Recursos para a educação primária - Projetos e experimentos no século XIX
\n",
"\n",
"####
Renato Perim Colistete (FEA-USP)
\n",
"
rcolistete@usp.br
\n",
"\n",
"\n",
"####
30 de setembro de 2022
"
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"## Objetivos\n",
"\n",
"O que vou apresentar aqui hoje trata de um aspecto pouco conhecido da história econômica do século XIX no Brasil: o financiamento público da educação primária."
]
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"Vou apresentar essa história rapidamente considerando propostas mas também uma experiência importante, mas pouca conhecida de financiamento das escolas primárias."
]
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"Essa história precisa ser contada no plano dos governos provinciais e municipais, pois foram eles - não o governo central - que assumiram praticamente a totalidade da oferta de educação primária no Brasil na época. Em particular, usarei o caso de São Paulo como exemplo."
]
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"## Atribuições\n",
"\n",
"O debate sobre a instrução primária no Brasil recém-independente ganhou impulso com a formação das Assembleias Legislativas, conforme determinação do Ato Adicional de 1834 que reformou a Constituição."
]
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"A partir dessa época, as províncias passaram a discutir como organizar e financiar o ensino primário público que, de acordo com a Constituição de 1824, deveria ser *gratuito e universal*. Ao governo central, cabia a responsabilidade direta apenas sobre a instrução primária na Corte, com os governos intermediários sendo encarregados do ensino básico nas províncias."
]
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"Nada havia na Constituição que impedisse que o governo geral também contribuísse para o ensino primário nas províncias, mas prevaleceu o princípio de divisão rígida das atribuições entre as esferas de governo. Nenhum papel, por sua vez, foi conferido aos municípios, exceto (e eventualmente) o de fiscalização."
]
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"## Recursos e atraso\n",
"\n",
"Em São Paulo, a partir do final da década de 1860 um número crescente de publicistas e deputados passou a reconhecer mais explicitamente que a expansão da instrução primária requeria a mobilização em larga escala de recursos públicos."
]
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"Como afirmou o órgão dos liberais radicais em São Paulo em 1869, seria necessário:"
]
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"> “dar à instrução todos os recursos que tiver necessidade, por isso que acha-se sobejamente averiguado que o povo que tem melhores escolas é o primeiro sempre. Os Estados Unidos da América do Norte, a Inglaterra e a Bélgica aí estão para confirmarem esta asserção.” (O Radical Paulistano)"
]
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"## Reforma e frustração\n",
"\n",
"Inicialmente, os liberais radicais de São Paulo concentraram seus esforços em duas bandeiras: obrigatoriedade e liberdade do ensino. A Reforma da Instrução Pública de 1874 consagrou estes princípios."
]
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"A premissa de seus defensores (inclusive com adesão posterior dos conservadores) era que essas duas medidas seriam suficientes para a generalização do ensino primário. "
]
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"Mas poucos anos depois, os antigos defensores já reconheciam que os resultados sobre as matrículas das escolas\n",
"primárias eram pífios."
]
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"## Propostas radicais\n",
"\n",
"Foi a partir do início da década de 1880 que as propostas começaram a mudar de forma substancial, com republicanos (como Rangel Pestana) e uma parcela dos liberais defendendo uma reforma profunda da instrução pública."
]
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"O princípio básico dessas propostas foi descentralizar e democratizar, e de forma radical: com tributação local e participação direta de pais e moradores na direção das escolas."
]
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"O maior exemplo foi o projeto de Reforma da Instrução Pública de 1885 aprovado pela Assembleia Legislativa e pelo presidente da província, Almeida Couto (liberal), com apoio dos Republicanos. Duas medidas centrais: "
]
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"- conselhos municipais, com 2 ou 3 representantes eleitos por pais e professores e 1 ou 2 escolhidos pela câmara local, a depender do tamanho do município; "
]
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"- imposto de capitação de 1 mil-réis, constituindo um fundo escolar administrado localmente pelos conselhos."
]
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"## Reação conservadora\n",
"\n",
"A reação a estas propostas foi grande. Com a queda do gabinete liberal (Saraiva) e ascensão dos conservadores (Cotegipe, agosto/1885) no governo Geral, o novo presidente da província vetou a reforma do governo liberal de Almeida Couto."
]
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"A renegociação de um novo projeto eliminou justamente a representação direta de pais e professores: os conselhos municipais seriam formados agora por 2 representantes da câmara e 1 nomeado pelo presidente da província. "
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"Mesmo assim, o fundo constituído por imposto escolar (1 mil-réis), multas e doações foi mantido, sendo administrado pelos conselhos municipais de instrução. Esse foi o modelo adotado pela lei no 81 de 6/4/1887."
]
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"## Recursos para as escolas\n",
"\n",
"Ou seja, apesar de eliminar a participação direta da população via conselhos locais, a Reforma da Instrução Primária de 1887 ainda preservou a descentralização parcial dos recursos destinados às escolas."
]
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"Essa foi uma forma inédita (embora praticamente esquecida hoje) de enfrentar o crônico problema da deficiência\n",
"de recursos públicos para a instrução primária em São Paulo, inspirada em experiências internacionais e nas propostas de Tavares Bastos (*A Província*, 1870)."
]
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"Até então, os recursos para as escolas vinham exclusivamente do fundo geral de tributos do governo provincial. Os municípios nada contribuíam para a instrução primária (até os anos 1880)."
]
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"## Tributos\n",
"\n",
"As municipalidades de São Paulo dependiam essencialmente de tributos tradicionais sobre comércio, consumo e serviços para seus gastos correntes e investimentos."
]
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"Quando diversificaram suas fontes de recursos, as câmaras concentraram-se em atividades profissionais, artesanais e\n",
"manufatureiras de seus núcleos urbanos, eximindo as propriedades rurais."
]
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"No caso do governo provincial/estadual, o imposto de exportação (café) foi a principal fonte de recursos na maior parte do período."
]
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"Houve diversificação de tributos a partir de 1904, inclusive incidindo sobre capital e propriedades. "
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"Mas o imposto sobre a propriedade rural gerou apenas 0,2% da receita do estado de São Paulo em 1905 e 0,9% em 1920 – menos do que o de aguardente, com 1,5% em 1910."
]
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"## Imposto escolar\n",
"\n",
"Voltando ao imposto escolar criado pela Reforma da Instrução Pública de 1887 em São Paulo: qual foi sua importância para o financiamento das escolas?"
]
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"Por ser um típico imposto de capitação, os problemas com o imposto escolar eram bem conhecidos: por exemplo, recaía de forma indiscriminada sobre todos os indivíduos, à revelia de sua renda e riqueza."
]
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"Desta forma, a experiência de descentralização do ensino primário implementada pela lei no 81 de 1887 distinguia-se do modelo de financiamento das escolas nos Estados Unidos e Canadá (e países da Europa), que tinham no imposto local sobre a propriedade rural e não-rural a sua mais importante fonte de receita."
]
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"## Arrecadação\n",
"\n",
"A despeito de suas limitações, o imposto escolar arrecadou recursos expressivos nos primeiros meses de sua implementação (após mar/1888). As receitas foram administradas pelos conselhos municipais criados em 1887."
]
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"Até set/1889, o imposto arrecadou o equivalente a 16,6% do total das despesas estaduais com a instrução primária em São Paulo. "
]
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"Mas apesar dos bons resultados iniciais, o imposto escolar e os conselhos foram abolidos, paradoxalmente, pela Reforma da Instrução implementada pelos republicanos em 1892."
]
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"Para avaliar sua importância, vale formular o seguinte contrafactual: qual poderia ter sido a despesa municipal com ensino primário caso o imposto escolar fosse mantido após 1892?"
]
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"(o valor contrafactual da despesa na figura abaixo foi estimado assumindo-se que a arrecadação do fundo escolar cresceria ao mesmo ritmo observado pela receita real dos municípios de São Paulo entre 1889 e 1905.)"
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"###
Despesa efetiva e contrafactual
\n",
"\n",
"
"
]
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"source": [
"## Contrafactual\n",
"\n",
"O contrafactual sugere que a despesa das municipalidades financiada pelo imposto escolar ficaria em média *oito vezes acima* da despesa municipal efetiva entre 1894 e 1899 – 343 réis contra 44 réis (em termos per capita a preços de 1913)."
]
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"Entre 1900 a 1903, quando o governo estadual começou a subvencionar as municipalidades, o nível da despesa contrafactual ainda seria em média *duas vezes maior* do que o realizado pelas municipalidades (479 réis em comparação a 228 réis)."
]
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"Ou seja, parece certo que o imposto escolar, no formato estabelecido, não seria suficiente para atender todas as crianças fora das escolas (76% daquelas em idade escolar em 1907). Mas seus recursos não foram desprezíveis."
]
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"## Abandono\n",
"\n",
"O que nos leva à pergunta: por que o imposto escolar foi suprimido se o seu resultado em termos de receitas para a instrução primária foi expressivo? A razão parece ter sido basicamente política."
]
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"A administração do fundo escolar pelos conselhos locais (mesmo que expurgados da participação de pais e moradores) parece ter sido eficaz, mas isso não impediu sua eliminação em 1892 pelos mesmos republicanos que antes os defendiam."
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"Descentralização política e participação local eram tradicionanalmente vistas com desconfiança. Os conselhos municipais ganharam força no curto espaço de tempo de sua existência."
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"Além disso, o fundo escolar abria a possibilidade de introdução de novos tributos, sobre outras fontes - como a grande propriedade rural."
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"## E depois?\n",
"\n",
"Paradoxalmente, os princípios das reformas de 1885/87 foram não só abandonados, mas esquecidos pelo próprio governo republicano. É provável que a radical transformação das rendas públicas de São Paulo também tenha contribuído para isso."
]
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"A continuidade do *boom* do café e, sobretudo, a transferência do imposto de exportação para os estados sancionada pela Constituição de 1891 levaram a um grande aumento de arrecadação para os estados produtores."
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"source": [
"Para o estado de São Paulo, isso significou um *aumento real de 7,5 vezes* (!) nas receitas fiscais de 1905 em relação aos anos 1888-1889. "
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"source": [
"## Expansão e atraso\n",
"\n",
"E foi devido a essa expansão excepcional das receitas públicas que São Paulo saiu de uma situação intermediária em 1870 para a de um dos estados líderes da instrução primária no Brasil nos anos seguintes (ao lado de SC, PR, RS e ES)."
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"source": [
"Ainda assim, as taxas de matrícula do estado de São Paulo continuavam, em 1920, próximas ou inferiores aos índices dos países mais atrasados educacionalmente na Europa, como Portugal (53), cf. a seguir:"
]
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"###