vi vida para deixar. E por me outrem não matar o quiz eu a mim fazer, por tal culpa ninguem ter. Outra sua a Dona Joanna Quem souber minha vontade e culpar minha tenção, ou terá razão ou não. Huma vontade que tinha, que me dava mil vontades, por uma mentira minha me mostrou muitas verdades. Vaidade das vaidades! Errada contemplação das que algum descanço dão! De Simão de Sousa Descanço de minha pena, remédio d'esta paixão, oh senhora! por quem tanto mal se ordena: onde as cousas assim vão, quem não fôra? Por remedio vos busquei de quando eu não vivia sem vos ver. Em logar d'isto achei tanta dor, que não queria já viver. Oh, vida de minha vida! Cuidado que me não deixa cuidar em al! Que vos vejo tão perdida, que até minha alma se queixa d'este mal! Que farei ou que fazeis? Onde vos is que deixaes tudo cá? Vedes o que em vós perdeis, que lá onde vos levaes, não ha lá. Deixaes o mundo perdido, vós, senhora mal ganhada, sem desejo. Fica o mundo destruido, vós, cedo desenganada, tambem vos vejo. Quando vos depois achardes n'este engano que hade dar prazer a nós, por mais que então chorardes eu sou o que heide chorar mais que a vós. Se estas magoas sentisseis, que no coração me dão, Senhora! não pode ser que não visseis, que de minha perdição é vinda a hora. Tirastes-me o meu prazer, déstes-me tanta tristesa por tanto bem, que não quero já viver por não vêr tanta crueza em ninguem. Oh que tristeza tão triste! que desconsolada vida e que cuidado! Que se tu Fortuna viste golpe em vida perdida, a mim é dado. Fizeste-me muito mal, e a vida não se esforça para o soffrer. Eu não posso fazer ai, mas isto será á força de não viver. Remedio não no espero, que quem m'o podia dar não no tem. Antes d'elle desespero, que todo desesperar, a mim convêm. Senhora, pois vos levaes, deixando minha verdade por hi perdida, lembre-vos que me deixaes, sem nenhuma piedade, e sem vida. Oh cruel tormento meu, que de outrem não pode ser, nem é bem seja! Que tanto trabalho deu a mim a quem o viver me sobeja. Atormentado de mim, desconsolado, perdido, -- Vida perdida! -- Que despiedoso fim, oh quem não fôra nascido n'esta vida! Quem ha já de querer nada d'este mundo, nem de vós, nem d'aqui? Que a cousa vae ja danada em ver mau pesar de vós feito por hi. Podera ora bem ser, que, alguma hora, soidade d'esta fé, vos possa entristecer... Senhora, que gram verdade esta é! Fim Estas palavras perdidas não nas digo por ganhar nada com ellas. Mas se nos tiraes as vidas deixae-me desabafar por ellas. E deixae-me fartar bem, que eu d'esta hora vos deixo, por deante. Não me defenda ninguem, já que me eu não aqueixo, que me espante. Cantiga sua Bem perdido e mal ganhado não se sente e eu o sinto. Oh fundamento enganado tomado sem fundamento! Onde razão é perdida, no que se então offerece, fica a tenção conhecida d'uma que se não conhece. Sentido tão occupado, espirito que foste isento, quem te fez tão enganado que te não deu fundamento?

De Simão de Sousa estando Dona Joanna presa por mandado da Rainha:

Senhora, pois que sois presa, e já não pode ser ai, seja por cousa defeza que vos não póde estar mal. Assim, que tal prisioneiro nesta prisão o topasse, sendo eu o carçareiro, e senhor, quem se pagasse.

De Simão de Sousa á Senhora Dona Joanna de Mendonça:

Não sei de mim o que fôra, nem que fizera, se meu bem, vol-o não dera. Se té agora não souberam quem sempre tiveste bem, foi medo que me poseram os males de quem m'o tem. Que se este medo não fôra, eu dissera minha dôr a quem m'a dera. E vendo que me é peior, não quero senão dizel-o, e escolho, por melhor, fazer-me mal, e soffrel-o. Quiçá o digo em hora que quizera não ter vida que perdera. Se me mata, saberão por quem morro e sou vencido, que é muito boa razão para tudo ser perdido. Sempre o fui, e agora, por quem era razão que tudo perdera. Da senhora Dona Joanna de Mendonça, me chamo eu; por esta sou já sandeu, que com ninguem não se engana. Se d'ella, d'outrem, não fôra, nem quizera nenhum bem que me fizera. E ainda que tivesse o bem d'outrem, não no quero, por mais pena que me désse não daria o mal que espero. Porque se elle não fôra, não tivera descanço, nem o quizera. E se já dissimulei o mal d'este pensamento, foi muito grande tormento que eu bem sinto e sentirei. Mas não sei, d'então té agora. que fizera, se isto em mim não conhera. Conheço que é gram razão que me mate, se quizer, mas quem tal causa tiver, tem boa satisfação. Tel-a-hei sempre, e agora, mas quizera ter mais vidas que perdera. Pela que tenho perdida, desejo mais que perder, sem esperar de a ver d'este meu bem conhecida. Comtudo digo, senhora, quem tivera mor poder, quem sim, vos dera!

Fim.

Não quero mais que a razão, faze o peior que souberdes, e de vossa condição usae quanto vós quizerdes. Que se de vós livre fôra, não houvera por bem, nenhum que tivera. Cantiga d'estas trovas Até aqui dissimulei quanta dôr tenho e me daes; já agora não posso mais! Poderei sempre soffrer quanto mal por bem houverdes, mas não deixar de dizer que folgo de me perder; vós folgae, no que quizerdes. Esta dôr dissimulei até aqui, mas não creaes que a pude encobrir mais.

De Simão de Sousa á senhora Dona Joanna de Mendonça:

Males que não são de fóra, e que vem do coração: estes matam, que outros não. N'estes que do meu me vem corro eu risco mortal, mas como podia eu ter bem, se não tivera este mal? Com quanto é desegual a dôr do meu coração, deem-n'a a mim, a outrem não. Por segurar minha vida ;i dei a este mal presente; oh vida que és tão perdida, como eu d'ella sou contente! Este mal por bem se sente, posto que a perdição esteja bem certa na mão. Descanço do meu viver, trabalho que nunca cança, vida tomada por mansa mais forte que pode ser! Que desviado prazer de quantas cousas o dão, é o d'esta perdição! Cantiga sua a esta senhora Por ter em vós esperança, seja pois, não quero al, d'algum bem ou de mais mal. E será com condição, pois hi não ha bem, sem ella. se m'a tirardes, então levesse a vida, com ella. Que d'ella para perdel-a é muito certo signal de se perder tudo o al.

De Simão de Sousa a este vilancete alheo

Pois deixaste en mi memoria, cuydado, pena y dolor, loado seas amor! Se te dô gracias, mi dios, no son por las que me hazes antes nelhas me desplaces que dun mal me hazes dos. Si tu por bien das a nos vida de tanta dolor: loado seas amor! Quanto bien tuve te di tu a mi quanto mal veo: acrecentas mi deseo por vida mengoar a mi. Pues veo morir en ti mi vida que es mi dolor, loado seas amor!

De Simão de Sousa, que lhe disseram que casava Dona Joanna de Mendonça:

Diz que quem cala consente, isto não se entenda em vós, porque não paguemos nós tudo, em vida descontente. Se o fazeis, é razão que diga meu parecer, e saibaes minha tenção, por tudo se vos dizer. O costume d'este reino, dil-o-hei, que não sou mudo, de fidalgo até escudeiro ás mulheres pende tudo. Andam bradando por casa com paixão, dôr, e cuidado, justando em sella rasa, refertando o mal gastado. Azeite, vinho e pão a Suas Mercês se encommenda: é bem que se não entenda o que a entender lhes dão. Tambem lhes pedem razão do que d'isto é gastado, dizendo que a provisão é de mulher de recado. Ás vezes vão á cosinha, sem haver n'ella que vêr. Que condição tanto minha ou para minha mulher!... Deixaes o que tendes cá e que d'outros se offerece, por tomardes o de lá que é peior do que parece! Outra cousa me esquecia, que não vae n'esta receita, que é paixão de cada dia de que a conta está feita. E que a chave do dinheiro se não fia de Deus Padre: Senhora, d'uma gram verdade que é condição de escudeiro! Já d'hi a dois ou tres annos, que isto vem a arrefecer, começam os desenganos a crescer e a aborrecer. Se não ha conformidade quando as cousas assim vão, pouco aproveita razão onde falece vontade. Isto, a meu parecer, Senhora, que aqui aponto, ainda não vem a conto para o que haveis lá de ter. Eu só me sei desviar de todos pelo que sei, são todos de chafar mice a domine dei. Todo meu feito é praser, comia contentamento, folgar, rir, cantar, tanger, a ver tudo o ai por vento. Se a senhora que vier não fôr muito desorada, fará tudo o que quizer, se o fôr não fará nada. E terá bem negros dias, que eu também posso morrer, certo não podia ser da doença de Mancias. Se fôr á minha vontade, digna do meu pensamento, dar-lhe-hei minha liberdade, busque só contentamento. Se vos vir tão enganada e nos deixardes tão sós, quando perguntar por vós, será pela enforcada. Pelo entendar melhor, virá negro a dizer: -- «mandar fazer de comer senhora, para meu senhor,»

Fim.

Este aviso quere-o, Ou o podes engeitar, que ninguem não tem receio senão do recuchilhar. Tambem vos doe de nós, que sem vida nos deixaes, em a tirardes de vós por a dar a quem vos daes.

DOCUMENTOS

I

Transladação dos restos da «Senhora Duqueza» para Villa Viçosa Saybão quantos este stromento de treslado dado por mandado e authoridade de justiça virem que no anno do nacimento de nosso sõr Jesv xpto de mil equinhentos e noventa anos aos seis dias do mez de dezembro do dito año ê villa viçosa nos paços do Reguengo do duque nosso sõr estando ahi presente o licenciado Archadeo damdrade desembargador do dito sõr e ouuidor dos feitos de sua fazenda por afonso alures solicitador das causas de sua ex.cia fora presemtado ao dito ouuidor hum breue cujo trestado de verbo ad verbum he o seguinte. Albertus miseratione diuina tt.° S.te crucis in Hierusalê S. te Rom. Ecc.e põr Carlis Archidux Austrie in portugalie et Algarbior Regnis ceteris q õibus hac dnys ptis et corû Regi sanctis sedis Aplice de latere leg. Dilecto nobis in xp.° atq Illustrissimo Dom Theodosio bragantie duci saltêm in dûo sempiternão ex parte tua nobis nuper oblata petitio continebat q eum quoendam Doña leonora proauia tua ducis tunc bragantie uxor inhumata existat in ecclesia Monasterij fratrum Ordinis S.te Paule prime heremite Ville seu loci De froentia de Montibus claris elborem dioeis dietiq frês nunc aliud monasterium cû alia ecclesia aliquantu per ab antiqua sub mota atq segregata de nouo edificari faciant, et tam hac de causa q et ex eo q sepultura predicti quoendam Done leonori iuxta qualitatem ejus decens non existit, tu ossa cadauris ipsius quoñ done leonore ad ecclesiam Monasterij beate Marie De Spe ordinis S.te francisci oppidi de villa viçosa nuncupati predicti Diocesj transferri, et ibi descenter collari facere uehementer obtas, sed hoc tibilicere Dubitas in consulta de super apostolica sede. Quare nobis humilita supplicari feciste, ut tibi inpremissis opportune prouidere benigne Dignaremur, nos igr. qui ad infrapta per lrãs aplicas ad quaru insertionem nontinemur sufficienti facultate muniti sumus, tuo pio desiderio in hac parte annuere volentos...... a quibus nis excois, ac alqs ecclijs ad sentijs cençuris et penis á iure vel ab homine qua ins ocêone vel causa latis, siquibus quo molt inno Datus existit ad effectû putium duntaxat consequendum harum sene absoluetes et absolutum fore et esse consentes tibi ut ossa cadauris praedicti quoñ done leonore proanie tue de eccliã p.ti Monasterij fratris ordinis sancti Pauli prime heremite loci seu ville de proentia de Mantibus claris, in qua nunc iacent, ad eccliãm Monasterij Beate Marie de Spe ordinis s.te Franciscis dicti oppidi de villa viçosa vulgariter ut prefertur nuncupati absq tamen alimius prejuditio transferri eaq tandem ibi decenter sepelire facere libere, et licito possu et valeas auocate aplicã tenore putium licentiam et facultatem omni modam concedimus, et impartimur non obstantibus praemissis, ac quibusuis apliis ac in preuincialibus, et sinodalibus conciliis, edilis ignalibus, vel specialibus constitutionibas et ordinariobus celerisq contrariis quibuscunq. Date Vlixbone Anno incarnationis Dominici MDL0100. Prid. nouembr. Sede Aplicã per obitum felicis recordationis Urbani pp septimi Vacante. Grátis ubiq. Gbristophorus zannolinus. Alb. Gar. leg. E apresentando assi o dito breue ao dito ouuidor pello dito afomso alvz. por quem foi dito que ao dito sõr Duque era necessario o trestado delle ê pubrica forma q lhe requeria lhe mandase dar de modo q fizesse fee, o q visto por o dito auuy.or o dito breue ê como estaua são sem ter vicio allgun mandou a mim notr.º q delle desse o treslado ao dito afomso Allurês como o pedia o ql mandou q valese e fizese fee como o proprio para o q interpunha seu decreto e authoridade ordinaria, ê comprimento do ql mandado eu diogo lopes, publico notr.º por authoridade real ê todas as causas tocantes ao duque nosso sõr tresladei o dito breue do proprio que me fora apresentado e tornei ao dito afomso allz..... este treslado concertey bem e fielmente com o official abaixo asinado sem leuar cousa q faça duvida e aqui de meu pubrico sinal asiney que tal he.

(Aqui o signal)

Aos 26 dias do mez de Nouembro de 1590 se tirarão da sepultura os ossos e os alimparão, e se emuolverão em hua toalha de tafeta carmezim e os meterão em hû cofre de tres palmos de comprido, e dois em alto forrado per fora de veludo carmezim e por dentro de tafeta carmezim e asim ficou o cofre per toda a noite diante do S.mo Sacramen.to acompanhado com m.ta sera dispois de se dizerem alguns responsos e missas no mesmo dia, ao outro dia vierão todos Gapelanos do Duque e meterão o cofre em hua tumba que p.a este efeito se fes forrada de borcado e asim esteue diante do S.mo Sacram.to athe que chegou o Duque, e o s.r D. Duarte e o s.or D. felipe seus irmãos, e D. Lucas de Portugal, que ao presente estaua em V.ª V.sa e outros m.tos fidalgos e outras m.tas pessoas de caualo e feita a oração lançarão augua benta sobre a tumba, e ditto hum solenissimo responso o Duque e o S.or D. Duarte, e o s.or D. felipe, e D. Lucas leuarão cada hum por seu pao a tumba p.ª fora da Igreja, e a puzerão em huas Andas q p.ª esse effeito vierão forradas por dentro de setim preto e por fora de veludo preto. O Deão mandou logo pôr toda a clerezia por ordem cada hum com sua tocha na mão: loga se seguião os Religiosos do dito Mosteiro de N. S.ª da Lux com suas tochas. O Deão detrás da tumba, e atras o Duque com seus Irmãos, e detras toda a fidalguia, e a mais gente de caualo que serião 80 homens. Com esta ordem forão com m.ta quietação. Entrando por V.ª V.ca comesarão a dobrar os sinos de todos os Mosteiros e freguezias, e atravessamos a melhor parte da villa pela Corredora athe o mosteiro da Esperança, que todo estava ardendo em chamas pellas m.tas tochas, e luminarias q nelle ardião. O Duque e o S. or D. Duarte, e o s. or D. Felipe, e D. Lucas tirarão a tumba das andas e leuarana em porcição athe á capella mor, q estaua m.to armada, e com m.tas seras e dito hû solenissimo responso se despedirão todos ate o dia seguinte das exequias ficando por toda a noite acompanhada com m.ta sera.

As duas horas despois do meio dia seguinte se aiuntarão no ditto Mosteiro da Esperança os Religiosos do Convento de S. Agostinho, e S. Francisco da Piedade e os Religiosos de suas casas dos Padres de S. Paulo p.ro Ermitão, e toda a Clerezia da villa e Capelanos do Duque e fizerão hum officio solenissimo de noue lições, o qual se acabou com duas horas de noite. O dia seguinte se dicerão m.tas missas pellos dittos Religiosos e bua missa cantada com toda a solenidade posivel a qual disse o Deão da Capella, e no fim della outro responso com a mesma solenidade. Seguiosse logo hua porcição, dos mesmos Religiosos e a Cleresia todos com tochas nas mãos athe a portaria do Mosteiro, e no meio da procição o Duque com os Irmão e D. Lucas que leuauão a tumba athe a portaria Aonde estauão esperando a Abb.ª da casa D. Catharina, e a S.ra D. Maria e a S.ra D. Seraphina, e recolhendo a tumba em porsição com as religiosas do ditto mosteiro a depositarão em o lugar para isso depositado, e o Duque por sua mui singular benegnidade deu a todos signaes de agardecimentos.

Fim.

(Copia de um mss. da Bibliotheca de Evora, que veiu do Convento de Montes Claros. Foi-me communicado pelo dedicado bibliothecario e meu amigo A. F. Barata).

II

Cartas do Marquez de Villa Real a Dom Manuel

Muyto alto e muyto eicelente principe e muyto poderosso senhor.

aguora estora me escreverom de vosa corte huma tam gram novydade que contra mynha honrra e contra de meu filho e muyto majs contra vosso mandado e acatamento sse la ordena ou começa dordenar que certo nom na creo // mas porque as cousas em que tanto vay nom nas ha homem de ter nem levar ajoguo / nesta ora o faço saber a vosalteza para lhe pedir que loguo atalhe este casso que se nom posa somente dizer por que de se dizer tam somente he hum tam novo desecatamento a vosalteza e tam nova offenssa a mym e a meu filho que se nom pode Restetujr ssenam com grandes estremos que nom seriam serujço de deos nem de vosalteza nem bem de vossos Reynos por que asy como eu a vosso servjço devo tanto que por ele me porej ao sacrificio se comprjr nom hûa vez mas cem myll // asy nom ha vosalteza de querer nem esperar de tal pessoa comeu que posa leixar nunca huma soo jota do que devo aminha honrra / por que se eu esta nom guordase com tantos escrupolos / como me daa a condiçam e a natureza / muito menos os guoardaria em voso serujço / e certo este caso he tall que se tall se somente cuyda he tão novo que nom he Razão que homem nele fale nem digua muytas palauras / bem abastam as obrras a que ele obrigara se tall for o que deos nom queira e asy o espero eu nele E em vosas grandes vertudes e justiça pois ssoes nosso Rey e senhor e a que todos avemos dobedecer asy como a noso senhor e deos da nosa patria e nom he Razam que posamos cuidar nem presumjr que diante de vosa Real pesoa E de tall Rey como senhor noso ssoes nyngem se atreva ha forçar vosos mandados nem desacatarvos pruviquo e ha tomar vosa soveranya / E por tanto deste tam feo casso eu espero tall corregymento e atalho de vosa vertude e pesoa que ho nom quero pedir com majs palauras caquellas que vos hobrjgão as obrigações que a deos e a vos mesmo senhor devees por que este casso senhor se adiante fosse hûu soo passo nom tem cura e lenbrese vosalteza que lhe diguo jsto coma seu verdadeiro serujdor e nom coma parte que ssom por que ajmda que de mynha parte a podesse ter e eu fosse quem deos seja louvado nom som // da parte de meu filho nom podia ter cura nem pode se nam se leixase o nome çle cristão e sse chamase Isaque ou abrão e posese hûu synal no peito / nem vosalteza nom podia dele ai esperar nem muyto menos de mym // E o casso senhor he este aguora estora mescreverom que o duque de bragança atrevendose nos grandes favores e merces que lhe fazees começa de tratar com mynha Irmã casamento de sua filha para sy mesmo e se emvolvem neste trato amores // sabendo por vosalteza que sey que lho tem dito cando entendia por me danar no casamento de seu filho para dita mynha sobrjnha / que me tendes dado esta mynha sobrinha para molher de meu filho e sendo meu Imyguo pubrjquo / polas boas obras que lhe fiz que maas nunca macordo que lhas fezese senam taes que tirando vosalteza afora que ho fezestes de novo / nom sey outra pesoa que lhas taes fezese comeu / asy que este meu boom amjguo e primo começa ou diz que tem a dias começado este trato / e mo afyrmam de grande presa e Isto co amolher de meu filho que esta em voso serujço e no de noso senhor servyndovos e o tenho la com muyta agonja de meus espritos e grande gasto de mynha fazenda como nunca des que soes Rey nem antes em vosos Rejnos nenhuma pesoa deles teue filho em serujçom denhum Rej destes Rejnos tantos tempo // Ora olhe vosalteza que jentileza esta deste meu primo cojrtuão e meu bom amjgo que contra mym e mynha honrra e de meu filho hordena e muyto majs contra voso acatamento // certo he / que tam espantossa cousa comesta nom se deue crer // mas por outra volta ho espanto dela e o prigo que se dela pode segujr faz que de Rezão se crea e afyrme // e por taanto o faço saber / loguo a vosalteza e lhe peço muyto afeituosamente por merçe e Requeiro da parte de deos que loguo atalhe a Isto com cura Radicativa para que nunca se majs fale nem consynta que ho dito duque mays entre nem vaa acas mynha Irmãa estando hi sua filha bordada de louçaynhas e meu filho armado por voso serujço // e eu mando por grande goarda em que se nom esereua nem digua Isto a meu filho por que he moço e nom covardo deos seja louvado e creo que nom tera sofrymento para na ora que o souber se nom vir loguo e leixar abarca e as Redes // E por tanto senhor outra vez da parte de deos e de vosa uertude e Justiça que soes obrigado de fazer em vosos Rejnos e da parte do que neste caso me devees coma Rey e coma homem humano e caualeiro e da parte de meus serujços vos requeiro que loguo com gram trygança vosalteza atalhe a Isto e me mande segûrar mynha honrra e ao duque so pena do caso mayor que majs nom vaa a casa de mynha Irmã nem entenda nem fale nem ouça falar em tam feo caso e asy me mande vossa alteza loguo entreguar esta moça e me mande loguo yr asy como compre a comcrusam deste casso e a voso serujço e a mynha honrra e nom me detenha ca e meu filho na guerra em Çeita por voso serujço e mynha honrra e a ssua amdarem asy no Reposteiro que por sua vertude o tanto deue escandalizar e doer coma mym e mays e asy senhor o espero eu e confio nas grandes verludes de uosalteza // peço avosalteza que coeste Regor acuda e Remedee estas cousas como ho deuo asy mesmo e a meus serujços e de tall maneira que esta merce que me fezestes se me nom torne no mayor agravo e desonrra que nenhuma outra que fose feita a tal homem comeu des da criaçam do mundo acaa / e esperando em vosa vertude e em meus merecimentos que nom pode ser que em tal caso vos nom lembrem concrudo / pedyndo a nosso senhor que vos lembre o que me devees que ele o sabe bem que conhece mjlhor o meu Imterjor do que se vosalteza lembra de meus serujços exteryores // muyto alto e muyto escelente principe e muyto poderoso senhor noso senhor vos de muy lomga e bem aventurada vida com muyta prosperacãm de mayores Rejnos e senhorjos como vosalteza o deseja a seu serujço // desta vosa vila de vila Real oje X dias daguosto de b.c XV.

hobedjente e leal vasalo e verdadeiro servidor de vosalteza que suas rreajs mãos beijo. /O marquez/ Logar do sêllo.

Ao muyto alto e muyto eicelente pryncipe e muyto poderosso senhor El Rey meu senhor.

(Corp. Chronol. Part. 1.ª Maç. 18 Doc.to 60, no Arch. Nac.)

Muyto alto e muyto eicelente príncipe e muyto poderosso senhor.

mays conforme nova fora a meus serujços e ao que vosalteza por elles me deve e a sua vertude no casamento de mynha filha dizeremme que se lembrava vosalteza aguora da palaura que me destes em setuvall e mercee que me fezestes de ma casardes co este duque de bragamça e mays voso serujço e causa parantre mym e ele aver comcerto poys o tenpo deu para yso desposyção // que avisaremme que ele trata com mynha Irmãa para casar com ssua filha que me destes para molher do conde meu filho // espero em nosso senhor e em vosa vertude per cima de todas estas cousas // e pareceome bem lembrar Isto a vosalteza aguora por que nom me digua nunca que lho nom lembrey algum ora o que ha muytos dias que deuera e deue lenbrar a vosalteza por todos os rrespeitos que ja dise e polos mays que som escusados lembraremse ante vosa Reall lembramça e vertude // muyto alto e muyto eicelente principe e muyto poderoso senhor noso senhor vos dee muy lomga e bem aventurada vida com muyta prosperança de mayores Reinos e senhorjos como vosalteza deseja ha seu serujço (desta vosa vila de uila Real a XI dias daguosto de bc XV hobedjente e leal vasalo verdadeiro servydor de uosalteza que suas Reayes mãos beijo. -- O Marqes -- (com um sello).

/Ao muyto alto e muyto eicellente principe e muyto poderoso senhor ElRey meu senhor/.

(Corp. chronol., part. 1.ª , maç. 18, doc. 63 -- no Areh. Nac.)

III

Cartas de Dom Manuel ao Duque de Bragança

Secretario o que de minha parte direes ha o duque meu muyto amado e preçado sobrinho he o seguinte.

Item -- que como ele sabe por veer que o ho casamemto de dona briatiz minha sobrynha poderia seer boom pera huum de meus filhos asy pello que folguey de lhe fazer meerce por falecimemto do comdestabre seu pay como por ha milhor e mais homrra da ueer (?) casar e encaminhar por seer filha de meu sobrinho eu com este fundamento por o aver tamto por meu seruiço como naquelles dias em que por elle fuy requerido acerqua do casamento de seu filho com ela lhe dise me escusey de seu requerimento e me prouue lhe dar huum aluara que nam se faseemdo seu casamento com alguum de meus filhos, nam darya lugar de ella casar com o comde dalcoutym com que tambem se fallaua em casamento como nelle he comtyudo, que segundo minha lembrança agora he desta sustancia E que estamdo eu neste preposyto detryminado se sygiram damtre ho principe meu filho e ella algumas cousas damores das quaees eu ey por certo que elle tera sabido tamto que ey por escusado de niso mais me alargar. E que Isto foy tamto adiante sem eu seer diso sabedor que quando o soube era ja muyto desserujdo do que ate emtam era pasado e tamto que de nenhuuma cousa o podia ser mais neem falecia muyto pera de todo nom seer muy anojado e damtre mym e ho principe meu filho se segujr muy grande escamdallo Ao que por cartam provy o milhor que o pude fazer e e com tanto resguardo como niso pude dar E que por muyto que dese nam se pode escusar de nam se hyr mais adiamte aquela materya e ajmda outras da parte dela seguindo que som certificado que me dam cuidado e paixam pello qual eu estou detrymynado de leixar o preposyto que tynha tomado de ha casar com hum filho meu e por apartar os jmcomvenjentes damtre o principe meu filho e ela e que sam os maiores que pera mym podem ser a casar como milhor poder E que vemdo como por esta molher estar tam fora daquello que eu dela esperava e com tamta magoa de sua homrra nam vynha beem o casamento della pera seu filho no quall eu ey por certo que elle nom quereria entemder nem eu verdadeiramente lho aconselharya e tambem por ella me fallar e pedir que a case com quem ouver por meu serviço e com aquela merecee que eu ouver por bem, o que creo e ey por certo segundo o que tenho sabido que he com deliberada vomtade de casar com o comde dalcoutym Eu como cousa em que tamto me vay e que he de tamto meu descanso e por apartar tam grande escamdallo como se me pode segyr o qual serya tamanho e de tanto meu desseruiço desaseguo e repouso como elle beem vee, estou detryminado de a cassar com o comde dalcoutym nam lhe damdo porem daquelo que lhe tenho prometido casamdo com meu prazer senam o que me bem parecer e tirandolhe diso booa parte E que por yso eu lhe roguo muyto que perouee quanto jsto me releua e jmporta pera todo meu descamso prazer e comtemtamento e por me descarregar de tam gramde cuidado como este he me queyra alargar a promesa que lhe tenho feita do casamento da dita dona briatiz pera se casar com o dito conde dalcoutym na qual cousa nom soomente me servira e aprazera com tamanho descanso como nisto receberey mas ajmda em aproveytar na fazenda que ajmda que seja amenos parte desta materya pois se pode bem fazer Creo eu que folgara elle com yso por quamto sey que com as cousas de meu prazer e seruiço sempre folga. E que aja por certo que se eu vyra que este casamento podia estar bem a seu filho e com aquela homrra que lhe eu dezejo eu lhe nom requerera que ysto me largara e que nom avemdo de fazer se com filho meu com nenhuuma outra pesoa folgara mais de se fazer que com seu filho mas que pera elle pellas causas sobreditas neem eu o averya por cousa de seu beem mas ajmda por muito meu desserviço pello muyto amor e booa vontade que lhe tenho E que lhe rogo muyto que ysto faça como eu delle espero que sempre ha de fazer as cousas de comprazer e comtentamento e mais aquelas que tamto me importam ereleuam como esta E que crea que em nenhuuma cousa o poso receber maior. E que muyto folgara de nisto lhe falar por mym mas que por sua jndisposysam nom deu lugar e portamto me releuarme descaregar de tam grande cuidado e paixam como disto tenho nam pude escusar de vos emviar logo a elle com este recado E que lhe roguo muyto que por vos me responda asy como eu dele ho espera sprita em evora a V dias de outubro 1520 annos=Rey.

(Corp. Chronol. Part. 1.ª Maç. 26 Doc.to 75).

Homrrado duque sobrinho amiguo Nos elRey vos emviamos muyto saudar como aquele que muyto amamos e preçamos / o comde do vemiosso / nos dise todo o que por elle nos emviastes dizer acerqua da quelle negocio sobre que primeiro vos emviamos fallar pelo secretario E vymos alem disso os apontamentos que sobre yso nos enviastes por Ruy Vaaz Pymto. E certo que esperamos que ajmda que alguma cousa muyto mais vos Importara e Releuara do que esta veemdo com quamta Instancia sobre Iso vos mandamos falar e por as causas que pera Iso nos moveem serem de tanto noso seruiço / vos folgareys mais de nos comprazer do que nos apreseemtardes tamtos pejos E nam poderamos crer que assy fosse em nenhuua cousa de noso prazer e comtemtamento / quanto mais neesta em que emtra necesidade de noso serviço e ajmda descamso porem por que quamdo niso bem cuidamos nam podemos leixar de esperar que achareemos em vos o que com tamta rezam em tudo nos deues e he rezam que acheemos / e posto que muy ymteiramente vos teenhamos mandado dizer a neceessidade que teemos e os proueitos que se nos seguem pera meus filhos que tamto mais ho ham mester do que outros e pera quem com tamta rezam os deueemos precurar pera deuerdes folgar de mais levemente nos comprazer pareceonos melhor leixarmos agora jsto pera por nos em pesoa vos falarmos omde entam esperamos que vos parcera beem o que ouuermos por noso seruiço veemdo a necesidade que he que nam podeemos leixar de crer e esperar de vos que aquylo que por noso seruiço ouuermos vos nam seja cauussa de muyto comtemtamento E por yso vos Rogamos que o mais cedo que vos seja posyuel vos vaades pera nos a lixboa pera omde prazemdo a noso senhor nos partymos o segundo dia de Janeiro E folgareemos daquy nos spreuerdes quando la poderes seer E Ruy Vaaz nam despachamos mais asynha por outras ocupações que se ofereceram que nam deram pera yso lugor screpta em Evora a XX dias de dezembro o secretario a fez 1520 = pera o duque

(Corp. Chronol. Part. 1.ª Maç. 26 Doc.to 105).

IV

Testamento do duque de Bargança Dom Jaimes

Em nome de Deus e da virgem maria nosa senhora a que me encomendo e protesto de viver e morrer na santa fee catholica sometendome aa santa madre egreja e crendo ho que ella cre. Esta he a minha derradeira vontade que quero que se cumpra assi como neste meu testamento for declarado, e se alguum outro testamento parecer nom seja valioso que antes deste seja feito .

Primeiramente mando que se eu fallecer da vida deste mundo sem declarar onde me enterrem que lancem meu corpo em qualquer casa honesta do luguar onde eu falecer ou preto delle em modo de deposito pera depois se meu herdeiro ou testamenteiro me quiserem mudar o possam ffazer depois do corpo ser comido. Na minha coua onde quer que me enterrarem ou logo ou depois nom ponham degraaes nem tumba nem cousa nenhuma de pompa, e o mais que faraam seraa huuma pedra chaam e com letras em cima que diguam quem alii jaz sem mais retoricas, e em quanto nom posserem a pedra, poderam cobrir com pano preto de doo a coua, que depois de a pedra posta se dee a huum pobre.

Em nenhum cabo me façam capella nem outro gasto nenhum, e digo que me poderam mudar porque por ventura folguaram que jaça eu onde jacem cada huum de meus antecessores. E quando leuarem meu corpo a enterrar seraa de noyte, os confrades da misiricordia nas andas da mesma misiricordia como leuam qualquer pobre homem sem mais tochas nem mays cirios nem mais clerisia nem religiosos do que soem fazer a qualquer pobre, pois naquella ora nom haa differencia em neuhuma pessoa. E nam avendo no lugar onde eu fallecer confraria da misiricordia me leuarã somente os cleriguos de huuma soo freguesia ou os religiosos da casa donde me ouuerem de soterrar, e por seu trabalho daram de esmola a misiricordia se ella me leuar dez mil reis, e se nam for misiricordia aos que me leuarem se forem religiosos ou se forem clerigos dous mill reis, e os oyto a pobres que acompanhem ou roguem a deus por mym.

Nenhum officio me diram cantado nem favor delo senam assi resado e nam mais que aquilo que ffazem a quallquer homem comum e ao outro dia seguinte me diram trinta e huma missas resadas se tantos sacerdotes ouuer ne luguar onde eu fallecer, saber, tres de trindades, sete de spirito santo, noue, da anunciaçãa de nosa senhora, e nonve dos angeos e tres de defuntos porque nestas missas tiue sempre muita deuaçam, e nam me digam mais misas, e se no dito dia se podarem diser, naquelle dia se diguam, e se nom o mais asinha que poder ser por pessoas de bom exemplo. E se alguem pola ventura me quiser faser mais pella alma faça ho em esmolas, porque a obra que haa de praser a deus ham de gostar os pobres della segundo sam iheronimo. E se ouuerem de mudar meus ossos nom ho ffaçam com chamamento de gente nem gasto somente com atee mea duzia de clerigos ou religiosos.

Eu casey com a duquesa dona johana de mendonça

pelo contentamento que tinha della e nom olhey a ffazer contrato nem pera seu proueito nem pera o meu.

E por que segundo me dizem letrados haa hii duvida se lhe pertenceraa a metade de minha ffasenda patrimonial na qual tambem haa muitas duuidas como faz menção na doação que della me fez elRei Dom Manuel, e por tirar escandalo antre ella e meus filhos e por que ella melhor se possa sustentar me parece que lhe viria melhor alguuma renda em sua vida que lhe meu filho herdeiro desse, e assi ao dito meu filho fiquar-lhe a dita metade da fasenda per via de concerto aprasendo-lhe a ella de querer estar por ysso, e nom entrar em demanda ou partilha, encomendo e rogo a meu filho herdeiro que lhe queira leixar em sua vida da duquesa a villa dalter do chaão com seu castello por ter bom apousentamento e honesto com sua jurdiçaão; pode somente reseruar meu filho pera si a alçada do ciuel, e com os dinheiros que alii temos assentados, a saber de conto e meo e da vidigueira, e a demasia em monforte lhe reffaraa quinhentos mil reis cada anno e com estes, e com os tresentos mil reis de seu assentamento que he pera honestamente se poder manter.

E a duquesa lhe alargue a metade da ffasenda se lhe pode pertencer, a qual metade com a terça meu filho tome nas cousas que ordeno que fiquem em morguado.

E com estes oytocentos mill reis com boom recado se remedearaa, e meu filho nam perde em darlho ante ganha e ffaz uirtude e minha bençam ganha, e ficam-lhe estas cousas pera sempre, assy que me parece que pera ambos estaa muito bem. E se meu filho estiuer por ysto deixolhe minha terça pera o morgado, ysto aynda que a duquesa nom queira estar por ysto, e se elle nom quiser estar por ysto e ella sy deixo a ella minha terça, e esta terça deixo em galarardaon de quem estiuer por este contranto por causa de concordia. E em tal caso que a terça fique a duquesa tomesse em cousa junta e que renda assy como em corvelhãa se couber e aja a duquesa em sua vida, e por seu fallecimento aja o mayor filho que della e de mim fiquar a hora de sua morte. E nom ficando ffilho macho fique pera a filha dantre ambos mayor assy por via de morgado por sempre, e nem ficando por sua morte nenhuum de nossos filhos ou netos ou outros que della e de mym descendam fique a outro meu filho ou filha mayor que nam seja o herdeiro, que nam quis estar por este concerto porque a este quero que nam venha ainda que nom aja ffilho nenhuum, antes quero que entonces ffique esta minha terça ao esprital de Villa viçosa de Samtispritus per ser gouernado pellos officiaaes da misiricordia. E querendo ambos, a saber a duqueza e meu filho estar por ysto, faças se disto escritura dambas as partes forte e segura e confirmesse por elRei meu senhor, e assi do morguado quallquer que se ouuer de ffazer. Vsse meu filho com seus irmaaos como deue, e bem pode ter maneira com elles e darlhe e fazerlhe auer cousas que a elle prejudicaram pouco, e a elles aproueitaraa muito, de maneira que nam seja necessaria partilha, olhando em todo sua consciencia que elles nam sejam danificados de satisfaçaão da quantidade que por direito lhe pode pertencer, ysto diguo porque espedaçandosse tam pouca ffazenda por taaes pessoas a cada huum viraa pouco, e mais lhes pode seu irmaão aproueitar em al, e segundo sam bernardo de Regimine familie este he o melhor comselho.

E por que a Duquesa tem alguumas joyas douro e assy prata de seruir que nam he muita quantidade, e serlhe haa necessaria pera seu seruiço, e assi pera testar e desça rreguar sua consciencia quero e mando que das joyas douro e prata que em poder de seus officiaaes e delia sam aja a dita duquesa valia de huum conto de reis, e ysto ffazendose o concerto antre ella e meu filho porque nam se ffazendo nam averaa ysto luguar, e com esta condição destes huum conto de reis quero que se ffaça este concerto acima dito. E assy lhe fiquem as escrauas que em seu servjço estam tirando as que seruem a minha filha dona ysabel. E assy lhe fique a roupa de cama e de estrado que soaê geralmente seruir em sua casa, porque seria cousa fea tirarem lha ou avaliarem lha, as jóias de pedraria aja sua senhoria por bem se partam antre meus filhos por yguaaes legitimas se a ffasenda mouel a ysto abranger aynda que melhor seraa que o herdeiro as aja, e lhes pague o que valerem suas legitimas tirando a terça de que acima ffaz menção.

Porque eu tenho alguma fazenda que aproueiley e se se partisse poderia traser discordia antre os herdeiros me parece que he melhor que fique em quem for senhor da casa, se meu filho herdeiro estiuer pello concerto que acima digo com a duquesa, ou se pola ventura ella fallecer antes que eu a parto primeiramente em a terça todas as herdades e ffazenda que eu comprey e comprar em Villa boym porque he muy necessaria pera o senhor da casa, e se toda a fazenda da dita villa nom tiuer comprada a hora da minha morte aconselho a meu herdeiro que a acabe de comprar se poder e que o faça assy mesmo em morguado, porque se o duque meu avoo fisera em morgado a ffasenda que alii tinha comprada tiuera eu pouco trabalho daver o restante.

E assy aparto tambem na dita terça as minhas casas de Lixboa que estam na freguesia das merces que partem com a cordoaria onde eu agora viuo quando laa estou, com todos seus pomares e quinlaaes e eyrados e pertenças.

E assy aparto em minha terça o pomar e casas e olyual com todas suas pertenças do reguengo de Villa Viçosa assy como eu comprey e aproueytey, diguo as bemfeitorias e compras, que ysto he patromonial porque o realengo de seu se fiqua com a villa, e quero que em todo esto se em minha terça couber e em sua legitima e na ffazenda que da duqueza ouuer seja morguado e o haja aquelle meu herdeiro que a casa de direito ouuer daver, e assy vai de boym e casas deuora se couberem.

Segundo direito de meus filhos theodosio e ysabel he toda a ffazenda que da duquesa dona lionor sua may ficou, e porque se perde pella culpa, eu pratiquey com letrados e acharam que me nam valiam testamento nem avia obriguação de se comprir, ainda que alguuma cousa disto pareça nom se cumpra nem aluaras de promessas nem diuidas nem cousa nenhuuma porque as cousas feitas com entençam danada nom deitem dauer effeito porque alguuns aluaras que requereram algumas pessoas eu os nam quis comprir, antes me descontentaram muito emprestarem dinheiro a minha molher em segredo pois eu lhe dava o que lhe compria.

Eu houue em casamento com a duquesa dona lionor vinte e seis contos de marauediis e pello crecimento das moedas creceo mais em reaaes, e de vinte e huum contos delles se compraram o conto e meo que tenho delRey e dous ouue em dinheiro e ho mais em praia e em enxouall como vay aquy em huum rol assinado por mym. E prymeiro que ffaça partilha de minha ffazenda ham dauer theodosio e dona ysabel tudo ysto porque he seu por serem dotaaes que ham de ser primeiro paguos.

E se meu filho herdeiro quiser pera sy este conto e meo poderaa paguar a sua irmãa dona ysabel dez contos e meo de reis se os jaa nom tiuer avidos em casamento ou doutra maneira, e poderlhe haa fiquar o conto e meo todo inteiro de renda por ser espalhado por minhas terras, e pera sua irmãa seraa melhor dinheiro, e pera quem com ella casar porem haa mester que lhos paguem juntos, e avendo este conto e meo deue ho tambem ffazer em morguado.

Os charamelas valem muito, deue hos meu filho tomar e dar por elles myl crusados, e se nam vendam nos, mas nom tomando meu filho todos nom aja nenhuum e aja hos quem mais der por elles juntos, e seja feito a saber a el rei meu senhor ou a esses senhores de Castella, e elles sam galante martinho, Jeronimo jacome, cosme, ffrancisco, duarte.

E posto que alguuns andam fora do officio se os tornarem a hora ou em poucos dias se reffaram pera valerem o que diguo.

Os meus falcões e açores seuendam o melhor que se disso tomarem boom cuidado bem vallem, ou os tome meu filho no que vallerem.

Eu troquey per auctoridade del Rei meu senhor a portagem desta Villa que era direito real polla renda das tendas das feiras que este concelho tinha, e a dita renda das feiras fiquou direito real. E porque eu gastey dinheiro em faser as ditas tendas onde agora estam feitas, e as ffiz em hum chão que comprey a pero de chaues creo que por quatro o cinquo mill reis, a renda destas tendas he direito real e do morguado, a bemfeitoria se poderaa estimar ou saber se pellos livros ho que custou e ysto poderaa ser de partilha e satisfazendo meu filho herdeiro as partes poderaa da hii por diante fiquar no morguado.

O doutor joham gil chantre de lixboa me emprestou mil cruzados no anno de quinhentos e desoito e eu lhe dei huum desembarguo meu pera lhos paguar bastiam rodrigues do primeiro dinheiro do anno de desanove, e antes de começar dauer pagamento ffalleceo e querendo hos eu paguar nam posso acabar de aver determinado per letrado a quem deuo de pagar porque pero drago seu sobrinho, e outro seu sobrinho me requiriam que lhos desse disendo que tem o meu desembargo em seu poder. E porque segundo eu sam informado o chantre tinha pouca ffazenda de seu patrimonio que herdasse de seus antepassados e toda a ffasenda que tinha e ouue foy da renda das suas igrejas, e benefficios que diz que sam o chantrado e huma conezia na see de lixboa, e outra igreja em barcellos, e creo que outra em cheleiros ou nam sey onde.

E por esta diuersidade de benefficios nom sabe homem a que possa pertencer o tal dinheiro, nenhum dos socessores nos benefficios me requere esta diuida nem mostram por onde deuam pertencer mais a hum que a outro antes deixaram aver aos sobrinhos minta ffasenda patrimonial que elle tinha comprado, assy por nam saber a quem ho deuo pagar tenho suplicado ao Santo padre pera se guastar em algumas obras pias polla alma do dito chantre, vindo prouisão de sua santidade alguma tenção tenho de começar na orta de bencatel huum moesteiro pera os frades de sam hieronimo, e por alguma igreja ou outra via lhe dar alguma renda por onde se manteuessem. Faça sse ho que mais for seruiço de Noso senhor por conselho de pessoas de conciencia e religiosas comforme a prouisaão do santo padre e despendam se estes mil crusados por descargo de minha conciencia ou se ffaça nisso aquillo que se achar que por direito se deue faser.=fim.=

E por letra de rui vos ao pee disto = E por que sua senhoria o ho nam pode assinar mandou a mym Ruy vaz pinto que ho assinasse a vinte e um de dezembro de mill e quinhentos e trinta e dous anno = Rui vaz pinto

E o sinall pubrico de tabelliam que ffez o estormento daprovacão.

Á margem a pag. 378 = onde diz o dottor joham gil & diz na margem por letra do duque = jaa ho paguey por sua alma.

Vol. 1.° fs. 374.

Gil Vicente. -- Auto sobre a div. de Coimbra.

Era morto em 1555, pois que n'esse anno, em 30 de julho, passa para um Diogo da Veiga, escudeiro fidalgo da Casa de Bragança, uma commenda, -- a de S. Romão de Monsaraz, -- que o dr. Gaspar Lopes, ouvidor, recebera do Duque D. Theodosio, filho de D. Jayme e de D. Leonor, em 3 de março de 1538.

Um Antonio Mouro, que supponho ter sido filho d'este juiz, foi moço da guarda-roupa e moço das chaves, do filho de D. Jayme, o Duque D. Theodosio I, e depois thesoureiro da Sern. Casa. Teve a commenda da Pensão de St. Maria de Moreira, em 14 de agosto de 1561.

Foi sujeito dinheiroso, segundo se vê do test. de D. Theod. -- Prov. do liv. VI da Hist. Geneal.

Exercia ainda o officio em 1522, segundo vi em documentos do Arch. da Mes. de Villa Viçosa.

... em Villa Viçosa no Castello da Menagem, onde pousa o alto e poderoso príncipe D. Fernando, Duque... Escrip. de 4 de julho, 1470. Hist. Gen. L. VI, pag. 413.

Auto q. se fes, ele. Arch. Nac. Vid. Documentos.

- «O que me mais contenta della he a cintura, que me vae esta sua cota quebrando os quadris." A. Ferreira.

-- «Uma cota aleonada tras vestida...» Gabr. de Castro.

Em França, a coite era usada desde o século XII. Sobre ella, no sec. XIV começou a usar-se a surcot e a tunica, e no começo do sec. XVI, sob a influencia italiana, encurtaram-se os vestidos e a cota foi-se cingindo ao corpo. A plastica mulheril revindicava os seus direitos.

Tecido ou fazenda aleonada claramente se comprehende que era o que imitava o fulvo, o ruivo-escuro da pelle do leão.

Fiçanière. Mem. das Rainhas.

O Charqueirão, -- grande charqueiro ou charco, -- correspondia ao actual largo ou praça de Santo Agostinho, desapparecendo pela colheita e aproveitamento das aguas que para ali correriam do lado do Paço, sem que hoje haja em Villa Viçosa memoria do nome.

Indicaram-me n'aquelle largo uma casa que conserva ainda uma janella ogival e outros vestígios antigos, como tendo sido a casa do Alcoforado.

«D'ali, -- diziam-me -- é que o Pagem via a Duqueza.»

A phrase revela o caracter novellesco da tradição, aliás moderna; mostra, porém, como a lenda erudita se conservou erudita e não calou no povo. Aquella casa nem é do tempo do Pagem, e os nossos documentos são decisivos: os Alcoforados moravam ao fim da rua da Freira.

E' extraordinário como se chegou a suppôr que a edição de 1514 da Ordenação manuelina, fosse a primeira, quando ella propria, -- e se os exemplares são raros, só na Bibliotheca Nacional existem dois, que Innocencio não se deu ao incommodo de ver, -- diz terminante e repisadamente que é segunda Empressam. Hoje ninguem duvida da existencia d'uma edição anterior: suppõem-n'a feita em 1512 ou 1513. Foi antes: -- em 1511, -- pois que uma carta regia datada de Lisboa, em 12 de novembro d'aquelle anno, cujo registro encontrei no Archivo da Casa de Bragança, Privilegios -- manda que «a Ordenação geral que novamente havia feito» (D. Manuel) não houvesse logar nas terras do ducado, na parte respeitante á jurisdicção das Rainhas, Infantes, Senhores e Fidalgos.

E parece que já não devia dar n'isto novidade, porque ainda que nem todos podessem ter visto o registo, a Carta foi publicada por Caetano de Sousa, nas Trovas do liv. VI da Hist. Gen. pag. 67, n.° 115 (1745)! Somente, Caetano põe na rubrica marginal a data de 1521, que é apenas a de uma apostilla ratificativa, em 28 de julho d'esse anno.

E ha um século que se discute o caso!...

Tit. XIII. Do que inalou sua molher: polla achar é adulterio. «Liuro quinto das ordenações cõ sua tauoada. . . nouamente corregido na segunda Empressam. . . Acabou-se de empremir ho liuro quinto das ordenações: corregido e emendado per o doctor Ruy boto chançaller moor destes regnos e senhorios. . . Em Ljxboa per Johã pedro bonhomini Aos XXVIII dias de junho de mil e quinhentos e quatorze ãnos.»

É curioso, e não é inútil, lembrar algumas outras disposições da Ord., até pelas exaggeradas consequencias juridicas que se attribuem ao homicidio praticado pelo Duque de Bragança e das quaes falsamente se tem querido fazer suppôr que elle se livrára por nepotismo e favor.

O meu illustrado amigo Fernando Palha, a quem, como logo direi, devo o ter podido confirmar decisivamente um falseamento ou mutilação praticada em documento importante por Caetano de Sousa, e que foi o primeiro estudioso moderno que presentiu a estranha e notabilissima individualidade do Duque D. Jayme, chega a imaginar «que se não subira ao patibulo com os braços manietados, os braços que tinham assassinado D. Leonor, o devera á muita indulgencia com que o rei tinha feito calar a indignação (?) levantada por tão barbaro feito.»- -- O cas. do Infante D. Duarte, etc. 1881.

Reconstruamos e completemos o texto citado da lei, que bem melhor do que as modernas traduzia os costumes e o espirito, -- a consciencia, -- do tempo:

-- "Achando alguu homem casado sua molher em adulterio licitamente podera matar assi ella como aquelle que achar com ella em o dito adulterio: saluo se o adultero fosse caualleiro: ou fidalgo de solar: ou doctor: (nas edições posteriores substituiram a palavra pela de: desembargador!) porque entam o nom deue matar por reuerença: e honrra de sua pessoa: e estado de cavalleria: ou fidalguia: ou doctorado. Pero quando alguum matasse alguu caualleiro: ou fidalgo de solar: ou doctor: achãdo-o com sua molher em pecado de adulterio non deue por ello morrer: mas será releuado da morte pella grande door e sentido que ouue de sua deshonrra: porem se for villão e homem de pequeno estado seja açoutado publicamente: degradado huu ãno com baraço e pregam para huu couto. E se for vasallo e de semelhante códiçam será degradado por huu ano para o dito couto sem baraço com huu pregam na audiencia. E se o marido for caualleiro ou fidalgo de solar ou doctor ê tal caso poderá matar sem pena o adultro que achar có sua molher ajnda que seja caualleiro ou fidalgo ou doctor.»

Nós, hoje, não podemos deixar de considerar perfeitamente estupidas estas distincçoes subtis. Mas eram as d'aquelle tempo e as d'aquella sociedade, aqui e em toda a parte, é claro. E manda acrescentar a Historia, -- como ella deve fazer-se é ler-se, -- que então... nem eram estúpidas nem subtis...

Segue-se a hypothese ou disposição citada acima, no texto.

Um exemplo mais:

-- «Estabelecemos q todo homem q fezer adulterio com algua molher: sabendo q he casada: moyra por ello: posto que seja vassallo: e tenha de nos marauedis.»

Este era o principio. Mas acode logo a distincção:

-- «E se for cavalleiro ou fidalgo de linhagem de solar e cometer adulterio com mulher casada a sabendas: se a nom tirar do poder de seu marido nom morrera por ello: mas perdera os marauedis que de nos teuer: e sera degradado para sempre de nossos regnos e senhorios. Pero se alguu caualleiro: ou fidalgo cometesse adulterio cõ molher doutro semelhante: em tal caso deue morrer: nó embargante a perrogativa de sua dignidade. (Tit. XII Do q dorme có molher casada per sua vontade.)»

Vide Nota a pag. 6.

D. Fernando II, Duque de Bragança e de Guimarães, etc.

Hist. de Port. por varios escript. (D. Affonso IV, pelo auctor, L. C.)

Chronica do felicissimo Rei D. Emanoel, etc. P. III, C. XII -- 1567.

Vid. Documentos

Contr. e ract. regia dos esponsaes de D. Jayme. Arch. nac. -- Pr. ao liv. V da Hist. Gen. pag. 11 n.º 100.

S. Lucar ou Sanlucar de Barrameda, hoje cidade da prov. de Cadiz, a 54 kil. d'esta, na margem esq. do Guadalquivir perto da sua foz. Tem cerca de 251000 hab. Foi feita pelos Gusmões ou Casa de Niebla e Medina Sidonia.

James e Gemes são as fórmas portuguezas mais antigas.

Nenhum dos nossos escriptores atinou até hoje com esta data, ou melhor, com a edade precisa de D. Leonor, e nem de Hespanha os cavalheiros que tão obsequiosa quanto inutilmente procuram auxiliar-me, entre os quaes, por amabilissima intervenção do sr. conde de Casal Ribeiro, o digno representante actual da grande Casa, o sr. Duque de Medina Sidonia, poderam fornecer-me este dado, para o nosso caso importante, embora tivessemos já a indicação vaga do Contrato esponsalicio, pouco attendida tambem.

Pude, porém, resolver o problema com uma auctoridade irrecusavel, a d'um contemporaneo e chronista da Casa de Niebla, que trabalhou sobre os proprios documentos d'esta, Alonso Barrantes Maldonado, nas Illusiraciones de la Casa de Niebla, obra extremamente curiosa, publicada n'uma collecção, immerecidamente pouco conhecida, da Real Academia de Historia de Madrid (Memorial historico español. . . Madrid, 1857, vol. X.)

Ali diz Barrantes que D. Isabel de Velasco tendo casado com D. João de Gusmão em 1488, tivera esta primeira filha e «el año adelante de 1490 parió otra hija que se llamó Dona Mencia de Guzman, é otro ano parió otra hija que se llamó Dona Isabel de Velasco é adelante parió un hijo, que se llamó Don Henrique.»

É indispensavel a transcripção do texto porque, se a data do nascimento de D.Leonor deve estar exacta, nem outra que lhe fosse anterior se conformaria com as formulas e texto do contrato esponsalicio que a dá, em 1500, -- «menor de 12 annos,» -- a data do casamento differe da que é indicada pelo archivista da Casa de Medina Sidonia, no documento que por mão do sr. conde de Casal Ribeiro, o sr. Duque actual teve a bondade de enviar-me, e é de capital interesse transcrever, como faço nos Documentos. Segundo essa versão, o casamento de D. João de Gusmão teria sido em 1486.

-- ... como á la abuela, que era la Duquesa, madre de Don Juan de Gusman, la qual se holgó con la nieta é la hizo criar con mucho cuidado. -- Barr. Illustr. l. c.

Barr. Illustr. l. c. - Alonso Lopes de Haro, Nobl. geneol. de los revs y titulos de España, Madrid, 1622. - G. Sorita, Hist. del Rey D. Hernando, etc. Caragoça, 1610, t. v. - Sousa, Hist. Geneol. e a infinidade de geneologios que iremos citando. Vid. tambem Docs. (Carta do archivista do Sr. Duque de Medina Sidonia).

D. Leonor de Gusmão, de Sevilha, filha de D. Pedro Nunes de Gusmão e de D. Beatriz Ponce de Leão, e viuva aos 19 annos de D. João de Velasco.

Começaram estes historicos amores em 1330, Chron. de don Alfonso el Onceno, cit. por Lafuente.

A filha do nosso Affonso IV que veiu pedir o soccorro contra os mouros. Batalha do Salado. Conhecem todos o formosissimo episodio dos Lusiadas. Mas carissima consorte de Affonso XI é que ella nunca foi.

... la favorita dona Leonor iba dando repetidas pruebas de una fecundidad prodigiosa.

...los hijos de la favorita aumentaban casi anualmente con una regularidad admirable. Lafuente, Hist. g. de España, Madrid, 1861, t. III.

Figanière, Mem. das Rainhas de Port., Lisboa, 1859.

Cron. de Sancho el Bravo, cit. por Lafuente, Hist. g. t. cit. -- «Dijo que antes queria que le matasen aquel hijo y otros cinco si los toviese que non darle la villa del rey su senor de que le hiciera omenage.»

Barrantes, l. c.

D. João de Gusmão fora armado cavalleiro, com o principe real D. João -- «na tala que se hizo en la vega de Granada.» Esteve no cerco e tomada d'esta cidade, com seu pae. Voltavam d'ali quando no caminho de S. Lucar morreu aquelle, em 25 de agosto de 1492; foi enterrado com grande pompa em Sevilha no mosteiro de Santisidro onde era o pantheon da familia. Os proprios Reis Catholicos tomaram lucto.

Um dos episodios ou dos movimentos da historia portugueza que envoltos na lenda erudita, -- um pouco contaminada ainda em cima por falsas preoccupações politicas, -- deveria ter suggerido aos estudiosos o desejo de o pôr a limpo, é este que o Infante D. Pedro domina ou açambarca um pouco arbitrariamente. A publicação que preparo de uma chronica até hoje injustamente inedita, fornecerá talvez occasião de reunir alguns subsidios interessantes para aquelle trabalho, que além de ser uma liquidação de justiça, e uma necessidade para a comprehensão de um grave momento historico do paiz. Emquanto á referencia do texto: Honny soit qui mal y pense. Estava escripta ha muito.

Barrantes, l. c.

...enbiaron luego por la dispensacion é en tanto que venia se emprenó é pario la duquesa Dona Leonor de Guzman . . .á su hijo primogenito D. Alonso Perez de Guzman que sahio mentecapto, é nacio dia de San Francisco á quatro de otubre dei año 1500.

-- «E dende á poco tiempo vino la dispensacion, é casaronse é velaronse con toda solenidad é fiesta... Barrantes, l. c.

-- «E porque a vossa alteza não pareça que por elle só (duque de Medina Sidonia) me era commettido casamento, quantos então havia em Castella lançaram sobre mim como em renda.»

(Carta de D. Jayme a D. João III.) -- Fernando Palha. O cas. do inf. etc.

-- E também Duarte Brandão fallou em casamento da filha delrei de Franca rara mim. . . » Id.

--«E o imperador Maximiliano veio cear com Thomé Lopes para lhe cometer que escrevesse a elrei meu senhor que elle folgaria casar commigo madama Margarida, e quando chegou o recado eu era já casado, e então a casou com o duque de Saboya...» Id.

-- «Depois que vos convosco entrarem em alguã pratica acerca do dote, direis aquello que nisso vos temos falado e podeis diser que verdade he que ao dito Duque meu sobrinho se cometião alguns casameutos nesses Regnos, e que asinadamente, o Duque de Medina Sedonia lhe dava com sua filha dezouto contos, e lhe daria mais, e que no deve seer menos, pois por rezom de seu estado, o custo hade seer mayor.

(Instr. que ElRei D. Manuel deu a Lopo de Sousa, etc.) Prov. do Liv. VI da Hist. Gen., pag. 10 n.º 99.

-- «Fue este duque Don Juan tan valeroso señor é tan amigo de sus amigos, tan liberal é gracioso á todos, que tornó a cobrar en Sevilla todos los amigos de la casa de Niebla, é a tener tanta parte en la cibdad como sus pasados tenian.» -- Barrantes, l. c.

-- «Fue el Duque don Juan muy magnifico señor, y gran gastador, y bien quisto en la ciudad de Seuilla, como sus mayores; tuuo grandes banjos y diferencias con los seniores de la casa de Marchena.» -- A. L. de Haro, Nobl. gen. de los reys, etc. cit.

-- «... e comtudo elrei meu senhor, que Deus tem pelo gosto que tinha da ida d'alem, que então fasia, por haver logo en breve o dinheiro do meu casamento e o duque meu sogro por servidor, que lhe parecia que n'ella lhe podia muito servir concluiu o meu casamento...» (Carta de D. Jayme, l. c.)

-- «...y como por este tiempo se trató matrimonio entre el Duque de Bregança, y doña Leonor de Guzman, hija de don Juan Duque de Medina Sidonia, porque el Duque tenia su presuncion que no teniendo el Rey don Manuel generacion legitima, le venia la succession de aquel reyno, era aconsejado el Rey (Fernando, o Catholico) que con toda destreza procurasse que el Duque de Bregãça no caxasse, hasta que la Reyna de Portugal pariesse : y el Rey y la Reyna (os Catholicos) se curaron poço por estoruar aquel matrimonio : pues se entedia : segun opinion de muchos, que aun en aquel caso de no dexar el Rey do Manuel herderos legitimos, el Rey de Romanos (Maximiliano I) se preferia ai Duque de Bregança, como nieto del Rey don Duarte: pues el de Bregança estaua en quarto grado: y ambos veniã por muger: y aun en aquel caso la Reyna Catholica podia preteder de ser preferida, por estar en quarto grado dei Rey don Iuã, padre del Rey don Duarte: aunque por tener la quenia que se debia con la sucession de aquel reyno, por lo que importaua para la paz universal de Espana no se tuuo por mal cósejo procurar que el Duque de Bregança casasse com deudos mas apartados: assi como en Aragon con una hija dei Duque de Cardona; y en otra parte donde tomasse deudos que empachassen menos la sucession, que podia pertencer a los nietos del Rey y de la Reyna (Catholicos): ó que casasse con doña luana de Aragon hija del Rey: pues por alli no tenia mas deudos, de los que el Rey, y la Reyna quisessem dar.» -- Çvrita, Hist. del Rey D. Hernandez el Catholico. Çaragoza, 1610 -- T. v.

--«La Reina Doña Isabel donde que començo á governar estos reinos trabajo siempre con el duque Don Henrique padre deste duque Don Ruan que le diese la cidade de Gibraltar por ser cosa conveniente à los reis de castella e que le daria equivalençia por ela, é le senãlo que le daría por Gibraltar la villa de Utrere, tres leguas de Sevilla.» -- Barrantes, l.e.

-- «El duque Don Juan enojado por demandarle la cibdad de Gibraltar respondió que bien sabian sus altesas quan poças mercedes tenia esta casa de Niebla que le confirmasen los Reyes, é las que tenian con justo titulo é razon se las dieron los reys, porque la villa de Bejel costó a Don Alonso Perez de Gusman cinquenta mill doblas, que dió ai rey Don Sancho por la villa de Çafra que trocó por Bejel, é la cibdade de Medina Çidonia fue trocada por el Algava é por el vado de las Estacas é Alaraz, que D. Alonso Perez de Guzman, el Bueno compró al rey Don Fernando quarto d'este nombre, é...

«Que lo que la casa de Niebla tenia que uviesen dado los reyes de Castilla era la tierra despoblada de Sanlucar para que la poblasen.» -- Barrantes, l. c.

-- «... o duque meu sogro estava mui receioso da rainha vossa avó lhe tomar Gibraltar e parecendo-lhe, que segundo a muita estima que elrei meu senhor mostrava que me tinha, e o muito que a rainha desejava de contentar a elrei meu senhor que Deus tem para o casar com a rainha minha senhora que Deus tem vossa madre, que salvaria Gibraltar, e como elle tinha mui grande thesouro que o podia levemente faser, (dar o dote exigido) havia que comprava Gibraltar e que casava sua filha com quem elrei de Portugal dizia que era seu filho e herdeiro.» -- Carta de D. Jayme a D. João III. -- Fr. Palha, l. c.

Está isto perfeitamente de accordo com o que diz Çurita, explicando o grande empenho dos Reis Catholicos em casar sua filha D. Maria com D. Manuel, já viuvo da primeira: -- «por no dar logar que los Portugueses remõtassen sus pensamientos en algunas nouedades, que pudieran ser muy perjudiciales para los fines que el Rey lleuaua: de que auia buen aparejo: assi por la amistad que con Frãcia tenian, como por el odio antiguo de las cosas de Castilla: para lo qual estaua siempre biua, y presente la memoria y persona del Monja doña luana: (a Rainha Excellente Senhora) que aun que lo era (monja) no pareciã teuerla como a tal: y desseauan quitar toda ocasion de sospecha.»

Como este pequeno trecho do celebre historiador responde bem á idéa, -- á illusão, -- do sr. Canovas (Est. del reinado de Fel. IV -- T. T) de que o antagonismo entre portuguezes e hespanhoes fôra sempre pouco menos do que uma lenda!... Essa illusão de politico viciando-lhe a critica de historiador não lhe deixa ver a significação natural, necessaria, do movimento hegemonico da politica portugueza no seculo XV no sentido, não de realisar, como elle diz, uma especie de união iberica de corôas, mas de evitar que a de Castella podesse ser um perigo para a independencia portugueza, e de alargar a grandeza e predominio d'esta á custa d'aquella. A Excellente Senhora, a Rainha espoliada, foi por largo tempo uma ameaça, uma arma cuidadosamente conservada pela nossa politica contra as tendencias e projectos de expansão absorvedora da politica dos Reis Catholicos. E esses percebiam-n'o excellentemente.

Contr. e rat. do cas. Provas da Hist. Gen., l. c.

Yriarte -- Les Borgia: Cesar Borgia, Paris, 1889.

-- «Não fez aqui pausa a felicidade do Duque, porque ElRei D. Manuel achando-se a si proprio exemplo... determinou declarar ao Duque D. Jayme por seu herdeiro, como filho primogenito, que vivia, da Senhora D. Isabel sua irmãa. Tinha EIRey convocado Cortes a 11 de Fevereiro do anno de 1498, a que se derão fim a 14 de Março do mesmo armo pela grande pressa, que tinha de passar a Castella obrigado das instancias dos sogros (pelo motivo da morte do Principe D. João seu cunhado) aonde hia a receber a solemnidade de successor de seus Reynos. Com esta occasião a tomarão os Povos para supplicar incessantemente a ElRey jurasse Principe de Portugal herdeiro do Reyno ao Duque D. Jayme, a quem o direito do sangue, mais que a ceremonia chamava para successor da Coroa quando em ElRey D. Manuel faltasse a descendencia. E querendo ElRey satisfazer ao Reyno, consciencia e justiça, se determinou celebrar aquelle acto. Porém por não innovar com estranhos accidentes o repouso de ambas as Coroas Portugueza e Castelhana, que com aquelle juramento poderião receber espanto, ou esperança, que alterasse o socego, e boa harmonia da correspondencia, em que vivião, he fama que ajuntando na sua Camera ao proprio Duque, alguns criados, Ministros e Grandes do Reyno, vocalmente instituio herdeiro dos Reynos de Portugal a seu sobrinho D. Jayme, e assim o jurarão os que se acharão presentes, pelo que lhe beijarão a mão, de que se fez hum instrumento, e auto publico...» Caet. de Souza, Hist. Gen., t. v.

Leram a rhetorica e repuchada prelenga? Logo iriam percebendo, o que de resto é bem mais singelamente a verdade: -- que a questão não era de ser jurado herdeiro D. Jayme; nem o caso veio a publico nem entrou nos termos regulares do direito constitucional do tempo, porque a preferencia deste Duque havia de soffrer fortes duvidas, pelo menos dos que queriam o outro, o bastardo de D. João II.

O que se supplicou, mais exactamente o que se exigiu, foi que da projectada uniao das Coroas não resultasse a fusão dos Estados, e o que D. Manuel procurava era socegar e aquietar os animos portuguezes, ao mesmo tempo que desilludia um pouco a esperteza dos Reis Catholicos. Era como dizer que suecedesse o que succedesse Portugal teria Rei seu natural, Rei portuguez.

-- «E porque poderão dizer a vossa alteza que a mim deram vinte e seis contos, é bem que saiba vossa alteza porque m'os deram, que não foi uma só, a primeira foi que o duque de Medina me não promettia mais que quarenta mil cruzados, e nisto falleceu o principe D. Miguel, então elrei meu senhor, que Deus tem, mandou chamar seus mensageiros, e lhes disse, que bem viam que então não tinha outro filho senão eu, que se queriam que elle consentisse em meu cazamento que dessem trinta contos que elle podia levemente dar, e com esta palavra subirão elles a vinte e seis contos, e á outra porque... etc. (Carta de D. Jayme, l. c).

Note-se que a este tempo se tratava já do 2.º casamento de D. Manuel, que pouco depois se realisava.

A equivalencia em moeda de hoje póde caleular-se em cento e cincoenta contos de réis, os trinta de maravedis exigidos (maravedis de conta, entende-se, que se os suppozessemos de ouro, seria um absurdo), e em cento e trinta contos os vinte e seis convencionados.

Arch. da Sern. Casa de Brasanca.

-- É geralmente a antonomasia que lhe dam os nobiliarios e que julgam dispensavel explicar. Não pegou a de Africano. Era filho de D. Fernando I duque de Bragança e este, do primeiro duque, D. Affonso, o intrepido bastardo do Mestre d'Aviz (rei D. João I), e de sua mulher, D. Brites Pereira, a formosa filha natural do grande Condestavel.

Filho do rei D. Duarte.

Em 1479 diz Caetano de Sousa que nascera D. Jayme. Hist. Gen. Mais uma vez averiguou mal, tendo, aliás, tido á sua disposição os melhores meios de averiguar com segurança. Damião de Goes erra tambem, dando-lhe 21 annos em 1501. Chr. de D. Manuel. Teria então nascido em 1480.

No chamado Livro Velho do Archivo da Sern. Casa de Bragança, (em perg.) logo no principio, assentou o proprio D. Fernando II successivamente as lembranças dos nascimentos dos filhos: -- D. Felipe, D. Jayme, D. Margarida e D. Diniz. Foi a unica vez que encontrei a lettra do celebre Duque. A nota relativa a D. Jayme, é a seguinte:

-- Anno dej mj clxxbiij dia de sancta maria madanela em quarta eira xxij dias de julho aas bj ou bij oras despois do meyo dia naceo meu filho dom gemes o qual nome lhe foi posto por deuação de Santiago.

Esta deuação explica-se assim: -- James, Gemes, Jacques, Jayme, Thiago, Iago, vem a dar tudo na mesma.

Este livro antigo, o mais antigo até, que existe hoje no Archivo da Sern. Casa, desappareeeu d'elle, sendo encontrado n'um livreiro de Lisboa e readquirido por um zeloso empregado que o comprou em 1880. Tem hoje o n.° 702. Mas no tempo de Caetano de Sousa devia estar ainda no Archivo pois que d'elle se fez uma copia em 1778, que tem este titulo Doações e privilegios da Ser. Casa de Bragança copiados Por ordem da Junta do mesmo Ser. Estado de um Livro manuscrito de Letra antiga, etc.

O Duque D. Fernando II casou duas vezes: -- a primeira em 1417, com D. Leonor de Menezes, filha do primeiro conde de Villa Real e segundo de Vianna, o celebre almirante, governador de Ceuta D. Pedro de Menezes, -- a segunda, em 19 de setembro de 1472, com D. Isabel, irmã de D. Manuel. Do primeiro casamento não teve filhos.

-- «... faleceo la dizê q de peçonha.» -- Fr. Affonso de Fala, Hist. Gen. Ms. da A. R. das Sciencias de Lisboa, 1584. N'outras Memorias se reproduz a versão.

-- «Dicese por cierto, que Jayme participando en su mocedad del proprio beruage, que su mayor hermano Don Felipe, ya que no peligró de vida, adolesio dei seso...» -- -D. Francisco Manuel de Mello, cit. Caet. de Sousa, Hist. Gen.

-- «Mayormente que en aquella sazon (depois da morte da primeira mulher e do primeiro filho de D. Manuel) auia alguna diuision de partialidades en aquel reyno entre don Jayme Duque de Bregança, y don Jorge de Portugal, a quien el Rey don Manuel hizo Duque de Coymbra, y le casó con doña Beatriz de Melo, hija de don Aluaro de Portugal y de doiña Felipa de Melo sua muger: y entõces se auia dado grã estado: y le començaua a seguir mucha parte del reyno: y el Duque de Bregãça se tuuo por muy desfauorecido; v se salio dela corte cõ harto desagrado; y dexó su partido Dó Aluaro de Portugal a causa dei Duque de Coymbra.» -- Çurita, l. c.

-- «Pertendia este preceder ao Duque (de Bragança) pela prerogativa do seu nascimento como filho del Rei D. João II pelo que nos actos, e funções publicas allegava tocar-lhe a preferencia do lugar, e assento; e representando a ElRei o seu sentimento com as razoens, porque no devia ser preferido pelo Duque de Bragança, o prudente Rei lhe respondeo, que se averiguasse qual dos Duques lhe era mais propinquo, e chegado em sangue e qual a pessoa, que não tendo elle filhos lhe houvesse de succeder no Reino, dizendo mais: O Duque de Bragança he filho de minha irmaã, e o Duque de Coimbra, filho de meu primo com irmão, e desta sorte he sem duvida o primeiro parente o Duque D. Jayme, e assim lhe he sem controversia devido o primeiro lugar, como o herdeiro presumntivo da Coroa.» -- Caet. de Sousa, Hist. Gen.

É um pouco embrulhada e phantasiosa, como quasi sempre, a rhetorica de Sousa, mas a nota das dissenções é verdadeira.

Como curiosidade historica que em mais de um ponto póde ser util, faremos uma breve summula, naturalmente muito incompleta, da reconstituição da Sern. Casa.

1496 -- 16 junho -- (Em Alcochete) -- Terra, senhorio e julgado de Ferreiros (bisp. de Lamego).

-- Id. -- Agoa de Alviella e suas praias desde a Igreja de S. Vicente de Cazevel até «donde se mete no Tejo.»

-- 18 junho -- (Em Setubal) -- Villa e castello de Chaves e seus termos, e terra e julgado de Montenegro; do Castello e fortaleza de Monte Alegre e terras de Barroso, Baltar, Paços e Barcellos, com seus termos, coutadas, honras, jurisdicções e padroados de Igrejas e das quintas de Carvalhosa, Covas, Canedo, Sarrães, Godinhaes, Sam Fins, Temporan, Moureza e Pouzada, e dos Cazaes de Bustello com todos seus direitos, pertenças, honras, coutos e tomadias.

-- Id. -- Lugar de Fão, com todas suas rendas, tributos e direitos.

-- Id. -- Confirmada a eleição dos moradores da Honra de Ovelha que tomaram por senhores, -- varões ou femeas que sejam, -- os possuidores da Casa de Bragança.

-- Id. -- Confirmada a escriptura pela qual os moradores da Honra de Amarante tomaram por senhores os duques de Bragança.

Honras eram as colonias ou povoações concedidas ou que adoptavam, por authoriregia, certos Ricos Homens ou senhores, dos quaes ficavam feudatarias para que as defendessem e protegessem, ficando isemptos das imposições reaes.

-- 20 junho. -- Appr. a compra feita por D. Jayme, das terras de Penella, «de contra o levante» Villa Chaã, Larim, Couto de Penagate, e todos os casaes, herdamentos e direitos, a Gonçalo Pereira e D. Beatriz sua mulher.

-- Id. -- Padroado da Igreja de Villa boa de Queris (julg. de Porto Carreiro, bisp. do Porto).

-- Id. -- Titulos de Duque de Bragança e Conde de Barcellos, «em tal forma que por morte de qualquer Duque o filho que ficar se chame logo pelos seus titulos.»

-- Id. -- Todas as rendas, foros, direitos, tributos, reguengos, casas e herdades da villa de Guimarães e seu termo que por qualquer modo pertencessem á Coroa, excepto as sisas.

-- Id. -- Cidade de Bragança com seu Castello, e do Castello do Outeiro de Miranda e Nozellos com todos seus termos, jurisdicções, rendas, direitos e padroados das Igrejas.

-- Id. -- Terra e julgado de Neiva, e de Darque, e de Perelhal, e de Faria, e de Rates, de Vermoim, de Penafiel, de Bastos, e Couto da Varzea, com todas suas rendas, jurisdicções, direitos, foros, tributos, rios, montes, fontes, rocios, passigos, e padroado de Igrejas, «tudo vinculado em um morgado que foi o 2.º que teve a Casa.»

-- 21 junho. -- Padroados de todas as Igrejas dos julgados de Neiva, Aguiar de Neiva, Faria, Vermoim, Penafiel de Bastús e do Couto da Varzea.

-- Id. -- Confirmada a eleição dos moradores das Honras de Bretiando, Varzea da Serra, Omisio, Campo Bemfeito, que tomaram por senhores, -- varões ou femeas, -- os possuidores da Casa de Bragança.

-- Id. -- Cargo de fronteiro-mór de todas as suas terras, com todas as honras, poderes, preeminencias e liberdades, e com prohibição de que qualquer exerça eguaes funcções nas terras do Ducado.

-- 22 junho. -- Declaração da forma de successão da Casa, que se não compreendia na Lei mental.

-- 23 junho. -- Lugares de Melgaço e Castro Laboreiro com seus Castellos, rendas e direitos, e Castello de Piconha.

-- Id. -- Padroado da Igreja de S. João de Villa Boim.

-- 24 junho. -- Villa e Ducado de Guimarães, com todos os privilegios e liberdades.

-- 15 julho. -- Conf. a compra das terras, casaes e direitos que foram de Tareja Novaes, na freguezia de Brito Figueiredo, e S. Martinho de Leitões, «e a quinta chamada de Santo Tisso de Riba Dave com sua torre, vinhas, jurisdicções.»

-- 20 julho. -- (Em Alcochete) -- Terras de Payva, Tendaes e Lousada (as quaes tinham vindo á Casa por escambo de Campo de Ourique).

-- 16 agosto. -- (Em Villa Franca) -- Fronteiro-mór das comarcas d'Entre Douro e Minho e Traz os Montes.

-- 24 agosto. -- (Em Torres Vedras) -- Terça parte dos bens que ficaram ao Duque D. Affonso e do Marquez de Valença e que pertencia ao Rei por herança de D. Filippa, sua tia.

1497 -- 20 fevereiro. -- (Em Estremoz) -- A herança que pertencia ao Rei por morte de D. Filippa sua tia, com obrigação de pagar as dividas d'ella.

-- 18 abril. -- Acclara e amplia a nomeação de fronteiro-mór com a faculdade de tirar e de pôr os guardas que lhe parecesse.

1498 -- 12 maio. -- (Em Lisboa) -- Bens e fazenda de Jeronymo Rodrigues que emquanto judeu se chamava Abraham Catei e os perdera por infedelidade, os quaes, sitos entre Douro e Minho.

1499 -- 2 agosto. -- (Em Cintra) -- Paços da cidade de Lisboa e Reguengos do termo d'ella que foram do Condestavel, e das rendas de Rio Mayor, villa de Porto de Moz, e reguengo de Alviella, e tambem das Disimas novas e velhas do pescado de Lisboa, em escambo e troca das judiarias da mesma Cidade, extinctas.

-- 11 dezembro. -- (Em Lisboa) -- Disimas do pescado de Villa do Conde, Fão, Esposende, Povoa, Darque, Villa Nova da Cerveira e Ericeira.

1500 -- 4 dezembro. -- Que os vereadores de Lisboa nada innovem nas disimas do pescado dadas em compensação das judiarias extinctas.

1501 -- 11 março. -- (Em Lisboa) -- Villa de Monforte com seu castello, rendas, direitos, jurisdicções e todas suas pertenças.

-- «O duque D. Jayme não atado ao segredo, que n'aquelle acto praticara o Tio, em publico e em particular começou a usar das Ceremonias Reaes que ao estado de Principe, suecessor do Reino pertencem...

«Até este tempo usarão do Escudo das Armas, na fórma que já fica dito... porém o Duque D. Jayme nesta occasião o mudou totalmente por ordem delRey D. Manoel, deixando o antigo da Aspa pelo das Armas Reaes de Portugal com Elmo Real aberto a todas as partes com Coroa e Timbre de meya serpe de Ouro.

Nesta forma usou delle o Duque D. Jayme até que ElRey D. Manoel teve filhos porque depois usou da Coroa Ducal, com a divisa do Banco de Pinchar de Ouro, concedido só aos Principes, e Infantes, e ás Infantas que he o Banco de prata, accrescentando-lhe por differença as Armas de Castella... e as de Inglaterra... e da esquerda outros com as Armas de Aragão,... etc. Hist. Gen.

As antigas armas dos Duques de Bragança eram: -- Aspa vermelha em campo de prata, e na Aspa as Quinas do Reino, sem a orladura dos castellos. Timbre: meio cavallo branco com tres lançadas no pescoço em sangue brindado de ouro com cabeçada e redeas de vermelho (ant. timbre dos Pereiras, em memoria do conde D. Rodrigo Forjaz que nos campos de Santarem em serviço do rei D. Garcia prendeu o irmão d'este D. Sancho, indo num cavallo branco que lhe mataram com tres lançadas). Vid. Ant. de Villas Boas e Sampaio (Nobil. Port., 1754).

O cavallo branco foi substituido pela meia Serpe de Ouro, e parece-me que muito bem.

Caetano de Sousa, l. c.

Cartas de D. Jayme. Ferm Palha, l. c.

«Para obligar en el interin, á la Casa de Bragança á trasladar su residencia á Madrid, y hasta fuera de la Peninsula, hubiérase necesitado acaso rigor tan grande como el que, con más ó menos razon,... emplea ahora el gobierno alemán en las antiguas provincias germánicas recién conquistadas? Pues si de una vez se quiere la demostracion de que era de todo punto imposible la perpetua unión de Portugal y Castilla, residiendo alli la Casa de Bragança, fuesen cuales fuesen sus derechos... basta y sobra con leer lo que acerca dei poder material de dicha Casa escribian durante la incorporacion los portugueses...

«Teniendo, pues tales recursos á la mano aquellos Duques; siendo de personas Reales los respectos de que gozaban; existiendo la arraigada creencia en la mayoria del pueblo de Portugal de que poseran ellos el mejor derecho á la Corona; contando con el apetito de Monarca proprio que alli se experimentaba constantemente... nadie podrá dudar que el proclamarse de hecho y de derecho Monarca un Braganza, era solo cuestion de oportunidad y de tiempo.» -- Canovas, Est. dei reinado de Fel.IV. Madrid, 1888, t. I.

Desculpe-se ao illustre estadista o absurdo historico de equiparar Portugal ás antiguas provincias germanicas, -- como se tivessemos sido alguma vez provincia da Hespanha moderna, nascida até muito depois de nós, -- pela verdade que a sua consciencia de historiador consegue sobrelevar ao seu criterio de politico hespanhol, quando reconhece o nosso sentimento nacional e que... «la unión existió de milagro, en suma, los cortos anos que existia.» Perfeitamente: -- porque era, como será sempre, desnaturai e absurda.

-- «Effeituou-se também n'este anno (1500) o casamento delRei D. Manoel com a Rainha D. Maria, Infanta de Castella, e havendo de fazer a sua entrada pela Villa de Moura, foy encarregado o Duque de Bragança para naquella Villa a receber... Estimou o Duque a eleição não só por se mostrar agradecido a ElRey, mas também aos Senhores Castelhanos, de quem elle recebera, seus irmãos e toda a Casa de Bragança notáveis attenções no tempo que estiverão naquella Corte... Preparou-se com aquella grandeza divida ao respeito da representação da sua grande pessoa, a quem acompanhou o Senhor Dom Álvaro, seu tio, o Bispo de Évora D. Rodrigo de Mello, seu primo com irmão depois Conde de Tentugal e Marquez de Ferreira, o Bispo do Porto D. Diogo de Sousa, depois Arcebispo de Braga, D. Francisco Coutinho, Conde de Marialva, e Loulé, o Prior do Crato D. Diogo Fernandes d'Almeida, seu irmão D. Pedro da Silva, commendador Mor de Aviz, e outros muitos senhores e fidalgos principaes, com que sahio de Villa Viçosa, buscando o caminho de Moura onde a Rainha vinha em direitura da Cidade de Granada. O Duque levava mil homens de Cavallo, luzidamente compostos tendo em todo o caminho prevenidos aposentos com abundancia de mantimentos, com que servia com grandesa, e delicadamente não só aos Senhores Portuguezes, mas aos Castelhanos que quizeram entrar no Reyno. Era a principal pessoa que de Castella conduzia a Rainha, D. Diogo Furtado de Mendonça, Arcebispo de Sevilha, Patriarcha de Alexandria, que a entregou a D. Jayme por ter para isso poder bastante delRey. Acabado este acto partia o Duque com a Rainha para a Villa de Alcacer, onde ElRey a esperava, e no mesmo dia, que erão trinta de Outubro os recebeo d'Evora D. Affonso o que se celebrou com Reaes testas que durarão muitos dias.» Hist. Gen., l. c.

«... & ha trouxeram a Portugal no armo de Mil, & quinentos, & dous, moça, sem ainda ter idade pêra se entrelles poder consumar ho matrimonio, do que ho Duque desgostoso, com ha vontade que trazia de sentir a Deos em religiam, mais que no estado matrimonial, induzido & aconselhado per frades da ordem de sam Francisco da obseruancia a que chamam da Piedade, de quê era & sempre foi muito deuoto, determinou de se ir fora do Regno, pêra Hierusalem tomar o habito de religiam & nelle passar todo o discurso de sua vida, & antes d. ho poer em obra escreueo huã carta a ElRei, que depois delle ser ido lhe deu hum destes religiosos na qual lhe pedia que não tomasse a mal sua determinaçam, que elle ho fazia por se não achar apto, nem pera ho matrimonio nê pera reger hos bês, & casa de q lhe sua Alteza fezera mercê, pelo que lhe pedia por amor de nosso Senhor Jesus Christo que de tudo fizesse mercê a seu irmão dó Dinis, com ho mesmo titulo de Duque, no que faria seruiço a Deos, & a elle assinada merçe.

Dada esta carta a ho messageiro q ha trouxe, ho Duque se partio de Villa viçosa com hum só companheiro a cauallo, sem outro nenhum criado tomando ho caminho de Castella...» Dam.de Goes, Chr., l. c.

-- «... que o dito senhor duque de Medina Sidonia haja de entregar e entregue a dita senhora Dona Leonor sua filha á senhora Duqueza de Bragança daqui athe fim do mez de março primeiro que vem...» -- Contr. do cas. em 11 de set. de 1500. -- Arch. Nac. -- Provas do liv. VI da Hist. Gen., pag. 11, n.° 100.

-- «O Chronista Damião de Goes effeitua este Tratado no anno de 1501; porém o contracto do casamento original... não nos dá lugar a podermolo seguir, porque foy no anno antecedente, e no de 1502 veyo a Duquesa para Portugal, conforme o que nelle se tinha estipulado; com que o disgosto do Duque com a vontade que trazia dá mudança da vida, deu causa á resolução referida...» -- Caet; de Sousa, Hist. Gen., l. c.

O que se estipulara fôra, como já vimos, que D. Leonor viesse em 1501, e não como parece dizer Caetano de Sousa, em 1502; mas não é esta a unica embrulhada que o geneologista faz, n'este trecho. Parecendo, como Goes, que põe a fuga do Duque depois da vinda da noiva, accrescenta, algumas linhas depois: -- «pelo que entendemos (?) que o Matrimonio se contrahio no anno de 1502, em que a Duqueza cumpriria a idade competente, conforme ordenão os Sagrados Canones.» E logo em seguida observa que o Duque n'esse anno levava á pia baptismal o principe D. João. De resto, já sabemos que D. Leonor em 1502 «não cumpriria a idade competente.»

E' curioso que aquella data de 1501, como sendo a dos esponsaes, é também a que erradamente dá o archivista da Casa de Medina Sidonia. Vid. Documentos.

Barrantes (Illustr. de la Casa, etc, l. c.) colloca a narração das festas e da vinda de D. Leonor entre 1501 e 1503, e até depois de as descrever accrescenta: -- «Antes de esto El ano pascido de 1501...»-- e mais: -- «En este año de 1502...»

-- «Deuide exparte tua Nobis relatum fuit quod dilectam in Christo filiam Leonoram de Mendonça Vxorem duxisti cujus que tu et ipsa indulgentiam proedictam singulis annis melius consegui valeatis absolutiones hujus modi tempore aliquam etc. -- Datum Romae apud S. P. sub A. Pise. die decima octava junii milesimo quingentesimo quinto.»

Caetano de Sousa, Hist. Geneol., não comprehendeu, como muitas vezes lhe acontece, o documento que publica. A instrucção de D. Manuel a Lopo de Sousa diz:

-- «Primeiramente dareis nossas cartas de crença que levais a ElRey e aa Raynha e aa Princesa meus muito amados e prezados primos, e dirlheeis acerca deste casamento todo o que comvosco falamos, e principalmente direis a Princesa que pois ela haa aprazer que o dito casamento se faça, queira tomar cuidado de trabalhar en ello, como se acabe, naquella maneira que lho melhor parecer...» Instr. -- Provas do Liv. VI da Hist., n.° 99.

Caetano de Sousa diz que esta Princesa que -- «mostrava grande desejo de que se effeituasse este tratado,» -- era -- «a Rainha D. Joanna sua cunhada (Então Princesa de Castella),» -- quer dizer: Joanna a Louca.

Ora áquelle tempo, fevereiro de 1497, D- Manuel não tinha cunhadas nem em Castella nem em parte alguma. Quando muito tinha lá uma presumptiva noiva na viuva do nosso Principe D. Affonso (filho de D. João II) a Princesa D. Isabel.

Outra Princesa, que havia de ser de Castella, aquella Madama Margarida que casou com o herdeiro real, e que quando viuva, o pae, o imperador Maximiliano, pensou em casar com D. Jayme, ainda não aportara a Santander (março 1497), e D. Joanna (a que depois foi rainha) além de que era infanta, estava, não em Castella, mas em Flandres, casada com o filho do Imperador.

A Princesa a que a Instrucção de D. Manuel allude e que patrocinava o casamento da irmã bastarda com o Duque de Bragança era claramente a prima e noiva d'aquelle, a Princesa D. Isabel que somente sete mezes depois veiu para Portugal, Rainha.

Lafuente, Hist. Gen. de Esp.

--«... e comtudo elrei meu senhor, que Deus tem... concluio o meu casamento muito contra minha vontade que eu era mancebo e desejava pouco de casar e muito de folgar, e posto tivesse o ponto em mais alto logar obdeci ao mandado de elrei meu senhor em que não cuidei que lhe fazia pequeno serviço...» Carta de D. Jayme a D. João III, Fern. Palha, l. c.

-- «Dom Jaimes duque de Bragança filho do Duque dom Fernando, foi home mê prudente, & muito dado á religiam, mais desejoso de n'ella seruir a Deos, que nam em outro estado. Pelo que cõtra sua vontade, & com desgosto, por comprazer a ElRei & á Rainha dona Leanor, seus tios e á Duqueza do Isabel sua mai,...» Goes, l. c. -- Hist. Gen. etc.

-- Entre a rhetorica de Fr. Manuel de Monforte, (Chr. da prov. da Piedade, primeira capucha, etc. Lisboa, 1696) já humoristicamente exemplificada por Camillo Castello Branco (Cavar em ruinas, etc. Lisboa, 2.ª ed.) e a de Caetano de Sousa, prefiro agora esta por mais sobria, o que parece incrivel:

-- «Era o Duque... supposto que ornado de excellentes virtudes, naturalmente preoccupado de melancholia, a qual sobre animo devoto, e inclinado á observancia dos Religiosos, lhe influia hum desejo ardente de soledade, pelo que muitas vezes a buscava no retiro da Serra de Ossa, onde passava a assistir com os devotos Eremitas, que n'ella vivião, aos quaes acompanhava nos seus santos exercicios, não só da oração, e actos de devoção, mas ainda nos de humildade, ajudando-os nas obras em que trabalhavam de mãos. Assim passava os dias em ocio santo, sem memoria do Mundo, na companhia daquelles Santos Varoens, que no dito sitio vivião com grande exemplo, e pobreza, intitulando-se: Capellães do Duque de Bragança, sem mais trato que com as cousas do Céo. ...Não era o trato do Duque somente com estes Religiosos porque tendo grande devoção do Patriarcha S. Francisco, estimou muito os seus filhos, que em nova Recoleição formarão depois a Provincia da Piedade, a que deu o nome o primeiro Mosteiro, que estes Religiosos tiverão em Villa Viçosa...

«Com elles se ajuntava nos exercicios de devoção, seguindo-os nos actos de Communidade, e observancia, sem differença de qualquer Religioso: na Cerca mandou lavrar algumas Ermedinhas entre os arvoredos, para que na solidão pudessem mais livremente vacar a Deos, e escolhendo huma para si...

A familiaridade do trato com estes Religiosos o encheo de huma tal devoção que entrou na idéa de largar os seus Estados, e de tomar o habito Capucho... sahio do Reyno com a direcção de ir a Roma, onde o Papa o dispensaria no anno da Approvação... Hist. Gen., l. c.

O Panorama, vol. n, 1838: -- Quadros da hist. port., VIII. -- É um artigo bem pensado e bem escripto; apesar de algumas inexactidões: -- o primeiro estudo que, aparte a influencia romantica do tempo, pressente a verdade historica e physiologica da tragedia de Villa Viçosa. Terei occasião de referir-me novamente a elle.

Cam. Castello Br. -- Cavar em minas. -- 11 Frades, ursos e um duque de Bragança. -- "Agora passemos dos ursos, aos frades, e depois á devota besta-fera chamada D. Jayme de Bragança.»

-- «... posto que naquelle tempo andasse muito doente de humor melêconico, casou com idade de vinte, e hum annos, no anno de Mil e quinhêtos e hum, com donna Leanor de mendoça, filha legitima de Ioam de Guzman, terceiro Duque de Medina sidonia...» Goes, l. c.

Fica já atraz emendada a edade e a data do nascimento.

Non unam sedem habet, sed morbus totius corporis est. Cit. Desp. Psych. nat. 1868.

-- «Primeiramente pedirei perdão a vossa altesa de tardar tanto a responder, porque minha dor de cabeça apenas me dá logar para fazer cousas ás direitas..»

-- "...que ainda que posso trabalhar em caminhos e em caçadas, por ver se posso lançar fora estehumor melenconieo, posso-o melhor faser porque como e repouso e durmo quando quero, e as mais das vezes ceio em anoitecendo e lanço-me logo.»

-- «Eu tenho bem experimentado que a principal causa das minhas doenças é o muito cuidado que tomo das cousas do serviço de vossa altesa...

...e com esta doença e com as outras passadas causadas pela mesma maneira («trabalhos etc. somnos que perdi»).

Fern. Palha: O Casamento do inf. A carta de marca etc. 1882.

Estes dois trabalhos de Fernando Palha são preciosos para a justa apreciação do Duque pelas cartas e trechos do proprio punho d'elle. A face d'esses documentos, quando a lenda sentimental e litterata tivesse podido abafar as mais revelações, seria indeclinavel dar razão aos velhos escriptores e geneologistss nos singulares elogios que fazem ao levantado espirito e caracter de D. Jayme, tão injustamente maltratado e obscurecido depois.

Oxalá Fernando Palha podesse mais frequentemente offerecer á nossa critica historica a lição opulenta que guarda na sua notabilissima bibliotheca.

N'um documento publicado nas Prov. da Hist. Gen., liv. VI, n.° 165, que Caetano de Sousa impropriamente chama Regimento dos officiaes, etc, e parece ser uma memoria de Antonio Mouro, guarda-roupa de D. Theodosio, diz-se d'esse official: -- Contava muitas historias ao Duque sem prejuiso de pessoa, com que aliviava muito o Duque de suas menencorias, que nunca faltavão, e como o Duque dormia pouco, as mais das noites gastava nestas cousas.»

-- «... a outra historia foi q. estando o dito Duq. frenetico, e dizendo q. elle estaua morto e q. por isso não comia, vendo os medicos q. seria causa de grande fraqueza e della resultaria morrer, se fez hû artificioso medico hûa noite visão, q. lhe mostrou q. elle estaua viuo, e q. se não comesse auia de morrer dahi por diante comeo e foi liure daquelle mal dahi a algûs dias.»

Codice da R. Bibl. da Ajuda, S. 170.

Parece ser o Livro de Linhagens dos Fidalgos de Portugal, de D. Antonio de Lima Pereira (que morreu em 1582), a que se refere, continuando-o, seu neto D. Jeronymo de Athayde no seu Nobl. existente na mesma bibliotheca. D. Jeronymo, marquez de Collares, morreu em 1669.

Esta therapeutica das visões é antiga, como se sabe. Pelo tempo do nosso D. Jayme, tambem na Escocia se ensaiou uma especie de visão para arredar outro Jayme, -- James IV, -- o moço e impetuoso Rei d'aquelle paiz, de invadir a Inglaterra. Estando Jayme ás vesperas na egreja de S. Miguel de Linlithgow, um personagem imponente, atravessando pela multidão, intimou ao Rei, da parte de Deus, de que se disse enviado, a que não insistisse na empreza, que seria desastrosa. Mas o rapaz não se deu por convencido e foi pagar a incredulidade na famosa batalha dos campos de Flodden (1513).

Psych. nat. 1868, t. II.

Cit. por Caet. de Sousa, Hist. Gen., diz que se tinha por certo que -- «D. Jayme participando en su mocedad del proprio beruage que su mayor hermano D. Felipe, y que no peligró de vida adolesió dei seso cuyos intervalos le fueron continuos, y a tiempos le oprimian, agora de subita colera, agora de indeterminable melencolia.»

É a lenda do envenenamento dos filhos do Degolado de Evora, aliás inteiramente escusada para explicar a «doença» de D. Jayme.

-- Era singular o caracter do duque, cheio de contradições e de inconsequencias. Os actos de toda a sua vida mais parecem concebidos por diversos individuos do que pensados e executados por um só homem. Humilde em excesso a ponto de abandonar a casa e o estado para ir professar em Roma, escolhendo o habito de S. Francisco, o mais pobre dos habitos; delicado em pontos de honra, o que é bem contrario á humildade christã, a ponto de por meras suspeitas assassinar barbaramente a sua primeira mulher; valente quando á testa das tropas reaes e das suas proprias accommettia em Africa a praça de Azamor; timido quando respondia ao desafio que de Castella lhe mandou o conde de Urenha por causa da morte de D. Leonor, escusando-se para o não acceitar com a qualidade de herdeiro do throno, que já não tinha; prodigo quando á sua custa armava e vestia cinco mil infantes e quinhentos cavalleiros para a empreza de Azamor, quando por baixo preço vendia a Vidigueira e Villar de Frades a Vasco da Gama para lhe facilitar o obter o titulo de conde; mesquinho quando recusava á filha o dote necessario para casar com um principe de sangue real; altivo até ser insolente quando tratava do rei que em pouco tinha a sua alliança, quando adoptava a orgulhosa divisa do «depois de vós, nós;» rebaixando-se até á supplica quando ao mesmo rei se queixava de ter em pouco os seus serviços, de não attender os continuos requerimentos que pelos filhos lhe fazia; orgulhoso como todos os da sua casta, considerando-se pouco menos do que o proprio rei, professando o odio ao casamento, zeloso dos bens da sua casa, tudo esqueceu quando, obedecendo só á paixão, casou segunda vez com D. Joanna de Mendonça, que nem tinha fidalguia, nem riqueza que a tornassem digna de occupar a cadeira do docel do paço de Villa Viçosa.» -- O cas. do Inf.

Carta a D. João III, em 7 de outubro de 1530, Fern. Palha, l. c. É injusto, por não ter comprehendido bem a intenção do duque ou o espirito do tempo, Fernando Palha, quando diz:

-- «Só esta phrase lhe não perdôo. . . Para isto deixou Affonso de Albuquerque o nome portuguez escripto ás lançadas em letras de sangue desde Adem até Malaca, para isto,» etc.

E' de outros «merecimentos» que o Duque certamente falla; -- dos da nobreza, da influencia, da riquesa, do prestigioso poderio fidalgo; é n'aquelle emparceirar com a Coroa, etc.

Tempere-se já na impressão dos leitores menos compenetrados do espirito do tempo, esta dura expressão da prosapia ducal, com uma encantadora expansão de amor e desvanecimento paternal que se encontra em outra Carta, -- escripta pouco depois, -- pelo altivo Senhor:

-- «eu vos posso bem jurar que assim Deus me dê saude para alma e para o corpo, não fallo nas rainhas, porque estas são noli me tangere, em que homem não ha de pôr a boca, que tirando a duquesa, (2.ª mulher) a quem eu devo muito do ensino e tratamento de minha filha, que eu não vi pessoa em toda minha vida a que minha filha não faça muita vantagem, ainda que fora filha de um lavrador. E prouvera a Deus que achara eu outra tal para meu filho, em camisa e sem dote nenhum ainda que meu filho fora imperador.» C. em 12 des. 1530, Fern. Palha, l. c.

-- «... tomando ho caminho de Castella no Regno Darágam, onde foi achado por alguãs das pessoas que el-Rei dom Emanuel mãdou tras elle, per mar, & per terra, em a qual cidade quomo foi conhecido lhe fezeram hos gouernadores, & todadas outras pessoas nobres que nella viuiam, muita cortesia, & dahi se tornou aho regno...» -- Goes, l. c.

Preparava para isto uma expedição de vinte e seis mil homens, sendo seis mil e oitocentos de cavallaria e quatrocentos navios! Portugal... d'outros tempos.

A armada portugueza que foi em soccorro dos venesianos (1501) ou da christandade oriental era de trinta navios dos melhores, com tres mil e quinhentos homens, sob o commando do Conde de Tarouca, D. João de Menezes.

A que a seguiu, ia sob o mesmo commando, mas destinada a apossar-se de Mazalquivir, e talvez de Oran. Não conseguindo isto, voltou a Portugal, seguindo a outra até Corfú, d'onde regressou.

Da expedição castelhana diz Barrantes: -- «... yncitado el rey Don Fernando por el duque de Medina Don Iuan de Guzman envio el Rey en el mes de Agosto de 1505 siete mill onbres, é ciento é noventa navios de vela é por capitan de la armada el alcaide de los donzeles é enbio á ganar á Maçalquivir, cibdad en Africa, é tuvieron tão prospera la fortuna que la ganaran é pusieran debaxo del yugo de Hespaña.»

-- No anno seguinte, em 1506, D. João de Gusmão tomava Cacaça e era feito marquez d'este nome, o que de resto não o consolou de lhe tirarem Gibraltar, pois que é n'esse mesmo anno que elle se queixa a Filippe I e obtém o alvará regio para rehaver a bem ou a mal «a sua nobre cidade.»

Carta de D. Jayme, nos Documentos, onde explicarei porque publico este documento, até agora inedito.

Yriarte, Ces. Borgia, 1889, escrevendo sobre os melhores documentos, conta assim o famoso episodio: -- «César et Lucrèce assistent à une fête de ce genre le 27 octobre 1501, et cependant, depuis le 15 septembre, celle-ci est mariée à Alphonse d'Este: après le souper, auquel le Pontifice a pris part on a fait venir cinquante courtisanes qui sont entrées en danse avec des serviteurs et des invités; d'abord revêtues de leurs contumes, elles ont bientôt ôté leur dernier voile, et ont a placé sur les sol grands candélabres qui éclaraient la table du festin; le Pape, le Duc son fils, et sa filie Lucrèce, jetant á terre des châtaigues, se sont amuses à voir ces malheuses passer et repasser, courbées pour les amasseir, à la lueur des candélabres ardents.»

-- «Don Jaime... fue el quinto duque de Bragança, quo yo conoçi, persona de muy grande estado y valor, ai qual despues de averse concertado el casamiento con Dona Leonor de Mendoça, hija del duque de Medina Çidonia, Don Juan de Guzman, como avemos contado, mandó hazer el duque de Medina en la su villa de Sanlucar muchas y muy grandes hestas, y para las hazer mas cunplidas se vino á la cibdad de Sevilha donde se hizieron las fiestas mas cunplidas y costosas, á las quales se juntaron todos los deudos y amigos de la casa de Niebla y los mayores señores del Andalucia en que uvo torneos de pie y de cavallo, justas, juegos de cañas, toros, aventuras y todo género de grandezas en que hizo muy y muy grandes gastos, y enbióla á Portugal á Villa Viciosa tan aconpañada de señores e cavalleros como si fuera una princesa, y de Portugal vinieron por el semejante muy grandes senores y gran cavalleriu de deudos y criados, vasallos y amigos del Duque con el, á recebirla.» Barrantes, l. c.

Os nossos escriptores nada dizem do caso, parecendo systematicamente silenciosos acerca da pobre Duqueza, da qual Barrantes tamberm não falla mais.

«He obra sua a casa de campo e Tapada da mesma villa... a qual se conserva ainda na mesma forma com grande numero de caça grossa e miuda...

Edificou o Paço de Villa Viçosa, porque os Duques viviam no Castello Velho desde o tempo do Santo Condestavel... e nelle esteve D. Jayme até o tempo em que casou. N'elle assistia a Senhora D. Isabel sua may... e aqui residiu até que casou seu filho, e então passou a Lisboa para a companhia da Rainha D. Leonor... He o Paço obra magnifica... Deu-lhe principio no anno de 1501.» -- Hist. Geneol.

No Panorama, 1841, publicou A. Herculano largo trecho da memoria em que João Baptista Venturino, da comitiva do embaixador ou legado, um sobrinho de Pio V, Miguel Bonello, mais conhecido por cardeal Alexandrino, descreve em italiano as jornadas d'essa embaixada (1571).

-- «O palacio, -- diz, -- é notável, bello, exterior e interiormente, e o mais aprasivel e commodo que até aqui vimos em Hespanha... exceptuando, porém, o paço real de Madrid.»

-- «... é o que eu esgravatei em papeis ineditos, que hão de vir a lume quando em Portugal se escrever historia sinceramente philosophica.» Cam. Castello Branco. -- Cavar em ruinas, etc.

Um dos livros mais raros da bibliographia portugueza, e tambem dos menos conhecidos. O unico exemplar que conheço, um bello exemplar, é o da Bibl. Nacional.

-- «Aqui começa o liuro chamado espelho de Cristina o qual falla de tres estados de molheres. E he partido em tres partes. A primeyra se enderenca, etc.»

In fine: -- «Por mandado de la muyto esclarescida reyna dona lyanor molher do poderoso e muy manifico rey dó juan segundo de portugal... Impresso en ha muy nobre e sempre leal cibdade de lixboa por herman de campos... Anno de... m d. y. xviij annos etc.»

É uma traduccão.

«... é alli les reconto el agravio quel rey Don Fernando é la reina Doña Isabel les avian fecho en le tomar contra su voluntad la cibdad de Gibraltar... hizieronle nueva merçed de Gibraltar é dieronle çedula é licencia capaz, é si se le defendiese, que la tornase por fuerza.»

Barrantes, l. c.

«Despues de esto enbio el Duque á su hijo mayor y herdero Don Henrique de Guzman, moço de hasta diez años, con mucha gente de pie y de cavallo á cercar la cibdad de Gibraltar por tierra, y tanbien enbió navios y gente que la çercasen por mar, y tuvieronla, cercada dos meses.» -- Barrantes, l. c.

Barrantes, l. c.

Arch. Nac, C. Chr. P. 1.ª , M. 6, doc. 47. -- Registr. com a data de 16 de julho de 1507 que deve ser má leitura por que seis dias antes morreu o Gusmão, seg. Barrantes e a inf. do arch. da Casa. Vid. Doc.

«... con gran triumfo de trompetas, alabales é ministriles altos é dozientos alavarderos delante de si todos vestidos de una librea á uso de Italia que el continuamente traia consigo de guarda.» -- Barrantes, l. c.

D. João tinha apenas quarenta annos.

Do primeiro consorcio sabemos já os filhos que teve: D. Leonor de Mendonça, D. Mecia de Gusmão, D. Izabel de Velasco e D. Henrique.

Barrantes conheceu-os todos. De D. Mecia, diz que fallecendo o marido, o Giron, lhe deixara uma filha -- «que se llama Mariana Giron de Guzman, é como agora ha diez meses fallecio su madre la condesa D. Mecia» etc.-- Da D. Isabel escreve: -- «está hoy monja no monesterio de la Reina en Burgos.»

Antes do segundo casamento, D. João teve tres bastardos, ou todos, ou pelo menos duas filhas, em D. Izabel de Çuniga, donsella da duqueza D. Leonor, sua mãe, -- bello exemplo para a filha, a que havia de ser a nossa Senhora Duqueza, que se educava em casa da avó! Essas filhas foram: -- D. Leonor de Gusmão que casou com um Benevides, segundo filho do senhor de Javal v, e D. Beatriz de Castella, que de pouca edade e formosa morreu. O terceiro bastardo foi Domingo de Gusmão, que se fez ou fizeram frade de S. Domingos no mosteiro de Santo Estevão de Salamanca.

Do segundo casamento teve D. João, o que veiu antes do breve pontificio, D. Alonso Perez de Guzman, -- «que sahio mentecapto» -- e veiu a ser Duque transitoriamente por morte do D. Henrique, -- D. Juan Alonso Perez de Guzman, nascido em S. Lucar a 25 de março de 1502, -- «el qual es hoy duque de Medina Cidonia»-- diz Barrantes; D. Pedro de Guzman, -- «que hoy es conde de Olivares,» -- D. Theresa -- «que fallecio mochacha,» -- e finalmente, o que nasceu posthumo e não viveu muito, D. Felix de Guzman.

Ver-se-ha que não é inutil saber estas cousas.

Barrantes, l. c.

«...se publicava quel rey Don Fernando queria descazar al duque de Medina de su muger Dona Maria de Archidona é casarlo con Dona Ana de Aragon, nieta suya.»

Barrantes, l. c.

O alcaide de Niebla era o pae de Pedro Mexia, o chronista que fez a Silva de Varia Leccion, diz Barrantes. O Rei D. Fernando nomeou governador dos estados e Casa de Medina Sidonia o arcebispo de Sevilha.

Caet. de Sousa, Hist. Geneol., etc.

Morreu D. Henrique em 20 de janeiro de 1513, com 16 annos de edade.

-- «... quando vino á Osuna á descansar con la duquesa Dona Maria de Archidona, doblosele con su conversaçion el mal de tal manera que los medicos no le supieron dar remedios.»

Barrantes, l. c.

Caet. de Sousa, Hist. Gen.

Espelho de Cristina, cit.

«De garcia de rresende estando el rey ê almeyrim a manoel de goyos q. estaua por capitam na myna e lhe mandou pedir q. lhe escreuesse nouas da corte as quaes lhe manda. Canc. Gen.

-- "E em os desenfadamentos lhe mandará guardar mesura e onestidade. E ensinarlhe a dizer antre suas molheres ê outra qualquer parte pallauras vertuosas e de boo exêplo taaes que aquelles q. as ouuyrem e onde forê reportadas dirã q. sayrõ de boa e sages e onesta sêhora.» Esp. de Cristina, cit.

J. de Santa Rosa de Viterbo, 1798, I.

Test. de D. Theodosio. Tresl. dos papeis de fóra. Provas do Liv. VI da Hist. Gen.

Soror Mariamia, 1889.

Nobl. do C. D. Pedro, etc.

Para os que gostam da especie:

-- «D. Affonso Pires Alcoforado, filho primeiro do dito Pedro Martins, succedeo a seu pay no padroado do Mosteiro de Bustello, e foi Sr. da Quinta de S. Romão na freguezia de Auriade do conc.º de Aregos, com.ª de Lamego, a qual tinha por honra quando se fiseram as inquerições de ElRei Dom.Dinis no anno de 1326 como se vê a fl. 29, teve tambem por honra o casal da Bouça no termo de Sinfaens, como consta das inquericoens de ElRey Dom Afonso 3.° no L. 1.° a fl. 90; foi rico homem de Elrey D. Sancho 2.º , e como tal confirmou a Escritura de contrato feito entre o mesmo Rey e as Rainhas D. Theresa e D. Sancha suas tias na era de 1223. Casou com D. Aldara. Gomes, f.ª de D. Gomes Viegas chamado o Frade (q. era bisneto por varonia do grande Egas Moniz) e de sua mulher D. Theresa Giz. Teve Martim Afonso A. -- Pedro Affonso A. s. g. -- Lopo Affonso A. -- Fernando Afonso A. -- Lourenço A. A. -- Vasco A. A. -- D. Constança A. A. mulher de Afonso Pires Velho -- D. Aldara A. A. que não casou e diz o Conde Dom Pedro q. foi boa.»

Francisco Xavier Vaz Pinto, Mem. Geneol. das fam. de algumas Provindas d'este Reyno, etc, 1749, Ms. da Bibl. Nac.

Este Pinto foi em fins de 1749 para a Bahia como Provedor da Casa da Moeda. É dos nossos melhores geneol. do seculo passado.

Este Antonio teve um irmão mais velho, Luiz Alcoforado, que segundo documento que existia na Gasa de Bragança foi algum tempo secretario do Rei D. João I, e casando com D. Mecia Gutier, teve um Simão Alcoforado, cavalleiro da Casa do Conde de Barcellos, o filho do Rei.

Manso Lima, Fam. -- J. F. Monterrovo, Nobil. Geneol., critico e hist., etc-- MMs. da Bibl. Nac.

D. Leonor de Brag., drama por Luiz de Campos, repr. no theatro de D. Maria, em 1877. Ms. da empr. Bicster, que me foi graciosamente facultado pelo sr. D. João de Menezes.

Adiante me occuparei d'este e dos mais trabalhos modernos.

Genebra Pereira Alcoforado, mulher de Christovão da Niga, nos geneologios.

«Genebra Pereira, filha do Alcoforado, mulher de Christovão da Veiga,» -- diz o Assento das Damas e criadas da Senhora D. Catharina, etc. Prov. do Liv. VI da Hist. Geneol. Este Alcoforado é tambem um Affonso Pires, do serviço de D. Theodosio, e tendo casado no tempo d' este com Isabel Sacoto.

Ha outra Genebra Alcoforado, filha dum Gonçalo Vaz Alcoforado e duma bastarda de Fernão de Sousa de Magalhães.

Outros geneol. porém, attribuem este caso de bastardia a diverso sujeito, a um Affonso Rrz. Alcoforado, filho segundo de Ruy Glz. Alcoforado, Senhor da Bemposta (Traz-os-Montes) e de sua mulher D. Filippa Vasques.

D'este dizem que não casára e sim tivera da tal Vicencia não só o Pedro legitimado em 1473, mas Diogo Affonso, dado como filho legitimo do Affonso Pires, a quem acima nos referimos. Esta foi naturalmente a confusão que fez desapparecer dos geneologios os nossos Alcoforados de Villa Viçosa.

Vaz Pinto, Ms. cit., etc. Aquelle Pedro Affonso apparece em 1527, como moço da Camara ou escudeiro de D. Manuel.

Vid. nota anterior.

Convirá dizer de passagem que o Convento não existia ainda na vida do Pagem.

Quem seguramente existia era a fundadora, a beata D. Isabel Cheirinha, que na sua casa, n'uma rua da Cadeija que não havia de ficar longe e desappareceu na ampliação do Castello, lançou o inicio da instituição formando um pequeno recolhimento a que chamou das mulheres de bom viver. Talvez o caso pegasse o nome á rua: -- offereço a hypothese aos antiquarios, que os ha, e excellentes, em Villa Viçosa, -- o intelligente e bondoso padre Espanca, por exemplo.

Suppomos que este Manuel Alcoforado será um que apparece escudeiro da Casa Real em prov. de 18 de março de 1534, que lhe manda pagar cinco mil réis de moradia. Arch. Nac. Corp. Chr.

No antigo termo de Villa Viçosa, freguezia de Nossa Senhora das Syladas, seg. Carv., ou Ciladas, ha uma herdade que conserva o nome de Alcoforada. -- Bapt. Chr. Mod. de Port.

No test. de D. Theodosio I (i5t33) allude-se a uma Maria Alcoforada, cujo marido fizera uma Capella no Mosteiro dos Agostinhos. O duque mandára-a desfazer, para fazer outra de sua conta, parece que por convenção com Maria Alcoforado em mão da qual diz que está o Alvará. Provas á Hist. Geneol., cit.

C. de Sousa, Hist. Gen., etc. Era fidalgo da Casa do duque, e recebeu o habito de Christo em 18 de junho de 1513.

Este Fernão Velho, de quem Luiz de Campos precisou fazer um apaixonado de quarenta annos, -- e apaixonado pela Duqueza! -- era realmente velho, e pae de D. Brites Velho, mulher de Francisco de Abreu, Senhor de Regalados. D. Brites foi a ama de D. Theodosio I.

Será necessario lembrar que não escrevo um romance? Tudo isto é textual. Vid. Does.: Auto, etc.

Aqui nos podiamos de novo emmaranhar no labyrinto geneologico dos Alcoforados. Ha uma Isabel Sacoto, filha, -- «conforme algumas conjecturas,» -- de Gonçalo Mendes Sacoto, que nos apparece casada no tempo e ao serviço de D. Theodosio (o filho de D. Jayme) ou da mulher d'elle, a Duqueza D. Isabel de Lencastre, com um Affonso Pires Alcoforado, neto, segundo os geneologios, d'aquelle outro Affonso Pires, que suppozemos ser o nosso, o pae do nosso Pagem. E não é só nos geneologistas que ella e elle apparecem, n'aquelle tempo, que então puderamos bem suspeitar uma das costumadas trapalhadas d'aquelles cavalheiros. É no «Assento das Damas, e Criadas da Senhora Dona Catharina, que erão e forão da Duqueza mulher do Duque D. Theodosio I» (1582?) Pr. do Liv. VI da Hist. Gen. n.º 218.

Ali se lê, entre as Moças da Camara: -- «Isabel Sacoto mulher do Alcoforado mil dobras que são 40$ reis.» E mais adiante entre os Moços dos Escudeiros da Senhora Duquesa, isto: -- «O Alcoforado tinha mil dobras em casamento, vendeu-as a D. Garcia de Albuquerque; tinha mais com sua mulher Isabel Sacoto outras mil dobras.» A esse casamento attribuem os geneologistas estes filhos: Miguel Alcoforado, que foi feitor da Sofala, D. Maria Pacheco, mulher de Henrique Pereira, senhor da quinta de Gege, e D. Genebra Pereira, mulher de Christovão da Niga (sic). Nenhum teve geração.

No doc. cit. apparece realmente como damas e creadas, etc. --

«D. Maria Pacheca, mulher de Henrique Pereira,» com 3$ dobras, e «D. Genebra Pereira filha do Alcoforado mulher de Christovão da Veiga» com 1$ dobras.

Parece evidente que a Isabel Sacoto que em 1512 era mulher que podia ter correspodencia com a Duqueza D. Leonor, não poderia ser a mesma que nos apparece servindo a esposa ou a nora de D. Theodosio, e casando então com aquelle Affonso Pires, também só então feito moço fidalgo, e que aliás pode ser neto do nosso.

Sem pretensões a erudição barata: -- estes vintens eram os reaes de prata de que faliam as Ordenações Manuelinas, e Aragão diz: -- «Encontram-se muito variados em tamanho, legendas e logar onde se acha collocada a inicial da officina,» etc. A sua equivalencia intrinseca na moeda de hoje é de 78 réis. Logo, os tres vintens ou as tres missas, se elles não eram a gratificação do Roseymo, 234 réis.

Era castigo usado para as travessuras dos pagens. Na Eticheta que se praticava com a Casa do Duque de Brag. D. Theodosio I, publ. nas Prov. do Liv. VI da Hist. Gen. lê-se a seguinte verba curiosa: -- «Aos moços fidalgos, e pagens. Criava o Duque o melhor que podia trabalhando por os fazer discretos, e de muito criança, e para isso lhe dava mestres de Grammatica, e rhetorica, e mestres que os empunham nas armas, e outros que os ensinavam a cavalgar a brida, e castigavaos por suas travessuras, ou pollo servirem mal, tinha muita conta com elles serem bons christãos, o castigo era muitas vezes açoutes, e isto em quanto não erão acrecentados como algûs fidalgos dos que aguora vivem o podem testificar, e tudo isto fazia por lhe não tomar avorrecimento por suas travessuras, ou desaquatos pera os enderessar em lhe merecerem muitas merces, e isto lhe ouvi eu açoutando algûs já crescidos.»

Que pouco mais teria que um anno, se não erra Venturino na edade que lhe dá quando com a embaixada pontificia a viu.

Como desejariam muitos litteratos ter encontrado a nota profundamente commovedora, communicativa d'esta phrase!...

Mais uma vez faço notar que todos estes dialogos são litteralmente textuaes. Que distancia que vae d'elles á linguagem postiça e fria que se põe na bocca dos personagens, ou mais propriamente dos titeres, de certos dramas pseudo-historicos!...

D. Catharina, segunda filha do infante D. Duarte (filho de D. Manuel) e de D. Isabel, filha do Duque D. Jayme e da Duqueza D. Leonor. D. Catharina casára com D. João, Duque de Bragança, filho primogenito de D. Theodosio. O contracto d'este casamento, feito em 8 de agosto de 1562, diz:

«Primeiramente elles ditos Senhores Duques de Bragança (D. Theodosio) e de Barcellos (D. João) diceram e declararam e affirmaram que haviam por dote a claresa da linhagem e real sangue da dita Senhora D. Catharina.»

É só no anno seguinte que o contracto se realisa, sendo já D. João, Duque de Bragança por morte do pae.

Outra filha, a primeira de D. Isabel e de D. Duarte, -- D. Maria, -- casou com o Principe de Parma, e um filho que tiveram foi tambem dos pretendentes: o senhor Rainuncio.

«Item: deixo a minha Livraria e todos os livros, que tiver, ao Duque de Barcellos meu filho, para que ande em Morgado, e não dará elle, nem os successores, da dita livraria nenhuns livros, sem comprarem outros como elles, que metão na dita Livraria.» Test. auth. -- Prov. do Liv. VI da Hist. Gen. N.°175, An. 1563.

«Lembre a missa que se soia diser em Ourem pela alma do Marquez de Valença. Lembre a missa que se soia diser em Chaves pela alma do Duque D. Affonso. Eu mandei saber ao Porto a S. Domingos das Donas, onde jas a Condessa D. Leanor daboim, mulher do Condestable D. Nuno Alvres Pereira se se disia algûa missa...

«Tenho dado ao mosteiro de nossa Senhora da Grassa de Villa Viçosa hum moio de pão na herdade de Beatris Gonsalves que ella deixou a N. S. da Grassa de Villa Viçosa em uma Capella no termo de Evora Monte. Mando que me digão em missas pela alma de meu avô, e de meu pae, e de minha maj e faser concerto com os Padres sobre isso.» Prov. á Hist., l. c.

E apenas outra vez incidentalmente D. Theodosio falia da mãe... se é que Caetano de Sousa não mutilou o testamento d'elle, como fez ao do pae.

O cas. do inf., cit.

Venturino, o da embaixada pontificia de 1571, diz:

«Depois da missa, voltando (o legado) ao seu quarto, encontrou á porta da Camara ducal, esperando-o, em pé, a infanta D. Isabel, filha do defunto duque D. Jaime, viuva do infante D. Duarte, filho delrei D. Manuel...

«Trasia um vestido preto affogado, cuberta quasi toda com o manto: é de estatura alta e direita, de idade de sessenta annos; ao pé della estava sua filha D. Catharina, duqueza de Bragança, a qual parecendo-lhe porventura abatimento de sua real grandeza intitular-se duquesa se chama: -- a senhora Catharina. Teria de idade vinte e nove annos. Trasia vestido de veludo preto affogado cheio de espiguilhas galantes de ouro, rubis e diamantes, com meias mangas abertas ao meio com rede de ouro, cabello liso e levantado em topete como usa a Rainha de Hespanha, com um rosicler de diamaates e rubis ao peito de inestimavel valor e pulseiras e brincos de grosissimas perolas. Pegava-lhe na cauda d'uma saia de gorgorão branco, que trasia por baixo, uma graciosa donsella, acompanhada de outras dez,» etc.

N'uma carta de D. Catharina ao rei Filippe, queixando-se da nomeação do Governador hespanhol para o Reino, diz-lhe:

«O Duque meu filho poderá esperar que V. M. o encarregasse d'este governo... porque é cousa muito sabida que sempre este Reyno foy governado por hua só pessoa, e que sempre foi a que nelle mais avia chegada em sangue ao Rei delle quando por algûa cousa o não podia por sy governar...»

E, talvez com fina ironia:

-- «Porem eu affirmo a V. M. por vida delle que nunca teve tal pretenção nem desejo... que se o elle desejara e V. M. disso o quisera encarregar, que eu fora pessoalmente pedir a V. M. me fisesse merce de lho não encomendar porque sei o que nestas materias mais convem ao Duque, e a seu descanso, e sou tão confiada no que mereço a V. M. que me persuado que para V. M. se não servir de meu filho neste logar teve V. M. as proprias considerações, porque eu ouvera de pedir a V. M. que lho não désse. Mas os emulos desta Casa não julgao isto assy, e querem e procurão que se cuide, que a minha pretenção passada he causa de V. M. não tratar de meus filhos, com a confiança que delles deve ter...» -- Prov. do Liv. VI da Hist. Gen., n.º 334.

O relatorio d'esta embaixada, extremamente curiosa, e que pude ler e lazer copiar nos Archivos de Veneza, será em breve publicado.

Jesus. Allegações de direito que se qffereceram, etc, 1580.

Descobrimos este André Angerino. Recebeu em 25 de março de 1553 a commenda de Santa Maria de Orada, por morte d'outro Angerino, -- Gonçalo Gil. Havia quarenta e um annos que succedera a tragedia, sendo elle muito moço então, se existia, que o nome só apparece no tempo de D. Theodosio I. Era morto em 1582.

O outro, o Gonçalo Gil Angerino, é que encontramos no tempo de D. Jayme, mas só muito depois da morte da Duqueza, recebendo o habito de Christo em 1526, e aquella commenda em 30 de março do mesmo anno. Do Valdarrama não damos noticia. Em compensação pudemos descobrir o Gonçalo de Azevedo, como criado de D. Jayme, recebendo a commenda de S. Marcos de Monsaraz, annexa á de Santa Maria, em 25 de janeiro de 1524. Mas tambem não ha noticia d'elle em 1512, em Villa Viçosa. Era morto em abril de 1551.

Os outros criados que encontramos no provimento das commendas, no tempo de D. Jayme, são Fernão Rodrigues, o camarista, Antonio Lobo, Pero Vasques, Pedro de Castro, Fernão de Sousa, Manuel da Fonseca, Martins Vaz de Sousa, Sebastião de Sousa; João de Sande, Francisco de Mello, Christovão Manuel, Manuel Pereira, Jorge de Almeida, D. João de Eça, D. Martinho de Tavora, alguns dos quaes entraram, naturalmente, depois, para a Casa.

Com este Henrique de Figueiredo encontrámos-nos já. Foi uma das testemunhas do casamento de D. Jayme. Que não estava em Villa Viçosa em 1512, cremos não soffrer duvida. O filho indicado, Heitor de Figueiredo, existia, é certo, -- nascera provavelmente no tempo de D. Jayme, pois que em 12 de outubro de 1527 lhe é consignada a commenda de Santiago de Monsaraz pela renuncia do nosso conhecido Pero Vasques. Devia ter morrido proximo de 1586, porque n'esse anno a commenda passa, «por sua morte,» a Affonso de Lucena, o que quer dizer que em 1512 seria uma creança, se já então existisse.

Mas a mãe, a mulher de Henrique de Figueiredo, senão este, -- D. Cecilia, -- chegou ao tempo da neta de D. Jayme, e seria naturalmente mais auctorisada informadora...

O D. Christovão de Noronha, que, pelos modos se cala, deixando fallar a mulher, apparece nos em 13 de novembro de 1582 recebendo do Duque D. João I a commenda de Santa Locaya de Moreiras, vaga por morte de D. Luiz de Noronha. Em 20 de março de 1600 renuncia a essa commenda, recebendo, dez dias antes, a de S. Salvador de Elvas.

Affonso de Lucena recebe do Duque D. João I a commenda de Santiago de Parada, vaga pela renuncia de João Tovar de Caminha, em 4 de janeiro de 1581, renunciando-a pouco depois, pelo que foi dada a Estevão Ribeiro Raposo em 11 de junho de 1582. Tinha tambem a de Santa Maria das Vidigueiras de Monsaraz, que egualmente renunciou, pelo que foi dada a Rodrigo Rodrigues em 12 de maio de 1589. Foi-lhe dada a de Santiago de Monsaraz, por morte de Heitor de Figueiredo, em 12 de abril de 1586.

As Allegações teem este titulo. -- Allegações de Direito, que se offereceram ao muito alto A- muito poderoso Rei D. Henrique nosso Señor na causa da socessão destes Reinos por parte da Senhora D. Catharina sua sobrinha... a 22 de outubro de M. D. LXXIX. -- Foram impr. em Almeirim em 1580.

Em 1580 dissera D. Catharina ou as Allegações, por ella:

--«...se elRei Catholico socedesse... não se conseruariam estes Reinos per si, mis ante; se ajuntariam aos de Castella & assi com tal vniam se perderia a gloria & o nome Portugues...

«Conforme a isto lemos que os Pouos destes Reinos entenderam ser muito prejudicial, ao bem comum, & a conseruaçam delles vniremse aos de Castella...

«Por que o maior mal que pode acontecer a qualquer Republica he vir a ser soseita a Rei & senhor estrangeiro...»

«Em outra (memoria) differente achey ser tambem o trato de Antonio Alcoforado com huma creada da Duqueza, e que este motivo, de que nascera a sua infelicidade.» Hist. Gen liv. VI.

Deve ter morrido proximo de 1558, pois que em 24 de fevereiro, a commenda de Bartholomeu de Rabal, que era d'elle, passou para Martim Vaz de Sousa.

Recebera esta commenda em 25 de agosto de 1521, sendo ainda guarda-roupa, e por morte de D. João d'Eça. Cremos ter dito já que era cavalleiro professo da Ordem de Christo, que em 1524 recebera a commenda de S. Pedro de Monsaraz e a da Caridade, e em 18 de maio de 1526 a de Santiago, renunciando-as em 1527, naturalmente para receber a outra.

Fernão Rodrigues, o camarista, apesar de velho em 1512, ainda vive em 1522, em que parece substituir interinamente o Pero Vasques.

Por intermedio do meu amigo o sr. M. Gomes, me communicou o sr. Marques de Xerez, bibliophilo distinctissimo, noticia d'esta edição de 1612.

O romance (Vid. Docs.) vem reproduzido no Romancero Gen. de D. Agustin Duran, t. II, sob o n.º 1240, com este titulo: -- "Romance dei duque de Braganza, D. Juan. -- El duque de Bragança, D. Juan, mata por injustos celos á su esposa doña Maria Tellez.» -- Dado como anonymo, mas colhido na Flor de enamorados, Duran acompanha-o de uma nota em que o compara ao do conde Alarcos e considera-o como -- «uno de los mas patéticos é interessantes que pueden presentar-se. La misma rudeza, incorreccion y falta de artificio con que está concebido y versificado, le dan un aire de verdad y sencillez que penetran muy dentro dei alma...» E depois o celebre colleccionador refere o caso... das Telles, ou da morte de D. Maria Telles!

No Cat. de docs Duran, aponta Dinares, e cinco edições do seu cancioneiro, sendo a 1.ª, a seguinte: -- Cancionero llamado Flor de enamorados, sacado de diversos auetores, agora nuevamente por muy linda órden y estilo, copilado por Juan de Linares» -- (Barcelona, 1375 , in 12.º ), -- e observa que esta antologia contém -«algunos romances historicos que imitan á los viejos.» É o que e o nosso.

«Esta memoria escripta por hum homem de juiso, e de grandes noticias, foi copiado de outra escripta em tempo muito anterior áquelle, em que viveo Tristão Guedes; porque os ossos da Duquesa forão trasladados do Mosteiro de Montes Claros para Villa Viçosa no anno de 1590, tempo que elle não podia alcançar para escrever que estavão em Montes Claros, pois faleceo no anno de 1696...» Hist, Gen., liv. VI.

A noticia d'essa memoria, ou mais propriamente do seu titulo, foi-me communicada pelo meu amigo e distinctissimo bibliophilo, sr. J. M. Nepomuceno, que a possuiu, mas que infelizmente quando a procurou para m'a facultar, reconheceu tel-a cedido com outros livros para a Allemanha, já n'este anno, sem me poder indicar a quem. O titulo seria pois: -- Copiosa relação da tragica morte da Duquesa de Bragança, em que se mostra a sua innocencia e a de A. Alcamforado, tirada de tradições e muitos papeis antigos. Pelo Licenciado Gaspar Dias de Landim da Villa de Arrayollos. Secundo a indicação do sr. Nepomuceno, era Ms. original, de 120 fls. em 4.º.

Apesar de que pelo titulo, e até pelo conhecimento de outros trabalhos do auctor, se vê que se trata de uma compilação do seculo XVII, -- sem duvida das lendas que Caetano de Sousa recolheu, -- quem sabe se até a memoria que este cala não era precisamente a de Landim? -- puz o maior empenho em encontrar o malfadado escripto, na Allemanha. Com a sua inexcedivel amabilidade, o nosso ministro, ali, o marquez de Penafiel, deu-se a um enorme incommodo por me satisfazer esse empenho. E sabendo que de outro escripto de Landim haviam copias, em bibliothecas nacionaes, procurei afincadamente n'ellas. Incommodei, ate, um intelligente cavalheiro de Arrayollos, o sr. Camará Manuel. Foi tudo baldado! Cotnpense-nos a fundada apprehensão de que a maldita memoria do licenciado não adiantará a quantas explorou o Caetano de Sousa, bem empenhado no caso.

Mas o Landim é que não é justo que continue no escuro, e em quanto não posso, que será breve, talvez, apresental-o melhor, direi que elle não é natural de Arrayollos, mas de Borba.

Em Arrayollos casou, em 6 de julho de 1605, com Francisca Barreta, filha de Nicolau Coelho e de Isabel Rodrigues, tendo dois filhos, um, Gaspar Barreto, que foi frade, com o nome de Fr. Gaspar de S. Pedro, e outro que foi Doutor ou Licenceado, como o pae, Nicolau Coelho de Landim, lettrado em Evora.

Rivara suppõe-lhe outro filho, Francisco Barroso de Landim, que, segundo Barbosa, foi juiz de fora da Certã, e era fallecido em 1670.

Além da memoria que não pude encontrar, escreveu outra, cujo original supponho ser o Ms. que possue o sr. Nepomuceno e eu tenho agora diante dos olhos: -- Copiosa Rellação das Competencias q houve neste Reyno sobre o governo delle entre a Rainha D. Leonor, e o Infante D. Pedro seu cunhado: comtudo o mais digno de memoria q nestes Rey nos passou desde a morte delReu D. Duarte ate a batalha de Alfarroubeira; em q foy morto o Infante. Composto e tirado de originaes de pena antiga; pello Licd.º Gaspar Dias de Landim da Villa de Arrayollos. Dirigido ao Excellentissimo Prince-pe D. João 2.º do nome Duque de Bragança.

Este D. João II é D. João IV. Não deixa de ser luminosa a simples confrontação dos dois titulos.

Emquanto no segundo se accusa expressamente a existencia de documentos originaes, no da memoria de D. Leonor falla-se só de tradições e papeis antigos. D'esta chronica que tenciono publicar, conheço e tenho estudado duas ou tres copias. E interessantissima. Landim era muito dedicado á Casa de Bragança, o que de resto lhe vinha de tradição e serviço da familia. Outro Gaspar Dias de Landim, foi natural de Estremoz, residiu em Evora, -- onde ha larga tradição de Landins, -- fidalgo da Casa Real, cavalleiro de Christo, e teve a commenda de S. Miguel da Terra da Feira, sendo além de tudo isto capitão-mór de Vianna do Alemtejo. Dispoz de uma capella em Estremoz, em 1531, casou pela segunda vez em 2 de outubro de 1563, tendo recebido de D. João III, carta d'armas em 1539. Sabemos até os baptisados dos filhos: -- Nuno, em 8 de outubro de 1564, André, em 31 de março de 1567 e Vicencia em 18 de fevereiro de 1569. -- Mem. da villa de Arrayollos, coll. e ord.ª por um natural da m.ª Villa (J. H. da Cunha Rivara). Evora, 1845. Ms. da Bibl. de Evora.

Em Villa Viçosa, no bello Arch. da Mis., encontrei no registo de um «Padrão de 11$000 rs. que a Senhora duquesa D. Isabel deixou ao collegio dos meninos orfãos da Villa» (1564), este ultimo Landim como contador da fazenda real na comarca da cidade de Evora e almoxarifado de Estremoz.

Este Landim, talvez fosse, posto que creança, contemporaneo da tragedia de 1512, mas ealou-se. Deixou ao descendente, -- neto, talvez, compilar as tradições, ahi proximo de 1640.

Curiosa coincidencia: -- só tarde, e muito depois de escriptas estas palavras, pude ler o drama de Gonçalves Dias, -- Leonor de Mendonça, ed. de 1868, -- no prologo do qual diz o poeta: -- «É a fatalidade cá da terra a que eu quiz descrever, aquella fatalidade que nada tem de Deus e tudo dos homens, que é filha das circumstancias e que dimana toda dos nossos habitos e da nossa civilisação, aquella fatalidade, emfim, que faz com que um homem pratique tal crime porque vire em tal tempo, n'estas ou n'aquellas circumstancias...

«Houve n'essa morte a fatalidade filha da civilisação qne foi e que ainda é hoje... O duque é nobre e desgraçado; da nobreza tem o orgulho, da desgraça a desconfiança, e do tempo a vida e a superstição. O duque é cioso, não porque ama, mas porque é nobre. É esta a differença que ha entre Othello e D. Jayme.»

Alma ou instincto de poeta de lei, bom Gonçalves Dias!

Anna Camella deveria pertencer a um dos ramos fidalgos dos Camellos dos geneologios. Ha até noticia de sujeitos d'este appellido no serviço do filho de D. Jayme.

Manso Lima, Fam. e Monterroyo, Nobil. 1743. Ms. da Bibl. Nac. Já na Soror Marianna dei o texto de Manso Lima. O de Monterroyo Mascarenhas, que é o mesmo, diz assim:

«Antonio Alcoforado, Page deste Duque D. Jayme, e por ser muy gentil homem e de boas prendas, se namorou delle hûa Dama da Duquesa D. Ioana de Gusman, e por elle lhe não corresponder ao seu amor se quiz vingar delle, e o accusou ao Duque dizendo q. elle tinha tratos ilhcitos com a Duquesa, de q se seguio matallo o Duque a elle e a Duqueza innocentemente como he notorio nas historias em 2 de novr.º de 1512.»

Esta allusão ás historias é uma insidia vulgar nos que as forjam no seculo XVIII.

Caetano de Sousa tambem diz:

«As memorias antigas, e modernas uniformemente affirmão, que morrera innocente, sem que se lea huma, que diga o contrario.»

Mente, e sabe que mente, mas a mentira tem vindo em copia de copia até hoje. Monterroyo não era mais escrupuloso.

E fazendo notar que os dois geneologistas erram o nome da propria Duqueza, é occasião de dizermos que geralmente anda elle errado na litteratura. Notou-o já o sr. Miguel Osorio Cabral, a quem, mais uma vez, me confesso penhorado pela cavalheirosa amabilidade com que me facultou consultar o archivo velho da Relação.

Diz o illustre magistrado e escriptor, nas notas do seu drama -- Os portuguezes de 1640, que «muitos lhe chamam D. Leonor de Mendoça e tambem ha quem a nomeie com menos observancia dos amigos estylos e rigores consuetudinarios da nobreza, D. Leonor de Bragança, por seu marido.» Preferiu seguir a dicção dos que -- «a nomeiam D. Leonor de Gusmão, dando-lhe o appellido principal de seu pae.»

Mas essa dicção é errada. A verdadeira é a de Leonor de Mendonça, e a rasão d'ella ficou explicada a pag. 18, 19 e nota 5 (na ult.), etc. E tanto não é indifferente a questão, que Leonor de Gusmão é outra filha, do segundo matrimonio, de D. João de Gusmão, a que casou com Valencia de Benevides, segundo filho do Senhor de Javalquinto, como fica dito em nota 6 de pag. 126, onde se errou typographicamente o titulo excentrico d'este ultimo sujeito. Em quanto a Mendoça por Mendonça é um hespanholismo mal soante, e mais nada.

Pois fatigámos-nos deveras em rebuscar velhos alfarrabios ineditos, desconhecidos, na maior parte, na Torre do Tombo, na Bibl. Real, na Bibl. Nac, no Arch. da Casa de Bragança, em Evora, em Villa Viçosa, etc, e por importunarmos amigos e estudiosos dedicados no Porto, em Barcellos, em Braga, n'outras partes. De perto de 50 codices consultados, destrinçámos os seguintes exemplos, menos fastidiosamente reproductivos. Notar-se-hia que a Lenda só começa a ensaiar-se nos fins do seculo XVI, como fica dito. Dos positivamente contemporaneos adiante fallaremos.

-- «D. Jayme filho deste Duque Dom fer.do q chamarão das pernas gordas... por morte desta mulher que elle matou cazou, etc.» -- Ms. do século XVI 1011/2 da Bibl. Real.

E a versão discreta de Goes.

-- «... E por morte desta mulher casou, etc. «-- Fam. de Port. Ms. da Bibl. de Évora. C. 117/1-8

É copia d'um nobiliario antigo e tem esta nota:

«Colige-se ser escrito o liuro de que se copiou este em tpõ delRey D. Ioão 3.°»

-- «... a qual Duqueza elle matou ás punhaladas por dizer q lhe fazião treição cõ -- Alcoforado seu page.» -- Linhagens dos Fidalgos, etc, por D. Antonio de Lima. Ms. da Bibl. Real. Sec. XVI.

Este D. Antonio de Lima falleceu em 1582.

-- «... e por morte desta mulher, que elle matou ás punhaladas, sem causa, por desconfiança que teve de que o offendia com hum criado chamado F. Alcanforado... » -- Nobil. de Port., por D. Antonio de Lima. T. 1. Ms. da Bibl. de Evora. Sec. XVII.

-- «... E por morte desta m.er que elle matou cazou, etc.»

-- «Livro de Linages da nobreza de Portugal tirado do Liuro do Conde Dom Pedro que está na Torre do Tombo, e de memorias antigas, e informações de pessoas curiosas para continuação do moderno.« -- Ms. da Bibl. de Evora. Cod. 171/1-11 -- Sec. XVII.

-- «Dom Jaimes fi.° deste Duque D. fr.do que chamarão das pernas gordas... e por morte desta molher que elle matou ás punhaladas por erro que lhe fazia com hum criado de sua casa por nome Alcoforado...» -- Ms. da Bibl. de Evora, 117/11-2 Sec. XVII.

-- «... e por morte desta mulher D. Leonor de Mendonça casou segunda vez...» -- Gerações de Portugal. -- Ms. da Bibl. Nac, t. 1.

É feito este geneol. quando Filippe III tinha uns vinte e um annos, por isso ahi por 1621.

-- «... a qual Duq.sa elle matou as puñaladas p. direr q. lhe fasia treição com -- Alcoforado, seu page...» -- Ms. da Bibl. Real.

-- Nobil. de D. Jeronymo de Athayde, «continuando o Livro das Linhagens dos Fidalgos de Port. de seu avó D. Antonio de Lima Pereira» (1633).

Este D. Jeronymo foi marquez de Collares e morreu em 1669. N'este ponto copia o melhor texto do avô.

-- «Dom lemes... o restituhio á caza seu tio elRey dom Manoel o qual o mandou tomar Azamor (porq. matara mal sua molher)... e por morte desta molher q. elle matou mal...» -- Ms. da Bibl. Real, Cod. grosso, S. 17.º -- Sec. XVII.

Este Codice foi feito em 1630, e é n'elle que se encontra a anecdota do Duque não querer comer, suppondo-se morto, a que já me referi.

-- «... E por morte desta m.er q elle matou mal...» -- Ms. da Bibl. Real. -- Nobiliario particular. Sec. XVII. Tem uma nota á margem, que diz : --«este D. Iames como se diz abaixo matou a m.er mal e por esta morte o mandou elRey D. M.el tomar Azamor...»

Não precisava da nota para se perceber que copiava apenas o chamado Cod. grosso, já citado.

-- «Ao S.or Dom Jayme de glorioza memoria f.° do d.° Duque Dom fer.do mandou vir de Castella Elrrey D. M.el e foy o suseçor, e ficou sendo o 4.º Duque de Bragança. Casou com a S.ra D. Leonor, esta, a quem matou injustamente está sepultada no Conv.to da Lux de Religiosos de S. Paulo.» -- Ms. do Conv. das Chagas de Villa Viçosa. -- Sec. XVII e XVIII. -- Com a seg. rubrica: -- «Neste caderno, Breuemente, se poderã ver a fundação, e quem sam os Padroeiros do Rial Mostr.° das Chagas,» -- etc.

Caetano de Sousa, se o tivesse visto, deduziria d'elle, como para a versão de Tristão Guedes, que tora escripto antes de 1590, por dar a sepultura de D. Leonor ainda em Montes Claros.

Pois o caso é só este: -- que na propria villa, e até n'um Convento, se perdera a tradição da triumphal trasladação para o Convento da Esperança!...

O Caderno, que é um pequenino livro de lembranças e transcripções avulsas, é do sec. XVII e até do tempo do Duque D. João II (D. João IV), e entra pelo sec. XVIII adiante, fechando com um modelo de certidão de approvação de noviça em 1793. Mas é realmente interessante. Facultou-m'o S. A. R. o Sr. D. Carlos.

-- «... e por suspeitas q. teue de lhe não ser fiel com hum criado a matou nos passo de Villa vissosa em hûa casa junto ao chão onde hoje se conserva a sua estatua de pedra, e se duuida ser uerdadeira a suspeita q. della teue. Ms. da Bibli. de Evora 117/2-21 Sec. XVII.

Como o facto andava obscurecido e viciado!...

-- «Por morte desta molher q o Duque D. Jayme matou a punheladas por lhe fazer adulterio com um criado de sua Casa por nome Alcoforado. Ms. da Bibl. Real, que tem a seguinte declaração: -- «Este livro de familias escrito por Manuel Alvares Pedroso he de B. de And. Leitão.» Sec. XVIII?

-- «Cazou primeira vez com D. Lianor de Mendonça... a qual D. Lianor o Duque matou por Adulterio entendendo q lho cometia com hum seu mosso da Camara chamado... Alcoforado que dizem se lançou pella janella, e os criados do Duque que o Esperava o matarã, e entrando o Duque com a Duqueza lhe mandou que se confeçasse, e chamando hum Mouro a mandou por elle degolar, o que o Mouro fez.» -- Familias dos Reys de Portugal por Jacinto de Pina Loureyro, t. I, 1761. Ms. da Ac. R. das Sc.

-- «Viuvo o Duque da Duqueza D. Leonor, que elle matou mal... Familias do Reino de Portugal por Diogo Gomes de Figueiredo, Tenente General de Artilheria Primeiro tomo copiado em Lisboa Anno 1770. Ms. da Ac. R. das Sc.

Este Tenente General ou quem o copiou diz muitas cousas inexactas. Confunde, por exemplo, varias vezes D. Jayme com o filho, D. Theodosio. Morreu em Lisboa a 17 de fev. 1684. A copia citada diz ter sido feita de outra que existia na Livr. do Marquez de Penalva, achando-se o original na do Cadaval.

-- «... matou sua 1.ª m.er por se dizer q. ella lhe fazia adulterio com hum seo moço da Camara a q.m chamauão Caforado.» -- Geneol. de Luiz da Motta Feo e Torres, 1769-1823. -- Ms. da Bibl. Nac. de Lisboa.

-- Quantos mais poderiamos citar!...

Ha em Evora um escripto, -- C. 105/2-7 que pelo titulo nos despertou alguma esperança. É um escripto realmente antigo, do seculo XVI, e intitula-se, pomposamente, -- Memoria das Duquesas de Bragança. Um perfeito logro.

De D. Leonor diz isto, por junto:

«A quarta Duqueza de Bragança foi D. Lianor, filha uniqua e herdeira do Duque de Medina Sidonia, Marques de cazaqua, Conde de Niebla, fronteiro mor de Andalusia, Capp.am gn.al do mar oceano, cazou com D. James 4.º Duque. E tiueram filhos. O Duque D. Theodozio, a Infante Dona Izabel, q. cazou cõ o Infante D. Duarte, filho delRey D. Manoel.»

«El Enano de las Mysas. Comedias y obras diversas con vn poema de las Cortes del Leon, etc.» -- Madrid, Maria de Quinones, 1654, 4.º

-- «Mas de cien comedias, repite en la dedicatoria de El Enano de las Musas, que llevaba compuestas d la fecha de 1654; pero tan solo se conservan de ellas unas treinta, poco mas, y algunas extremadamente raras... Atenido al producto de sus obras, vivia en Madrid por los anos de 1646 á 1654, sobrecargado de una familia numerosa.» -- Cal. bib. y bibl. del th. ant. esp. por D. Cayetano A. de la Barrera y Leirado. -- Madrid, 1860.

Uma comedia de Lopo de Vega, conhecida pelo nome de El mas galan portuguez ou de Duque de Vergança, que não é o original, comedia muito rara tambem, não importa ao assumpto.

O Romanceiro Portuguez ou collecção dos romances de historia portugueza, compostos por Ignacio Pizarro de Moraes Sarmento, 1841, Lisboa. -- Typ. do Panorama. -- A Duquesa de Bragança. Dedicado á III.ma e Ex.ma Sr.ª Baroneza de V. P.

Se Pizarro é o primeiro que poetisa, dramatisa, ou, mais exactamente, metrifica a Lenda em. Conto ou Romance corrente, entre nós, -- seria injusto deixar de dizer que Gonçalves Dias, o illustre poeta brazileiro, fazendo obra analoga, e com pouca mais felicidade, deve dizer-se tambem, é o primeiro litterato que reage contra a Lenda ou que lhe antepõe a verdade, a consciencia critica. Gonçalves Dias escreveu a -- Leonor de Mendonça, drama original em tres actos e cinco quadros, 1846. (Obras posthumas. Vol. 5.° S. Luiz do Maranhão, 1868, pag. 5-146) e diz no prologo:

«A acção do drama é a morte de Leonor de Mendonça por seu marido: dizem os escriptores do tempo (quaes?) que induzido por falsas apparencias, matou sua mulher; dizem-n'o porém de tal maneira, que facilmente podemos conjecturar que não foram tão falsas as apparencias como elles nol-as indicam. O auctor podia então escolher a verdade moral ou a verdade historica, Leonor de Mendonça culpada e condemnada, ou Leonor de Mendonça innocente e assassinada.»

O poeta opta pela segunda, por esta rasão que não vale mais discutir do que aquella distincção casuistica, romantica: -- porque -- «a obra artistica deve conter um pensamento severo, debaixo das flores da poesia deve esconder-se uma verdade incisiva e aspera, como diz Victor Hugo, em cada mulher formosa ha sempre um esqueto.»

Tivesse Gonçalves Dias acceite e profundado a verdade historica, -- simplesmente a verdade, -- e estou que o seu drama não lhe teria sahido mediocre.

Foi o mal, que em muito maior gráu, aconteceu a Luiz de Campos. O seu drama é como que um esforço desesperado da Lenda, esforço cuja sinceridade não temos ou não queremos ter o inutil direito de discutir, mas cuja inanidade é flagrante. Esse drama nunca se publicou, e já agora é o melhor que lhe póde ter acontecido.

Na litteratura brazileira ha ainda um poemeto de Frederico José Correia: -- Inspirações Poeticas e a Duqueza de Bragança, Maranhão, 1848, e na portugueza o drama em verso do sr. Alfredo Ansur: -- Leonor de Bragança. -- Lisboa, 1873.

Caetano de Sousa lança assim o episodio phantastieo: -- «He bem digno de memoria o que se refere (onde? quem?), de que usava meterse por largo espaço de tempo em huma cisterna, que está no quarto baixo do Paço de Villa Viçosa; e ainda se conserva a tradição, de que no rigor do Inverno baixava a ella, levado da lembrança d'aquella culpa, implorando a Divina Clemencia, donde se vê huma casa que por ser retirada escolhia o Duque, em que fez asperas penitencias.»

Em pleno romantismo a versão de Caetano de Sousa foi arrancada á sua pouco menos que esquecida e, apesar de tudo, monumental obra: Hist. Gen., e andou reproduzida, glosada e plagiada nos circulos litterarios nacionaes. A Revista Litteraria (15 ag. de 1838) deu-a, e o Panorama, -- a bella gazeta de Herculano! -- no art. que já tenho citado (n.° 71, set. 8, 1838) não deixou de registar muito seriamente, as seguintes extravagancias:

-- «Conta-se tambem que o duque arrependido da barbaria que praticára, costumava fazer penitencia mettido n'umas cisternas ou poços que ainda hoje existem. No quarto da duqueza (?) dizem que ainda se conhecem os rastos do sangue; e o oratorio onde ella resava, conserva-se no paço ducal, como estava no seu tempo, sem mudança alguma na disposição dos adornos, e todos lhe chamam ainda hoje a capella de D. Leonor.»

Escreviam-se e propagavam-se estas falsidades e absurdos em 1838 e muito depois. Creio... que se escrevem ainda!

No proprio Alemtejo, talvez até em Villa Viçosa, ha gente que está n'esta fé!...

Foi principalmente o nosso romantismo que deu vulto e curso á Lenda politica e depois cortesã, que ficára sepultada na volumosa obra de Caetano de Sousa: -- foi a Revista Litteraria e o Panorama.

Vid. Docs.

Ord. Men., l. c.

"... & dahi (de Catalayud) se tornou aho regno, & fez vida cõ sua molher, de que houue do Theodosio q ho sucçedeo, & dona Isabel que casou cõ ho Infante dom Duarte filho delRei dom Emanuel. Depois da morte da qual senhora oito annos, elle se casou no de Mil, & quinhentos & vinte, per vontade delRei dom Emanuel, com h~ua dama fermosa, prudente & discreta,... ha qual senhora ainda viue, com honrrada casa & estado que lhe ho Duque seu marido deixou.»

-- Chr. cit. Cap. LXI. Do casamento do dvque de Bragança dõ Jaimes, & da mudança que quisera fazer de sua vida, estado, etc.

O original d'este geneologio de Goes, que elle deixara na Torre do Tombo, desappareceu ha muito, creio que no seculo XVIII, não figurando já em catalogos dos fins d'aquelle seculo. Mas houvera tempo de copial-o, e por mim descobri, conheço e consultei cinco copias, pensando mesmo em publicar um dia aquella, sob todos os aspectos, interessantissima obra do grande historiador. Indical-as-hei todas:

-- «Livro 3.° das gerações que foi tresladado fielmente do liuro que o Iff. D. Luis mandou fajer ao chronista Damião de Gois, e está na torre do tombo archiuio Real deste Reyno de Portugal. Acrecentou até os nossos tempos prezentes a curiosidade de frey Bertolameu de Azeuedo o que se achar deste sinal para baxo - Anno 1638.»

N'esta copia a referencia á morte de D. Leonor é esta: «e por morte desta m.er que elle matou: cazou a 2.ª vez...»

- «Livro de Linhagens, de Portugal, por Damião de goes. Este huro he a copia verdadr.ª do original, que está na Torre do Tombo.»

A referencia é textualmente a mesma.

-- «Livro das Linhagens de Portugal Escrito por Damião de Goes, Tresladado e ordenado Por Bernardo Pimenta de Avellar ...O qual treslado foi extraido de outro de Antonio de Couto de Castellobranco f.° de Luz do Couto Fellix, Guarda mor da Torre do Tombo. -- Anno de 1713.»

Conserva identica a referencia que nos importa, e tem a seguinte nota: -- «Aduirtace q. o nobilliario q. escreueo Damião de Goes he o que vai desde a primeira folha the folhas 160.»

-- «Liuro de linhagens de Portugal composto por Damiam de Goes concertado e encadernado sentindo de Guarda Mor da Torre do Tombo Alexandre Manuel da Silva Escrivam della. Anno de MDCCXXXIX.»

A referencia é a mesma tambem.

-- « Treslado Do livro de geraçoens q fes Damião de Goes q. está na Torre do Tombo desta Cidade de Lisboa: o qual livro por certos respeitos dizem q. dezapareceo. Acrescentado em partes por Fr. Bartholomeu de Azevedo até aos nossos tempos de outros livros manuscriptos.»

Vê-se que é copia ampliada no seculo XVIII, da primeira citada, e a referencia á morte da Duqueza foi substituida por esta: -- «Matou sua inocente Mulher e depois cazou,» etc.

Desappareceu tambem este codice mas existem umas poucas de copias em Paris, Madrid e Lisboa. Aqui conheço umas tres, havendo hoje duas na Bibliotheca Nac, uma copiada da que o visconde de Santarem encontrou em Paris (Vid. Dicc. Bibl.) e outra que pertencia á bibliotheca do Marquez de Pombal. Em ambas, na declaração inicial de Damião Goes, está absurdamente errada a data, dando a de 7 de junho de 1508. Sixto Tavares, segundo Barbosa, morreu em 1525. O titulo do seu geneologio é este: -- «Livro. dos. principaes. linhagês de Portvgal. Composto. por. Sisto. Tavares, Qvatanario qve. foi. na Santa. Sé. de. Lisboa.»

Muitissimo interessante, este codice que já não tem titulo inicial, podendo porém, reconstruir-se pelo da ultima parte, que diz:

-- «L.° das Linhagês, E gerações q neste Reino de Portugal vem por via de bastardia começando do mais longe q se pode saber.»

Nas duas vezes que allude á morte de D. Leonor é assim:

-- «E foi casado duas vezes. ha primeira cõ dona lianor... q elle matou...»

-- «Depois q o duque dõ Jaimes matou a sua primeira molher a duqueza dona lianor o mãdou elRei dõ manoel seu tio có húa Armada...»

O geneologista parece ter assistido ao casamento do filho de D. Jayme.

Póde precisar-se uma das datas em que escreve, por dizer em certa altura: -- «... porq isto foi na era de setamta e sete anos. E agora são oitenta e quatro.»

Este Fr. Affonso merecia um certo estudo. Elle parece ter escripto outra obra, porque falando do «conde dom Anrique Anriques,» accrescenta -- «como já disemos ê sua cronica.»

O geneologio chega até ao duque D. João I, neto de D. Jayme.

Bibl. Nac, MMs. que foram da Casa ou Morgado de Vimieiro. -- Cod. Y, 2-51, tis. 148. doc. 83.

Dois empregados habilissimos e dedicados, srs. Raphael Bastos e Moniz, me indicaram este cod.

O testamento, que é de 10 de julho de 1520, tem a seguinte verba nas Tenças em vida: -- "Ho Alcoforado XXV reis.»

Como já disse, o sr. conde de Casal Ribeiro, não so com a mais fidalga amabilidade, mas com o intelligentissimo interesse d'um grande estudioso que é, diligenciou auxiliar- me procurando esclarecimentos junto de alguns eruditos hespanhoes e do actual representante da grande Casa de Medina Sidónia. Em 6 de novembro do armo passado eserevia-me:

«Com sentimento meu, apesar de toda a diligencia, nada tenho podido alcançar valioso... Apenas o Duque de Medina Sidonia pôde fornecer, extraindo do seu archivo, o apontamento junto, que confirma, mas não adianta ao que se sabe sobre a filiação de D. Leonor de Gusman... Canovas nada tem nem conhece que interesse ao assumpto. Menendes Pellayo pouco espera achar... »

O illustre bibliothecario da B. N. de Madrid, o sr. M. Tamayo y Bans, escrevendo-me em 22 de abril, diz:

«No he encontrado, sin embargo, nada que pueda a V. satisfacer pues unicamente he visto como V. sabra muy bien na noticia del casamiento de Dona Leonor de Guzman inserta en la cronica de los Duques de Medina Sidonia por Pedro de Medina.. y en el tomo 11 de las Illustraciones de la casa de Niebla por Alonso Barrantes Maldonado...

«Hay, como V. sabe, dos comedias, una de Lope de Vega y otra de Cubillo de Aragon, tituladas ambas El Duque de Verganza, y en ninguna de las cuales se trata dei asunto del asesinato...»

O sr. Pedro de Madrazo, pela Real Academia de Historia, em 29 de janeiro:

«Depues de detenida y minuciosa investigacion, en los Indices y Colecciones de la Biblioteca de este Cuerpo se puede asegurar que no hay en ella documentos referentes á dicho ascento.»

O sr. Romualdo A. Espino (Cadiz) em 30 de abril, diz-me:

«Como desde luego supuse, no hay rastro alguno de D. Leonor, ni de la Casa de Medina en esta ciudad, ni he podido tropezar con persona que me indique algun rastro ó me dê noticia de este suceso, dei que aqui y en Sevilla no se convien mas que las versiones de la tradicion, asegurandose que nada dicen las historias.. y alli (Sevilla) me he ocupado durante todo el mes de abril en investigar con empeno acerca de la catástrofe de la Duqueza de Braganza. Inutil afan: ni la Biblioteca provincial, que é bastante rica, ni la de la Universidad, ni la Colombina, que guarda manuscritos preciosos, ni los archivos dei Municipio ofrecen dato alguno relativo a la tal tragedia. Tambien entre los eruditos hes panueles corre la crencia de que ni cronicas ni historias dicen nada y que seria preciso registrar les papeies de la casa de Medina. Alli he dejado a un hueno amigo, persona peritisima y estudiosa, etç. Ayer mismo he recebido carta de otro amigo que me anuncia la esterilidad de sus pesquizas...»

O sr. José Aseneio (Sevilha) em 16 de fevereiro:

«Nada he podido encontrar. De la D. Leonor no tenia yo mas noticias que las que ofrece Barrantes em sus Illustraciones, donde nada se dice de haber sido asesinada por su esposo, y en tal ca rancia de noticias acudi á la misma casa de Medina Sidonia, á un intimo y docto amigo mio que ha registrado el archivo de la Casa, y me dice que no existe alli noticia alguna ni una indicacion de tan grave suceso.»

O sr. marquez de Xerez, em 4 de março:

«Aunque á mi tambien me interesa este asunto, nunca he podido saber mas de el que las que dá el romance autiguo cuya copia le mando, por si el sr. Cordeiro no lo conece. Le he copiado de un libro muy raro que si titula «Canciocerq llamado Flor de Enamorados... por Juan de Linares. Barcelona, 16 2, 12.º unico Romance que trae el dei Duque de Bergança.»

Em 1540, diz elle proprio, que estava em S. Lucar a consultar -- «los previllegios, escrituras y antiguedades de la Casa de Niebla para acabar este libro de las Illustraçiones que avia comcncado á escrevir en mi casa en la villa de Alcantara.»

É occasião de dizer o que se passara depois da morte do irmão de D. Leonor, do D. Henrique, em 1513, a 20 de janeiro, com dezeseis annos apenas, junto de sua esposa, a D. Maria Archidona, e até, segundo Barrantes, por estar junto d'ella: -- por «su conversacion» com ella.

Girão occultou algum tempo a morte do pobre rapaz, tratando de apoderar-se das terras do ducado, ajudado pelo pae e pelo Duque de Arcos. A viuva de D. João de Gusmão, madrasta da nossa Leonor, estava em Sevilha com os quatro filhos e queixou-se ao Rei Catholico. Tres vezes intimou este ao Girão que entregasse tudo á viuva, ou mais propriamente, ao filho mais velho d'este, mentecapto, como já vimos, e feito Duque por morte de D. Henrique. O Girão reagia, mas o seu alliado, o Duque de Arcos, trahiu-o, bandeando-se para o partido da viuva por casar a irmã com o segundo filho d'ella, D. João Alonso de Guzman, então de onze annos apenas! O Arcos era um espertalhão: -- calculava que o primeiro Gusmão, o idiota, não seria muito tempo Duque nem produziria successor. O Rei, porém, quiz este, assim mesmo, para a neta, como já a quizera casar com o D. Henrique: -- «aunque no era para casar por ser mentecapto, falto de juizio é seso natural, e sobre esto ynpotente,» -- diz, com a costumada franqueza, Barrantes.

Comtudo, este ultimo casamento realisou-se em Placencia, e os noivos, -- a neta do Rei e o Duque montecapto, vieram para Sevilha: -- «donde en la consumacion de las bodas se conocio claramente que de mas de ser el duque falto de juizio natural, era vnpotente é inhabil para engendrar.»

Isto porém não convinha ao Rei. Instaurou-se processo em que intervieram medicos, pronunciou-se o divorcio, e a pobre D. Anna de Apagão, a neta do Rei Fernando, passou a ser mulher do cunhado, do segundo Gusmão, que foi proclamado Duque, mallogrando-se assim o plano que levara o Duque de Arcos a atraiçoar o Girão. Foi assim que se continuou a geração dos Gusmões.

Esses parentes tinham proposto o casamento da filha de D. Jayme, primeiro com o conde de Oronha (Urenha) e depois com o de Benavente, e acerca d'este ultimo o condestavel de Castella escrevia -- «mui apertadamente» -- ao Duque, fazendo-lhe notar -- «ser tão gran senhor e ter todas as outras qualidades... e mais por serem suas terras tão visinhas ás minhas,» -- diz D. Jayme -- «que devo fazer conta que é em Portugal.» Mas D. João III não consentia que o Duque casasse os filhos em Castella, e elle então queixava-se a D. Antonio de Athayde, em 15 de dezembro de 1531, para que dissesse ao rei que esses parentes haviam de julgar que elle D. Jayme é que não queria taes casamentos: -- «agora já não posso ai fazer se não fallar-lhes claro, porque me não tenham em conta de ruim que diz o direito que cruel é quem não tem em conta sua fama...» Diz que lhes manda a resposta por D. Maria Velasco -- «para que ella seja testemunha com elles como não sou eu tão mau homem como elles cuidam.» Accrescenta que o Rei devia folgar -- «de ter por servidores estes tão grandes e tão parentes de meus filhos, e que tanto mostram que se prezam disso, e se até agora o não mostravam tenho tirado a limpo que D. Pedro Girão o estovava, porque sua mulher m'o mandou assim dizer.» -- Fern. Palha, O cas. do inf. cit.

--«Defendemos e poemos por ley, q nenhuû de qualqr estado e condiçam e preminencia q seja; assi nosso natural como estrageiro; posto q seja official darmas; em seu nome ou doutrê; nó seja tã ousado q em nossos revnos e senhorios sem nossa especial licença e autoridade rete; e desafie outro; ou requeira pera cõ elle retar;... sob pena de p esse mesmo feito perder todos seus beês mouees; e de rays pera a coroa de nossos regnos e mais perder quãto de nos teuer; e seer riscado de nossos liuros, etc.

E tãb~e aqlle q o reto a elle feito aceptar sem nosso especial mãdado.»

Ord. Man., tit. 4, liv. 5.

Panorama, l. c. -- Comtudo, o auetor d'aquelle quadro é o primeiro escriptor que manifesta o pressentimento da verdade naturalista da tragedia, nas seguintes palavras:

«Depoimentos de testemunhas, declarações de cumplices, opiniões de historiadores, provando muito contra ella não provam tanto como o sabermos do que é capaz um coração de mulher, a quem interesses de homens venderam como um objecto de mercancia, e a quem na primavera da vida arrancaram todas as esperanças de ventura e de amor. Adultera, o crime não era seu. Assassinada por D. Jayme, o seu sangue não devia cahir sobre este: mas sim sobre os ossos do duque de Medina Sidonia, sobre a cabeça d'el-rei D. Manuel e sobre a da duqueza de Bragança, sua irmã. Se D. Leonor era innocente, foram elles que a assassi naram... na Torre do Tombo existe ainda o documento que se exarou, e que, pela primeira vez, se publica n'este lopar.»

São inexactas estas ultimas palavras. O que o articulista publica é o auto; da devassa faz apenas uma pessima resenha.

- Esqueceu-me atraz annotar este nome, mas é claro que não me esqueceu procural-o nos archivos e geneologios. A familia Velho encontra-se de longa data no serviço dos Duques. Um João Velho, o Velho, foi recommendado pelo Duque D. Fernando I, a D. Fernando II, como «homem de prol,» que fôra seu secretario e vedor da Fazenda ducal, -- «sem ai fager que non fosse bon.» Vivia em 1541, e fez realenga a villa de Vianna do Alemtejo que antes era da Casa de Villa Real. Está sepultado na Matriz d'aquella povoação. Casou com Leonor Gomes Barreto.

Um neto ou bisneto d'este, filho natural de Alvaro Velho e de Lucrecia Lobo chamou-se Fernão Velho Barreto, mas não deve ser o nosso.

Os geneologios dão um segundo filho de João Velho com o nome de Gastão Velho Barreto, que mais me parece ser o nosso Fer não, sendo vulgar o erro dos nomes iniciaes. Este Velho apparece como fidalgo de D. Jayme e escrivão da sua fazenda em 1540, tendo estado em Azamor e sendo muito estimado do Duque. Casou a primeira vez com Beatriz do Rego e a segunda com uma irmã d'esta, Briolanja do Rego.

Comtudo, os Velhos não apparecem nas listas das commendas e do serviço dos Duques, da Hist. Gen. Ha ali alguns Fernões, mas são de Sousa, de Castro, etc.

E já agora, como atraz, n'uma nota, (pag. 218), não dei noticia de Francisco de Valdarrama, o pae da religiosa anonyma da Esperança, emendarei dizendo, que o sujeito apparece entre os officiaes da Casa de D. Theodosio I, como aposentador. João Gomes, o porteiro da «Senhora Duqueza» é talvez o João Gomes Vieira, moço das chaves, de D. Theodosio.

É a data do doc. publicado por Caetano de Sousa (Provas, etc. L. VI, n.° 129) sob este titulo: -- Carta de Editos tirada do Original, que conservo em meu poder, e ma deu o Padre Antonio dos Reys da Congregação do Oratorio, dignissimo Socio da Academia Real.» Começa assim:

-- «D. Manoel, etc. A quantos esta nossa Carta de citação per editos virem, ou della noticia ouverem fazemos saber, que Dom James Duque de Bragança nos enviou dizer per seu Procurador, que elle se queria livrar da morte da Duqueza Dona Lianor, sua molher, que elle diz que matou por lhe pecar na ley do cajameuto, e porque elle se queria livrar e mostrar por sem culpa em esta nossa Corte como he theudo fazer pera o que lhe temos dado nossa Carta de segurança, e por quanto pera se sobre o dito cazo hordenar feito e processo asy, e como deve, lhe era necessario serem citadas as partes a que a justiça pertencer... nos pedia que lhas mandassemos citar por nossas cartas deditos, etc.»

Pero no caso de morte onde alguú pedir carta de segurãça cõ defesa: mãdamos q ante q lhe seja concedida: as inqrições deuassas sobre a dita morte feitas e tiradas sejã vistas em relaçã pollo corregedor da nossa corte a q de taes feitos pertêcer o conhecimêto: e por outros desembargadores os quaes veja as ditas inqrições...

E se pollas ditas inquirições deuassas o feito nõ for muito claro: ê tal guisa q os julgadores pareça q rezoadamête sem outra falsidade se pode puar a reza e defeza allegada por parte do q pede a dita segurança: ê tal caso lhe seja dada a dita carta d segurãça cõ a dita dfesa. E qûdo as inqrições todas assi do pncipal como da defesa forê abertas e vistas ê relaçam: poderã esses desembargadores q do feito conhecerê ver o direito assi da parte da justiça: como do dito seguro: e fazer direito segundo pello feito acharem.

Ord. Tit. XLII. Liv. 5.

Em mais de um dos codices citados, atraz, por exemplo, no Mobil. part. da Ajuda e no Coei. grosso da mesma Bibl, se affirma terminantemente que o Duque fôra mandado á conquista de Azamor, por ter morto a mulher, e sabe-se bem que longe de ir violentado, se dedicou bizarramente á empreza, assim como o Rei o cobriu de auetoridade e de honras singulares, como que manifestando bem claramente que não se trotava de um castigo.

Carta de nomeação de D. Jayme e mais documentos relativos a formação da grande expedição. -- Sousa, Hist. e Prov. -- Arch. Nac, etc.

O fac-simile á margem é o d'este itulo no documento original.

Vid. II P. Cantigas da Côrte.

Vivia ainda quando isto foi escripto, e quem diria que tão cedo se fosse d'esta vida, aquelle bom e intelligente moço!

Soror Marianna -- A freira portugueza, etc. -- Liv. Ferin.

As da Conferencia Africana de 1884-1885. O conde era secretario da nossa legação.

Vid. P. III -- Documentos, onde incluo os que não poderam acompanhar a Senhora Duqueza.

A Senhora Duqueza, -- Lisboa, Liv. Ferin.

Carta de Estevão Paes a ElRei sobre terem provado bem os tiros de Berços inventados pelo mesmo Senhor e mandados fazer por João Goterres, acliando-se muito proprios para navios na experiência feita em Gata que farás para o pontal de Almada. 22 março, 1513. Arch. nac, cit. Diss. chr., t. V.

CC. circulares delRei ao Are, Bispos e Mestres participandolhes que enviava á Africa o Duque de Bragança e lhe declarassem a gente que com elle poderia mandar. 29 março, 1513. Id.

Affirmam que o Duque lavava ao seu soldo quatro mil Infantes e quinhentas lanças de gente escolhida das suas terras que tinha mandado exercitar por Gaspar Vaz, Pedro de Moraes e João Rodrigues que hia por Capitão da Guarda do Duque, e depois de chegados a Lisboa, mandou alistar mais mil homens, ao soldo delRei, de gente vagabunda, de que deu o mando a Christovão Leitão, todos quatro Cavalleiros muy valerosos que na guerra de Italia, onde muito tempo servirão, e oceuparão postos honrosos, conseguirão reputação: a todos derão graduação de Coroneis e ficarão cada hum com hum Terço ou Regimento de mil homens, aos quaes todos o Duque mandou fardar á sua custa de vestidos uniformes de pano branco com Cruses vermelhas no peito e nas costas e aos Coroneis e mais officiaes até Cabos de Esquadra deu vestidos de seda... Em quanto não embarcou esta gente, vinha ao Terreiro do Paço cada dia um Regimento... Hist. GeneaL, V.

...nós passámos hum nosso Alvara porque mandámos que as pessoas omiziadas que nos quiserem hir servir nesta armada... fossem seguros da feitura delo atee a partida... e nom fossem presos, reteudos, acusados, nem demandados, por malefícios, feitos civees, nem crimes que teverem feito ou cometido tée feitura delo tirando em os casos crimes segundo se nelle contem... Alv. 14 jul. 1513. -- Hist. Gen. P. IV.

Será necessario dizer que todos estes bellos versos tão portuguezes e tão singelamente encantadores, são da Exhortação da guerra -- «representada ao mui alto e nobre Rei Dom Manoel o primeiro em Portugal d'este nome, na sua cidade de Lisboa, na partida para Azamor do illustre e mui magnifico Senhor Dom Gemes Duque de Bragança e Guimarães, etc. era de 1513»?

Já agora uma observação que me não lembro de que tenha sido feita. Ha na formosa tragicomedia de Gil Vicente uma parte -- toda a primeira da Policena e algumas referencias do Clerigo, pelo menos, -- que é evidentemente de formação posterior.

Já a allusão do Clerigo Nigromante.

Astrologo bem acondoso,

á sciencia do Infante Dom Luiz, que era então uma creança de 7 annos, não deveria deixar de suggerir a suspeita.

Mas a Policena affirmando em 1513 que a Infanta Dona Izabel, então de 10 annos, será Imperatriz.

...de Castella e Allemanha,

como realmente veiu a ser em 1526, e que a Infanta Dona Beatriz, de 9 annos, hade

...ser casada

Nas partes da flor de lis,

como foi, quando a matrimoniaram, oito annos depois, com o Saboia, é que não pode deixar a menor duvida acerca de uma ampliação ou retoque posterior do auto. Nem é singular o caso, convém accrescentar. Se um dia poder prestar ao genial artista, a modesta homenagem de uma edição em que penso e trabalho, terei occasião de apontar outros casos semelhantes que provam o amor com que elle procurava aprimorar os seus trabalhos, e infelizmente tambem quanto elles teem sido pouco estudados, -- poucos lidos até! -- apezar de tanto se falar n'elles.

Gemes, James, Jacques, Jayme, lago, Thiago é o mesmo nome. Vid. A Senhora Dnqueza.

Arch. Nac, L. das Ilhas.-- Hist. Geneol., t. V.

Arch. Nac. -- Hist. Geneol., l. c.

-- «... a quem foram encarregadas todas as coisas da Armada pela sua muita experiencia, e foy por Capitão mór das Naos da India, e Provedor dos Armazens de Lisboa». Hist. geneol., l. c.

Azemmur, ou, com a formula franceza: -- Azemmour verte o traductor do Norhet-Elhadi, a interessante chronica da dynastia saadianna em Marrocos (1511-1670). Mercier, na Hist. de l'Afr. sept., escreve: Azemmor. Diz este: -- «Em 1513 o Rei Manuel lançou contra Azemmor uma poderosa expedição. Quatrocentos navios a compunham. O Duque de Bragança que a commandava desembarcou 8000 homens de tropas e 400 cavallos em Mazagão, depois foi bloquear com os seus navios a embocadura do Um-er-Rebia e desembarcar a artilharia e o material».

Mercier não conheceu os documentos portuguezes que são numerosos, entre os quaes o notabilissimo Relatorio do proprio Duque. Arch. Nac, Goes, Chr., Sousa, Hist. geneol., Quintella, Ann. etc.

Em carta de 30 de setembro de 1513, Dom Manuel informa o Papa, computando em 50 navios e 18:000 combatentes, a expedição. Em relação aos primeiros refere-se, decerto, apenas, ás embarcações «de gavea», e nos segundos não conta naturalmente a matalotagem e os voluntarios avulsos da ultima hora.

«Carta que o Duque de Bragança D. Jayme escreveu de Azamor a ElRey, quando tomou a Cidade; etc.» -- Hist. geneol., Pror., t. IV.

Um furunculo ou abcesso que lhe impedia montar a cavallo. Voltou quasi isolado, modestamente, desembarcando em Tavira em novembro (1513), indo cumprimentar o Rei em Almeirim.

Breve de 18 de jan. 1514, a Dora Manuel. Hist. Geneol. P. IV. n.° 107.

Bul. 28 nov. 1514.-- Id., id., n.° 108. As bulhas juridiccionaes entre os Arcebispos e o Duque deram que fazer por muito tempo na Côrte e em Roma.

Bul. 1517-1519. Id., n.° 109, 110, 111.

Devia ter nascido em 1488, porque o epitaphio da sua sepultura em S. Domingos de Santarem, copiado por Sousa, attribue-lhe 75 annos em 1563, quando morreu.

Hist. Geneol., t. V.

Dom Fernando de Menezes nasceu em 1463, casando moço, por amores e contra a vontade dos pães, com Dona Maria Freire, filha unica de João Freire de Andrade, Senhor de Alcoutim, d'onde lhe veiu o titulo de Conde de Alcoutim. Registam-lhe os geneologios os seguintes filhos: Dom Pedro de Menezes, 3.° Marquez de Villa Real, 2.° Conde de Alcoutim, e 5.° Capitão General de Ceuta; Dom João de Noronha, que morreu em 1524 batalhando em Ceuta; Dom Nuno Alvares de Noronha, que tambem governou Ceuta; Dom Affonso de Noronha, que alli serviu tambem e foi em 1549 nomeado Vice-Rei da India, e Dona Leonor de Noronha, de quem diz tambem Damião de Goes -- «que é muito lida e discreta».

Foi feito Marquez por Dom João II, em Beja, no 1.° de março de 1489. -- «Nesse dia vestido ElRey de gala e toda a corte, appareceo posto no seu throno em pé debaixo do docel e arrimado a um bofete, e com elle o Principe Dom Affonso e o Duque de Beja, assistido dos Grandes e Senhores da Corte, aonde o buscou o Marquez, que sahio de sua Casa a pé acompanhado de muitos Fidalgos, pessoas do Concelho de muita authoridade e nobresa que o cortejavão, precedido de trombetas, tambores, charamelas e outros instrumentos bellicos. Levava hum Fidalgo do Conselho o Estandarte com as armas do Marquez, outro a espada rica embainhada, e levantada com a ponta para cima», etc. -- Hist. Geneol., l. c.

Veja-se agora a prosapia e estadão: -- «Foy primeiro Marquez de Villa Real, e terceiro Conde da mesma Villa, Conde de Ourem, Senhor do Almeida, das villas de Freixel, e Arbreiro, Alcaide Mór de Leiria, Senhor (?) das Ilhas Canárias, que comprou a Dom Martinho d'Athouguia e depois vendeu ao Infante Dom Fernando Pae delRei Dom Manoel, Senhor das Villas de Chão de Couce, Pousa Flores, Aguda, Roupella, Avellar e Soverosa, Maçãas, Mouta Bella, dos Casaes de Ameixoeira, das Hortas de Lisboa, da herdade de Requeixada em Alemtejo, da Quinta da Lançada em Riba Tejo das villas de Freixal e Aveiro, dos Direitos Reaes de Tavira, do Dizimo do Pescado de Silves, da jurisdicção de Valença, do Castello de Vianna da Foz do Lima, dos Direitos das terras de Valadares, de juro e herdade, que comprou a Leonel d'Abreu, da terra de Ansura e seu Couto, e 3.° Capitão Donatario e Governador da cidade de Ceuta. Desta Praça lhe conferio ElRey o governo quando não contava mais de 20 annos de idade, sendo tão importante e sabendo ElRey que se arguira esta eleição pelos seus poucos annos, respondeo: « Os filhos da Casa de Villa Real já nascem emplumados». Hist. Geneol., l. c.

De Dona Brites teve estes filhos: Dom Fernando, o successor, Dom Antonio de Noronha que foi o primeiro Conde de Linhares, Dom Henrique de Menezes, Dom Diogo de Noronha, Dom João de Noronha de quem se conta que no dia em que disse a primeira missa, sendo conego regrante, Dom João II, que assistia, na occasião do Offertorio, lançara no prato da offerenda uma cedula que dizia: -- «Faço-vos Arcebispo de Braga, Eu ElRey» -- e elle modestamente não acceitara; finalmente Dona Joanna de Noronha. -- «Dos filhos bastardos que teve o Marquez, que forão muitos...» diz Caetano de Sousa, que se reserva tratar quando escrever da Casa de Noronha, talvez para não empanar o brilho da dos Menezes.

O contracto foi assignado em 27 de agosto de 1500, representando Dona Joanna, que estava em Leiria, o irmão Marquez, por procuração de 2 de junho. O dote da noiva foi de 41:600 3/3 coroas de 120 rs., mais um conto de prata, joias, etc. O Condestavel fez-lhe de arrhas 13:892 coroas com metade dos adquiridos. Foi em 4 de setembro de 1501, talvez pelo nascimento da unica filha, que Dom Manuel deu ao Condestavel a tença pessoal de 2 contos, -- uma bonita tença, para o tempo.

Nos Docs. encontrará o leitor estes interessantes documentos.

P. III -- Documentos.

Logo em 10 de junho de 1516 um alvará regio intima os officiaes do Marquez a não se intrometteram com a jurisdicção do Duque nas villas de Tras-os-Montes e Entre Douro e Minho.

Dona Leonor nasceu em Evora em 1488 e morreu em 17 de fevereiro de 1563, sendo sepultada no Convento de S. Domingos de Santaram, «onde, -- diz Caetano de Sousa, -- «se lê este Epitafio: -- Aqui jaz Dona Leonor de Noronha, filha de Dom Fernando de Menezes, segundo Marquez de Villa Real, e da Marqueza Dona Maria Freire, que falleceu sem casar de edade de setenta e cinco annos no de M.D. LXIII.

Publicou:

-- Coronica geral de Marco Antonio Cocio Sabelico des ho começo do mundo atee nosso tempo. Tresladada do latim em linguagê portugues, etc. Coymbra, etc.

A primeira parte em 1550 e a segunda em 1553.

Outra traducção, das Eneidas ou de uma decada das Eneidas de Sabelico, epygrapbada assim:

-- Este livro he do começo da historea de nossa redêçam, que se fez pera consolaçam dos que nam sabê latim, etc. Lixboa, etc. A primeira parte em 1552, e a segunda: -- Esta he a segunda parte. etc., -- em Coimbra, em 1554. Teve nova edição em 1570, em Lisboa.

-- Tratado da historia de Job, de que só ha noticia por Caetano de Sousa e Farinha dizerem que se imprimira no fim das Eneidas, mas que não apparece nos exemplares conhecidos.

Caetano de Sousa diz tambem que a traducção das Eneidas restante «se conservam manuseriptas», e Cardoso denuncia ainda um Tratadinho de meditações da paixão.

Sousa, Hist. Geneol., Card. Agiol, Lus., Leão, Jard., D. Nic. Ant. Bibl. his., Barb. Bibl., Far. Summ. Inn. Dicc.

Goes, Chr. -- Fructos de Goes era filho do mesmo pae, -- Ruy Dias, -- mas não da mesma mãe de Damião de Goes.

Ruy Dias casou quatro vezes. Da segunda mulher, -- Fillipa de Goes, teve Fructos, e da quarta, -- Isabel Gomes de Leme, -- é que teve, além d'outros, Damião de Goes. Em 1518, Fructos era moço da guarda roupa e figura nas moradias regias. Foi depois camareiro de Dom Manuel, e commendador da Ordem de Christo. Deu-lhe o Rei as saboarias que disfructara o pae, e casou com Isabel Perdigão, filha de Heitor Nunes Perdigão, feitor que foi da Casa da India, e de Catharina Ruiz, sua mulher.

Espirito concentrado, pensador, duramente trabalhado pela desgraça, procurava talvez nas preoccupações de uma vida pratica, positiva, -- nos negócios do Estado e na complexa administração da grandiosa Casa, -- fatigar e diluir as terriveis recordações do seu passado, como outr'ora, nas grandes caminhadas alemtejanas as insomnias, as sobre-excitações mysanthropicas do hysterico temperamento.

Hist. Geneol. e Provas.

Carta ao Rei pedindo mercês para Berrio: 6 agosto de 1515. -- Outra, em favor de Lopo Vaz de Sampaio que o Rei mandara vir preso da India: 16 de agosto de 1530. Arch. Nac. C. C. -- Hisl. geneol. -- Aragão, Vasco da Gama, etc.

Francisco de Sousa, Vid. P. II -- Cantigas, etc.

Canc. geral. Rumores calumniosos talvez, que não se podem apurar. O Geneol. de Goes, que não é dos mais discretos, é até por isso talvez desappareceu, no original, diz somente: -- João Rodrigues de Sá de Menezes, filho d'este Henrique de Sá é Alcaide Mór do Porto e Senhor da Terra de Sever, e foi casado com Dona Camilla, filha de Dom Martinho de Castello Branco, Conde de Villa Nova e Camareiro Mór d'El-rei Nosso Senhor de que houve estes filhos: Antão de Sá, Francisco de Sá, Pantaleão de Sá, Bastião de Sá e Dona Ignez de Noronha, mulher de D. João de Lima, filho herdeiro de Dom Francisco de Lima, Visconde de Villa Nova da Silveira, e a Dona Maria de Menezes, e Dona Francisca que é freira, e por morte d'esta Dona Camilla casou com Dona Catharina de Noronha, filha do dito Visconde de que tem estes filhos... » Liv. de Linh. de Port., por Damião de Goes, M. S. da Bibl. N.

Canc. geral. A impressão concluiu-se em setemhro (28) de 1516, e incluem-se n'elle muitas composições d'esse mesmo anno.

Francisco de Menezes de Vasconcellos, Canc.

G. de Res. Id.

Canc geral. Guiomar de Castro, Nogueira, Joanna de Sousa são nomes muito repetidos nos papeis do tempo com attribuições diversas. Seria muito arriscada para nós a applicação do cruel gracejo; não o seria para os contemporaneos. Viviriam ainda os gracejados, os seus immediatos parentes, pelo menos no tempo em que Garcia de Resende, com privilegio real, estampava o Cancioneiro!

Guiomares conhecemos umas poucas por aquelles tempos proximos: uma bastarda de Dom Alvaro de Castro que casou em Castella com o primeiro Duque de Najar; outra, irmã de Dom Pedro de Castro, veador da fazenda e privado de Dom Manuel; outras da Casa de Villa Real; uma ainda, filha de Dom Rodrigo de Castro o de Monsanto que foi embaixador de Dom Manuel; casou esta com um morgado de Figueiró dos Vinhos e Pedrógão, João Rodrigues de Vasconcellos.

Dona Isabel de Sousa ha uma que foi mulher de Luiz de Brito de Nogueira, morgado de Beja, mas um irmão d'ella casou tambem com uma Joanna de Sousa, filha herdeira de João Fernandes de Sousa, senhor de Bayão.

Canc. G.

«Diogo velho da Chancelaria, da caça. Que se caça em Portugal feita no ano de crysto de mil quinhentos, XVI». Id.

Gil Vic. O Velho da Horta.

Id. Auto das fadas.

Damião de Goes conta: -- «Frei João Sobrinho foi um homem grande lettrado, Provincial da Ordem do Carmo em tempo delrei Dom Duarte, e depois delrei Dom Affonso o 5.° seu filho foi Bispo de Ceuta e depois da Guarda e de uma justa raiz houve estes filhos Dom João Manuel e Dom Nuno, e esta justa raiz criou de leite a ElRei Dom Manuel e fundou de novo o Mosteiro de Jesus de Setubal onde acabou vida santa».

Mas uma nota á margem da nossa copia já citada do Livro das Linhagens, diz:

«É falso, porque nnnca foi Bispo, como consta do Cartorio do Carmo de Lisboa; Dom Fr. João Manuel, Religioso da mesma Ordem é que foi Pvovincial e Bispo de Ceuta e depois da Guarda e ElRei Dom Affonso 5.°, anno de 1470 lhe legitimou Dom João e Dom Nuno Manuel seus filhos; Livro 2.° das Legitimações f. 206. Este Bispo Dom João Manuel foi filho delRei Dom Duarte e de Dona Joanna Manuel, 3. a neta do Infante Dom Manuel, filho delRei Dom Fernando 3.° de Castella».

É exacta a nota. Este bastardo de Dom Duarte criou-se em casa do Condestavel Dom Nuno Alvares Pereira e professou aos 14 annos no Carmo -- «donde a merecimentos das suas virtudes foi elevado á dignidade de primeiro Bispo de Ceuta, depois Bispo da Guarda, e de Lamego» accrescenta Castro, M. de Port. O filho, -- do mesmo nome, -- que foi Camareiro-Mór de Dom Manuel e Alcaide-Mór de Santarem casou com Dona Izabel de Menezes, filha de Affonso Telles de Menezes, Alcaide-Mór de Campo Maior e de Ouguella, de quem teve Dom Bernardo Manuel e -- «Dona Joanna Manuel, primeira mulher de Dom Affonso Pacheco, filho de Dom Pedro Porto Carrero, senhor de Monguer e de Villa Nova de Freinoa em Castella, e assim houve outros filhos que morreram pequenos» -- Goes. O Dom Bernardo que tambem foi Camareiro-Mór e Alcaide de Santarem -- «por algum tempo», -- teve também uma filha -- «Dona Joanna que é freira»,-- diz Goes.

Canc. geral.

Idem.

Com. sobre a div. da Cidade de Coimbra, 1527.

Canc. geral.

Auto das Fadas.

Andava elle ás bulhas com os Macolos ou mais exactamente com a canalha do flibusteirismo inglez, quando isto foi escripto.

Que não era formosa, confessam-n'o os documentos contemporaneos, nossos e extranhos, que procuram attenuar-lhe a falta de formosura com o louvor d'outras qualidades, da -- «booa graça e boom despejo», -- por exemplo, como diz Pedro Corrêa, o embaixador de Dom Manuel, em 1517.

«... nom tem boos dentes e he pequena de corpo e parece o aynda mais por que qua (em Flandres) nom trazem chapys», -- accrescenta o mesmo. --V. Fr. D João, etc, n.

Mas á Lenda conveio fazel-a encantadora.

Convém observar desde já que Damião de Goes e o proprio Francisco d'Andrade, poderiamos dizer que o próprio Fr. Luiz de Sousa, apesar das illações e presumpções sentimentaes que este ultimo se permitte, registram o facto, mas não fazem a lenda, nem sequer a auctorisam os dois primeiros, como aliás se tem imaginado e dito. É absolutamente phantasista que o grande historiador, -- contemporaneo, mais ainda, testemenha directa do facto, -- insinue, deixe perceber ou auctorise a suppôr que no desaguisado entre o pae e o filho, ou no casamento d'aquelle, entrasse qualquer obsessão amorosa por Dona Leonor, que de resto elle bem sabia, não só que não entrara, mas que não podia entrar.

Ann. de El-rei Dom João.

... o qual Condestavel Dom Affonso, estando em Beja, moço e na frol de sua edade veo adoecer de doença de que morreo no mesmo logar, no mez Doctubro dest'ano de M. DIII, de cuja morte el-Rei mostrou grande sentimento, por lhe ser muito afeiçoado. Deixou hûa só filha per nome dona Beatriz, q allem de ser muito discreta, foi hûa das fermosas, e bem dispostas molheres, q em seu tempo ouve nestes regnos, com as quaes partes, e nobresa de sangue, e bom dote q tinha, trouxe sempre opinião de casar com o Infante dom Fernando, filho terceiro del-Rei dom Emanuel, posto q fosse muito mais moço quella, mas por lhe isto nam suceder á vontade casou depois com dom Pedro de Meneses, seu primo com irmão --».

Goes, Chr., P. I, Cap. LXXXII.

P. III. -- Docs.

«... dos casamentos do Principe seu filho, com a infante Dona Leonor, filha delRei Phelippe, irmãa deste dom Carlos, e da Infanta donna Isabel sua filha com o mesmo dõ Carlos cousa em que auia muitos annos que trabalharia e sobre que mandara o leeeneiado Pero de gouea abo Emperador Maximiliano, e a elRei Phelippe seu filho pai deste Rei dom Carlos no tempo que faziam guerra a dom Carlos derradeiro duque de Geldres, sobelo qual negocio mandara tambem Thomé lopez dandrade que o então seruia de feitor em Flandres, e o foi depois da casa da India ao Emperador Maximiliano que achou em Isprug... e mandou depois com o mesmo negocio ao dito Emperador, Pero correa, o qual neste tempo ainda andaua naquellas partes de Flandres em sua embaixada». Goes, Chr. IV p.

Este Pedro Corrêa, ainda em 13 de janeiro de 1517, chegando a Bruxellas, escrevia a Dom Manuel, dizendo-lhe que o casamento de Dom João com Dona Leonor era desejado e approvado por todos, mas que por usual etiqueta não lhe fatiariam officialmente n'isso sem que elle fallasse. Arch. Nac. Cor., chr.

Lafuente, Hisp., de Esp.

«N'este tempo ãdaua elrei em pensamêtos de querer seruir Deus, apartado dos negocios do mundo, do q desuiado per cõselho de pessoas a q disso daua conta se resolueo em se querer aposêtar no regno do Algarue, e cõ as rendas daquelle regno e do mestrado de Christus, fazer dalli como fronteiro guerra aos mouros, e ter os logares que tinha em Africa prouidos de todo o que lhes fosse necessario...» Goes, Chr., IV p.

Dom Carlos desembarcara em Villa Viciosa nas Asturias, em 8 de novembro de 1517. -- Lafuente, Hist.

«... o author principal q fez vir este casamento em effecto, foi o sobredito Guilhelme de Crui senhor de xeures, q absolutamente gouernaua elrei dom Carfos, pelo qual seruiço lhe mandou el-rei dom Emanuel dar hum rico presente, e o mesmo fez a sua molher que veo a este regno, com a rainha, e a duas sobrinhas do mesmo xeures q tambem vieram com ella hûa casada com monsieur de Fienes, e outra que depois casou etc, e o mesmo fez a monsieur de Treginy que veo por mordomo da rainha». Goes, Chr.

Nota curiosa: quando ainda n'esse anno se tratava do casamento de Dona Leonor com o Prineipe, o embaixador portuguez Pedro Corrêa dizia a Dom Manuel que convinha, segundo o uso, peitar este Chievres para consentir n'esse casamento dando-lhe 30.000 crusados.

Comprehende-se facilmente como tivesse de ser demorada a negociação, por causa dos outros negocios e das excursões em que andava envolvido Dom Carlos e sua Côrte. É sómente em 18 de maio de 1518 que Dom Carlos assigna a procuração para se tratar do casamento; sobre este escreve a Dom Manuel em 15 de junho; é de 16 de julho o contracto; em 23 de novembro chega á fronteira a nova Rainha, que é recebida da parte do Rei por Dom Jayme.

No dia seguinte é o casamento no Crato. Não custou pouco o arranjar a dispensa pontificia e é curiosa a historia.

É só a 29 de maio de 1518 que Dom Manuel communica ao seu embaixador em Roma, Dom Miguel da Silva a sua resolução de casar com Dona Leonor, e pede que lhe mande com urgencia a dispensa para o que lhe envia um credito, recommendando-lhe porém que veja se a obtem de graça fazendo ponderar quanto este consorcio é de serviço de Deus e favoravel ao socego dos dois reinos. Em 15 de junho, Dom Miguel da Silva informa que o Papa pedira 15 mil crusados peja dispensa e só depois de muito bulharem os dois, baixara a 4000 crusados. Expede-a o embaixador por especial correio. A bulla de Leão X, -- Oblate nobis nuper -- concedendo a dispensa é de 15 de junho de 1518.

«... ou que fosse algum movimento de carne e sangue, a que todo homem he sogeito, e a complexão dos Reys muyto mais que as ordinarias dos outros homens... » Ann., de Dom João III.

«...mas porque andando n'este proposito, veo a saber, que os privados do Principe dõ Joam seu filho lhe aeonselhauão alguas cousas fundadas em lhe ser desobediente se fez em outra volta, que foi casarsse com a Infante donna Leonor... tendoha dantes mandado pedir muitas vezes pera o mesmo principe seu filho, o que fez, por se assegurar de qualquer tornaram que lhe elle, per mãos conselhos quisesse dar...» Gies. Chr., p. IV. c. XXVI.

-- «EIRei dom Emanuel, pelas causas que atras appontei determiuou de se casar, pelo que sob cor de visitaçam, mandou Alvaro da costa...» Id., c. XXXIII.

Ora agora ouçamos Andrade, que altera, talvez, um pouco a ordem chronologica, enumerando primeiro as diversas apreciações da resolução real:

-- «Destas rezoes q eram as pubricas, e doutras q se dauaõ ensegredo, se disse q tomara motiuo Luis dasilveyra, guarda mor do principe e muyto aceyto a elle para lhe azedar a vontade cõtra elRey seu pay e preuer ter-lhe aquella sincera e verdadeyra obediencia q sempre lhe tiuera...» -- F. d'And. Coronica domuyto alto e muito poderoso Rey destes Reynos de Portugal dom Ioao o III etc . Lx. 1613.

O pae era Dom Alvaro de Athaide, o encarregado de se apossar da Excellente Senhora e do Castello de Santarem, e o que quando -- «da morte do Duque (Dom Diogo) foi avisado fugiu para Castella e levou consigo os outo centos crusados que os outros da dita conjuração tinhão dado para os gastos». Goes de quem é a referencia, accrescenta: -- «depois que El-Rey Dom Manoel reinou, por piedade do dito Senhor foi retornado a estes Reinos, e tornado á sua honra e estado não sem escandalo dos leaes portugueses que o viram e disiam que por suas grandes culpas e crimes não havia de haver tal favor», Livdas lin.

O irmão era Dom Pedro d'Athayde, e foi -- «dos escolhidos que havia de pôr ferro primeiro em El-Rey pelo que foi esquartejado na Villa de Setubal». Já agora, mas a respeito do Dom Antonio, o que havia de ser um Valido celebre, ainda uma nota de Goes: -- «... é Conde da Castanheira, vedor da fazenda delRey Dom João o 3.° com o qual valeu muito e por elle disem que se governou em seu tempo o Reino. Casou por amores com Dona Anna de Tavora, filha de Alvaro Pires de Tavora...»

«...com Luis da Silveira tratava (o Principe) as materias de conselho e sustancia, como com homem entrado em dias: de Dom Antonio fiava as mais leves e de seu gosto. De sorte que podemos diser que Luis da Silveira era o Parmenio que governava os exercitos de Alexandre; Dom Antonio o Effestion que amava». Ann.

-- «... mas aproueitauasse mais de dom António para seus passatempos polia conformidade dos annos». -- And. Chr.

«... sómente elRey sentindo ou imaginando q afamiliaridade e communicação de Luiz dasilveyra co princepe lhe fasia mudar algûa cousa da sua boa inclinação e natureza, buscou algûas cousas mais leues e menos asperas q esta (vide nota atraz) para o apartar da conuersação e do seruiço do princepe e lhe mandou q se saisse da corte e não tornasse a entrar n'ella...» . And. Chr.

Na longa enumeração que faz Andrade, das murmurações sobre o caso ha notas extremamente significativas.

-- «... hûs estranhauão muito o que elRey fizera, e dauam muitas rezões para ser mal acertado, outros as dauão tambem para o desculparem aprouando o casamento por bom e necessario a elRey, onde tiverão de q lançar mão aquelles que desejauão de semear escãlos e desauenças antre o principe e elRey seu pay; os q querião desculpar elRey dizião que o mouera a fazer isto receyo de ser daly por diante pior seruido e se lhe ter menos respeito do q ate então se lhe tinha se os fidalgos vissem o princepe cõ estado separado por sy, porque com isso estaua certo irense logo trás elle, pois ja então, sendo elle ainda solteyro, quasi todos o fazião polla brandura da sua condição e por ser o que auia de soceder no reyno e o que auivava este seu receyo era ver que tinha o Emperador por vizinho, o qual se elle acertasse de vir a ter algûa discordia ou desauença cõ princepe seu filho, de maneyra que chegasse a rompimento, como ja se vira outras vezes, mais se auia d'inclinar a fauorecer a parte do princepe sendo casado com sua irman que a sua, e desta maneyra ficaua o seu estado na cortezia de seu filho pollo qual lh'era a elle muyto milhor e lhe conuinha muyto mais ser elle o que se liasse por meyo deste casamento, para com elle ficar seguro de ambas as partes». T. de And. Chr.

Convém não esquecer, comtudo, que estas eram, como diz Andrade, -- «as rezoes pubricas», -- havendo mais as que -- «se davão ensegredo».

«No tratamento de sua pessoa se contentou sempre mais do seu trajo natural Portuguez que de quaesquer outras invenções das nações estrãgeiras, de tal maneyra que quando ElRey dõ Manoel seu pay cazou aterceyra vez com a Rainha dona Leonor... inda que vio que ElRey seu pay e toda a gête nobre da corte deixarão supitamente o seu natural trajo e se passarão ao extrangeyro por verem que a Rainha que então vinha de Fraudes onde se criara, e todas as damas, se vestião ha usança das Framengos, elle todavia nunca fez mudança do trajo que sempre costumara e nelle se affirmou que fisera vantagem a todos os da Corte na galantaria» -- And. Chron.

«... mas em algûas (cousas) mais leues dissimulou menos (o Principe) este degosto (do casamento do pae), por onde elRey quasi q. sentido disto, começou a se inclinar mais ao ifante dom Luis seu filho segundo, porém isto era somente no trato e cõuersação domestica e em cousas particulares.» -- And., Chron.

Vid. P. III -- Documentos.

Hist. geneol.

«Dom Pedro de Meneses, 1.° filho do Marquez... herdou a Casa de seu pae sendo conde de Alcoutim em vida de seu pae. Esteve em Ceuta onde se mostrou valente Cavalleiro e muito excellente Capitão. Foi o Marquez Dom Pedro de Meneses casado com Dona Brites, filha do Condestabre Dom Affonso e da Condestrabesa Dona Joanna sua mulher. Erão primos co-irmãos, filhos de dous irmãos, e ouve della filhos que morrerão meninos, e os vivos são estes: o 1.º Dom Miguel, conde de Alcoutim, e Dom Manuel e Dona Joanna mais velha que estes dois filhos e Dona Barbara e Dona Maria. Tem mais huma filha bastarda por nome Dona Margarida.» -- Goes, Liv. das Linhagens.

Dom Duarte, que se creou no Convento de São Jeronymo, chamado da Costa, junto a Guimarães, e que muito protegido pelo pae, veiu a ser Arcebispo de Braga.

Arch. da Ajuda. Noldiario grosso (1630) e outros. -- «...o duq .e dom Jemes, foi o de q se contão aquellas duas historias, huã... a outra historia foi q estando o dito Duq. frenetico, e dizendo q elle estava morto e q por isso não comia, vendo os medicos q seria cousa de grande fraquesa e d'ella resultaria morrer, fez hu seu artificioso medico hua noite visão q lhe mostrou q elle estaua viuo e q se não comesse auia de morrer...»

Liv. das Linh.

Lafuente, Hist. de Hesp.

«... llegó el rey no solo á perder todo miramiento para con su esposa, sino á maltrataria, ya no de palabra sino de obra, poniendola las manos en el rostro y los pies en el cuerpo»...

«... llegando los burgeses de Sabagun a llamarla siu rebozo meretriz publica y enganadora.» Lafuente, citando a Hist. Compost. e o Anonymo de Sahagtm.

Não foi bem assim, como summariamente conta o nosso Damião de Goes, que as causasse passaram. O que houve foi, primeiro, uma reconciliação dos dois consortes, depois e em breve nova discordia conjugal, e por isso, naturalmente nova prisão, d'onde a Rainha sahiu para a insurreição e a guerra formal, dedicadamente servida além de outros, pelos dois Condes, Dom Gomez Gonzalez de Candespina e Dom Pedro Gonzalez de Lara.

Que a nossa Dona Thereza, tivesse tido tambem o seu Conde, além do que lhe dera o Pae e a Egreja, e depois da morte d'este, é facto que já não soffre duvida. Mas ha chronicas e chronistas, aos quaes temos de accrescenlar Goes, Liv. das Linh., que affirmam ter ella tido, como a irmã, não um, mas dois Condes amantes: os dois filhos do de Trava, primeiro o Dom Bermudo Perez, depois o mais conhecido, o Dom Fernando Perez que a roubara violentamente áquelle e era casado na Galiza com Dona Sancha Gonçalves, viva ainda em 1142, doze annos depois da morte de Dona Thereza. Não se pense porém que estas cousas eram perfeitamente toleradas e acceites pela moral do tempo. Escriptor contemporaneo conta que um dia pregando em Vizeu São Theotonio na presença de Dona Thereza e de Fernando Perez, taes palavras disse que os dois sahiram, apressados e confusos, da Egreja. Port. Mon. Historica. Scrip. Mas pelo que importa á moral politica da epocha, tem uma certa graça a interrogação maguada do grave Lafuente: -- Qué movia ai (conde) de Portugal á pasarse con tanta frecuencia de uno á otro bando?...

Uma cousa muito simples e natural: -- o instincto, ou melhor, a intelligente comprehensão do proprio interesse e empenho politico. Em geral, os escriptores hespanhoes perdem a fleugma e o senso critico sempre que teem de falar da formação e da independencia de Portugal.

«Dos Fartados em Portugal, que se puderam alcançar, são estes: Affonso Furtado, foi um fidalgo honrado, em tempo dei rei Dom Pedro e del rei Dom Fernando e dei rei Dom João o 1 .° todos Reis de Portugal; foi Capitão-mór do mar destes Reinos; foi casado com D... filha de... de que houve a Affonso Furtado, e Fernão Furtado de que não houve geração.

«Affonso Furtado, filho deste Affonso Furtado, Capitão e anadel mór dos beeteiros, foi casado com Dona Constança Nogueira, filha de A.º Annes Nogueira, Alcaide-mór de Lisboa, senhor do morgado de São Lourenço de Lisboa, de que houve Nuno Furtado e Violante Nogueira e Duarte Furtado, commendador da terra de Santos, -- e por morte desta mulher casou 2.ª vez com Dona Rrites de Veragata, Valenciana, criada da Infanta Dona Isabel, mulher do Infante Dom Pedro o que morreu na Alfarrobeira, de que houve a, Diogo de Mendonça, e João de Mendonça o Carão, e Dona Maria de Mendonça, mulher de João de Brites, senhor dos morgados de S. Lourenço e de Santo Estevão de Beja, e houve uma filha bastarda etc. -- Liv. das Linh.

Cavalleiro fidalgo com 2$600 réis de moradia em 1518.

Tambem feito cavalleiro fidalgo com moradia egual á do irmão, e no mesmo anno.

Canc. G. -- «De garcia de rresende estando el rrey ê almeyrym a manvel de goyos q estaua por capitam na myna e lhe mandou pedir q. lhe escreuesse nouas da corte as quaes lhe manda.»

Les Borgia, etc, par Ch. Yriarte: -- «Les mots eux-mêmes ont changé de sens. César, au dire de l'envoyé de Ferrare est «fourni d'une grande modestie». Lucréce aussi est «modeste», ce mot revient à chaque instant dans les éloges que les ambassadeurs font de sa personne. On vaute beaucoup la «prudence» d'une jeune fille, et ce mot de «prudence» qu'on applique á Lucrèce, on l'applique aussi à son fivre dont le caractere est «exquis» (indole squisita). Oncroit rever... Cés. Borg., id.

P. II -- Cantigas da Côrte.

Dona Beatriz de Sousa, filha de Martim Affonso de Sousa e de Dona Violante Lopes de Távora, a filha do Senhor de Mogadouro, Pedro Lourenço de Tavora, na genuina phrase de Goes: -- «barregam de Dom Affonso, Marquez de Valença, Mae de Dom Affonso Bispo de Evora». Era irmã de Fernão de Sousa,-- «senhor da terra de Gouvea e Alcaide Mor da terra de Barroso por ser creado da Casu de Bragança», -- que casou com uma filha do primeiro Conde de Athouguia. Uma neta d'elle, Dona Joanna,-- «foi manceba do Bispo do Porto Dom João de Azevedo de que houve filhos bastardos Martim Affonso Sousa, que viveu em Castella, Antonio de Sonsa e Dom Manuel de Azevedo e João de Sousa e Pessival de Sousa, conego na Sé de Evora». -- Liv. das Lin.

Esta nau Loba encontramol-a citada em Quintella, Ann., n'um precioso Mss. de desenhos e indicações das Armadas da India, como fazendo parte da que sob o commando de Diogo da Silveira, e composta de 7 navios, partiu em 1523. Era capitão d'ella Pero da Fonseca. Deve ter sido em anterior viagem que ella levou Francisco de Sousa, não só porqne ao tempo d'aquella era já morto Dom Manuel, mas porque Goes e outros dizem que então, o capitão da nau era -- «Diogo Frz. de Aguiar, Guarda Roupa».

Deixou o pobre exilado os seguintes filhos: Dom Pedro de Sousa, que casou com Dona Violante Henriques, filha do Senhor de Bobadella de Ferreira, Simão Freire de Andrade; Dom Diogo de Sousa; Dona Branca de Vilhena, que casou com outro Freire de Andrade; Dona Joanna de Vilhena, que casou com Cosme de Lafeta, filho de um mercador extrangeiro; Dona Mecia Henriques, mulher de Manuel de Macedo, e ainda outras, que foram freiras.

N'um Ensaio Chorogr. do Conc. de Villa Viçosa (1849) Ms. da camara d'aquelle concelho, diz seu auetor, Caetano José Alves de Araujo, que Joaquim José Falcão, administrador da Casa de Bragança, fizera retirar o busto «de D. Jayme para Lisboa, o que se verificou.» Pois então repozeram-n'o lá. Creio porém que nunca se deu a tal remoção.

E ainda chamam feroz ao pobre Duque! Feroz tem sido a Lenda, que até tem exposto a supposta imagem do que tomou Azamor ás pontoadas de quantos idiotas e labregos se teem lembrado de exprimir assim a sua sensibilidade postiça.

Já agora deixemos registada a noticia de dois ou tres manuscriptos da Bibliotheca da Camara de Villa Viçosa. Porque tem uma Bibliotheca, -- diga-se em sua honra, -- aquella Camara intelligente. E uma boa Bibliotheca, que o estudioso P. Espanca, auxiliado pelos dignos presidente e vereadores e pelo zeloso secretario do Municipio, tem disposto e organisado dedicadamente.

O Ensaio Clur. a que acima nos referimos, nasceu da bella idéa que teve um governador civil de Evora de nomear uma commissão «para colher noções chorographicas sobre o concelho» (de Villa Viçosa). Como succede com todas as nossas commissões, um só trabalhou. Foi Caetano José Alves de Araujo, que em officio de 27 de janeiro de 1849 apresentou o seu trabalho.

Outro manuscripto é um volume de -- Poesias de João de Figueiredo Maio e Lima, etc, colligidas por Francisco Augusto Nunes Pousão.

Este Lima foi alferes de infanteria 22 e acabou em prior de Borba. Poetava facilmente, e não poucas vezes graciosamente.

O seu colleccionador, o Francisco Augusto Nunes Pousão, bacharel, compilou, em tom. II, áquelle, um -- Noticiario de Villa Viçosa e seu termo, etc.

Infelizmente, para o nosso assumpto, nada de importante e novo nos deram estes manuscriptos, nem outro muito picaresco de Sardinha, que ha na Bibl. Nac.

Do Sem, é que deve ser. -- «Chama-se do Sem por amor do morgado que herdou», -- diz Goes, falando de João do Sem, filho de um Alcaide-Mór de Torres Novas, Alvaro Fernandes de Almeida. Este Almeida casando com uma filha do Doutor João do Sem, chanceller-Mór de Dom João I deu origem aos do Sem.

«... o duq.e dom Iemes foi o de q. e se contão aquellas duas historias, hua da porçolana q. quebrou a criada de sua m.er dona Joana sendo ella ainda dama aqual lhe dicera q. ou lhe daria a mesma porsolana ou hu lobo uivo, e ella, quando socedeo quebrarselhe o mandou dizer a esse Duq. o qual da sua tapada lhe mandou hu Lobo uivo q. com grande dilig.cia foi tomado», etc. -- Bibl. Real. Nob. grosso , -- Nob. part

Na -- «Senhora Duqueza,» -- dei-me já ao incomodo, oudei-o aos leitores, de esboçar a grandiosa reconstituição da Casa de Bragança, da passada grandeza e riqueza daqual mal se forma hojerasuavel idéa. Facil fôra mostrar como tambem mal se apreciam as ausas da sua decadencia, que pertencem em 2/3 talvez simplesmente ás suas más administrações.

Padrão do 30$000 réis de tença, Liv. 10 de D. Manuel, Alvará de quitação de 6$000 réis, que havia de pagar de Dizima de certo Padrão, 14 de maio de 1518. -- Corp. Chr., etc. Arch. Nac.

Jorge Furtado de Mendonça, o irmão mais velho de Dona Anna de Mendonça, que foi Camareiro-Mór de Dom Jorge, o filho d'ella o do Rei, que lhe deu as Commendas de Sines e os -- «padrões e entradas» -- do Campo de Ourique quando Mestre de Santiago, o que casou tres vezes fidalgamente: uma com Dona Izabel da Cunha, filha do nosso João Rodrigues de Sá, a segunda com Dona Maria de Sonsa, e a terceira com Dona Guiomar Ferreira, filha do Senhor de Bonbadella, João Pereira.

Hist. Geneol., Prov., t. IV. -- Martim Affonso era primeiro filho de Lopo de Sousa e de Dona Beatriz, filha de João Rodriguas de Sá, Alcaide-Mór do Porto. Lopo de Sousa, que era, como o pae e avô, creado da Casa de Bragança, fora Senhor de Pavia e Balter, e aio dos filhos do Degolado do Evora. Nota curiosa de Goes, ácerca de Martim Affonso:

«Martim Affonso de Sousa... deixou o que tinha do Duque de Bragança por servir a ElRei Dom João o 3.° d'este nome; foi Capitão Mor de uma Armada ao Brasil e andou na India, no tempo de Nuno da Cunha por capitão do mar; trouxe muito dinheiro com que fez umas formosas e grandes casas junto a São Francisco de Lisboa e comprou Alcoentre ao Marquez de Villa Real e muitas rendas de juro, e este dinheiro houve andando por Capitão Mor na India quando ElRei de Cambaia quiz dar a fortaleza em Dio ao dito Martim Affonso que andou nos tratos e se viu com elle, e depois de tornado ao Reino o mandon ElRei Dom João o 3.° de nome á India por Governador, onde alcançou do Baleão muita somma de pardaos de ouro que mandou ao dito Senhor Rei e elle ficou desta vez muito mais rico. Foi casado com Dona Anna Pimentel, fidalga castelhana...» Liv. das Lin.

É a composição CXLVII do Canc, a que nos referimos já a ps. 66: -- De dom diogo filho do marqs aa senhora dona briatiz de vilhana a que elechamaua a periguosa. -- Este -- «filho do marquez», -- se era o do primeiro marquez de Villa Real,-- Dom Diogo de Noronha, -- já não seria muito rapaz, e confirmaria, de algum modo, a ironia de Rezende:

Os velhos são namorados Os casados são solteiros...

Satisfazendo os da orthographia fiel, deviamos reproduzir assim o -- Rifam -- :

Nã sespera outro rremedio de quem vyr a periguosa, se nam vida douidosa.

Entre as Vilhonas, que por diversas procedencias enxameiam a fidalguia portugueza, não é fácil precisar qual fosse a perigosa Beatriz. Seria, provavelmente, a Dona Brites de Vilhena, filha de Ruy Telles e irmã do Ayres Telles, de que adeante falaremos, que foi primeira mulher do Conde de Vimioso.

Estas trovas desencanlámol-as de uma longa serie que uma leitura incompleta da respectiva epygraphe tem feito suppor ser toda de Rezende.

Essa epygraphe, muito interessante, diz assim, originalmente:

« -- CCXXVI -- Estas corêta e oyto trovas fez Garcia de rresende por mandado del rrey nosso senhor para hû joguo de cartas se jugar no serã d esta maneyra. Em cada carta sua troua escrita y sam vynte e quatro domêes. s. doze de louuor e doze de deslouuor. E baralhadas todas hã de tyrar hûa carta em nome de foãa ou foão e em tam lela alto e quem acertar o louuor hyraa bem e quê tomar a de mall rryram dele. começam loguo os louvores das damas os quaes fez todos haa senhora dona joana de mendoça.»

Um Simão da Silveira foi commandante de uma nau da esquadra de Lopo Soares de Alvarenga, que partiu em 1514 para a India. Mas o poeta deve ser outro; talvez o segundo filho de Nuno Martins da Silveira e de Dona Filippa de Vilhena, consequentemente, irmão de Luiz da Silveira, conde da Sortelha. Casou com Dona Maria de Vilhena, filha de Sancho de Toar e viuva de Cristovão de Mendonça, irmão de Dona Joanna. Era Provedor-Mór das Obras do Reino, quando Goes escrevia o Livro das Linhagens.

-- «CXXXIX -- De joã rrois de luçena aa senhora dõa joana de mendoça porq.ª lhe mãdou arminha q.ª nã sayse hûs dias da pousada.

Senhora viuey contente

nam vs de nada paixão

porqª nam he sem rrazão

que quem prende tanta gente

saiba que cousee prisão», etc.

Este João Rodrigues de Lucena foi feito cavalleiro fidalgo com 1$400 réis de moradia, em 1518. Era muito latino. No Cancioneiro ha uma -- Resposta dulises a penelope tirada do sabyno de latim em linguagem por joam rroiz de luçena.

Foram muito da Casa de Bragança os Lucenas, e mais homens de lettras que de armas.

C. LIII -- Dosymão de myrãda porque vyo a cantigua na cabeça da señora dona joana de mendoça.

Como seria isto? Serviria de papelote?

Este Simão deve ser um filho de Ayres de Miranda, que foi Alcaide de Villa Viçosa, e irmão ou sobrinho de uma dama da rainha Dona Leonor, viuva de Dom João II. Foi commendador de Christo e Copeiro-Mór de um dos filhos de Dom Manuel, o infante Dom Henrique. Casou primeiro com Dona Maria Queimado, de Setubal, e depois com Dona Izabel de Castro, castelhana, filha de Martim de Salcedo. Era morto em 1540.

Encontramo-nos d'esta vez com um nome largamente conhecido, o que não quer dizer que seja tão facil e seguro ligal-o á pessoa, como se tem feito. Quem é este Ayres Telles, de tantas trovas e cantigas do Cancioneiro Geral?

É só um e o mesmo, esse Ayres?

O que se dá por assente, embora sem grande trabalho por assetal-o, é que é Ayres Telles de Menezes, como diz Innocencio (Dic. Bibl.): -- «filho segundo de Fernão Tello de Menezes, quano senhor de Unhão, Mordomo-Mór da Casa da Rainha Dona Leonor, mulher de El-Rei Dom João II.»

Antonio Lourenço Caminha, chama-lhe -- «ayo» -- d'aquelle Rei n'uma collecção de poesias que publicou, attribuindo-as ao mesmo Ayres Telles, attribuição que Innocencio, com a costumada petulancia da sua deploravel critica, verbera fortemente, dando-se ares de distinguir a palmos -- «a contextura e machinismo» -- da linguagem ou da poetica do tempo de Dom João II (que foi... 14 annos).

Deixando em paz esse caso, comecemos por dizer que o Fernão e não o Ayres é que foi Senhor de Unhão e Mordumo da princeza, depois rainha Dona Leanor. Teve realmente um filho, Ayres Telles de Menezes, que fazem companheiro e amigo d'aquelle Rei, parecendo até, confundil-o um pouco com Dom João de Menezes, o ayo e governador do principe Dom Affonso, filho de Dom João II. á morte desastrosa do qual assistiu, em 1491. Não se sabe porque, este Ayres fez-se frade de S. Francisco da Observancia, deixando testemunho da sua mundaneidade, não só nas cavallarias que fez. mas tambem n'um bastardo que se chamou Gaspar Telles. E este. pois, o Ayres que geralmente se considera como o do Cancioneiro. Pode haver duvida, e alimentarem-na, até, estas mesmas trovas, de moço e enamorado, a Dona Joanna de Mendonça, e a propria companhia em que as faz. Ora houve outro Ayres Telles, que deveria ser mais novo do que aquelle, e foi seu sobrinho. Este segundo Ayres era filho de Ruy Telles, o primogenito do Fernão e da mulher deste, Dona Maria de Vilhena.

Este Ruy Telles casou com Dona Guiomar de Noronha, e teve d'ella um Fernão Telles que morreu moço em Africa, o Ayres, que acompanhou Dom Jayme a Azamor e foi morto em 1514 na batalha dos Alcaides, e Dona Beatriz, a Perigosa do Rifão do «filho do Marquez», primeira mulher do Conde de Vimioso. Vê-se que estamos entre gente conhecida. Mas se este segundo Ayres fosse o nosso, as nossas trovas seriam anteriores a 1513, ou d'esse anno, quando muito. Que n'esse tempo já Dona Joanna andava nos Saraus, sabemol-o por Gil Vicente. E quando sejam realmente do outro, tambem não deitam além de 1515 ou 1516, é claro, cumprindo accrescentar que n'esses annos se tem posto a morte do Ayres que se fez franciscano.

Em se dizendo -- «o barão», -- é contar que é um barão de Alvito. A questão é se é o segundo, Dom Diogo Lobo, mas este era já casado em 1513, pois que um filho foi com Dom Jayme a Azamor e morrendo, antes do pae, foi o titulo ao irmão Dom Rodrigo Lobo.

Talvez Francisco da Silva de Menezes, filho segundo de Tristão da Silva, que fez varias vezes a viagem da India, e de Dona Margarida de Arca, filha do Chanceller-Mór, Doutor Lopo de Arca. Passou a servir na India em 1530, onde pelejou e morreu valorosamente, sendo capitão de Cochim.

Dom Francisco de Portugal, escudeiro fidalgo com 5$200 de moradia, em 1518?

Houve um, que foi vedor da fazenda do infante Dom Fernando, filho do Rei Dom Duarte; outro que casou com a filha do Doutor João do Sem, chanceller-mór de Dom João I, d'onde provém a prole dos do Sem.

De um d'estes, Antonio do Sem, veiu um Alvaro Fernandes de Almeida, que é naturalmente o nosso.

Citámos os primeiros versos d'esta trova, a pag. 54, mas sahiu errado o primeiro: -- tres ha -- por -- tres annos ha. Fica feita a errata. Este Francisco de Sousa não é, decerto, o filho do Sousa e genro do Barão de Alvito, que citámos a pag. 136, porque esse, quando foi a India, foi de vez: ensandeceu e morreu lá de paixão, mas pela mulher e pelos filhos. Não consta que lá tivesse ido em rapaz. Em 1509 sahiu para a India, na armada de Dom Fernando Coutinho, e commandando a Boa Ventura, um Francisco de Sousa.

Seria este o nosso trovador, que estivesse de volta ahi por 1512 ou 1513?

O que é certo é que um Francisco de Sousa, filho de Christovão de Sousa, andava na côrte em 1518, com moradia, como o Dom Francisco de Viveiros que entra n'este torneio poetico.

Os manes de quatro Diogos de Mello, pelo menos, podem disputar a paternidade d'estas trovas. Um d'elles foi mestre-sala de Dona Izabel, a Imperatriz (mulher de Carlos V); outro, Diogo de Mello da Silva, foi vedor de Dona Catharina, a mulher de Dom João III. Era este irmão do esmoler-mór de Dom Manuel, depois bispo da Guarda, Dom Jorge, de quem Goes, quando escrevia o Livro das Linhagens, diz, que -- «tem por manceba a Helena de Mesquita». -- O bispo entende-se. Este Diogo casou com uma filha de Miguel Côrte Real, porteiro-mór de Dom Manuel. Houve outro que foi capitão de Ormuz, e um quarto que morreu -- «indo para Rhodes».

O Alcaide-Mór do Porto, o da

Dona Camilla casou...

a quem nos referimos a pag. 54.

Mais exactamente, talvez, - de Viveyros, on Viveiros, -- como o encontramos feito cavalleiro fidalgo, com 3$000, em 1518.

Filho de Pedro Homem, escudeiro fidalgo com 1$600 réis de moradia e mandado a Safim, em 1518. Parece que estribeiro-mór, depois.

Foi -- «huns tempos», -- diz Goes, Reposteiro-Mór de Dom Manuel e -- «agora é» -- Gommendador de Christo. Casou com Dona Beatriz, filha de Pedro Botelho, juiz da Alfandega de Lisboa -- «de que não houve filhos nem fez vida com ella». Alguma aventura de fidalgo conquistador que tivesse de reparar assim.

Morta a primeira mulher, casou com Dona Izabel Henriques, filha de Francisco de Miranda de Vieira, de quem teve Bernardo Moniz. Para não faltar ao costume do tempo, teve tambem um bastardo, João da Silva.

Um irmão d'este Pedro Moniz casando com uma -- «Dona Leonor Lucinhano Espriana, de linhagem dos Reis de Chipre»,-- teve um filho, Febus Moniz, que foi Reposteiro-Mór de Dom Manuel, e que supponho ter sido avô do patriota do mesmo nome.

Certamente o que foi Guarda-Mór de João III e Conde da Sortelha: filho de Nuno Martins da Silveira e Dona Felippa de Vilhena. Casou com Dona Beatriz, filha do -- «Marichal» -- Dom Fernando Coutinho.

Não deixemos de dar satisfação, de vez emquanto, aos da orthographia fiel:

Sentido de quê nã sente queyra ds. quynda se senta descontente de contente do que mamym nã contenta.

Demais conversámos já acerca de quem seria o amoroso e elegiaco Simão, no cap. VIII.

Fielmente, reproduziriamos:

Se vedes polo que faço que o posso bem fazer he por cal nam pode sser,

-- Al, -- forma infelizmente obsoleta na linguagem litteraria, mas que se conserva ainda na popular, pelo menos na provinciana: -- «pron. ind. ant. (Do latim alivd, etc.) Outra coisa, mais, tudo o mais. etc. Vieira, Dicc.

Sinto sempre um verdeiro prazer em ter occasião de publicamente prestar a J. Basto, -- o dedicado, obsequioso e insubstituivel Archivista da Torre do Tombo, -- o meu agradecimento de estudioso, associando um testemunho mais, embora invalidoso, aos de quantos estimam e procuram a verdade da Historia cuja investigação honrada tem sempre entre nós, encontrado n'aquelle modesto e intelligentissimo successor de Goes, o mais generoso auxiliar.

Posso, e estimo dizer que a elle devo estas cartas, e as que se lhe seguem, como lhe devo outros muitos documentos interessantissimos, procnrados e prestados com a maior gentileza, e mal poderá apreciar o valor d'estas finezas e mais ainda o dos serviços d'aquella estimavel dynastia dos Bastos, do Archivo Nacional, quem não conhecer a desolada penuria de pessoal e de recursos em que a sua acrisolada dedicação tem de exercer-se, alli. E já agora, não deixarei de acrescentar aqui os meus agradecimentos á Bibliotheca Nacional e á Inspecção Geral das Bibliotbecas e Archivos, que muito lhes devo tambem.

Briatiz,, Beatriz ou Brites, dizia-se, indifferentemente.

Por não tornar demasiado volumoso o volume da -- «Senhora Duqueza», -- deixei de dar, ali, como promettera este interessante documento encontrado em copia authentica num dos livros do Conde de Castanheira, se bem me lembro, hoje na notavel bibliotheca de Fernando Palha, a quem renovo os meus agradecimentos.

As palavras em italico são as que faltam na copia viciada de Caetano de Sousa que por piedosa ou cortezã intenção, supprimiu na copia que deu nas Provas da sua grande obra, o trecho confirmativo do caso de 1512.

Caetano de Sousa, copia: -- «se ha feito».

-- «nem nenhû gasto outro» -- Id.

-- «nas avidas» -- Id.

-- «nem sa bordão senão» -- Id.

-- «s. tres da Trindade» -- Id.

-- «mo dito dia se poder ser dizemremse se digão»

-- «que lhe queira dar» -- Id.

Melhor talvez, como Caetano de Sousa: -- «apouzamento».

Erradamente em Sousa: -- «Agase».

Id. -- «e a elles aproveitamento».

-- «dos Martés» -- diz Caetano.

-- «e porque todo isto he» -- copia confusamente.

Todo este trecho necessario e luminoso foi sonegado e supprimido por Caetano de Sousa, evidentemente, por contrariar a lenda cortezã que elle se esforçou por consolidar da innocencia da «Senhora Duqueza». Diz elle que o Testamento -- «está no Cartorio da Casa de Bragança, donde o copiey». Mas não cita o livro, registo ou lugar. Eu não o encontrei alli, e creio que desappareceu. Deixaria Caetano de Sousa, intacto, aquelle testemunho da sua flagrante falsificação? Vid. -- «A Senhora Duqueza».

-- «em reis» -- ses. Caetano.

-- «de concertar» -- Id.

-- Apesar de ter mantido nas Provas, a data exacta, posto escrevesse á margem a de 1530, Caetano de Sousa, na Hist., diz que o testamento fôra feito em 21 de dezembro de 1830 e que o Duque morrera a 20 de setembro de 1532! E ha muita gente ainda que tem a obra do illustre geneologo na conta de um Evangelho.

Mas tanto foi em 21 de dezembro de 1532 que o Duque morreu que n'esse mesmo dia, se fez no Paço de Villa Viçosa o concerto entre Dona Joanna de Mendonça e o enteado, o Duque Dom Theodosio, para o exacto e completo cumprimento do testamento, por escriptura do notario Garpar Coelho, sendo testemunhas Ruy Vaz Pinto, o Camareiro e Secretario, Francisco da Cunha, o Licenceado Luiz Leite e -- «Mestre Amrique, fisico. » proprio Caetano de Sousa publica este concerto.